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Arthur Guilherme Monzelli

UM ESTUDO PROPEDÊUTICO DA FILOSOFIA KANTIANA: KANT À LUZ DE HUME

Trabalho elaborado para a disciplina Tópicos de


História da Filosofia: o Iluminismo e Tendências da
Filosofia Contemporânea, ministrada pelo Prof. Dr.
Antonio Ianni Segatto.

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


CAMPUS DE ARARAQUARA

Junho de 2014
A natureza sempre afirmará seus direitos e prevalecerá, ao
final, sabre qualquer espécie de raciono abstrato.
David Hume, Investigações sobre o Entendimento Humano e
Sobre os Princípios da Moral.

Eis aí uma questão que merece reflexão: existe mesmo um


conhecimento que não depende da experiência e das
impressões dos sentidos?
Immanuel Kant, A crítica da razão pura.
INTRODUÇÃO

Antes de iniciarmos nosso ensaio propriamente dito, faz-se necessário explicarmos o


porquê de levar a cabo uma reflexão propedêutica 1 sobre a filosofia de Immanuel Kant. Em
primeiro lugar, preferimos realizar um prelúdio da obra kantiana, devido ao fato dela poder
ser considerada como uma introdução crítica ao pensamento metafísico, cuja essência é
resguardar a metafísica de todos os enganos provenientes do seu desenvolvimento como uma
ciência. Além do mais, o próprio iluminista alemão, nas páginas iniciais da sua grande obra: A
crítica da razão pura [1781], classifica a sua atitude filosófica como propedêutica (entretanto,
tal intuito evidencia-se com muito mais clareza, quando redige um segundo prefácio para esse
livro, em 1787). Em segundo lugar, não podemos negligenciar o fato deste trabalho
representar o nosso primeiro contato (sincero e dedicado) com o enfrentamento da filosofia
kantiana, logo, procuramos interpretá-lo como nada além de um exercício preliminar à
reflexão acerca do iluminismo alemão, o qual debruçou-se, fundamentalmente, sobre o
fenômeno do esclarecimento [Aufklärung].
Inspirando-nos nesse caminho buscamos; em meio a diversidade de possibilidades
interpretativas da constituição de um entendimento acerca da filosofia kantiana; levar a cabo
uma discussão acerca dos fundamentos desse pensamento. Dessa forma, visamos inclinar-nos
sobre o próprio cerne da inspiração filosófica de Kant: A leitura do grande empirista escocês,
David Hume, cuja influência representou uma verdadeira epifania para a sua reflexão
filosófica. Nesse sentido, nosso esboço acaba sendo dividido em dois principais momentos:
Primeiramente, procuramos arquitetar uma breve discussão sobre os pressupostos
fundamentais da filosofia humeana. Em seguida, iremos dedicar-nos em apresentar a filosofia
kantiana, levando em consideração o fato dela surgir de um movimento, o qual Lebrun (2010)
entende como uma espécie de despertar de um sono dogmático.

1
Relativo a ideia de introdução à aprendizagem, ou estudo preliminar de uma ciência ou disciplina.

4
I – ESBOÇO DOS PRINCIPAIS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA FILOSOFIA DE
DAVID HUME

Começaremos a nossa discussão, mergulhando sob a filosofia humeana, a fim de


desbravar alguns dos seus conceitos e ideias mais importantes através, das quais acreditamos
sermos capazes de ilustrar, sucintamente, aquilo que representou o empirismo inglês (ou luzes
britânicas) na história do pensamento filosófico. No entanto, antes de mais nada, precisamos
deixar claro o fato do nosso intuito central estar pautado na evocação da filosofia inglesa do
século XVIII para o entendimento da fundamentação da atitude filosófica desenvolvida na
Alemanha (durante esse mesmo período), a qual dedicava-se à reflexão acerca do
esclarecimento humano (lê-se Aufklärung). Desse modo, procuramos esmiuçar, na medida do
possível, o pensamento de Hume contido nas Investigações sobre o Entendimento Humano e
Sobre os Princípios da Moral. Por meio dessa grandiosa obra é possível destacarmos algumas
das suas principais teses, tais como: Relações de ideia e as questões de fato; a essencialidade
da experiência para o entendimento humano; a crítica da razão especulativa e a ênfase na
qualidade fundamental do hábito; a importância filosófica da crença em oposição à ficção e;
para finalizar, a reflexão sobre os três tipos fundamentais de percepção humana: Semelhança,
contiguidade e causação.
Após termos realizado as devidas apresentações com respeito as nossas intenções a partir
deste sucinto esboço, então, podemos ir direto ao ponto e iniciar a reflexão através daquilo
que Hume (2004) considera ser as duas noções verdadeiramente substâncias ao entendimento
humano: As relações de ideias e as questões de fato. É possível compreender os primeiros
princípios como todas aquelas conclusões autoevidentes, ou seja, comprovadas por meio da
pura operação lógica do pensamento, independentemente da diversidade das relações, as quais
possam ser estabelecidas com o mundo sensível. O exemplo mais nítido desse tipo de relação
são os postulados da matemática, tais como: O teorema de Pitágoras, o qual afirma que, em
qualquer triângulo retângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é sempre igual à
soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos. Agora, quando analisamos os segundos
princípios, chegamos a conclusões muito distintas, pois, a sua certeza não encerra-se em si
mesma, ao invés disso, depende da máxima de não apresentarem nenhuma contradição para a
mente humana, adequando-se perfeitamente com a realidade sensível. Ilustrando tais relações
nas próprias palavras de Hume (2004): “Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição
menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá….” (p.
54). Logo, é inútil dedicarmo-nos em provar a falsidade desse postulado, haja vista que, se

