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A Paixão Segundo G.H.

:
processo colaborativo e performance

Fabio Cordeiro

Voucriar o que me aconteceu.Sóporque viver Estaremos abordando o processo criativo


não é relatdvel.Viver não é viv/vel. Eu vou ter do espetáculo, na medida em que constatamos
que criar sobrea vida. Eu vouprecisarcom es- em sua confecção a utilização da performance
forço traduzir sinaisdetelégrafo,traduzi1;esem solo corno procedimento criativo, que marca a
sequerentenderpra que valemossinais.E falar linguagem cênica do espetáculo assim como a
nessalinguagemsonâmbulaque seeu estivesse noção de processo colaborativo (que encontra-
acordadanão seria linguagem.(G.H.) mos no Teatro da Vertigem 1e em determinados
trabalhos da Cia. dos Atores2).
Mariana Lima não lida com um persona-
gem construído, mas sim em reconstituição;
espetáculo A paixão segundo GH, baseado não temos acesso ao seu nome, apenas a suas
na adaptação de Fauzi Arap para a obra iniciais. Lidamos, na verdade, com inQíc.\\)~~~
de Clarice Lispector, tendo Enrique Diaz sua identidade. GH, como personagem, existe
na direção e Mariana Lima como atriz, enquanto relato de uma experiência íntima. Há,
aciona, em sua linguagem cênica e em nessesentido, um espaço fronteiriço entre a ins-
seusprocedimentos criativos, referências da per- tância do performer e a do ator tradicional, até
formance e do conceito de processo colaborati- mesmo pela especificidade literária e narrativa
vo. Haveria uma articulação entre memória e do texto que Mariana tem para falar em cena.
presentificação de uma experiência anterior via Essafronteira entre a performance e o monólo-
relato autobiográfico da personagem na conflu- go delimita o campo de reflexão que estamos
ência entre o "aqui e agora" da atriz durante a propondo em torno da noção de processo cola-
apresentação e os diferentes estágios de percep- borativo - uma estrutura de criação que prevê a
ção de GH, diante de seu relato. O ato de rela- intervenção de "múltiplos eus" em uma perspec-
tar torna-se experiência performatizada. tiva autoral coletiva não hierarquizada.

Fabio Cordeiro é Mestrando em Teatro (UNI-RIO), ator e diretor.


1 Grupo paulista dirigido por Antônio Araújo, no qual participam Mariana Lima (atriz), Marcos Pedroso
(cenógrafoe artista plástico) e Guilherme Bonfanti (iluminador), que integram a ficha técnica de GH.
2 Grupo cariocadirigido por Enrique Diaz, no qual também participa Marcelo Olinto (ator e figurinista),
além de Marcelo Neves (músico) e eu mesmo (como diretor assistentee pesquisador),não integrantes
que participamos de alguns de seusespetáculos.

