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aulo Reglus Neves Freire nasceu na Estrada do Nos seus livros, Paulo falou algumas vezes, e sempre
Encanament o , 724 , no bairro de Casa Amarela, com afeto, dos seus irmãos Armando, Stella e Tèmístocles.
no Recife, às t horas da manhã, do dia t9 de De sua primeira infância como de um momento muito
setembro de 1921 , filho de Joaquim Themístocles Freire feliz. Admlrava e valorizava a paciência, a tolerância e a
e Edeltrudes Neves Freire. Morreu na UTI do Hospital capacidade de cuidar e de amar de seus pais, verdadeiras
Albert Einstein, na cidade de São Paulo, às 6h30, do dia sementes das virtudes que ele desenvolveu em si, para si e
2 de maio de 1997, de "enfarte agudo do miocárdio, insu- que ofereceu em sua práxis e sua teoria do conhecimento
ficiência coronariana e hipertensão arterial sistêmica". ao mundo. Raízes áa gentiddde de Paulo homem ético e
O pai de Paulo, Joaquim Themístocles Freire, foi oÍi político-educador.
cial da Polícia Militar de Pernambuco. A mãe, Edeltrudes Aos 10 anos de idade, em abril de 1932,a família de
Neves Freire (Dona Tldinha), limitou-se às prendas do- Paulo foi morar nas vizinhanças da capital pernambuca-
mésticas, conforme costume da época. Paulo foi o quarto na, no Morro da Saúde, em Jaboatão, uma cidadezinha
e último Êlho do casal. a 1B km de Recife, após ter sido impossível ao seu tio e

'16 VIVER MENTE&CÉREBRO ESPECIAL PAULO FREIRE


PoR ANA Mnnn Anlúo FnErnr

padrinho Rodovalho auxiliar financeiramente a família.


Seu pai, que já estava reformado, percebia um soldo
insignificante diante das despesas mínimas de sobrevi-
vência da família.
Foi emJaboatão que Paulo começou a sentir com força
trágica o sofrimento e a angústia. Lá, aos 1 3 anos de idade,
ele experimentou a dor da perda de seu pai. Sentiu o so-
frimento ao ver sua mãe, precocemente viúva aos 42 anos
de idade, humilhada na pobreza e na luta para sustentar
a si e a seus quatro filhos. Foi em Jaboatão que Paulo fez
"algumas incursões nos quintais alheios", premido pela
fome que atormentava a família, mas, sobretudo, começou s.

a entender o mundo e suas injustiças. S

ESCOLARIZAÇÃO
Começou a leitura da palaura ensinado por seus pais,
escrevendo palavras e frases de suas experiências de vida Após esse primeiro ano do curso de nível médio é que
com gravetos caídos das mangueiras, à sombra delas, no Paulo ingressou no Colégio Oswaldo Cruz, do Recife,
chão do quintal da casa onde nasceu, como tanto ele de propriedade de meu pai, Aluízio Pessoa de Araújo.
gostava de lembrar e de dizer. Nesse educandário, cursou seis dos sete anos de estudos
Em Jaboatão, concluiu a escola primária, com aulas de secundários - cursos fundamental e pré-jurídico - , de 1937
"reforço" de Cecíia Brandão e Odete Antunes, depois de a 1942. Foi nesse momento, nos coredores do "Oswaldo
ter freqüentado as "escolinhas" de Amália Costa Lima e de Cruz" , na Rua Dom Bosco, 1 0 1 3, no já tão distante Recife
Eunice Vasconcelos, e, por pouco tempo, o Crupo Escolar de 1937, quando eu contava pouco mais de 3 anos de
Matias de Albuquerque. no Recife. idade, que conheci Paulo.
DeJaboatão, Paulo ia diariamente de trem para a capital Sobre a sua escolarização secundária e a importância
pernambucana, já com 16 anos de idade, porque lá não do Colégio Oswaldo Cruz na sua formação científica
havia escolas oferecendo o nível secundário de ensino, e humanística, declarou, ainda no exílio, em 1978, na
para freqüentar as aulas do primeiro ano desse curso no entrevista que concedeu a Claudius Ceccon e Darcy de
Colégio Francês Chateaubriand, no bairro de Casa Ama- Oliveira para O PasQuim (n' 462),
rela. Na verdade, não sendo esse um colégio "equiparado "Eu me lembro, por exemplo, que já na adolescência,
ao Colégio Pedro II", o Colégio 14 deJulho, prestava-se quando me foi possível entrar no ginásio, com 15 anos de
a ser a "casa oficial" onde se realizavam os "exames de
admissão" e onde se submetiam aos exames finais do ano
O ATO DE ALFABETIZAR tem como intenção possibilitar
letivo os alunos de alguns educandários não reconhecidos
que analfabetos resgatem sua humanidade roubada; acima,
pelo Ministério da Educação e Saúde Pública. com a autora e também educadora Ana Maria Araújo Freire

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VIVER MENTE&CÉREBRO
OLHO D{ LUZ{ 1987), colagem sobre madeira de Orwaldo Viieri