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assim o fosse, nem mesmo seriamos capazes de concebê-las em nossa consciência. No
entanto, faz-se necessário ressaltar o fato do filósofo escocês fundamentar a sua reflexão
sobre o entendimento a partir da análise das questões de fato, em detrimento das relações de
ideias.
Nesse momento, ainda é necessário aprofundarmos mais a nossa reflexão, por isso,
destacamos, inspirados em Hume (2004), a tendência das questões de fato expressarem-se a
partir de relações de causa e efeito, as quais representam a única maneira do nosso raciocínio
transcender os campos da memória e da sensibilidade humana. Por exemplo, caso um homem
ou uma mulher estejam presos em uma ilha deserta e acabem encontrando um relógio de
pulso, provavelmente chegariam a conclusão de que outro ser humano habitou a ilha antes
deles, tendo em vista o fato da reflexão e medição do tempo através de máquinas e
instrumentos ser uma especificidade humana. Desse modo, podemos afirmar, tal como
ressalta Hume (2004), que há uma conexão entre o acontecimento presente (lê-se estar preso
na ilha) e as ideias, as quais emanam dele (lê-se a dedução da existência passada e talvez a
suposição da presença atual de vida humana nessa ilha). A importância desse exemplo está
justamente no questionamento produzido por ele, isto é, o que interliga a prisão na ilha com as
ideias que surgem a partir da descoberta do relógio de pulso perdido? A resposta é clara, são
as relações de causa e efeito.
Entretanto, isso não é o suficiente, por isso Hume (2004) completa: “Arrisco-me a afirmar
(…) que o conhecimento dessa relação não é, em nenhum caso, alcançado por meio de
raciocínios a priori2, mas provém inteiramente da experiência…” (p. 55). Na realidade,
segundo o empirista escocês, qualquer homem ou mulher, por mais perfeitas que sejam
consideradas as suas capacidades cognitivas e intuitivas (lê-se de raciocínio e de percepção),
caso precisem analisar um objeto nunca anteriormente visto por eles, ainda que levem a cabo
um exame rigoroso e metódico (por meio de suas qualidades sensíveis), ainda assim, não
seriam capazes de extrair desse objeto novo, qualquer tipo de relações de causa e efeito.
Portanto, a filosofia humeana oblitera qualquer possibilidade do raciocínio a priori engendrar
relações de causalidade, tais como: a água pode causar asfixia, a chama pode machucar, o

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Segundo o próprio Kant (2011), a priori são todas aquelas conclusões extraídas independentemente da
experiência humana, portanto, são o extremo oposto daqueles princípios provenientes do conhecimento
empírico, os quais rebem no nome de a posteriori. Evidentemente o iluminista alemão amplia a reflexão sobre as
noções apriorísticas muito além dessa nossa pequena ilustração, mas a título de curiosidade, essa pontuação é
mais do que o suficiente para introduzirmos nossa discussão.
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choque entre corpos pode gerar movimento, entre outros processos, cuja dedução somente é
possível por meio da experiência, ou melhor dizendo:

“Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos


sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele
provirão; e tampouco nossa razão é capaz de extrair, sem auxílio da
experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de
coisas ou questões de fato. ” (HUME, 2004. p. 56).

Contudo, até agora invocamos as reflexões do empirismo inglês acerca do


entendimento humano, somente por meio da análise de objetos que são (pelo menos em um
primeiro momento) desconhecidos para a nossa consciência. Por conseguinte, na ótica de
Hume (2004), seria plenamente plausível afirmar que qualquer relação de causa e efeito seria
incompreensível pelo raciocínio apriorístico e somente apreensível pela experiência. Isso
tendo em vista o fato de nenhum ser humano, por mais inteligente que possa ser, jamais
conseguiria, sem o auxílio da experiência, deduzir as respectivas relações de causalidade
provenientes dos objetos inexplorados. Todavia, e se levarmos em consideração as situações
nas quais os objetos já são-nos familiares, o conhecimento a priori, agora seria responsável
por estabelecer as relações de causa e efeito? A resposta continua incisivamente negativa para
o empirismo inglês, por isso, será necessário expandirmos toda nossa discussão realizada até
agora. Com efeito, tendemos nesses casos a recorrer somente a razão, sem subsídio da
experiência, por exemplo: ao observarmos inúmeras vezes o fenômeno de duas bolas de bilhar
em situação de choque eminente, acabamos supondo (convictamente, pois, afinal já
presenciamos isso outrora) a manifestação de um necessário movimento entre elas e, aliás,
acabamos acreditando estarmos tão certos disso, que nem achamos importante presenciar o
experimento até o final, para, em seguida, confirmarmos nossa conclusão. Entretanto,
segundo o filósofo escocês, esse pensamento é infundado, na verdade, é o fenômeno do hábito
e não o raciocínio apriorístico que fundamenta a nossa compreensão das relações de
causalidade, haja vista que, este último somente é capaz de produzir conclusões inseguras e
unilaterais:

“Para convencer-nos, entretanto, de que todas as leis da natureza e


todas as operações dos corpos, sem exceção, são conhecidas apenas
por meio da experiência, bastarão talvez as seguintes reflexões. Se
um objeto nos fosse apresentado e fôssemos solicitados a nos

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pronunciar, sem consulta à observação passada, sobre o efeito que
dele resultará, de que maneira, eu pergunto, deveria a mente
proceder nessa operação? Ela deve inventar ou imaginar algum
resultado para atribuir ao objeto como seu efeito, e é obvio que essa
invenção terá de ser inteiramente arbitrária. ” (HUME, 2004. pp. 57
– 8).