I-
I
A PaixãoSegundoGH:processocolaborativoe performance

~ ?à\x-aosegundoG.H.: o espetáculo ção seria a de tornar viável ao espectadorum


universo tão árido, labiríntico e verborrágico.
Háumcontrapomono texto de Clarice entre o lir me tornadoseuamigo,algunsanosantes,me
enredoe a suaescrita.O enredoé de extensão ensinoumuito sobresua vida e obra, e meajudou
curta: uma mulher que vive sozinha em seu a decifrara belezalabirintica do texto.4Um dado
apartamento,apóso café da manhã, resolvear- interessanteseria o fato de Fauzi Arap ter sido
rumar suacasa,depois de suaempregadadeixar amigo de Clarice Lispector. Em seu livro de
o emprego no dia anterior; ela encontra, no memóriasMare Nostrum ele conta como a co-
quarto da empregada,um desenho na parede nheceue relatasuasexperiênciaslisérgiéascom
feito a carvãode um homem, uma mulher e um o Dr. Murilo, terapeuta que promovia sessões
cão;reagindocom raiva deJanair ("a rainha afri- de LSD como terapia. SegundoArap, Clarice
canà'), acabaencontrando uma baratano armá- teria participado de algumas dessassessões,e
rio, e essefato cotidiano transforma-senum tur- levanta a hipótese de que ela teria tido experi-
ningpoint; GH inicia uma verdadeiravia crucis ências com o ácido. Não iremos nos estender
semsair do lugar. Ao sedefrontar com a barata, sobre essesaspectos,mas tais fatos apontariam
ela inicia uma procura por referênciasmais an- para a possibilidadede encontrarmosem A pai-
cestrais,sua identidade, o amor, a "mulher de xão segundoGH, de fato, um relato autobio-
todasa mulheres". De factual é issoo que acon- gráfico. De qualquer modo, sua organização
teceem GH. Na verdade,o que mais acontece ficcional é a de um texto autobiográfico, com
no romanceé a açãode relatar,lembrar e nova- referênciasà paixão de cristo e sua via crucis.A
mente experimentar a "coisavistà'. Como afir- via crucisem Clarice é conceitual e imagética,
maAna Bernstein:'~ autobiografiaé geralmen- até mesmo pela especificidadede sua lingua-
te entendida como algo privado, como um gem literária.
olhar que sevolta parao interior de si mesmo".3 No espetáculo,a via crucis é física,corpo-
GH é uma obra que trata da buscapelo ral e espacial.Na transposiçãopara a expressão
autoconhecimento, da transformação de um cênica, GH ganha o suporte vivo de Mariana
Eu que perde sua identidade e se fragmenta Lima, com sua voz, seu corpo, sua sensibilida-
atravésda descobertade sua "identidade mais de e memória, além das interferências colabo-
profundà'. O percurso da personagemaconte- rativas dos demais elementos do espetáculo-
ceatravésda palavra,da própria buscapor sen- luz, cenário, figurino e música.A seguir tenta-
tidos que aspalavraspodem oferecer;a palavra remos descrevera transposiçãocênicasem pre-
é seu instrumento de retomada para reviver o tender dar conta da totalidade do espetáculo.5
que teria lhe acontecido. A primeira cena ocorre dentro de uma
A adaptaçãode FauziArap se resolvepela sala,em uma representaçãode um closet; ara-
concentraçãoe compactação.Dividindo a ada- ras, fotografias, objetos pessoais,roupas, peda-
ptação em dez cenas,com títulos específicos, ços de memória estãodispostose pouco ilumi-
Arap exclui grande parte do original, escolhen- nados (pequenasfontes de luz - abajur e lumi-
do passagens que consideracentrais.Suainten- nárias).O público ao entrar no espaçoencontra

3 Bernstein,Ana. A performance
soloe o sujeitoautobiogrdfico.
In: SalaPreta.SãoPaulo:USp, 2001,
p.91-103.
4 FauziArap em Programado espetáculo
A paixãosegundo
GH.
5 Estamoslidando com a montagemqueestreouno CCBB/R], em 15 de outubro de 2002.

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sala preta

cadeiras espalhadas,misturadas com banqui- quarto de proporçõesdesiguaise dilatadas,assi-


