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Segundo Hume, a metafísica tradicional é completamente especulativa, não tem por base a

experiência e tem por objetivo justificar as superstições populares. Isto leva-o a combater este género
de metafísica e a fazer aquilo a que chama a verdadeira metafísica. Hume associa a verdadeira
metafísica ao estudo da natureza humana, que tem por objetivo fazer a geografia mental ou anatomia
da mente, isto é, determinar os princípios mais gerais da mente, compreender como dão origem às
nossas crenças e comportamentos, permitindo assim estabelecer as capacidades e os limites do
entendimento humano. Por este motivo, o estudo da natureza humana constitui, segundo Hume, a
ciência fundamental, uma vez que todas as outras ciências, como são o resultado do raciocínio
humano, de uma forma ou de outra, dependem dela.

Como deve esta nova metafísica ser feita? Os filósofos que Hume critica, embora pensassem estar a
descobrir os princípios fundamentais do conhecimento e da realidade, caíram no erro de levar os seus
raciocínios mais longe do que a experiência permite e, por isso, a sua metafísica não é uma ciência.
Para que a metafísica seja uma ciência é necessário fundá-la na observação e na experiência. A
verdadeira metafísica não é uma investigação a priori, como a que Descartes fazia, mas uma ciência
empírica. Hume pretende fazer naquilo a que chama filosofia moral — as atuais ciências humanas,
como a psicologia, a economia, a ciência política, e disciplinas que hoje incluímos na filosofia, como a
epistemologia, a metafísica, a lógica ou a ética — o que Newton fez com sucesso na filosofia natural
— isto é, a física — e, desse modo, libertar o estudo da natureza humana da especulação e torná-lo
uma investigação empírica, que, a partir da observação e da experiência, chegue a princípios que
permitam explicar o conhecimento e a conduta humanas. Um aspeto importante deste método, tanto
na versão de Newton como na de Hume, é que a busca por princípios deve terminar quando se atinge
os princípios mais gerais que a experiência permite. Os limites do conhecimento são, assim, os limites
da experiência e hipóteses sobre causas ocultas — que não podem ser observadas — estão
completamente excluídas. Foi, de resto, pensa Hume, o facto de terem deixado de formular hipóteses
sem apoio na experiência, de terem deixado de especular, que permitiu aos filósofos naturais explicar
com tanto sucesso o mundo físico. A pretensão de Hume é fazer exatamente o mesmo na filosofia
moral.2

Em resumo, a verdadeira metafísica de que Hume fala não é uma investigação a priori sobre os
primeiros princípios, mas um estudo empírico da mente, que usa o método experimental e cujas
hipóteses se devem manter nos limites da experiência. Este estudo irá revelar as capacidades e os
limites da mente e, desse modo, estabelecer com rigor o que é possível conhecer. Por este motivo,
Hume é considerado um dos primeiros defensores do naturalismo, uma perspetiva polémica aceite
por vários filósofos e cientistas da atualidade, segundo a qual só a ciência — e nalguns casos, só as
ciências naturais — constitui conhecimento.

O projeto de Hume, portanto, consiste, por um lado, na eliminação da metafísica tradicional e, por
outro, na sua substituição pela ciência do homem. Concomitantemente, a sua filosofia tem uma fase
essencialmente crítica, cujo objetivo é eliminar as teorias erradas da filosofia tradicional, e uma fase
construtiva, constituída pelos princípios e teorias a que chega por intermédio da sua ciência do
homem.

A teoria das ideias

Para Hume, como vimos, o projeto da ciência do homem, ou a investigação da natureza humana,
consiste na análise da mente. Só fazendo essa análise, pensa ele, é possível saber a que questões é a
mente capaz de dar resposta e quais as que se encontram fora do seu alcance e das suas capacidades.
Recordemos, no entanto, que Hume pensa que este estudo deve basear-se na experiência e na
observação. Ora, aquilo de que a mente tem experiência — pelo menos, experiência direta e imediata
— é dos seus próprios conteúdos. Por esse motivo, o estudo da natureza humana centra-se nos
conteúdos da mente e não nos objetos que lhe são exteriores.

Os conteúdos da mente: impressões e ideias

A análise da mente revela que os seus conteúdos são de dois tipos: impressões e ideias, a que Hume
chama indistintamente percepções. As impressões distinguem-se das ideias pelo grau de força e de
vivacidade com que as apreendemos. As impressões são mais fortes e violentas do que as ideias. Por
“impressões”, Hume entende as sensações, as emoções e as paixões, como quando vemos, ouvimos,
desejamos, queremos, amamos, ou odiamos. As ideias têm menos força e vivacidade que as respetivas
impressões. A diferença entre impressões e ideias é, segundo Hume, óbvia. Para percebermos porquê
basta que comparemos a impressão visual que temos, por exemplo, da nossa casa com a ideia que
formamos dela quando não está presente aos nossos sentidos. A ideia da nossa casa é mais fraca,
menos viva, do que a impressão. E isto é assim, de um modo geral, com todas as impressões e ideias.
Quando estamos perante duas percepções, basta-nos comparar os respetivos graus de força e de
vivacidade para sabermos qual é a impressão e qual é a ideia. As percepções mais fortes e mais vivas
são impressões; as outras são ideias.