Em outras palavras, o movimento das bolas de bilhar após o choque é totalmente distinto
dos movimentos delas antes deste e, de fato, não existe nenhum sinal que possa indicar-nos,
com certeza, quais serão os respectivos movimentos das bolas de bilhar no final do
experimento. Nesse sentido, por mais que pareça-nos óbvio supor a necessidade do
movimento da primeira bola de bilhar resultar, justamente, no movimento da segunda, não
seria perfeitamente plausível pensar em inúmeros outros efeitos provenientes dessa mesma
causa? As duas bolas de bilhar poderiam chocar-se e, em seguida, entrarem em absoluto
repouso; ou, a segunda bola de bilhar poderia manter-se em repouso e repelir a primeira;
enfim, são infinitas as possibilidades e todas são possíveis. Por que, então, deveríamos dar
preferência a uma das possibilidades negando, em consequência, todas as outras, tendo em
vista o fato de todas possuírem a mesma credibilidade? Enfim, na perspectiva de Hume
(2004): “Todos os nossos raciocínios a priori serão para sempre incapazes de nos mostrar
qualquer fundamento para essa preferência.” (p. 58 – 59).
Todavia, evidencia-se agora, mais do que nunca, a necessidade de refletirmos sobre qual
seria a força responsável pela conexão dos objetos dentro de uma relação de causalidade,
levando em consideração que nenhum conhecimento apriorístico consegue apresentar uma
resposta satisfatória para essa pergunta. Com efeito, estamos em busca de um elo e, a partir da
visão de Hume (2004), percebemos que caminhávamos para o desbravamento do princípio do
hábito, o qual manifesta-se quando repetimos, tanto e sempre do mesmo modo, determinadas
operações, ao ponto destas acontecerem sem a necessidade da interferência do nosso
raciocínio especulativo. Portanto, a forma pela qual nós nos conhecemos e compreendemos o
mundo ao nosso redor (lê-se a consistência do entendimento humano) acaba estando sujeita
profundamente aos ditames do “costume”, entendido como uma espécie de tendência
universal do comportamento humano. Assim sendo:

“(…) após a conjunção constante de dois objetos – calor e chama,


por exemplo, ou peso e solidez –, é exclusivamente o hábito que nos
faz esperar um deles a partir do aparecimento do outro. (…) A razão

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é incapaz de variar dessa forma; as conclusões que ela retira da
consideração de um único círculo são as mesmas que formaria após
inspecionar todos os círculos do universo. Mas nenhum homem,
tendo visto apenas um único corpo mover-se após ter sido impelido
por outro, poderia inferir que todos os outros mover-se-iam após
impulso semelhante. Todas as inferências da experiência são, pois,
efeitos do hábito, não do raciocínio. ” (HUME, 2004. p. 75).

Acreditamos já termos conseguido levar a cabo uma significativa, embora demasiado


sumária, reflexão sobre os pressupostos básicos da discussão levantada pelo empirismo
humeano acerca da consistência do entendimento humano, no entanto, uma questão ainda
emerge sem resposta: O que diferencia o livre devaneio da ficção daqueles pensamentos mais
concisos e plausíveis? Tentando oferecer uma resposta satisfatória precisamos, antes de
qualquer tentativa mais aprofundada, temos de ter em mente o fato de não existir nada mais
desprendido de amarras do que a nossa imaginação. Em seguida, também é necessário
ressaltar, inspirados em Hume (2004), que a consciência humana não consegue acreditar em
qualquer coisa e da forma que bem entender, pois, o mundo cognoscível (lê-se sensível)
sempre acaba limitando nossas possibilidades de imaginação. Por exemplo, é perfeitamente
possível, para nós, pensarmos em um ser constituído metade por homem metade por touro (lê-
se um minotauro), no entanto, seria muito difícil acreditar que essa criatura realmente tenha
existido. Portanto, podemos acentuar uma grande diferença entre a ficção e os pensamentos
mais concisos, tendo em vista o fato dos segundos possuírem uma espécie de sentimento, o
qual está ausente nos primeiros, bem como, mantém-se totalmente independe da vontade dos
homens e mulheres. Hume (2004) destaca, que quanto entramos em contato com um novo
objeto, este passará a ser analisado; primeiramente, por nossa memória e pelos nossos
sentidos e; posteriormente, será concebido em nosso entendimento através da ação do hábito
(o único responsável pela captura das impressões emanadas pelo objeto, as quais sempre têm
como destino a nossa imaginação). Logo, torna-se nítido a complexidade de se definir essa
noção de sentimento, pois, essa tentativa assemelha-se a dificuldade de se produzir definições
acerca das paixões humanas. Nesse sentido, Hume (2004) afirma estar satisfeito em chamar
esse sentimento de crença e alerta aqueles que ficaram indignados com essa definição, para
entenderem a noção de crença como uma espécie de concepção convicta, rígida e vívida
acerca do objeto analisado, a qual, nunca poderia ser extraída através da razão pura. Em suas
palavras:

9
“Tomemos, então, essa doutrina em toda sua extensão, admitindo
que o sentimento de crença nada mais é que uma concepção mais
intensa e constante do que a que acompanha as meras ficções da
imaginação, e que essa maneira de conceber provém de uma
habitual conjunção do objeto com algo presente à memória ou aos
sentidos.” (HUME, 2004. p. 83).