novembro de 1985, em São Paulo), senti que precisava


fazer uma carreira acadêmica mais comprometidamente
científica do que a que estava podendo fazer como
professora de história da educação brasileira (coinci-
dentemente, a mesma disciplina que Paulo ensinara nas
diversas unidades de ensino da Universidade do Recife)
e estrutura e funcionamento do ensino de 1" e 2o graus,
em três universidades paulistanas. Então, convidei Paulo
para ser meu orientador por que minha dissertação era
sobre o analfabetismo brasileiro (AnalJabetisno no Brasil,
Editora Cortez). Durante o processo de orientação, ele
perdeu Elza, em 24 de outubro 1986 (ela havia nascido
I em rclelrcte). Muito abatido, Paulo parou de trabalhar,
ío até quando, optando pela vida, Íetornou às suas atividades
profissionais.
o
Sentimos e constatamos, então, que, ao carinho, à
amizade e a um mútuo fascínio de longa data sentido,
idade, quando os meus camaradas de geração cujas famílias somavam-se agora a paixão e o amor. Nossa relação
tinham condições estavam começando a faculdade, eu ganhou um novo significado, "Mudamos a natureza de
estava começando o meu primeiro ano de ginásio, escre- nossa relação", como ele gostava de dizer. Casamos em
vendo rato com dois erres. (...) Me lembro muito bem da cerimônia católica, no Recife, no dia27 de março de 1988,
peregrinação que fez minha mãe pelas escolas à procura e no Cartório Civil, em São Paulo, no dla t9 de agosto
de um colégio particular que me recebesse gratuitamente. do mesmo ano.
Finalmente ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz; é
por causa dos seus responsáveis que eu estou dando essa VIDA PROFISSIONAL
entrevista hoje. O áiretor era o Aluízio Araújo, por Quem tenbo Em 1941 já demonstrando uma capacidade imensa
uma proJunda admiraçã0. ( ..) Ele me recebeu. EIe só Quería que eu de aprender, de respeitar os outÍos e de criar coisas novas
fosse estudioso. E era o que eu era" (grifos meus). com desembaraço e tranqüilidade, Paulo foi promovido de
seu primeiro emprego dentro do Colégio Oswaldo Cruz,
Paulo ingressou, aos 22 anos de idade, na secular de "auxiliar de disciplina", que fora por dois anos, para o
Faculdade de Direito do Recife, tendo aí estudado entre de "professor de língua portuguesa", tendo aí lecionado
1943 e 1947. Colou grau, mas não chegou a completar até 1947.
uma causa sequeï como advogado, embora tivesse aberto Nesse ano, resolveu abandonar a docência escolar ao
pequeno escritório com dois grandes amigos e tentado aceitar ir trabalhar no setor de Educação e Cultura do
iniciar-se nas causas jurídicas. Desistiu na primeira causa Serviço Social da Indústria (Sesi), órgão então recém-
e resolveu ser educador. criado pela Confederação Nacional das Indústrias. Aí
teve contato com a educação de adultos/trabalhadores e
VIDA AFETIVA sentiu o quanto eles e a nação precisavam enfrentar com
Antes de ter concluído seus estudos universitários,
Paulo casou-se na lgreja Matriz da Soledade, no Recife,
em 10 de novembro de 1944, com a professora primária ANA MARIA ARAÚ|O FREIRE é mestra e doutora em educação
Elza Maia da Costa Oliveira. O casamento civil deles foi pela PUC-SP, autora de Nita e Poulo: crônicos de amor (Olho.
realizado no Palácio da Justiça do Recife, no dia 1o de d'Agua) e Anolfabetismo no Brosil (Cortez), entre outros. E
sucessora legal da obra de Paulo Freire, de quem organizou os
dezembro de 1944.Tiveram cinco filhos. Maria Madalena, livros Pedogogio da indignoção, Pedogogio dos sonhos possíveis,
Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim Temístocles e Pedogogio da tolerôncia (Unesp), O comínho se faz cominhondo
(Vozes), Aprendendo com a própria histório ll (Paz e Terra) e Á
Lutgardes; nove netos e um bisneto.
Africo ensinando o gente (com Sérgio Guimarães, Paz e Terra).
No ano de 1986, eu, então viúva de Raul Carlos Villy Este ensaio é uma síntese da biografia inêdita Poulo Freire: uma
Hasche (com que me casara em 1956 e que falecera em história de vida (EdiÍora Villa das Letras, no prelo).

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seriedade e adequação a questão da educação de modo ensino superior da mesma cadeira na Faculdade de Filoso-
geral e, mais particularmente, a da educação popular e da fia, Ciências e Letras da mesma Universidade do Recife.
alfabetização de adultos. Em l4 de agosto de 1961, o reitor dessa universidade,
Paulo começou a trabalhar no Sesi-PE em 1o de agosto João Alfredo da Costa Lima, concedeu o certificado de
l) de 1947 . Em 20 de maio de 1964, dirigiu-se ao diretor do docente-livre da cadeira de história e filosofia da educa-
Departamento Regional do Sesi, Pernambuco, adiantan-
ção, da Escola de Belas Artes, em conformidade com a
do-se ao que queriam fazer os industriais pernambucanos lei então vigente.
adeptos do golpe de estado, "Venho em caráter irevogável O Serviço de Extensão Cultural da Universidade do
requerer a VS. rescisão de meu contrato de trabalho, com Recife (SEC) foi criado na gestão desse mesmo reitor, em
renúncia da estabilidade, a fim de tratar de assunto de meu 8 de fevereiro de 1962, concretizando um velho sonho de

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pessoal interesse". Esse requerimento só foi protocolado Paulo e do próprio Costa Lima de fazer da universidade
mais de dois anos depois. não apenas um espaço exclusivo de aquisição/construção
O Sesi foi para Paulo, como sempre asseverava: "Llm do saber. Paulo queria trazer para a universidade o senso
tenpo f und ante''. Fundante em sua compreensão progressista, comum, os sonhos, os desejos, as aspirações e necessidades
humanista e libertadora de educação. do povo, para procurar entender pedagógica e politica-
Suas primeiras experiências como professor de nível mente essas condições cristalizadas secularmente no Brasil,
superior foram na Escola de Serviço Social, a partir de e criar possibilidades de superação delas, por meio da
1947, quando foi convidado para fazer parte do corpo conscientização dessas camadas populares, possibilitando
docente dessa instituição que marcou, indelevelmente, a sua inserção crítica nos seus próprios destinos e no do seu
compreensão crítica da assistência social no Brasil. Hou- país. O SEC tinha também como objetivo a formação
ve, então, por iniciativa de Paulo uma troca dialética das de quadros de professores para a educação popular (uer
suas experiências acadêmicas com as práticas educativas Pedagogìa da tolerância).
levadas a efeito por ele no órgão institucional do patro- No SEC, Paulo desenvolveu e sistematizou cientifi-
nato/trabalhadores de Pernambuco, o Sesi. Mas foi, sem camente o "Método de Alfabetização Paulo Freire,,, mas
dúvida alguma, na Escola de Belas Artes, da Universidade a prática inicial dessa experiência se deu no âmbito do
do Recife, que Paulo - nomeação de 1952, referendada Movimento de Cultura Popular (MCP), no Centro Dona
em 1955, como professor catedrático interino de história Olegarinha, no Poço da Panela, em Recife.
e filosofia da educação, da hoje chamada Universidade
Federal de Pernambuco - aprofundou sua leitura de mundo
crítica e foi criando as condições de fazer-se o educador
ético-político e crítico-libertador que é.
O PfiiMË'RO
Em julho de 1959, para obter o grau de doutor e TMPRICÕ DO
sua efetivação no cargo de professor do Curso de Pro- TDUCADOf,.
ïsi dentro de
fessorado de Desenho, da Escola de Belas Artes, Paulo
urna escda, o
inscreveu-se no concurso para catedrático efetivo, apre- mesmo Colégio
sentando como parte das exigências legais do concurso ôswaldo Cnlz
em qu€ estudara
de títulos e provas a tese intitul ada Educação e atualidade como bolsista
brasileira (depois de algumas modificações publicada como e onde, depois
Educação como prática da libuãade), de dois anos
cujo conteúdo não era 1Êi:1i.'ëi' :;::i: como auxiliar
nada comum para a época: relacionar a educaçào com o t::-. ..4:t)::t:..
de disriplina,
contexto real brasileiro. :á!::i:'::.-l :t' foì promovido
para proïessor
Certamente por isso não foi classificado em primeiro
de lingua
lugar. Paulo, então, precisou deixar a cátedra, tendo poÍtuguesã,
pedido exoneração em 3 de março de 1961. Com sua cargo exercido
aG'1947
aprovação no concurso e a obtenção do título de doutor,
foi, então, nomeado para exercer o cargo de professor de