Impressões de sensação e de reflexão

Além de se distinguirem das ideias, as impressões também se distinguem entre si consoante derivem
da sensação ou da reflexão. Hume distingue, assim, dois tipos de impressões: impressões de sensação,
que são as que têm origem nos sentidos (cores, sons, odores, etc. juntamente com a dor e o prazer);
e impressões de reflexão (sentimentos, emoções e paixões como de amor e ódio, de orgulho e
humildade, de ira, benevolência, esperança, medo e desejo), que derivam das nossas ideias, por um
processo em que as impressões de sensação produzem ideias que, por sua vez, dão origem a novas
impressões. Por exemplo:

[P]rimeiro uma impressão atinge os nossos sentidos e faz-nos perceber calor ou frio, sede ou fome,
prazer ou dor de qualquer espécie. Desta impressão a mente tira uma cópia, a qual permanece depois
de desaparecer a impressão: é o que denominamos ideia. Esta ideia de prazer ou de dor, quando
regressa à alma, produz novas impressões de desejo e aversão, de esperança e medo, que podem
propriamente chamar-se impressões de reflexão, porque derivam dela. ( Tratado da Natureza
Humana, p. 36.)

Impressões e ideias simples e complexas

Além desta distinção das percepções em impressões e ideias, Hume divide também as impressões e
as ideias em simples e complexas. As impressões e as ideias simples são indivisíveis, isto é, não podem
ser decompostas em mais simples e são, por isso, as unidades cognitivas mais básicas com que a mente
trabalha. As ideias e as impressões complexas, pelo contrário, podem ser decompostas em impressões
e em ideias simples. Assim, a impressão e a ideia de Lisboa ou de uma maçã são complexas, uma vez
que podem ser decompostas numa miríade de impressões e de ideias simples, mas a impressão e a
ideia de escarlate são simples porque não podem ser decompostas em outras mais simples.
A origem das ideias: o princípio da cópia

Qual é a origem das impressões e das ideias? São as impressões que causam as ideias ou, pelo
contrário, as ideias que causam as impressões? Hume pensa que a primeira possibilidade é a correta:
as ideias são causadas por impressões que copiam e que representam exatamente.

Isto levanta, contudo, um problema. Podemos dizer que a ideia que temos de centauro é uma
representação exata de um centauro? Não, porque nunca ninguém teve uma impressão de centauro.
Podemos afirmar que a nossa ideia de Lisboa é uma representação exata da capital de Portugal?
Também não, porque muitos detalhes que percepcionámos não foram incluídos na ideia que temos
de Lisboa. Não é verdade, portanto, que todas as ideias tenham origem em impressões que
representam exatamente. Há ideias que não derivam de qualquer impressão correspondente (o caso
da ideia de centauro); e outras que, embora tenham origem em impressões, não constituem uma
representação exata dessas impressões (como é o caso da ideia de Lisboa). No entanto, isto acontece,
pensa Hume, apenas com as ideias complexas. As ideias simples são cópias e representam exatamente
as impressões correspondentes. Esta ideia é tão importante, que Hume faz dela o primeiro princípio
da sua filosofia e é costume chamar-lhe Princípio da Cópia. Hume apresenta-a desta forma no Tratado
da Natureza Humana:

[T]odas as nossas ideias simples no seu primeiro aparecimento derivam de impressões simples que
lhes correspondem e que elas representam exatamente. (Tratado da Natureza Humana, p. 32.)

Há, segundo ele, duas fortes razões para pensar deste modo. A primeira é que as impressões simples
ocorrem na mente sempre primeiro que as respetivas ideias, como o prova o facto de que quando
queremos dar uma cor a conhecer a uma pessoa, por exemplo, uma certa tonalidade de azul,
suscitamos nela a impressão dessa tonalidade e não tentamos, de forma absurda, suscitar a ideia para
que a pessoa tenha a impressão. A segunda razão que Hume evoca é a de que aqueles que estão
privados de um determinado órgão sensorial desde o nascimento, por exemplo, da visão, e, por
consequência, não têm impressões visuais, também não têm as ideias correspondentes.

O facto de as ideias terem origem em impressões resolve, segundo Hume, uma velha controvérsia.
Recordemos que, para Descartes, algumas ideias fundamentais, das quais todo o conhecimento
deriva, são inatas. Mas se as ideias têm origem em impressões, a que correspondem e que
representam, como Hume pensa, não há ideias inatas. Isto permite a Hume afirmar a sua tese
empirista fundamental: todo o conhecimento acerca do mundo tem origem na experiência e é
limitado àquilo de que temos experiência.

O Princípio da Cópia vai ser usado por Hume com um objetivo ainda mais importante do que resolver
a polémica entre racionalistas e empiristas relativamente à origem do conhecimento. Um dos
principais problemas da metafísica, segundo ele responsável por muito do seu descrédito, prende-se
com a forma imprecisa e descuidada com que as palavras e as ideias são usadas nos raciocínios. Há,
no entanto, um teste que permite resolver este problema. Este teste consiste em perguntar que
impressão está na origem da ideia que o termo refere. Se não existir qualquer impressão, o termo não
tem qualquer significado e é, portanto, ininteligível.

O Princípio da Cópia é, assim, também um critério de significado: permite, remontando às impressões,


determinar o significado efetivo dos termos e até se têm algum significado. Hume vai aplicar este
princípio a algumas das ideias mais importantes da metafísica, em particular, a ideia de substância e
de conexão necessária.