nhos de uma casa,não havendo uma separa- métricas,com paredesaltas,um teto de tecido,
ção clara entre espaçocênico e platéia. O cená- um armário fechado, uma mesa,uma cadeira,
rio se constitui muito mais como uma instala- um abajur e uma cama.Agora o público encon-
ção ou como ocupaçãodo espaço,que também tra um lugar 'vazio" e volta a se sentar em ca-
recebea intervençãode papéisde parede.O es- deiras,que ali se dispõem em fila única, numa
pectador sedeparacom Mariana andando pelo claraseparaçãoentre "palco" e platéia.Aos pou-
espaço,meio perdida, tentando falar. cos, o espectadoré levado para dentro do uni-
verso de um EU que se fragmenta,~través de
estouprocurando,estouprocurando.Estou suasreformulações,de sua vivência imagética.
tentandoentender,tentandodar a alguémo Ver, relatar, sofrer aqui e agorao que estáven-
queeuvivi e nãoseia quem,masnãoquero do.Doisdosseus
ângulos
eramligeiramente
mais
ficar com isso,eu não seio que fazer,eu te- abertos,e emborafosseessasua realidademateri-
nho medodessadesorganização profunda.6 al ela me vinha comosefosseminha visãoque o
deformasse. E foi numa dasparedesque vi o ines-
Mais adiante, uma músicasurgede outro peradomural.
espaço,que não vemos. Ossinaisde telégrafo.O Mariana/GH começaentão suatrajetória
mundo eriçadode antenas,e eu captandoo sinal. de experimentar o relato de sua própria expe-
Essacoisasobrenaturalque é viver. Mariana abre riência. O espaçoseráo do quadriláterode bran-
a porta. Convida o público para segui-Ia.En- ca luz. Assim como, na verdade,GH fisicamen-
tramos num corredor. GH começaa contar sua te vive sua experiênciasem do quarto da em- !
experiência.Naquela manhã, antesde entrar no pregada sair. O cenário funciona como um
quarto da empregada... o que é que eu era? espaçosimbólico, não mimético, de projeção
No corredor vemos outros pedaços de das imagense sensaçõesda personagem.Ali a
GH; livros, cadeiras,uma xícara, um peixe fos- atriz desenvolveseusrelatos e suas'vivências"
silizado,um varal, etc. O público agoranão tem aproximando-se e afastando-sefisicamente e
onde sentar,e é induzido a ocupar uma ponta sensorialmentedo público, que permanecesen-
do corredor, basicamenteficando de pé. Esse tado até o último momento do espetáculo.O
corredor é uma passagempara a experiênciavi- espectadorpode ter a sensaçãode percorrer os
vida por ela. Nele temos acessoa uma narrativa espaçosdo apartamento fisicamente,deslocan-
clara de como tudo começou. Ela avançarela- do-se. Quando chega ao lugar onde GH per-
tando e avançatambém pelo corredor que em corre suaviagemde buscapor autoconhecimen-
suaoutra ponta possui uma porta. GH se diri- to, o quarto da empregada,fica como ela pró-
ge ao quarto da empregada.Em vezda penum- pria teria ficado; sentada durante um tempo
bra confusa,esbarreina visãode um quarto que indeterminado tentando entender a si própria.
era um quadriláterode brancaluz. ]àlvez me tenhaacontecidouma compreensão tão
Mariana/GH abre a porta. O espectador total quanto uma ignorância e dela eu venhaa
é convidado a acompanhá-Ia, andando pelo sair intocadae inocentecomoantes.
mesmo corredor, cumprindo o percurso da No curso do relato, como tentativa de re-
atriz. Quando o público chegaao novo espaço, constituição do que teria vivido, GH acabades-
têm diante de si um lugar distorcido. Seriaum cobrindo novas memórias, incertezase fragili-

6 Trechoda adaptaçãode FauziArap. Todasas citaçõesque seguemse referemà adaptaçãoe não ao


romance.

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A PaixãoSegundoGH:processocolaborativoe performance

dades.Relatar é reviver. O ato de relatar trans- ali estava,enquantoeu recuavapradentrode