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VIVER MENTE&CÉREBRO 't9
Com o Relatório do Tèma III da Comissão Regional Diante da comprovada competência ética, política e

de Pernambuco "A Educação de Adultos e as Populações a educação popu-


pedagógica de Paulo de pensar e praticar
Marginais' O Problema dos Mocambos", que incorporava lar demonstrada, sobretudo nessa experiência de Angicos,
substantivamente as idéias de Paulo, no II Congresso de o ministro da Educação Paulo de Tãrso levou-o para Brasília
Educação de Adultos, convocado pelo governoJK, ele se para realizar uma campanha nacional, que tomou o nome i

inseriu, irreversivelmente, na história da educação brasi- de Programa Nacional de Alfabetlzação (PNA). j


q
leira. Na história da educação de adultos e da educação
popular progressista mundial. O COLPE DE 64
rt

Extrapolando a área acadêmica e institucional, Paulo Com a "caça às bruxas" levada a efeito logo nas pri- j
q

engajou-se com paixão nos movimentos de educação meiras horas do golpe militar de 1964, nada sobrou na tÌ

popular do início dos anos 60. Participou e influenciou sede do SEC da documentação e dos trabalhos educativos
algumas campanhas de educação popular, mas foi no MCP realizados e da atuação dos seus idealizadores, sobretudo
que atuou mais ativamente, como um dos seus fr-rndadores. do seu primeiro diretor, Paulo Freire.
O MCP tinha como obietivo a valorização da cultura O PNA foi extinto em abril de 1964,1ogo após o golpe.
popular, a integração do homem e da mulher nordestinos Perseguido, Paulo foi preso em 17 de junho de 1964, no
no seu processo de libertação social, econômico, político Recife, quando foi levado de sua casa por dois policiais.
e cultural, para assim poderem estes e estas contribuir com Passou rapidamente pela Secretaria de Segurança Publica
suas presenças cidadãs na sociedade brasileira. de Pernambuco e depois foi levado para a Companhia de
A experiência de Angicos - campanha de alfabetiza- Guarda do Exército, no Recife, onde foi fichado e ficou
ção de iniciativa do governo do Rio Crande do Norte -, retido por cerca de 20 dias. Foi preso uma segunda vez
dentro do clima de euforia que reinava no Brasil, entre por cerca de 50 dias.
os progtessistas, começou em janeiro de 1963, e em 2 Paulo respondeu, por escrito, ao Inquérito Adminis-
de abril do mesmo ano comemorou-se com uma festa de trativo instalado contra ele, pela Universidade do Reci-
formatura a alfabetização desse grupo, que contou com a felMEC. Pouco mais de um mês depois foi "convidado" a
presença do presidente da República, João Coulart, outras responder ao Inquérito Policlal-Militar no Quartel da 2"
autoridades e muitos jornalistas. Companhia de Guardas do Recife comandado pelo temido
tenente-coronel Ibiapina, considerado o militar mais cruel
da "Revolução" no Recife.
Pouco depois foi convocado para depor no Rlo de
Janeiro em mais um IPM. Já na antiga Capital Federal,
sentindo-se ameaçado, foi aconselhado e convenceu-se
da necessidade de asilar-se na Embaixada da Bolívia, em
setembro de 1964. Precisou, para preservar a sua vida,
partir para um exílio de mais de 15 anos.

EXíLIO
Paulo partiu para a Bolívia em outubro de 1964, quan-
do contava apenas 43 anos de idade, levando consigo o
"pecado" de ter amado profundamente o seu povo e de
ter se empenhado em alfabetizá-1o conscientizando-o da
realidade, para que sofresse menos e participasse mais das
decisões nacionais.
Ainda na embaixada no Rio, o ministro da educação da
Bolívia o contratou para dar uma assessoria no campo da
educação de seu país, tanto para a escola primária como,
sobretudo, para a educação de adultos.

5
s
ÊM 1991, depois de deixar a Secretaria de Educação do
z Município de São Paulo, o pedagogo obteve um dos 39
o
à títulos de doutor Honoris couso ganhos em vida (cinco foram
recebidos porAna Maria Araújo Freire, rn memoriam)