A associação de ideias

Hume pensa que, embora a mente, graças à imaginação, seja capaz de associar ideias e pensamentos
muito distintos, como quando pensamos numa montanha de ouro ou num cavalo virtuoso, e assim
produzir ideias que não têm correspondência na realidade, existem, no entanto, princípios que
regulam a forma como as nossas ideias se unem entre si. Estes princípios são três: semelhança,
contiguidade no tempo e no espaço e a relação de causa e efeito. O quadro seguinte exemplifica a
forma como Hume pensa que estes princípios associam ideias:

O problema da relação de causa e efeito

Relações de ideias e questões de facto

A teoria das ideias permite a Hume enunciar um conjunto de distinções e princípios relevantes para o
desenvolvimento ulterior da sua filosofia. Há, no entanto, uma importante distinção a fazer relativa
àquilo que pode ser investigado pela razão humana. Trata-se da distinção entre relações de ideias e
questões de facto.

As relações de ideias são conhecidas apenas pelo pensamento, analisando a relação existente entre
as ideias que as constituem. A verdade das proposições que expressam relações de ideias não
depende de qualquer estado de coisas existente no universo e a sua negação dá origem a uma
contradição. São verdades a priori, isto é, independentes da experiência, conhecidas por intuição e
por demonstração. É possível, por isso, conhecer estas verdades com total certeza. As proposições da
matemática, como “três vezes cinco é igual a metade de trinta” ou “o quadrado da hipotenusa é igual
à soma do quadrado dos catetos”, são proposições deste tipo.

Por outro lado, as questões de facto dizem respeito à forma como o mundo é e, por isso, a verdade
das proposições sobre questões de facto pode apenas ser estabelecida a posteriori, pelo recurso à
experiência. O contrário de uma questão de facto é sempre possível e a negação de uma proposição
sobre questões de facto não implica uma contradição, pelo que não é possível estar absolutamente
certo da sua verdade, como no caso das proposições sobre relações de ideias. Dada a forma como o
mundo é, a negação da proposição “O Sol vai nascer amanhã” é falsa, mas não implica uma
contradição, uma vez que é perfeitamente possível que o Sol não nasça amanhã.

As relações de ideias estabelecem relações de identidade entre conceitos e as meras leis da lógica
permitem conhecê-las com absoluta certeza. Com as proposições acerca de questões de facto não
acontece o mesmo. Falamos acerca das nossas crenças relativas a questões de facto e agimos no dia-
a-dia como quem acredita que estão suficientemente justificadas para que possamos confiar na sua
verdade, embora saibamos que não podemos fornecer para elas o mesmo tipo de justificação que
para as relações de ideias. Posso justificar a minha crença em que o pão que comi há pouco me
alimentou pela experiência desse acontecimento, ou em que o Sol nasceu ontem e hoje por
intermédio da minha memória de ontem ter visto o Sol e das impressões que estou a ter agora do Sol.
Mas como posso justificar a minha crença em que o próximo pão que comer me alimentará ou em
que o Sol vai nascer amanhã, acontecimentos de que não tenho nem memória nem impressão?

A natureza dos raciocínios acerca de questões de facto

Hume apresenta o problema da justificação dos juízos de facto do seguinte modo:


[Q]ual é a natureza daquela evidência que nos assegura de qualquer existência real e questão de facto,
além do testemunho presente dos nossos sentidos ou dos registos da nossa memória.(Investigação
sobre o Entendimento Humano, p. 42.)

A sua resposta inicial é que os nossos raciocínios acerca de questões de facto têm por base a relação
de causa e efeito. Como vimos, tanto a semelhança como a contiguidade como a relação de causa e
efeito são princípios de associação de ideias, mas só esta última nos permite conhecer factos de que
não temos experiência a partir daquilo de que temos experiência:

Todos os raciocínios relativos a questões de facto parecem assentar na relação de causa e efeito.
Somente por meio dessa relação podemos ir além da evidência da nossa memória e dos nossos
sentidos. Se perguntássemos a alguém por que acredita em alguma questão de facto que esteja
ausente — por exemplo, que um amigo se encontra no campo, ou em França, ele apresentar-nos-ia
alguma razão, e essa razão seria algum outro facto, como uma carta recebida desse amigo, ou o
conhecimento das suas decisões e promessas anteriores. Alguém que ache um relógio ou qualquer
outra máquina numa ilha deserta concluirá que alguma vez estiveram homens nessa ilha. Todos os
nossos raciocínios relativos a questões de facto são da mesma natureza. E aqui supõe-se sempre que
há uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é inferido. (Investigação sobre o
Entendimento Humano, p. 42.)

Segundo Hume, portanto, acreditamos na verdade de certas proposições sobre factos inobservados
porque estabelecemos uma relação de causa e efeito entre esses factos e aquilo de que temos
experiência. Acreditamos que o nosso amigo está em França — algo de que não temos experiência
direta — porque recebemos uma carta dele com essa origem. A relação causal que estabelecemos
entre a carta que recebemos e a sua emissão de França é a base da nossa crença em que o nosso
amigo se encontra nesse país. Acreditamos que alguém já esteve na ilha deserta em que encontrámos
um relógio porque essa é a causa que julgamos necessária para que isso ocorra. O nosso conhecimento
de questões de facto que vão para além da experiência é, segundo Hume, sempre deste tipo.

A relação de causa e efeito

Esta resposta, no entanto, conduz imediatamente a uma outra questão:

[S]e quisermos nos satisfazer a respeito da natureza dessa evidência que nos assegura das questões
de facto, precisaremos de investigar como chegamos ao conhecimento das causas e efeitos.
(Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 43.)