Enfim, chegamos ao último intuito da primeira parte do nosso ensaio, isto é, a reflexão
sobre os três princípios de ligação e operação do entendimento humano. Segundo a filosofia
empirista humeana, são estes: A semelhança, a contiguidade e a causação. Naquilo que diz
respeito ao primeiro princípio, invocamos, a título de elucidação, o exemplo do retrato de um
amigo há tempos não visto, por meio do qual (através da atividade da semelhança) acabamos
representando-o em nossa mente, relembrando os sentimentos que o convívio com ele
produzia (sejam esses quais forem) para, enfim, constituir uma ideia vívida e consistente
acerca dele (lê-se crença) em nosso entendimento. Refletindo agora sobre o segundo princípio
culminamos na evidente constatação de que ao pensar em algum objeto cria uma
representação contínua (lê-se aproximada) dele, mas somente a presença concreta desse
objeto transmite à mente uma ideia mais viva acerca dele. Por exemplo, quando estamos a
poucos passos de chegar em nossas casas, após um dia longo de trabalho, a ideia construída
por nós do nosso lar torna-se cada vez mais clara, se comparada com a ideia formulada ao sair
do serviço. O terceiro princípio, ou seja, a causação (lê-se causalidade) relaciona-se
profundamente com os conceitos de semelhança e da contiguidade, tendo em vista que, por
exemplo, a influência exercida pelo quadro do velho amigo em nossa mente, necessariamente,
pressupõe a existência dele, do mesmo modo que, a nossa proximidade com relação ao lar
precisa supor a existência desse para, em seguida, estabelecer uma ligação entre ele e a nossa
mente. A mesma coisa acontece quando lançamos lenha na fogueira e pressupomos que nossa
ação aumentará as chamas e, não o contrário. Portanto, encerremos esse tópico com um
veredito do empirista escocês:

“Essa transição do pensamento da causa para o efeito não procede da


razão, mas deriva sua origem inteiramente do hábito e da
experiência. E dado que se inicia com um objeto presente aos
sentidos, ela torna a ideia ou concepção da chama mais viva do que
o faria um devaneio solto e vacilante da imaginação.” (HUME,
2004. p. 88).

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II – A EPIFANIA DE IMMANUEL KANT E A CRÍTICA DO PENSAMENTO
METAFÍSICO

Tendo em vista a nossa breve discussão acerca da filosofia empirista humeana, é


possível observarmos que uma das suas principais contribuições (dentre muitas) para a
história da filosofia foi (ironicamente) o fato de atuar na qualidade de estopim necessário para
o “despertar do um sono dogmático” 3, no qual estava mergulhado um importantíssimo
“professor de metafísica da cidade de Königsberg”4, ou seja, Immanuel Kant. Ao pensarmos
na influência de Hume (naquilo que diz respeito ao florescimento da filosofia kantiana)
deparamo-nos com um fenômeno essencialmente paradoxal, haja vista que, o exímio cético
escocês tinha inúmeros intuitos em mente, enquanto escrevia as suas Investigações, no
entanto, podemos afirmar com suficiente convicção, que nenhum deles consistia na promoção
de qualquer tipo de reflexão acerca das possibilidades de renovação do pensamento
metafísico, resguardando-o do erro.
Na verdade, Hume sempre preferiu pensar nos livros de metafísica, como bons
comburentes para fogueiras caseiras ou como ótimos castelos de cartas, uteis para serem
desmoronados pelo vento. Todavia, não podemos deixar de lado o fato do contato com a
filosofia humeana terminar produzindo em Kant exatamente o contrário daquilo que ela
própria pretendia expressar, pois, o empirismo de Hume visava deixar claro que a experiência
é a única fonte de vitalidade e credibilidade, pela qual o entendimento humano pode apoiar-se
para levar a cabo a compreensão do mundo e de si mesmo. Entretanto, o mais intrigante em
tudo isso é o fato do professor de metafísica alemão procurar, devido talvez a epifania
produzida pela leitura das Investigações, inverter completamente o objetivo humeano, ou seja,
procurou debruçar-se, justamente, sobre tudo aquilo que filósofo escocês considerava ser
vazio e sem sentido, isto é, o incognoscível, o suprassensível e, em função disso, culminou a
criação de uma espécie de filosofia transcendental.
Em outras palavras, Hume dedicou-se incisivamente na tentativa de obliterar todos os
tipos de pensamento metafísico, chegando ao ponto de abominar quaisquer juízos, cuja
fundamentação embasa-se na razão pura. Entretanto, enquanto ele levava a diante essa
convicção por meio da elaboração das Investigações acabou casualmente chamando muito a
atenção de Kant, o qual, por causa da sua atuação como professor de metafísica, não foi capaz