ESPECIAL PAULO FREIRE


20 VIVER MENTE&CÉREBRO
PIETA {1924}, obra de Vicente do Rego Monreiro

através da Chefatura de Planos Extraordinários de Educa-


ção de Adultos. Tânto num como no outro, Paulo atuou
no processo de alfabetização e no da pós-alfabetização, no
meio urbano e no ruràI. Nas áreas rurais, o governo chi-
leno desenvolvia um programa de reforma agráriaatravés
da Corporação da Reforma Agrária" (Cora), para a qual
Paulo também atuou no campo da educação popular e no
o
z da alfabetização de adultos.
Depois ele recebeu convite para ir trabalhar no Institu-
I
j to de Capacitação e Industrialização em Reforma Agrária
d
z (lcira), quando conseguiu realizar um trabalho que asso-
ciou de forma plena a educação de adultos com o processo
k
de reforma agrária. Para este trabalho no lcira Paulo foi
o
contratado pela Unesco como consultor especial.
0
o Em síntese, Paulo trabalhou no Chile de novembro de
o 1964 até abril de 1969.
Na época recebeu alguns convites para lecionar. Um
Nao fol somente o problema de saúde que fez deles era para a Universidade Harvard, e foi essa a opção
Paulo sair da Bolívia. Dias após sua chegada, também de Paulo. Com a "carta de viagem" chilena e um "visa" do
a Doutrina de Segurança Nacional ditou lá um golpe consulado americano do Chile, partiu para a sua terceira
de Estado deflagrado contra o governo progressista de fase de exílio' os Estados Unidos.
Paz Estensoro. Embora não tenha sido molestado pelo Partiu com Elza, sua primeira esposa, e os dois
novo governo boliviano, Paulo considerou inviável sua filhos homens para Massachusetts, ficando de abril
permanência no país. de 1969 a fevereiro de 1970 morando em Cambridge,
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Com um novo salvo-conduto emitido pelo Ministério contratado para dar assessoria a um centro de estudos
do Interior boliviano, Paulo seguiu paraa segunda etapa sociais - Center for the Study of Development and
de seu exílio, o Chile. Aí chegou em 20 de novembro de Social Change - e para dar aulas sobre suas próprias
1964, pelo aeroporto de Arica. reflexões na Universidade Harvard - Center for Stu-
"Cheguei ao Chile de corpo inteiro. Paixão, saudade, dies in Education and Development na qualidade de
-,
tristeza, esperança, desejo, sonhos rasgados, mas não des- professor visitante.
feitos, ofensas, saberes acumulados nas tramas inúmeras Têrminado o contrato com a Universidade Harvard,
vividas, disponibilidade à vida, temores, receios, dúvidas, algumas universidades dos EUA fizeram-lhe convites para
vontade de viver e de amar. Esperança, sobretudo" (Pela- que lá Íìcasse, mas Paulo resolveu que deveria ir traba-
lolia da esperança). lhar no Conselho Mundtal das Igrejas (CMI), conforme
Três dias depois de ter chegado a Santiago, Paulo conversado desde o Chlle. Sua opção de mudar-se para
visitouJacques Chanchol, diretor do Instituto de Desen- o Velho Mundo foi tomada conscientemente desde que
volvimento Agropecuário (lndap), e após uma conversa tinha percebido claramenre que o CMI lhe daria o que
entre eles dois e amigos comuns, brasileiros e chilenos, nenhuma universidade poderia lhe dar, conviver com o
saiu de lá contratado para ser assistente de Chanchol no povo, os oprimidos. Em Genebra, Paulo viveu de 14 de
setor de Promoção Humana. fevereiro de 1970 até 15 dejunho de 1980.
No Indap, Paulo trabalhou a sua compreensão de A serviço do Conselho Mundial de Igrejas, como
educação popular por três anos, tendo sido neste período consultor especial do Departamento de Educação, Paulo
posto também à disposição do Ministério da Educação, "andari1hou", como gostava de dizer, pela Ásia, pela Ocea-

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nia, pela América (com exceção do Brasil, proibido que Retornou quase um ano depois, em 16 dejunho de 1980,
estava, para sua tristeza, de pôr os seus pés em seu país, e, para ficar definitivamente no Brasil.
depois, de um a um dos países que iam "aderindo" à onda O Programa de Pós-Graduação em educação,
golpista determinada pelo norte), e pela Africa, sobretu- currículo da PUC-SP, atendendo a sugestão de Paulo,
do nos países que tinham recentemente conquistado sua inovou a tática pedagógica de "dar aulas", o ato de en-
independência política. sinar-aprender. E1e não ia sozinho para as classes, tal
Em 197 l, em Genebra, Paulo e um grupo de brasi- como o "mestre" que vai ensinar tudo ou muitas coisas
leiros, entre eles Elza Freire, Claudius Ceccon, Rosiska do que sabe, porque sabe tudo. Sempre com outros pro-
e Miguel Darcy de Oliveira, criaram o Instituto de Ação fessores, ele formava círculos de debates sobre a prática
Cultural (ldac), que tìnha como obietivo aprofundar o educativa dos alunos, sobre os temas de seus trabalhos
estudo das práticas de Paulo no Brasil antes do golpe de teóricos para esclarecer dúvidas ou aprofundar teorias.
1964. Posteriormente, a partir do convite oÉcial feito Enfim, praticando o verdadeiro diálogo proposto por
através do Comissariado de Educação da Cuiné-Bissau, ele em sua teoria.

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em 1975, para assessorar esse país na questão da educa' Em 1 " de setembro de 1 980, após pressões dos estudan-
ção, de modo particular na da alfabetização dos adultos, tes e de alguns professores, Paulo foi nomeado Professor
o ldac passou a preocupar-se, mais diretamente, com o MS-6 da Universidade Estadualde Campinas (Unicamp),
processo de libertação dos países africanos. no Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educa-
Além da Guiné-Bissau, também Cabo Verde, Sao Tomé ção, da Faculdade de Educação. Em 4 de março de 1991,
e Príncipe e Angola tiveram a assistência de Paulo e do ldac Paulo escreveu ao então reitor pedindo a sua exoneração,
na sistematização de seus planos de educaçào. porque tinha sido readmitido como técnico de educação
Na Suíça, Paulo Freire foi também professor da Uni- da Universidade Federal de Pernambuco, em 31 de janeiro
versidade de Cenebra, levando aos alunos da Escola de de 1991, demitido que fora em 9 de outubro de 1964 pelo
Psicologia e Ciências da Educação (EPSE) dessa universi- governo militar.
dade suas idéias, reflexões e prática educativa. Em junho Como a Constituição Brasileira de 1988 proíbe a

de 1977, Paulo pediu demissão para se dedicar mais ao acumulação de mais de dois cargos públicos e/ou suas
trabalho com os africanos e africanas. aposentadorias, Paulo pediu demissão da Unicamp, para
Em razão das pressões dos brasileiros e das brasileiras cumprir cívica e eticamente o seu dever de cidadão.
que não podiam mais suportar o estado de exceção - os Em 1987, Paulo Freire ministrou um curso regular
exilados internos, como dizia Paulo -, o governo militar na USP, como professor convidado no Curso de Pós-
brasileiro concedeu-lhe (ele, particularmente, tinha tam- Graduação da Faculdade de Comunicação dessa mesma
bém impetrado um mandado de segurança) o seu primeiro universidade, intitulado "Arte-Educação e Ação Cultural".
passaporte. Passaporte brasileiro, como queria e era direito No segundo semestre letivo de 1991 fot novamente
seu possuir, em de junho de 1979, do Consulado do
)6 convidado, como professor da mesma instituição para
Brasil em Genebra. Paulo tinha 58 anos de idade e já havia desenvolver um trabalho amplo e específico, proferir
viajado por grande parte do mundo. palestras nas faculdades, gÍavar vídeos e discutir projetos
novos e pioneiros da universidade.
RËTORNO PÂRA O BRASIL
Esteve em agosto de 1979 no Brasil visitando São VIDA POLíTICO.PAKTíDÁruÂ
Paulo, Rio deJaneiro e Recife, para rever parentes, amigos Quando Paulo visitou o Brasil em 1979, antes de seu
e admiradores, conforme afirmou à imprensa brasileira e retorno definitivo, conheceu o projeto para a formação
aos amigos, naquele momento: "Vim para re-aprender do Partido dos Trabalhadores. Entusiasmou-se ao ver que
meu país". uma de suas idéias fundamentais, a necessidade da organi-
Assinou o contrato para lecionar na PUC-SP no Pro- zação popular, estava tomando corpo. Corpo num partido
grama de Pós-Graduação' currículo, consagrando formal- político surgido dos movimentos socais que a ditadura
mente o convite que o grão-chanceler dessa universidade, não conseguira sufocar e que seria peça fundamental na
Dom Paulo Evaristo Arns, the tinha feito em Cenebra. necessária e verdadeira democratização do país.