Para Hume, como para os outros filósofos e cientistas do seu tempo — e como para nós, hoje —, a
ideia de causalidade está associada à ideia de conexão necessária. Pensamos que as relações causais
estabelecem relações de necessidade entre a causa e o seu efeito, de tal modo que quando a causa
ocorre o efeito tem de seguir-se. Se vemos um relâmpago, sabemos que vai haver um trovão, mesmo
que estejamos demasiado longe para o ouvir. E esperamos que aconteça o mesmo em todas as outras
situações que envolvam relações causais. É, de resto, o conhecimento da conexão necessária entre
uma causa e o seu efeito que nos permite fazer previsões de acontecimentos futuros. Sabemos que
um dado acontecimento causa sempre um outro. Ao vermos o primeiro acontecimento ocorrer numa
nova ocasião, prevemos a ocorrência do segundo. A pergunta de Hume pode, então, ser entendida
assim: como conhecemos as conexões necessárias entre diferentes acontecimentos?

Há duas resposta possíveis a esta questão: pela razão, isto é, a priori, ou pela experiência. Hume, no
entanto, afasta logo a primeira possibilidade:
Atrever-me-ei a afirmar, a título de proposta geral que não admite exceções, que o conhecimento
dessa relação em nenhum caso é alcançado por meio de raciocínios a priori, mas deriva inteiramente
da experiência, ao descobrimos que certos objetos particulares se acham constantemente conjugados
entre si. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 43.)

Para Descartes, por exemplo, as relações de causa e efeito são conhecidas por intuição ou por
dedução, o que é uma garantia absoluta da sua verdade. Quando temos uma ideia clara e distinta da
causa podemos saber imediatamente, por intuição, que efeitos resultam necessariamente dela.
Quando não somos capazes de intuir a conexão necessária entre a causa e o efeito, temos de derivar
o efeito por uma cadeia de raciocínios que o liguem à causa. Em qualquer dos casos, para Descartes,
a razão, por si só, a priori, é capaz de conhecer as relações causais com absoluta certeza.

Os empiristas, como Locke e os filósofos naturais britânicos (Newton, Boyle, Hooke), também
pensavam que o nosso conhecimento das relações causais implica o exercício da razão. Contudo,
duvidavam da possibilidade de conhecermos por intuição ou por demonstração essas relações, como
os racionalistas pretendiam, porque, diziam, nunca poderemos conhecer as conexões necessárias
existentes entre os acontecimentos. Apesar disso, segundo Locke, a nossa razão é capaz de chegar a
crenças razoáveis, embora não infalivelmente certas, acerca das relações causais.

Hume discorda tanto dos racionalistas como dos empiristas que o precederam. Nega que sejamos
capazes de conhecer, seja apenas pela razão, a priori, como pretendiam os racionalistas, seja pela
razão com o auxílio da experiência, como pretendiam os empiristas, conexões necessárias entre
acontecimentos.

Para que fosse possível conhecer exclusivamente pela razão as conexões necessárias entre objetos,
seria preciso que as relações causais fossem relações de ideias, que a mera análise da ideia da causa
revelasse todos os seus efeitos. Assim, para sabermos que uma coisa causa outra bastaria refletir nela,
da mesma maneira que refletir, por exemplo, na noção de quadrado é suficiente para que saibamos
que é uma figura geométrica com quatro lados e quatro ângulos iguais. No entanto, a análise pela
razão de uma coisa não permite saber que efeitos resultam dela. Só a experiência o pode fazer. Para
tornar isto claro, Hume usa Adão como exemplo:

Adão, ainda que supuséssemos que as suas faculdades racionais fossem inteiramente perfeitas desde
o início, seria incapaz de inferir da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da
luminosidade e calor do fogo que este o poderia consumir. Nenhum objeto jamais revela, pelas
qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram nem os efeitos que dele
provirão; e tampouco a nossa razão é capaz, sem a ajuda da experiência, de fazer qualquer inferência
a respeito de questões de facto e existência real. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 43.)

Adão — o primeiro homem bíblico — não teve ainda experiências e, por isso, afirma Hume, não pode
meramente refletindo no conceito de água, isto é, a priori, saber que esta o pode sufocar. Só a
experiência permite a Adão saber isso. Quando raciocinamos a priori consideramos a ideia do objeto
que vemos como a causa independentemente de quaisquer observações que tenhamos feito dele.
Quando consideramos a ideia do objeto deste modo, ela não pode incluir a ideia de nenhum outro
objeto, mesmo daquele que julgamos ser o seu efeito e, portanto, também não pode mostrar-nos
uma conexão necessária entre estas ideias. O raciocínio a priori não pode ser a origem da conexão
entre as nossas ideias de causa e efeito, isto é, as nossas inferências causais não constituem relações
de ideias, mas questões de facto. Hume conclui, por isso, que as causas e os efeitos não podem ser
descobertos a priori, mas apenas pela experiência.
A nossa experiência de acontecimentos familiares pode, no entanto, fazer-nos duvidar da verdade
desta afirmação. Estamos tão habituados a ver uma bola de bilhar bater noutra e provocar o seu
movimento que tendemos a imaginar que poderíamos ter descoberto esta relação de causa e efeito
usando apenas raciocínios a priori. Contudo, se pensarmos em situações menos familiares, é fácil ver
que o nosso conhecimento das relações causais provém da experiência. Imaginemos que passeamos
por um bosque e encontramos um arbusto que dá umas bagas de que nunca ouvimos falar. Por mais
que avaliemos a cor, o odor, a forma e a textura das bagas nunca seremos capazes de saber, dessa
forma apenas, se são venenosas. Só a experiência direta ou indireta nos permitirá sabê-lo.