forma-se em uma nova experiência. Assim, mim em náuseaseca,eu caindo séculose
quando começaa relatar o encontro com a ba- séculos,dentro de uma lama - era lama, e
rata, ela toma o abajur e começauma trajetória nem sequerlamajá seca,maslama úmidae
de fragmentaçãode si mesma, de re-significa- aindaviva, erauma lamaondeseremexiam
ção dos objetos, de busca por sua identidade comlentidãoinsuportávelasraizesda minha
mais antiga. Através da barataela se redescobre identidade.
como serhumano, como mulher. Mariana, sen-
tada na cama, bem próxima do público, utiliza No romance a açãono espaçopára. Não
o espectadora sua frente como objeto de repre- acontecemais nada, GH praticamentenão rea-
sentação;ela descrevea barata ao mesmo tem- liza mais nada fisicamente.Ela ageem suasen-
po em que parecedescrevera pessoa. sibilidade e memória. No espetáculo,pelo con-
trário. Mariana desapareceno armário. Entra
Era uma cara sem contorno. As antenassai- um~ músiCl :1lt:J.,emrotação
invertida.Elaabre
amembigodesdo ladodaboca.A bocamar- as portas do armário e vemos projetadasima-
rom bemdelineada.Os finos e longosbigo- gens,até certo ponto lisérgicas,dela mesma,ora
desmexiam-selentose secos.Seusolhospre- se fundindo com uma barata, ora se fundindo
1:05 race1:ados olhavam. Era urna bara1:a 1:ão com ela mesma, se debatendo, ca;nJo Ja caJe!-

velha quanto um peixe fossilizado. Ela era ta, sendo absorvida pelo fogo que toma a tela e
antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá es- a preenche por inteiro. Agora, o espetáculo tor-
tava a boca real. Eu nunca tinha visto a boca na-se mais sensorial, dependendo cada vez mais
de uma barata. Eu na verdade, eu nunca ti- da presença de Mariana. Seu corpo, seus movi-
nha visto uma barata. S6 tivera repugnância mentos, sua voz, seus estados transformam-se
pela sua antiga e semprepresenteexistência. no "texto". As palavras passam a ter a função de
E eis que eu descobria que, apesarde com- conduzir seu trajeto pelas imagens de GH. Ela
pacta, ela é formada de cascase cascaspar- continua relatando e sofrendo o que relata. Mas
das, finas como as de uma cebola, como se a matéria relatada agora não seria mais factual.
cada uma pudesseser levantadapela unha, e Seria da ordem da experiência. Mas da expe-
no entanto sempreaparecemais uma casca,e riência no plano mais íntimo e subjetivo.
mais uma e mais uma. Talvez as cascasfos-
sem as asas,mas então ela devia ser feita de Sevocê soubesseda solidão dessesmeuspri-
camadase camadasde cascasfinas compri- meiros passos.Não se pareciacom a solidão
midas atéformar aquelecorpo compacto.(...) de uma pessoa.Era como se eu já tivesse
Ali estavaeu diante do ser empoeirado que morrido e dessesozinha os primeiros passos
me olhava- e o que eu via com um constran- em outra vida. E era como se essasolidão
gimento tão penosoe tão espantadoe tão ino- chamassemde gl6ria, e também eu sabiaque
cente, o que eu via era a VIDA me olhando. era uma gl6ria, e tremia toda nessagl6ria di-
vina primária, que eu não s6 não compreen-
A partir dessemomento, Mariana come- dia, como profundamente não queria, por-
ça a se levantar e a se afastar do espectador, e do que eu sabiaque estavana crua e bruta gl6ria
restante do público, recuando em direção ao ar- da natureza.Eu sabia que, a partir dali, não
mário; onde GH teria imprensado a barata com haveria mais diferença entre mim e a barata.
a porta.
)" Como chamar de outro modo aquilo horrí- jetos, Articulando partituras
Mariana segue físicas,
a via crucis de texto, ob-
GH, reti-

vel e cru, matéria prima e plasma seco,que rando cada camada, cada cascade sua identida-