3
LEBRUN, G. Sobre Kant. São Paulo: Iluminuras, 2010. p. 8.
4
LEBRUN, G. Op., cit., p. 7.
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de descartar completamente esse seu escopo de inspiração filosófica. Desse modo, terminou
por levar a cabo um processo muito significativo de crítica ao pensamento metafísico, que foi
denominado por ele mesmo como exercício propedêutico e necessário a toda metafísica, o
qual não seria responsável pela sua obliteração (tal como Hume desejava), mas, antes disso,
frisava a erradicação dos seus limites e da sua propensão ao erro. Somente dessa forma, o
iluminista alemão acreditava ser possível contribuir para a metafísica alcançar o patamar
seguro da ciência. Portanto, nossa discussão agora almeja elucidar a consistência dessa
epifania que Hume causou em Kant e como ela foi capaz de impulsionar a construção do
primeiro sistema filosófico crítico ao pensamento metafísico.
Antes de lançarmo-nos sobre a análise da crítica kantiana do pensamento metafísico,
precisamos termos claro em nossa reflexão aquilo que o iluminista alemão vai denominar de:
caminho seguro da ciência. Nesse sentido, é elucidativo tomarmos como exemplo a questão
da Lógica, a qual, na ótica de Kant (2001), desde Aristóteles manteve-se segura e sem nunca
ter regredido, a não ser pelo fato de sofrer alguns aperfeiçoamentos singelos, realizados muito
mais por elegância do que em benefício da certeza científica. Com efeito, “é digno de nota
que” ela “não tenha até hoje progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto
quanto se nos pode figurar5”. No entanto, a lógica, tal como evidencia Kant (2001), é uma
ciência especial, haja vista que, ela é uma espécie de propedêutica crucial para todos os tipos
de conhecimento científico, além de bastar-se por si mesma, abstraindo-se da reflexão acerca
dos objetos das demais ciências. Mesmo assim, ela não deixa de ser muito importante para
nós, não somente, porque fundamenta todas as formar de análise científica, mas também,
devido ao fato de proporcionar um caminho seguro e almejável para todo o pensamento que
sonha conquistar a qualidade de ciência, embora, para a metafísica essa trilha talvez ainda
esteja, segundo Kant (2001), demasiadamente tortuosa e muito parecida com um tateio
obscuro no vazio. Então, depois de erigir à lógica enquanto princípio norteador da reflexão
científica, o iluminista alemão procura elaborar um passeio sobre a história do pensamento
ocidental a fim de destacar todos aqueles fenômenos históricos, os quais podem ser
considerados como verdadeiras revoluções do modo de pensar humano, pois, são
responsáveis pela sintonização da Razão no horizonte conciso da ciência.
A reflexão kantiana mergulha inicialmente sob a Matemática, de forma a, em um
primeiro momento, observar quanto ela manteve-se demasiadamente tateante enquanto atuava
como um instrumento de cálculo criado pelos egípcios. Em seguida, Kant (2001) avança

5
KANT, I. Prefácio da segunda edição (1787). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. BVIII.
12
alguns milênios, chegando na Grécia Antiga, onde a reflexão matemática adquiriu uma
significativa atualização, manifesta por meio do advento do triângulo isósceles (fenômeno, o
qual finalmente conseguiu encarrilhá-la nos trilhos seguros da ciência). Isso aconteceu,
porque; pela primeira vez na história da humanidade; foi possível conhecer as propriedades de
um objeto sem a necessidade prévia de uma densa e rigorosa descrição a seu respeito. Ao
invés disso, era possível construí-lo por meio da sua representação a priori em nosso
pensamento, haja vista que, a definição: polígono com três lados que se unem, sendo dois
deles congruentes, representa uma concepção abstrata (lê-se apriorística) proveniente
puramente do nosso próprio entendimento. Portanto, a primeira grande contribuição para o
desenvolvimento da Razão, na ótica kantiana, aconteceu durante o período grego da
Antiguidade e representou uma revolução significativa no modo de pensar, o qual agora
passou a desbravar os limites apriorísticos do seu próprio entendimento.
O próximo grande movimento da Razão aconteceu no âmbito da Física e, segundo
Kant (2001), manifestou-se através das contribuições das obras teóricas e experiências dos
grandes filósofos e físicos, tais como: Francis Bacon, Galileu Galilei, Evangelista Torricelli,
entre outros, os quais constataram o fato da Razão possuir princípios e leis, dotados de juízos
específico que, por sua vez, são fundamentados por ditames constantes e necessários, sempre
responsáveis por obrigar a natureza a agir de a acordo com a sua ordem e, nunca o contrário.
Logo, a revolução do modo de pensar a natureza (levada a cabo por esses pensadores)
consistia em entender a relação dessa com a Razão, não como uma relação entre aluno 6 e
mestre, mas, ao invés disso, na qualidade de uma relação entre juiz e réu, na qual o segundo
está totalmente a mercê das interrogações levadas a cabo pelo primeiro. Nas próprias palavras
do iluminista alemão:

“Assim, a própria física tem de agradecer a revolução, tão


proveitosa, do seu modo de pensar, unicamente à ideia de procurar
na natureza (e não imaginar), de acordo com o que a razão nela pôs,
o que nela deverá aprender e que por si só não alcançaria saber; só
assim a física enveredou pelo trilho certo da ciência, após tantos
séculos em que foi apenas simples tateio.” (KANT, 2001. p. BXIV).