Esta é a primeira conclusão cética de Hume. Como vimos, os filósofos, em particular os da tradição
racionalista, como Descartes, acreditavam que as relações causais eram conhecidas usando
exclusivamente a razão. A análise de Hume revela que não é pela razão mas pela experiência que
conhecemos as relações causais entre acontecimentos.

O problema da indução

Esta análise leva-nos a um outro problema, como Hume mostra:

Quando se pergunta Qual é a natureza de todos os nossos raciocínios acerca de questões de facto? a
resposta adequada parece ser que eles assentam na relação de causa e efeito. Quando em seguida se
pergunta Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões acerca dessa relação?
pode-se dar a resposta numa palavra: experiência. Mas se ainda continuarmos com o nosso espírito
inquiridor e perguntarmos Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios a partir da
experiência? Isto implica uma nova questão, que pode ser de ainda mais difícil solução e
esclarecimento. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 48.)

Os nossos raciocínios acerca de questões de facto baseiam-se na relação de causa e efeito. A relação
de causa e efeito, por sua vez, baseia-se na experiência. Mas qual a justificação para os raciocínios que
têm por base a experiência? Acreditamos que no futuro o movimento de uma bola de bilhar fará outra
mover-se e que o pão nos alimentará, porque vimos estes acontecimentos ocorrerem sempre juntos
no passado. Mas o que nos autoriza a fazer estas inferências acerca do futuro com base no nosso
conhecimento do presente e do passado?

Esta questão só se coloca pelo facto de a nossa ideia de causa e efeito não ter origem a priori, mas na
experiência. Se a razão fosse capaz de demonstrar a existência de conexões necessárias entre
acontecimentos (isto é, que o efeito resulta necessariamente da causa), isso seria suficiente para
estarmos certos de que as nossas crenças sobre acontecimentos futuros são verdadeiras, porque
bastaria observarmos a ocorrência da causa para sabermos que o efeito se iria inevitavelmente seguir.
Mas, como a nossa ideia de relação causal resulta da experiência, é legítimo perguntar de que modo
a experiência permite justificar as nossas crenças acerca de acontecimentos de que não temos
experiência, isto é, de que modo a experiência permite justificar a crença em que as relações causais
observadas no passado se manterão no futuro. Os filósofos empiristas, como vimos, pensavam que a
partir da experiência era possível chegar a crenças razoáveis sobre acontecimentos futuros, isto é,
crenças de cuja verdade podíamos estar razoavelmente — embora não absolutamente — seguros.
Existe alguma justificação racional para esta convicção dos empiristas?4

A resposta de Hume a esta questão é negativa. Como ele diz:

[M]esmo depois de termos experiência das operações de causa e efeito, as conclusões que tiramos
dessa experiência não estão fundadas no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento.
(Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 49.)
Mesmo que os nossos raciocínios acerca de acontecimentos futuros tenham por ponto de partida
premissas empíricas nunca é possível justificar racionalmente as conclusões a que chegamos por seu
intermédio. Dito de outro modo, não há fundamento racional para afirmarmos, como os empiristas
faziam, que podemos ter crenças razoáveis acerca de acontecimentos futuros. Para percebermos o
raciocínio de Hume que está na base desta conclusão usemos como exemplo um argumento em que
a partir da experiência anterior seja tirada uma conclusão sobre um acontecimento de que não há
experiência, como o seguinte:

Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.


Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.

Hume não tem qualquer dificuldade em admitir que as experiências anteriores, sintetizadas na
premissa, estejam corretas, isto é, que até agora o pão sempre me tenha alimentado. Mas, essas
experiências fornecem apenas informação sobre os objetos dessas experiências — neste caso, o pão
que comi — e no período anterior em que decorreram. As nossas inferências causais, contudo, não se
limitam a registar as nossas experiências anteriores. Antes alargam, na conclusão, a informação
adquirida por essas experiências a acontecimentos futuros e diferentes. O que justifica que o façam?
Como Hume diz:

O pão que antes comi alimentou-me, isto é, um corpo com determinadas qualidades sensíveis estava,
naquele momento, dotado de determinados poderes secretos. Mas segue-se daí que outro pão deva
igualmente alimentar-me em outra ocasião, e que qualidades sensíveis idênticas devam estar sempre
acompanhadas de idênticos poderes secretos? É uma consequência que de modo algum parece
necessária. É preciso, pelo menos, reconhecer que aqui houve uma consequência tirada pela mente,
que se deu um certo passo: um processo de pensamento e uma inferência que estão a exigir uma
explicação. (Investigação sobre o Entendimento Humano, pp. 49-50.)

Qual é a explicação para esta inferência? Como vimos acima, Hume pensa que não existe uma
explicação adequada para ela. Não é possível passar diretamente da premissa para a conclusão. A
conclusão não se segue da premissa. Não se segue do facto de no passado o pão sempre me ter
alimentado que me irá alimentar da próxima vez que o comer. O facto de o pão me ter alimentado no
passado e o facto, suposto, de me alimentar no futuro, quando o voltar a comer, são dois
acontecimentos distintos e, por isso, não posso inferir o segundo a partir do primeiro. A premissa pura
e simplesmente não suporta a conclusão.5 Por isso, para que o argumento funcione é necessária uma
premissa intermédia que ligue a premissa à conclusão. Uma vez que aquilo que nos impede de inferir
diretamente os acontecimentos futuros a partir dos anteriores é que o curso da natureza pode mudar,
essa premissa terá que garantir que no futuro os acontecimentos serão como foram no passado. Se
uma premissa como “O futuro será como o passado” for acrescentada ao argumento, a inferência a
partir da experiência passada passa a estar justificada. Com essa premissa, o argumento terá a
seguinte forma:

Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.