22 VIVER MENTE&CÉREBRO ESPECIAL PAULO FREIRE


FRÊIRE propunha ao alfebetizando que "lesse o mundo ao ler a palavra"; daí a ter se posicionado contra cartilhas prontas

Paulo morreu acreditando, como dizia, que o PT


- o 27 de maio de 1991 , Paulo dedicou-se, exclusivamente, a
único partido ao qual se "tem as possibilidades de
filiou - "mudar a cara da escola". Para organizar uma escola pública
traduzir os sonhos, as utopias pelas quais lutei toda a minha de qualidade, popular e democrática.
vida e sofri quase 16 anos de exílio. A utopia de fazer um Criou o Mova (Movimento de Alfabetização de Jo-
Brasil mais sério, mais bonito e mais justo, verdadeiramente vens e Adultos) a partir de sua compreensão de educação
democrático". Para isso, também enfatizava, o governo do popular de alfabetização e pós-alfabetização ético-políti
PT vai ter que reinoentar o poder, co-ideológico-epistemológica, ouvindo as sugestões do
Na campanha presidencial de 1989, admiradores de educador popular e amigo pessoal Pedro Pontual.
Paulo tiveram a idéia de convidá-lo para compor a chapa, Na realidade, o Mova inaugurou um novo tipo de
com Lula, da "Frente Brasil Popular", na qualidade de vice- educação popular, de educação de adr-rltos, no qual diale-
presidente; entretanto, o que tinha ficado certo é que Paulo ticamente se envolvem alfabetizandos/comunidade/poder
seria o ministro da educação do Brasil. estatal organizado. O Mova-SP tornou-se modelo de edr,r-
Quando, no ano de 1994 Luiza Erundina se candida- cação popular e de alfabetização de adultos para muitas das
tou peÍa legenda do PT ao Senado, convidou Paulo para secretarias de educação de governos progressistas e outras
compor com ela a chapa, como vice-senador. Novamente instituições educativas, embora, infelizmente, algumas
a cúpula do PT entendeu que deveria indicar uma pessoa vezes com distorções que são, ingênua ou manhosamente,
de outro partido com o qual fazia composição política. ditas como recriações freirianas. Paulo realizou, em l6
de dezembro de 1990, um dos seus grandes sonhos: o I
SECRETÁRIO DA EDUCAÇÀO Congresso de Alfabetizandos.
Em 1" de janeiro de 1989, Paulo foi empossado como Em 16 de maio de 1991 , após 29 meses de atuação ou-
secretário de educação do município de Sao Paulo pela sada e prudente, marcadamente inovadora, Paulo reuniu os
prefeita da cidade Luiza Erundina de Sousa. Desse dia até funcionários e professores da SME-SP e anunciou que estava

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EXCLUIR segmentos da sociedade do acesso à lei tura represenïava, para 0 educador, uma forma de
exploradores atentarem contra oprimidos

'ïoltando para casa" para escrever livros. Para trabalhar, como zaçáo" , de primatas a seres humanos, fomos nos fazendo

dizia, em "outra esquina" da luta político-pedagógica. No dia existência humana porque inventamos a cultura - dentro
27 de maio de 1991, sucedeu-lhe o professor Mário Sérgio da qual a linguagem escrita - para a qual todos e todas
Cortella que, com sua marca pessoal, continuou o trabalho contribuímos. Excluir alguns segmentos sociais do direito
iniciado por Paulo até o fim do mandato da Prefeita. de usufruir desse bem cultural - o da simples lerlura áa
palaora- é malvadez dos poderosos, dos explorado.et. É
O MÉTODO PAULO FRËIRE interditar "aos que não conhecem as letras" o acesso àleitura
Devo explicitar, para negar o senso comum vigente do mundo que a verdad eira leitura da palat ra possibilita.
mesmo entre educadores, que, ao falar do Método Paulo Em última instância, "produzir os analfabetos" é ar-
Freire, deve-se ter cuidado para não reduzi-lo a puro con- rancar-lhes a voz da participação, da cidadania e da vida
junto de técnicas ligadas à aprendizagem da leitura e da social com dignidade. Aos analfabetos rouba-se o direito
escrita, independentemente de sua conrpreensão de educaçã0. de biografarem-se. De serem sujeitos que podem ter suas
Ou, dizendo com outras palavras, tentam reduzir sua histórias de vida como seres sujeitos da história, a partir
abrangente e revolucionária concepção de conscientiza- de suas participações efetivamente concretizadas. A alfa-

ção, libertação e ética humanista contida na sua teoria do


betização conscientizadora possibilita aos indivíduos se
conhecimento a meras técnicas mecânicas de alfabetiza- constituírem como sujeitos e não ficarem eternamente e
apenas como objetos da incidência dos que sabem, podem,
ção. Não se pode separar seu método da sua teoria como
um todo. O método não é um todo que se justifique por si exploram, mandam e os submetem.
só. Ele está contido na sua teoria do conhecimento. Essa proposta de humanizaçáo dos homens e das
O ato de alfabetizar em Paulo tem como intenção mulheres é a base da teoria do conhecimento de Paulo e,
maior possibilitar fazer de seres menos, seres mais, ao estando também no "Método", não há como negar: este
possibilitar que analfabetos e analfabetas ïesgatem a sua está em relação explícita e dialética com sua compreensão
humanidade roubada. No processo milenar de "homini- de educação mais ampla e profunda.