Entretanto, segundo Kant (2001), a deusa da fortuna não foi tão generosa a ponte de
permitir à metafísica introduzir-se nos trilhos da ciência, tendo em vista o fato do

6
No sentido grego da palavra representa “o sem luz” o” desprovido de luz”, o qual será iluminado pelo
professor (lê-se aquele que é detentor da luz e da iluminação).
13
conhecimento produzido por ela ser puramente especulativo, ou seja, a razão transcende
quaisquer informações provenientes da experiência e, acaba encerrando-se em seus próprios
conceitos, bastando-se por si mesma. Nesse sentido, aquilo que é racional e está contido no
pensamento metafísico tem extremas dificuldades para conceber suas leis a priori, em
contrapartida, a experiência não enfrenta os mesmos problemas para fundamentar e edificar
seus postulados. Debruçando-se sobre esse dilema, o filósofo alemão chega à seguinte
conclusão acerca da metafísica:

Não há dúvida, pois, que até hoje o seu método tem sido um mero
tateio e, o que é pior, um tateio apenas entre simples conceitos. (…)
Mais ainda: quão poucos motivos teremos para confiar na nossa
razão se, num dos pontos mais importante do nosso desejo de saber,
não só nos abandona como nos ludibria com miragens, acabando por
nos enganar! (KANT, 2001. p. BXV)

Na realidade, a metafísica, do mesmo modo que a matemática e a física, precisa passar


por um profundo processo de revolução do modo de se pensar a si mesma, talvez somente
assim, ela deixe de fracassar em sua jornada ruma a ciência. Entretanto, não podemos
negligenciar o fato de apenas ser possível deslumbrar essa significativa transformação do
pensar metafísico, caso compreendamos anteriormente aquilo que Kant denomina como
influência da revolução copernicana. Sendo assim, podemos então questionar-nos: Afinal, em
que consistiu o pensamento do matemático e astrônomo Nicolau Copérnico e qual a sua
relação no final das contas com a metafísica? A fim de responder a essas inquietações
precisamos retomar, em meados do século XVI, as observações de Copérnico sobre os
movimentos dos corpos celestes. No entanto, também necessitamos ressaltar o fato da
reflexão dele enfrentar inicialmente grandes dificuldades, haja vista que, partiam das
pressuposições vigentes na época, as quais entendiam a terra como imóvel, fixa e ocupando o
centro do universo7 e todos os astros que nele existiam, acabaram sendo considerados na
qualidade de objetos que orbitavam em torno do nosso planeta. Todavia, a revolução expressa
pelo astrônomo polonês revela-se justamente quando ele acaba invertendo a interpretação

7
Essa representação do planeta Terra, a qual mais parece descrever um “grande rei em seu tono
egocêntrico”, pode ser intendia quando levarmos em consideração a visão de mundo medieval, na qual o império
romano era visto como o centro do mundo e, a perspectiva de entendimento da realidade, a qual passava pelo
escopo cristão católico imperava como a única possibilidade de compreensão daquilo que seria bom, belo e
verdadeiro.
14
cosmológica8 em vigor no seu período histórico (por isso acabou precisando retratar-se para a
inquisição católica, posteriormente), ou seja, começou a atribuir o movimento rotativo ao
espectador, olhando agora para os astros como imóveis. Portanto, exclamará Kant (2001),
podemos “virar a mesa”, invertendo tudo aquilo que foi dito erroneamente pela nossa
metafísica até aqui, questionando-nos sobre a possibilidade de não ser a intuição proveniente
da observação da natureza a responsável por gerar conclusões e postulados científicos, mas,
muito pelo contrário, talvez estes sejam guiados, antes de tudo (lê-se antes da própria
experiência), pelas faculdades do entendimento humano, as quais possuem uma existência a
priori. Além do mais, a própria experiência (entendida como um método de conhecimento)
necessita do auxílio prévio do nosso próprio entendimento (o qual trabalha somente com
noções apriorísticas), logo, não é de se espantar a possibilidade de muito dos seus conceitos e
ditames precisarem se reportarem a conceitos a priori, antes de dedicarem-se ao estudo dos
objetos específicos do mundo sensível. Nas próprias palavras do iluminista alemão:

“No tocante aos objetos, na medida em que são simplesmente


pensados pela razão – e necessariamente – mas sem poderem (pelo
menos tais como a razão os pensa) ser dados na experiência, todas as
tentativas para os pensar (pois têm que poder ser pensados) serão,
consequentemente, uma magnífica pedra de toque daquilo que
consideramos ser a mudança de método na maneira de pensar, a
saber, que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmo nela
pomos.” (KANT, 2001. p. BXVIII).

Depois de chegarmos à conclusão referente ao pensamento kantiano fundar uma


filosofia transcendental (a partir da crítica à metafísica), não podemos deixar de pontuar a
tendência dualística, a qual esse tipo específico de reflexão engendrou. Em outras palavras,
Kant (2001) afirma que os pensamentos de caráter apriorístico precisam ser compreendidos
sempre de duas maneiras: em primeiro lugar, como constituídos por impressões vindas tanto
da experiência quanto do entendimento; em segundo lugar, como produzidos somente da
razão pura, isolados e transcendentes, naquilo que tange à experimentação. Portanto, a
filosofia de Kant termina fundando um modo específico de interpretação da Razão humana,
pois, submete-os a uma espécie de duplo ponto de vista, evidenciando um inexorável conflito
dela consigo mesma, que o iluminista alemão vai denominar de antinomias da razão pura