O futuro será como o passado.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.

É frequente chamar-se a esta premissa Princípio da Uniformidade da Natureza. Este princípio expressa
a ideia de que a natureza é uniforme ou que o futuro será como o passado, isto é, que, em
circunstâncias idênticas, os acontecimentos de que não temos experiência serão como os
acontecimentos de que temos experiência.
Contudo, segundo Hume, esta premissa não está em condições de permitir à razão fazer a inferência
de acontecimentos passados para ocorrências futuras porque ela própria não é justificável, isto é, não
é possível provar que é verdadeira. Para o mostrar, Hume recorre à distinção entre relações de ideias
e questões de facto e aos dois tipos de raciocínios que lhes estão associados, os raciocínios
demonstrativos e os raciocínios morais ou prováveis.

É o princípio de que a natureza é uniforme uma relação de ideias que possamos provar por intermédio
de uma demonstração, como o Teorema de Pitágoras? Nesse caso, a negação de a “Natureza é
uniforme” teria de implicar uma contradição. Mas, diz Hume, não há qualquer contradição em supor
que a natureza não é uniforme ou, para dar o exemplo do argumento, que da próxima vez que comer
pão ele não me alimentará. Isto é, nada impede que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. O
Princípio da Uniformidade da Natureza não é, portanto, uma relação de ideias e, por isso, não pode
ser provado a priori, pela razão apenas.

O princípio é, então, uma questão de facto. Nesse caso, a sua verdade terá de ser provada por um
raciocínio a que Hume chama provável, isto é, com base na experiência. Mas, podemos provar a sua
verdade com base na experiência?

Para provar este princípio com base na experiência temos de fazer um argumento como o seguinte:

No passado, a natureza tem sido sempre regular.


Portanto, a natureza é regular.

A premissa expressa a nossa experiência da regularidade da natureza. A conclusão é o próprio


Princípio da Uniformidade da Natureza. Passa-se, no entanto, com este argumento o mesmo que
acontecia com o anterior. Não é possível inferir a conclusão da premissa, porque a premissa é sobre
o passado ao passo que a conclusão é sobre o futuro. Só recorrendo a uma premissa que garanta que
o futuro é como o passado pode a inferência ser feita. Se acrescentarmos essa premissa, o argumento
é o seguinte:

No passado, a natureza tem sido sempre regular.


A natureza é regular.
Portanto, a natureza é regular.

Mas assim o argumento é circular, uma petição de princípio, uma vez que a conclusão aparece como
uma das premissas, pelo que também não é possível justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza
por meio da experiência. E, claro, se não é possível justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza
também não temos razão para pensar que as nossas crenças acerca de acontecimentos futuros são
verdadeiras. Este é o famoso problema da indução, de que Hume foi o primeiro a dar conta.

Esta é a segunda conclusão cética de Hume. Até Hume, os filósofos e os cientistas pensavam que o
nosso conhecimento do mundo estava racionalmente justificado, ou por raciocínios a priori, como os
racionalistas pensavam, ou por raciocínios com base na experiência, como os empiristas anteriores a
Hume pensavam. Hume mostrou que tanto os racionalistas como os empiristas estavam enganados e
que não podemos justificar racionalmente, nem a priori nem a posteriori, os princípios que estão na
base das nossas crenças acerca do mundo. Portanto, as nossas crenças sobre o mundo não constituem
conhecimento.

Significa isto que estas nossas crenças sejam totalmente injustificadas? Hume não o pensa, embora a
justificação que encontra para elas, como veremos, não tenha origem na razão, mas na natureza
humana.
O hábito ou costume e a ideia de conexão necessária

Estabelecemos relações causais entre acontecimentos e fazemos inferências acerca daquilo de que
não temos experiência. Estas operações podem não ter um fundamento racional, mas é
inquestionável que as fazemos. A questão a que é necessário responder, portanto, é esta: como
fazemos este tipo de operações? A resposta a esta questão corresponde à parte construtiva da
filosofia de Hume.

Hume coloca este problema do seguinte modo:

Suponha-se que uma pessoa, embora já dotada das mais poderosas faculdades de razão e reflexão,
seja trazida de repente a este mundo. Ela observaria imediatamente uma contínua sucessão de
objetos, e um evento a seguir a outro, mas não conseguiria descobrir nada mais além disso. Não seria,
no início, capaz de apreender por meio de qualquer raciocínio a ideia de causa e efeito [...].

Suponhamos agora que ela tenha adquirido mais experiência e tenha vivido no mundo o suficiente
para observar que objetos ou acontecimentos similares estão constantemente conjugados uns com
os outros. Qual é a consequência desta experiência? Que ela passa imediatamente a inferir a
existência de um objeto do aparecimento do outro. No entanto, com toda a sua experiência, não terá
adquirido qualquer ideia ou conhecimento do poder secreto pelo qual o primeiro objeto produz o
segundo [...]. Apesar disso, vê-se obrigada a realizá-la [...]. Há algum outro princípio que a obriga a
chegar a essa conclusão. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 57.)