ESPECIAL PAULO FREIRE


24 VIVER MENTE&CÉREBRO
O DISCURSO FREIRIANO prioriza o questionamento em detrimento
da absorção pura e simples de nova informação

O que Paulo propõe com o seu "Método de Alfabetiza-


ção" é, pois, muito mais do que fazem os métodos tradicio-
nais de alfabetização, que se limitam a fazer repetir/deco-
rar, mecanicamente, letras e sílabas e juntá-las para formar
frases e discursos, que repetem os slogans, como querem
os opressores. O sonbo de Paulo foi, indubitavelmente, o
de que todos os seres humanos, independentemente de
cor, religião, raça, etnia ou sexo, possam ser gente. Gente que
leia e escreva entendendo a palavra, lendo o mundo. GerÍe
que tenha onde morar bem e escola para estudar. Gente que
possa sonhar os seus próprios sonhos e trazer consigo os
de sua família e da sua sociedade para transformá-la. Gente
que possa entender que "mudar é difícil, mas é possível".
Quêl Por quê? Como? Para quê2 Por quem? Para queml
Contra quê? Contra quem? A favor de quem2 A favor de
quê: - são as perguntas que permeiam o diálogo freiriano
e que provocam tanto os alfabetizandos como todos os
seres curiosos por saber, em torno da substantividade das
coisas, darazão de ser delas, de suas finalidades, do modo
como se fazem etc. São essas perguntas que nos permitem
ir ao âmago das questões. São elas que criam as verdadeiras
bases para o saber. As que possibilitam a conscientização
z
e o engajamento político. Essas perguntas são partes
z
intrínsecas de sua compreensão de educação e essenciais,
portanto, na aplicação do "Método". güísticas, mas vai além delas, porque desafia o homem e
O "Método" nega, portanto, a mera repetição alienada a mulher que se alfabetizam a se apropriarem do código
e alienante de frases, palavras e sílabas, ao propor aos alfa- escrito e a se conscientizarem/politizarem, tendo uma
betizandos ler o mundo ao ler a palaora. Leituras, aliás, como visão mais ampla da linguagem e do mundo.
enfatizava Paulo, indissociáveis, daí ele ter se posicionado Concluindo, o "Método Paulo Freire" é muito mais do
contra as cartilhas que, prontas e alienadas, levam quase que unr método que alfabetiza, é uma ampla e profunda
sempre à alienação. compreensão da educação que tem como cerne de suas preo-
A eficácia e a validade do "Método" consistem, devo en- cupações a natureza ético-política do ato de conhecer/
fatizar, em partir da realidade do alfabetizando, do que ele educar. É u.u teoria do conhecimento na qual se unem
ou ela já conhecem, do valor pragmático das coisas e dos solidária e dialeticamente o ético/estético, o epistemoló-
fatos de sua vida cotidiana, de suas situações existenciais, gico, o psicossocial, o antropológico, o pedagógico e o
de suas palavras faladas na comunidade porque delas todos político. Enfim, a sua teoria é essencialmente a pedagogia
e todas sabem o seu significado. Em outras palavras, quero do oprimido, da esperança, da libertação.
e devo chamar a atenção para duas coisas que considero
muito importantes, que são, na verdade, princípios fun- INFLUÊNCIAS
dantes do seu método. Sempre atento às obviedades, Paulo As influências teóricas de autores, escolas pedagógicas
partiu delas para compor o seu "Método", o/a analfabeto/a ou filosóficas ou socio[ógicas na formação do pensamento
desconhece apenas a linguagem escrita, não é "ignorante" de Paulo - de modo particular o marxismo, a fenomeno-
da linguagem oral, e sabemos que sabemos e que podemos logia, o existencialismo e o personalismo foram amplas
-
saber mais. Assim, partindo da palavra conhecida da qual e profundas, mas Paulo cr!ou um pensamento próprio,
os analfabetos sabem o significado seria (é) mais fácil e absolutamente peculiar porque absolutamente imbricado
possível a alfabetização conscientizadora do real. em sua vida, arraigado nas questões da realidade concreta
O "Método" obedece às normas metodológicas e lin- do Recife, de Pernambuco, do Nordeste, do Brasil. O

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VIVER MENTE&CÉREBRO 25
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"LEMBRO DA PERECRTNAÇÃO que minha rnãe fee pelas escofas à procura de um coléçio particular que rrÌe re,çebesse gratuit.t!Ì]eate.
Finalrnente encontrou o Colégio Oswaldo Crtrz {...} ile [o diretor Aluízio Araúio] só queria que etr fosse estudioso" E era o que ec era"

pensamento de Paulo foi tão radicalmente local que pôde Entretanto, devo assinalar que sua mais forte influência foi
tornar-se mundial. ter contribuído para a democratização do nosso país ao
Pau[o recebeu convites de organizações brasileiras e lutar pela inclusão e participação do seu povo.
outras dos mais diversos países para proferir conferências, A influência, a repercussão e a atualidade da obra de
coordenar seminários, compor júris, orientar ou examinar Paulo, bem como sua pessoa e suas práxis no Brasil e no
dissertações e teses, dar parecer ou endossar manifestos mundo, é um fato. As homenagens recebidas por ele em
educativos ou políticos ou, simplesmente, para receber si mesmas demonstram este fato.
homenagens justamente pelo reconhecimento da sua vasta,
criativa e revolucionária obra. E em coerência com esta, a HOMENAGENS RECEEIDAS
sua práxis no mundo. A Par,rlo Freire foram outorgados 39 títulos de Doutor
Assim, Paulo visitou a convite, "em andarilhagem pelo Honorìs causa por instituições do Brasil, das Américas e
mundo", como costumava dizer, numa verdadeira "pere- da Europa. Pessoalmente recebeu 34 títulos dessa mais
grinação utópica", uma centena de cidades do Brasil e de alta honra acadêmica. Na qualidade de viúva e sucessora
inúmeras outras em todos os continentes. da obra de Paulo Freire, fui convidada para receber - lr
A influência do trabalho de Paulo alcança as mais memoriam - mais 5 títulos de Doutor Honorts causa com o seu

diversas áreas do saber' pedagogia, filosofia, teologia, an- nome. Somando-se a estes outros títulos acadêmicos Paulo
tropologia, serviço social, ecologia, medicina, psicoterapia, detém 42 títulos honoríficos.
psicologia, psiquiatria, museologia, história, jornalismo, Paulo é cidadão honorário de 14 cidades brasileiras,
artes plásticas, teatro, música, mímica, educação artística, duas no exterior e pelo Estado do Ceará, do Brasil.
educação física, sociologia, pesquisa participante, meto- Foi contemplado por seus trabalhos na área educacional
dologia de ensino de ciências e letras, ciência política, com os importantes prêmios, da Unesco, Irã; Prêmio Inter-
currículo escolar e política de educação dos meninos e nacional Rei Balduíno para o Desenvolvimento, Bélgica;
meninas de rua. Sua influência mais conhecida vem sendo Prêmio Unesco da Educação para aPaz,França; Prêmio
sobre a educação de adr-rltos e sobre a educação popular Interamericano de Educação Andrés Be1lo, do Conselho
mais ampla, com repercussões profundas nos movimentos Interamericano para a Educação, a Ciência e a Cultura da
sociais populares do Brasil e de outras partes do mundo. Organização dos Estados Americanos (OEA), entregue em