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Relativo a noção de cosmos, ou seja, das leis e princípios que organizam o universo, naquele dado
período histórico.
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(entretanto, essa é uma discussão para um ensaio posterior, mesmo assim, não podemos
deixar de mencioná-la, tendo em vista que essa tendência dualística é parte essencial da
fundamentação da filosofia kantiana).
Outro aspecto de grande importância para o embasamento da crítica de Kant à
metafísica consiste na descoberta do incognoscível. Em outras palavras, a metafísica precisou
“dar um passo atrás” (para encarrilhar-se nos trilhos da ciência), percebendo a tendência dos
seres humanos em compreenderem as leis naturais e objetos da experiência apenas, porque
anteriormente realizaram um mergulho sobre os seus respectivos fundamentos apriorísticos.
Faz-se necessário ressaltar, que Kant (2001) tinha claro em sua mente o fato disso ser
impossível de ser concluído no estágio atual de desenvolvimento da metafísica. Entretanto, é
justamente nessa condição limitada do pensamento metafísico que podemos extrair o método
necessário para levar a cabo a sua superação. Dessa forma, devido à tendência da metafísica
sempre expressar-se em oposição aos argumentos da experiência; cuja essência nos direciona
ao conhecimento dos objetos naquilo que eles representavam em si mesmos chegando na ideia
de coisa em si; acabamos culminando uma contradição racional eminente, pois, as coisas em
si são incognoscíveis para o nosso entendimento. Portanto, precisamos ter em mente o fato de
até podermos pensar na coisa em si, embora, nunca seremos capazes de concebê-la. Nas
próprias palavras do iluminista alemão:

“Todavia, deverá ressalvar-se e ficar bem entendido que devemos,


pelo menos, poder pensar esses objetos como coisas em si embora
os não possamos conhecer. Caso contrário, seríamos levados à
proposição absurda de que haveria fenômeno (aparência), sem haver
algo que aparecesse.” (KANT, 2001. pp. BXXVI – VII).

Além do mais, também precisamos levar em consideração que essa contradição


somente desaparecerá quando tornar-se plenamente consciente, mas, para que isso aconteça
precisamos levar a cabo um processo de representação racional da coisa em si em nosso
entendimento, transformando-a em fenômeno.
Por incrível que pareça, embora Kant tenha dedicando-se piamente em constituir um
longo processo de crítica da razão pura em benefício da própria cientificidade da metafísica,
ela acabou casualmente salvando a própria razão prática do obscurecimento. Elucidando de
um outro modo, enquanto o iluminista alemão analisava a razão especulativa, percebeu uma
espécie de inclinação dessa em transcender todos os seus limites, o que terminava por
restringir o livre usufruto da razão, pois, tal movimento ameaçava obliterar completamente a
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sua expressão prática. Por exemplo, pensando na questão da alma humana, jamais poderíamos
considerá-la como livre e autônoma e ao mesmo tempo admitir que ela estaria sob a influência
dos ditames das leis da natureza, sem incidirmos, a partir disso, numa contradição evidente.
Entretanto, Kant (2001) ressalta, que a crítica ensina-nos a considerar essa problemática sobre
duas perspectivas: como fenômeno e, como coisa em si. Assim, no primeiro caso, a alma
expressa-se como determinada pelas leis da natureza, logo, não é livre. Agora, na segunda
situação, ela possui a independência de criar suas próprias lei, portando, é livre. Porém, não
podemos negligenciar o fato da impossibilidade do conhecimento da coisa em si (como já
havíamos mencionado), sendo assim, acabamos impedidos de conhecer nossa alma e a seu
caráter livre, tanto pela razão especulativa, quanto através da observação empírica, tendo em
vista que fazer isso seria o mesmo que determinar a existência da liberdade no espaço e não
no tempo, o que é impossível. Contudo, podemos conceber a liberdade humana (sem
contradições), quando retiramos a sua expressão do mundo sensível e do mundo inteligível
para, logo em seguida, introduzi-la no âmbito da razão prática, ou seja, da moral, na qual sua
existência é indispensável. Em suma, segundo Kant (2001), a doutrina moral, é tão importante
quanto a ciência natural, no entanto, isso não seria observado caso, em suas palavras: “(…) a
Crítica não nos tivesse previamente mostrado a nossa inevitável ignorância perante a coisa em
si e não tivesse reduzido a simples fenômeno tudo que podemos teoricamente conhecer. (p.
BXXIX). Antes concluirmos nossas observações sobre as ressalvas kantianas quando a razão
prática, precisamos ter duas coisas nítidas em nossa mente: Em primeiro lugar, não é possível
conhecermos (nem intelectual, muito menos sensivelmente) “Deus”, a “liberdade” e a “alma
humana”, tendo em vista o fato desses conceitos serem apenas passiveis de compreensão por
meio do uso prático da razão. Em segundo lugar, a crítica à metafísica realizada por Kant,
visava obliterar do pensamento metafísico qualquer tipo de irracionalidade e dogmatismo,
pois, “a primeira e mais importante tarefa da filosofia consistirá em extirpar de uma vez para
sempre a essa dialética qualquer influência nefasta, estancando a fonte dos erros9”.
Por fim, chegamos ao ponto de sintetizar em nosso trabalho aquilo que entendemos,
sucintamente, pelo papel histórico da crítica kantiana da metafísica. Primeiramente, nas
palavras do próprio autor destacamos: “A tarefa desta crítica da razão especulativa consiste
neste ensaio de alterar o método que a metafísica até agora seguiu, operando assim nela uma
revolução completa, seguindo o exemplo dos geômetras e físicos.” (KANT, 2001. p. BXXIII).

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KANT, I. Op., cit., p. BXXXI.