O hábito ou costume

Segundo Hume, este outro princípio é o hábito ou costume. A experiência repetida da conjunção
constante entre dois acontecimentos leva-nos a esperar que a sua conjunção continue a acontecer no
futuro. Na nossa experiência anterior, o movimento da primeira bola de bilhar foi sempre seguido
pelo movimento da segunda. Ao observarmos novamente o movimento da primeira bola, a mente
infere imediatamente que a segunda bola também se vai mover. O hábito é esta repetição de um ato
ou de uma operação que cria a propensão para voltar a realizar este ato ou operação. Um exemplo
permitirá tornar claro o que Hume tem em mente. Imaginemos que alguém, por razões de saúde, tem
de passar a temperar a comida com menos sal, mas que numa dada ocasião, a tempera como sempre
o tinha feito, e que, quando lhe chamam a atenção para isso, ela responde “É o hábito”. O que significa
esta resposta? Que o facto de no passado sempre ter temperado a comida de uma dada maneira a
levou, mesmo contra a sua vontade, a fazê-lo novamente. Dito de outro modo, os seus atos repetidos
do passado foram a causa do seu ato presente. O hábito é a repetição que cria a propensão para voltar
a agir ou a pensar do mesmo modo.

Este exemplo permite ainda realçar outra caraterística importante do hábito, a saber, que não é um
raciocínio ou uma operação da razão, mas um princípio da natureza humana, um mecanismo
psicológico, cuja operação e resultados não dependem nem da nossa vontade nem da nossa razão. É
o hábito, e não a razão, que está na base de todas as inferências a partir da experiência. Hume vai ao
ponto de afirmar que sem o hábito a nossa vida seria impossível:

O hábito é, portanto, o grande guia da vida humana. É o único princípio que torna a nossa experiência
útil para nós, e nos faz esperar, no futuro, um curso de eventos similar aos que ocorreram no passado.
Sem a influência do hábito seríamos inteiramente ignorantes de todas as questões de facto que
ultrapassem o que está imediatamente presente à memória e aos sentidos. Nunca saberíamos como
adaptar os meios aos fins, nem como empregar os nossos poderes naturais para produzir qualquer
efeito. Acabaria imediatamente toda e qualquer ação, bem como a maior parte da especulação.
(Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 59.)

A ideia de conexão necessária

Persiste, no entanto, uma última questão: o que entendemos por “conexão necessária”? Os
racionalistas e os empiristas entendiam por conexão necessária um poder ou uma força que estando
presente na causa produz necessariamente o efeito. Contudo, para Hume, esta definição da ideia de
conexão necessária é ambígua e obscura. Poder, força e conexão necessária são expressões sinónimas
e, portanto, limitámo-nos a substituir umas palavras pelas outras, sem esclarecer o seu significado. A
solução está, afirma Hume, em usar o Princípio da Cópia para saber de que impressão deriva a ideia
de conexão necessária. Recordemos que, de acordo com este princípio, toda a ideia simples tem
origem em impressões simples. Fazendo remontar a ideia de conexão necessária à impressão que está
na sua origem é possível saber que significado atribuir à expressão “conexão necessária”. Contudo, a
experiência dos objetos exteriores não nos dá, diz Hume, qualquer impressão de conexão necessária:

Quando olhamos para os objetos exteriores à nossa volta e consideramos a operação das causas,
nunca somos capazes de identificar, num caso singular, qualquer poder ou conexão necessária,
qualquer qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma consequência infalível da
segunda. Constatamos apenas que um efeito realmente se segue à causa. O impulso da primeira bola
de bilhar é seguido pelo movimento da segunda, e isso é tudo o que é dado aos nossos sentidos. [...]
Em consequência, em nenhum caso singular, particular de causa e efeito, há alguma coisa capaz de
sugerir a ideia de poder ou conexão necessária. (Investigação sobre o Entendimento Humano, pp. 77-
78.)

Para compreender por que razão a experiência não é a origem da ideia de conexão necessária façamos
a experiência das bolas de bilhar. Como descreveríamos o que estamos a ver? Provavelmente,
diríamos que a primeira bola bateu na segunda e a fez mover (isto é, o movimento da primeira bola
causou o movimento da segunda). Mas esta descrição corresponde ao que efetivamente observámos?
Façamos novamente a experiência, desta vez filmando-a, e vejamos depois o filme, fotograma a
fotograma, no computador. O que nos mostram os fotogramas? A primeira bola de bilhar cada vez
mais próxima da segunda, até que estão juntas e, depois, cada vez mais afastadas. É tudo! Por mais
que nos esforcemos nunca encontraremos nos fotogramas o menor indício da ideia de conexão
necessária. E, no entanto, se esta ideia tivesse origem na experiência teríamos de ter uma impressão
da qual ela derivasse. Mas o filme, por mais que o vejamos, não nos dá a impressão de conexão
necessária. Tudo o que aí encontramos é o movimento da primeira bola seguido pelo movimento da
segunda. Por conseguinte, a nossa ideia de conexão necessária não tem origem na experiência dos
objetos exteriores. Tudo o que essa experiência nos mostra é uma conjunção constante entre
acontecimentos, mas nunca uma conexão necessária.