ESPECIAL PAULO FREIRE


26 VIVER MENTE&CÉREBRO
\üZashington D.C., EUAi e o 40. prêmio júri, que, obstinadamente, o acusava de comunista, que
Moinho Santista,
da Fundação Moinho Santista, Brasil. ele não foi contemplado.
Até 31 de maio de 2005, registra-se um total de 303 O esforço e a dedicação, a profundidade e a abrangên-
escolas com o nome de "Paulo Freire" em todo o Brasil, 47 cia, a atualidade e a adequação de uma educação voltada
são estaduais, 190 municipais, uma distrital, uma federal, para apaz estimularam educadores e educadoras, sindica-
uma do Movimento dos tabalhadores Sem-Tèrra (MST), tos e sindicalistas, dirigentes e associados de organizações
e 63 privadas. Há ainda sete estabelecimentos escolares de diversas naturezas de todo o mundo, convictos de que
com seu nome em cidades fora do Brasil. Paulo tem seu a paz começa por dias melhores e direitos iguais para to-
nome inscrito em vários diretórios e centros acadêmicos, dos os povos, a apresentarem, em 1993, o nome de Paulo
em 33 logradouros públicos no Brasil (praças, avenidas, Freire ao comitê que outorga a cada ano o Prêmio Nobel
ruas e conjuntos habitacionais), e outros no exterior; em daPaz, na Noruega.
oito bibliotecas públicas, em sete cátedras universitárias Lutar pela paz através da educação pressupõe um novo
brasileiras e estrangeiras; em 30 centros de pesquisas, entendimento de paz que vem conquistando, dia a dia,
documentação, informação, divulgação e estudos; em novos adeptos, e sem dúvida alguma Paulo, que partilhou,
uma bolsa de pesquisa para alunos de pós-graduação (na mas sobretudo contribuiu decisivamente para essa com-
Universidade de Glasgow, Escócia). É também presidente preensão de paz, teve por isso o seu nome entre os que
honorário de 15 instituições pelo mundo. Criaram-se no poderiam um dia ter recebido esse reconhecimento. Esse
Brasil e no exterior 12 medalhas, condecorações e prêmios novo conceito não quer apenas a deposição das armas, de
com o nome de Paulo Freire. Há ainda cinco monumentos todas as armas, mas a paz social, religiosa, de gênero, ética
e estátuas em sua homenagem no Brasil e no exterior. e política. Paz que nasce, viabiliza e nutre as virtudes da
O famoso e engajado compositor de música popular bra- tolerância, do respeito e da dignificação humana acatando
sileira Chico César o homenageou em sua música Beradêro, as diferenças de todos os níveis e graus entre todos os seres
"E a cigana analfabeta/ lendo a mão de Paulo Freire".
t.
Paulo foi também homenageado pela escola de samba
Leandro de ltaqr-rera no carnaval paulistano de 1999, cujo
tema-enredo foi "Educação, um salto para a liberdade, por
Paulo Freire".
Considero da maior relevância para a socialização e
perpetuação do pensamento de Paulo a homenagem a
ele realizada neste ano de 2005 pelo Projeto Memória
da Fr,rndação Banco do Brasil, que deve alcançar com o
"material pedagógico, livro fotobiográÍìco, almanaque
histórico, guia do professor, um site e vídeo DVD e VHS",
8mil escolas públicas do país, além das bibliotecas públicas
de todo o Brasil.

HOMENAGËNS PERDINAS
Paulo foi indicado à Fundación Principado de Astúrias
como candidato a receber o prêmio Príncipe de Astúrias,
1988, de Ciências Sociais por iniciariva da Associação
Espanhola das Universidades Populares, por intermédio
do seu presidente Rafael Ballesteros Duran, e endossada
por um grande número de entidades de todo o mundo.
Essa proposta do prêmio Príncipe de Astúrias a ser
concedido a Paulo tomou dimensão mundial, a partir da
própria Espanha, e foi, preponderantemente, devido à
compreensão equivocada de um espanhol, membro do

ËSCULTUftA eJe Ërancìsce Erennarrd. A étiea hunranista Í


de Freire se baseavrl n* respeito inabalável
a
pelos outros. pele rnundo e pela lura froï iustiça

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CASA ONDE PAULO FRElRg. NASCEU. Estrada do Encanamento, 724, no bairro de Casa Amarela, no Recife (PÊ)

do mundo para instaurar a diversidade cultural autêntica, e vivia. Na sua sensibilidade, paixão, generosidade e
resgatando a humanidade que vem sendo, historicamente, amorosidade de ler o mundo com os oprimidos. A obra de
roubada dos homens e das mulheres. Paulo foi crescendo, cada vez mais, desde o seu início,
Em ambos os casos, o governo e/ou o Congresso em maturidade, em riqueza da linguagem e na acuidade
Nacional de nosso país não se interessou em promover maior das problemáticas que envolvem as diferenças de
a inteligência nacional. O Brasil perdeu - e não só Paulo classe, de gênero, de idade, de etnias, de religião e outras,

- a possibilidade de deter dois importantes prêmios, o do que foram foco de suas reflexões, por mais de 50 anos (uer
Príncipe de Astúrias e o Nobel daPaz. Peddgogia áa lìbertação en Paulo Freire).