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Portanto, o ilustre professor da cidade de Königsberg, nunca pretendeu fundar uma outra
ciência a partir da crítica do pensamento metafísico, muito pelo contrário, sua discussão
orbitou sobre uma questão de método, ou seja, almejava compreender os limites da razão
pura, bem como, desbravar toda a sua estrutura interna. Nesse sentido, o sistema filosófico
construído por Kant, pode ser compreendido como um excelente e necessário exercício
propedêutico, cujo intuito era a fomentação da cientificidade que o pensamento metafísico
tanto precisava. Em resumo, visava “preparar o campo” para a metafísica tornar-se
verdadeiramente uma ciência, ou melhor, como ele mesmo disse:

“Entretanto, se uma teoria tem em si consistência, a ação e reação,


que de início constituem perigosa ameaça, servem apenas, como o
correr do tempo, para limar certas arestas e se dela se ocuparem
homens de imparcialidade, inteligência e amigos da verdadeira
popularidade, que em pouco tempo lhe proporcionarão também a
desejada elegância. ” (KANT, 2001. p. BXLIV).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desse nosso exercício propedêutico, não somente realizado em função do


desbravamento da filosofia kantiana, mas também do empirismo inglês, focado em Hume,
podemos sentirmo-nos satisfeitos somente se, antes de mais nada, tenhamos sido capazes de
elucidar, de forma simples e clara, tudo aquilo que conseguimos aprender sobre as reflexões
acerca do modo específico como age o entendimento humano. Em outras palavras, apenas
estaremos plenamente satisfeitos, caso esse ensaio conseguisse proporcionar ao leitor senão a
ânsia pela filosofia produzida no século XVIII, pelo menos uma centelha de curiosidade para
uma possível e posterior leitura dos filósofos que marcaram a história do pensamento
humano, a partir das suas reflexões sobre aquilo que a história denomina de iluminismo.
Contudo, ilustração é um termo demasiado parcial, o qual parte da perspectiva francesa desse
momento histórico e, na realidade, nosso foco (para ser mais sincero com os pensadores, nos
quais mergulhamos aqui nesse ensaio) volta-se para as perguntas, as quais desejamos incitar a
inquietação dos nossos interlocutores, ou seja: O que seria o esclarecimento [Aufklärung]?
Bem como um grande professor de metafísica alemão, costumava se perguntar. Ou ainda,
como os homens conhecem a si mesmo e o mundo ao seu redor? Direcionando o problema
para o enfoque sobre a experiência na qualidade de princípio por excelência do processo de

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conhecimento humano, tal como o empirismo de David Hume foi muito bem capaz de
realizar.
Na verdade, não só reconhecemos o intuito demasiado introdutório e pouco profundo
do nosso esboço sobre a história da filosofia, bem como, podemos encontrar nela uma
qualidade eminentemente digna e devemos isso, sem dúvidas, a leitura de Immanuel Kant.
Em suma, se existe uma ideia que nós conseguimos explorar; senão em toda a sua
profundidade, ao menos o suficiente para acalentar nossa reflexão filosófica; foi a importância
da análise propedêutica. Por exemplo; compreendemos a magnitude de um mergulho prévio
na piscina antes do acontecimento do campeonato propriamente deito; ou, da necessidade da
preparação do solo antes de começarmos a levar a cabo uma grandiosa ou audaciosa
plantação.
Portanto, se há alguma ideia que pode ser afirmada com consistência e precisão nesse
trabalho, é que a obra kantiana pretendeu antes de qualquer outra ambição, ser um estudo
preliminar de metafísica, o qual almejava torná-la uma verdadeira ciência, desejando
representar a revolução do modo de pensar, o qual o pensamento metafísico necessitava.
Embora, essa grandiosa contribuição de Kant tenha se originado da maneira mais
contraditória possível, ou seja, através da leitura do filósofo mais cético que o século XVII foi
capaz de produzir. No entanto, é justamente nesse sentido que se expressa a importância da
propedêutica, tendo em vista o fato dela ser responsável por esclarecer-nos, o máximo
possível, facilitando o caminho trilhado pela reflexão filosófica, a fim de limpá-lo das rochas
e pedregulhos (ou “limá-los como diria Kant), as quais impedem-nos de chegarmos a essência
daquilo que estamos discutindo. Enfim, se ao menos esse trabalho consiga florescer, nas
mentes e nos corações inquietos daqueles que aqui dedicaram o seu tempo, uma espécie de
inspiração pelo saber (ainda que seja da forma mais incipiente possível), já estaremos
plenamente satisfeitos em termos elaborado tamanha empreitada.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUME, D. Dúvidas céticas sabre as operações do entendimento e, Solução cética dessas


dúvidas. In: ______. Investigações sobre o Entendimento Humano e Sobre os Princípios
da Moral. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 53 – 90.

KANT, I. Prefácio da segunda edição (1787). In: ______. Crítica da razão pura. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. BVII – BXLIV.

______. Introdução. In: ______. Crítica da razão pura. São Paulo: Ícone, 2011. p. 5 – 19.

______. A antinomia da razão pura: Sistemas das ideias cosmológicas e Antitética da razão
pura. In: ______. Crítica da razão pura. São Paulo: Ícone, 2011, Livro Segundo – Primeira
e Segunda Seção. p. 280 – 313.

______. Resposta à pergunta: Que é Iluminismo? (1784). In: ______. A paz perpétua e
outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990. p. 11-19.

LEBRUN, G. Hume e a astúcia de Kant e, Do erro à alienação. In: ______. Sobre Kant. São
Paulo: Iluminuras, 2010. p. 7 – 22.

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