Donde surge, então, a ideia de conexão necessária? Da experiência de vários casos semelhantes de
conjunção constante entre acontecimentos. Devido à repetição de casos semelhantes, quando se dá
um dos acontecimentos, a nossa mente é levada pelo hábito a esperar a ocorrência do outro. É o
sentimento ou a impressão da conexão que a nossa imaginação faz entre acontecimentos que origina
a ideia de conexão necessária. A repetição de acontecimentos sempre conjugados causa o sentimento
ou impressão de conexão que, por sua vez, causa a ideia de conexão necessária. A ideia de conexão
necessária consiste, então, apenas nesta conjunção constante que a imaginação atribui aos objetos e
não numa força ou poder que esteja presente nas próprias coisas. A ideia de conexão necessária é,
por isso, uma criação da nossa mente, que a atribui aos objetos e não uma propriedade intrínseca que
a mente descubra nos objetos. Por outras palavras, a ideia de conexão necessária não é uma
propriedade objetiva das coisas.

No princípio do século XX, o fisiólogo russo Ivan Pavlov (1849-1936), fez um conjunto de experiências
com cães, que ilustram bem como Hume concebe o processo de formação da ideia de conexão
necessária. Pavlov submeteu os cães a experiências em que era tocada uma campainha e, em seguida,
lhes era dada comida. Ao princípio, o toque da campainha não dava origem a qualquer resposta dos
cães, mas ao fim de algum tempo, depois de serem submetidos a várias experiências repetidas da
conjunção constante entre o toque da campainha e a receção de comida, bastava tocar a campainha
para que os cães salivassem antecipando que iam comer. Não há, claro, qualquer relação causal ou
conexão necessária efetiva entre o toque da campainha e o surgimento da comida. Tudo o que existe
é uma conjunção repetida, induzida por Pavlov, entre os dois acontecimentos. São, portanto, os cães
que estabelecem, ao ouvir o toque da campainha, a relação com a comida, num processo em tudo
semelhante ao modo como Hume explica como antecipamos acontecimentos de que não temos
experiência. Tal como os cães, fazemos uma associação imaginária entre acontecimentos de que não
conhecemos qualquer conexão real, mas apenas uma conjunção constante, e é nisso que se baseia
todo o nosso conhecimento do mundo. Segundo Hume, não somos seres racionais semelhantes a
Deus, como pretendia Descartes; ao invés, somos cães de Pavlov.

O ceticismo e o irracionalismo de Hume

Hume tem sido frequentemente acusado de ceticismo e de irracionalismo. Qual a razão de ser destas
acusações? Em primeiro lugar, o facto de Hume ter mostrado que não existe uma justificação racional
para as nossas inferências causais. Muitos filósofos pensam que Hume provou não haver razão para
preferir a ciência à superstição. Nenhuma é racionalmente justificável e, por isso, não há diferenças
assinaláveis entre as prescrições dos médicos e as mezinhas das bruxas. Em segundo lugar, ter
substituído a justificação racional pelo hábito, uma espécie de instinto natural sobre o qual a razão
não tem poder. Numa palavra, ter substituído a razão pelos instintos.

No entanto, Hume pensa que existem razões para preferir a ciência à superstição. As teorias da ciência
são suportadas pela observação e pela experiência, pela uniformidade da natureza, ao contrário do
que acontece com as crenças supersticiosas. Ele não considera, por isso, a sua filosofia uma forma de
irracionalismo, mas sim daquilo a que chamamos hoje naturalismo, e não duvida de que
estabelecemos relações causais e raciocínios indutivos e de que devemos confiar nas suas conclusões.
Mas pensa que a causa para essa confiança não é a razão mas sim a natureza. Ele vê nesta necessidade
natural a justificação adequada e suficiente das nossas crenças sobre o mundo. Embora não possamos
justificar racionalmente essas crenças, a natureza fez-nos de modo a termos uma propensão para que
certas experiências passadas nos levem inevitavelmente a ter certas crenças sobre o futuro. É tudo o
que precisamos para confiarmos na verdade destas crenças e para demarcar a ciência da superstição.

Mas, para aqueles a quem a solução naturalista não satisfaz, o resultado último da filosofia de Hume
foi ter mostrado que, ao contrário do que acreditamos, não temos conhecimento do mundo, seja no
sentido de verdade indubitável seja no sentido de crença racionalmente justificada. Daí que o
problema da indução esteja no centro do debate filosófico contemporâneo, em particular, em filosofia
da ciência.

Respostas a Hume

Dadas as consequências devastadoras da análise de Hume da causalidade e da indução, é natural que


tenham surgido diversas tentativas de lhe responder. Vamos ver brevemente três dessas respostas.
O princípio da indução

Uma forma de tentar superar as dificuldade colocadas pela análise de Hume da indução é, como fez
Bertrand Russell, propor um Princípio da Indução que justifique as inferências indutivas. A ideia de
Russell é que os raciocínios indutivos estão na base da ciência e dos nossos atos mais comuns e triviais
do dia-a-dia e ou arranjamos forma de justificá-los ou temos de admitir que tanto uns como outros
são irracionais. Esta última opção, no entanto, é inaceitável. É, por isso, necessário recorrer a um
Princípio da Indução que garanta, em função da nossa maior ou menor experiência anterior, a maior
ou menor probabilidade de as conclusões dos nossos raciocínios indutivos serem verdadeiras.

O próprio Russell, contudo, admite que este princípio não pode ser provado pela experiência, o que o
deixa exposto a uma objeção fatal: se nada o pode provar, não temos razões para pensar que é
verdadeiro e, portanto, para acreditar na probabilidade das conclusões das nossas inferências
indutivas. Dito de outro modo, um princípio probabilístico da indução está também submetido às
objeções de Hume e, portanto, é incapaz de resolver o problema da indução.

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