OBRA TTÓRICA TRAÇOS DE GËNTE


Todos os escritos de Paulo têm, acima de tudo, um Quero sublinhar aqui alguns traços de gente, as qua-
ponto em comum - a forma madura e convincente como lidades maiores de Paulo que faziam parte intrínseca da
tratava a teoria e a prática educativas. Com consciência, radicalidade de seu ser, de seu inteligir e do seu viver,
lucidez e transparência. Com clara opção política a favor sua generosidade, sua amorosidade, sua fé e crença nos
dos oprimidos e por uma ética de vida, através de sua lin- homens e nas mulheres, sua esperança, sua simplicidade,
guagem esteticamente bela e de quem sabia o que queria e sua curiosidade e ousadia no pensari no fazer e no agir, seu
sabia como dizer porque, em verdade/ sempre traduziu os constante bom humor e senso de justiça, sua capacidade
anseios, desejos, sonhos e necessidades de todos aqueles e de ser leal com tudo e com todos e a si próprio, sem se
todas aquelas que querem e queriam a necessária libertação afastar do comportamento radicalmente ético, sua man-
de si e da sua sociedade. sidão e forma muito peculiar e profunda de estabelecer as
Estou certa de que os textos de Paulo têm muita força relações de horizontalidade e de "brincar" com o outro e
porque conseguem/ com beleza e veracidade, transpor a outra com extremo respeito.
para o papel as suas reflexões e opções geradas na sua A esses traços de gente, às suas virtudes, às inúmeras,
prática cotidiana, nesse seu escutar pleno e profundo do autênticas e profundas maneiras de ser e de portar-se
real e concreto do mundo e das gentes. Na quase absoluta diante do mundo e cofl o mundo e as pessoas - no fundo
coerência de escrever sobre o que observava, sentia a humanidade de Paulo -, ao seu deseio imenso de que

28 VIVER MENTE&CÉREBRO ESPECIAL PAULO FREIRE


todos e todas pudessem ser seres mais, eu chamo de a !en- Daí a sua influência na Tèologia da Libertação. Sua
tidaáe dePaLLlo. consciência crítica da realidade, sua cumplicidade e com-
Vrtudes que se fizeram nele, ao mesmo tempo, por sua paixão com os oprimidos e excluídos fizeram que a ética
coerência em instâncias de ser, de conhecer e de valorar, da vida em Paulo explodisse na sua forma de entender o
dialeticamente completando-se uma na outra. Portanto, que seria a presença de Cristo na história dessas pessoas.
qualidades-categorias explicativas de sua compreensão Sua compreensão de educação política traz em si mesma
histórica, utópica e teórica da educação libertadora, o que dirá a Teologia da Libertação, porque esta buscou
justificadas por sua própria maneira de ler e de enfrentar também em Paulo a possibilidade de sua sistematização
o mundo sustentadas nas suas intuições, emoções e senti- pedagógica. Foi por causa dessa sua compreensão e prática
mentos. Na sua razãolúcida. que criou uma nova ética: a da consciência ético-crítica
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I A THüLdltrA flA LrBËRThÇÂ{} "tEVË, fiM FRËïRË, _*r Ë
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L posStBïLIDÂnE ruE SïSTËMAïãXAÇÃ* 83fr#,4**{;ã{,Á I ã

Não quero e nem posso separar em Paulo os seus traços que valoriza acima de tudo a vida @er Ética da libertaçã0, na
de gente de sua obra teórica porque aqueles estão incorporados idade áa globalização e da exclusã0, de Enrique Dussel).
nesta. Não há dicotomia entre o seu ser no mundo e o que Paulo gostaria de ter sido um cantor famoso ou eminen-
propõe em sua obra. A sua maneira de comportar-se como te professor da gramática da língua brasileira - sentia-se
homem público, como educador da práxis, como educador frustrado por não ter sido também professor do curso
ético-político engajado e como homem extremamente primário -, mas ele mesmo reservou para si o direito e o
devotado às suas relações familiares e de amizade, de um privilégio de ser, reconhecidamente, além de professor da
lado, e sua práxis e obra, de outro, fundiram-se, dialetica- nossa língua, o maior educador brasileiro, um dos mais
mente, porque ele foi eticamente coerente. importantes da história da educação de todos os tempos.
Paulo foi um homem no qual a seriedade de sua postura Uma das expressões maiores do pensamento brasileiro.
ética e política não the tirou o bom humor e a vontade de Meu marido tinha semblante calmo, cabelos longos
rir. Quando retornou do exílio, queria conhecer o Brasil e barbas brancas, estatura mediana, corpo magro e le-
em todos os seus aspectos: lia os escritos das traseiras de vemente inclinado para a direita, andar manso, olhos
caminhão e dos banheiros públicos, as inscriçòes nos cor de me1 e sua constante disposição para trocar expe-
muros das ruas da cidade. Queria também reiniciar-se no riências, para escutar e para dialogar, sobretudo quando
gosto das piadas brasileiras que de maneira geral giram estava explicitando suas idéias sobre educação e política,
em torno de sexo e de nossos irmãos portugueses. Paulo opressão e libertação, ou discutindo as idéias dos outros
ria delas com gosto muito especial, desde que não fossem e das outras pesSoas: são algumas de suas características
desrespeitosas à dignidade do ser dos "protagonistas". inesquecíveis.
Nunca confundiu simplicidade, humildade ou mansi- Em suma, suas qualidades, sua maturidade e sabedoria,
dão com submissão ou servilismo. ïnha medo e ousadia. sua capacidade de ser gente e de viver apaixonadamente
Nunca se achou mais importante ou mais sabedor das cumpriram-se integralmente. Desejou também assim
coisas do que os outros e outras, mas tinha a convicção morrer, e assim morreu: amando os justos e os oprimidos
de que sabia "algumas coisas". ïnha um enorme respeito e oprimidas, trabalhando indignada e apaixonadamente.
pelas outras pessoas e pela natureza. Amando. Sobretudo amando. FMc
A radical ítica bumanista de Paulo tem a sua máxima
nesse testemunho de respeito à dignidade do outro e da
outra. Essa sua inabalável postura de respeito pelos outros e
A pedagogia da libertação em Paulo Freire. A. M. A. Freire (org.).
imbricada à amorosidade e à solidarie-
outras e pelo mundo, Editora Unesp, 2001.
dade para com os justos, os oprimidos e excluídos que Analfabetismo no Brasil. A. M. A. Freire. lNEp/Cortez,2001 .
nasceu dos sentimentos e da razão nutridos nele não Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. E.
Dussel. Vozes, 2000.
como um fim em si mesmo, mas para voltar-se intencio-
nalmente para a valorização da vida pautada na lustiça Nita e Paulo - crônicas de amor. A. M. A. Freire. Olho D,Ãgua,
't998.
que possibilita a paz.
Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do
Paulo foi um homem que teve uma fé religiosa autêntica oprimido.P. Freire. Pazeferra, 1992.

e profunda. Pedagogia da tolerância. P. Freire. Editora Unesp, 2005.

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