Wii;jj~
-,.~c~:c;;c.~
1,!_~.JIII_i__~
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sala preta r-

de para encontrar o elementovital que liga todas assensações de seusmovimentos que obedecem
as coisas.Perdendo-se,procurando por si mes- a um ritmo interno de explosõesde energia e
ma, descobrindo-senovamente,GH fala da no- sons.Eu nunca maisrepousaria:eu havia rouba-
ção de tempo, relativizando-o, como medida do o cavalode caçadade um rei da alegria.Nun-
pessoale subjetiva. ca maisrepousarei:roubeio cavalodo rei do sabd.
Assim, o espetáculocaminha para seudesfecho.
(...) E tornou-seum agora.Era finalmente GH "retornà' de seumundo imagético.
agora. Era simplesmenteagora. Era assim:o :

paísestavaem onzehorasda manhã.Super- Me deramtudo e olha só o que é tudo: um


ficialmentecomoum quintal queé verde,da pedaçode coisa,um pedaçode ferro,de sai-
maisdelicadasuperficialidade.Verde,verde bro, devidro. Olha sóo queé tudo: umaba-
é um quintal. Nadaseouve.O tempofreme rata que é viva e que estámorta. Olha pelo
como um balão parado.O ar fertilizado e que lutei, para ter exatamenteo que eu já
arfante.Até quenum hino nacional,a bada- tinha antes...(...)Ah meuamor,ascoisassão
ladadasonzee meiacorteasamarrasdo ba- muito delicadas. A gentepisanelascom uma
lão. E de repentetodos nós chegaremos ao pata humana demais, com sentimentos
meio dia. Que seráverdecomoagora. demais.

É projetado um vídeo na parede frontal Mais adiante vemos a imagem de Maria-


ao público tomando toda a sua extensão.O ví- na sendoprojetadaem maioresproporções,em
deo projetado não segueuma narrativa, assim funçãodo ângulo da câmera.Ela estánum quar-
como o anterior. Sãoimagensde Mariana, seus to, o quarto da empregada.Essepoderia servis-
olhos, fios suspensos,uma porta, frestasde luz. to como o quarto real.Com os mesmoselemen-
Ela conheceo neutro, a neutralidade, o tos do cenário anterior, com uma cama,abajur,
inexpressivo.No alto, atravésdo tecido que co- mesa e armário. Com as mesmascores. Mas
bre toda a áreado cenário,a vemosfalar do neu- com paredesde proporções realistas;o quarto
tro. Em seguida, ela desce,arrastando-sepela real. GH segueem direção à destruiçãodo que
parede(utilizando a técnica de rapeI). É através construiu, caminhando para uma espéciede
do neutro que ela, em sua viagem existenciale despersonalização. Paraela, o que chamavade
imagética, entra na orgia do sabá.A narrativa "eu" seriaum acréscimode si mesma.
de Clarice Lispector ganha contornos mais li- São utilizadas câmerasde segurança(en-
sérgicos,mais metafísicos.Há um caráterde so- contradasem qualquer estabelecimentocomer-
nho ou pesadelo, com descriçõesfantásticas, cial ou residencial) que captam a imagem em
com a subversãodasimagensobjetivas,a trans- preto e branco. Ouvimos Mariana atravésde
posição para espaçosimaginados, como o de- microfones. Começa a recolher objetos que es-
serto da Líbia, onde ela vê acontecero "amor tão jogados pelo chão. Logo adiante ela sai do
deduasbaratas".E agora- agora estouvendo ou- quarto.Entrano mesmocorredorqueo públi-
tra.barataavançandoemdireçãoà rocha.Sobrea co percorrerapara chegarno cenário onde está.
rocha,cujo dilúvio hd milêniosjd secou,duasba- O corredor estávazio. Continuamos a ouvir a
ratassecas.Uma é o silêncioda outra. voz de Mariana, agoraem off. E porque medes-
Mariana aospoucosvai sendotomadapor personalizoa ponto de não ter o meu nome,res-
suasfalas, jogando seu corpo contra a parede, pondo cada vezque alguémdisser:EU Mariana
realizandomovimentos com os braçosde abrir também estáem off, com sua imagem projeta-
e fechar, para cima e para baixo, ganhando a da na paredefrontal ao público, que permane-
aparênciade um cavalo,e falando e falando, não ce sentado.Até que todos os refletoressãoace-
mais narrando, agora experimentando a fala e sosafuI I, Mariana desaparece,saindo do teatro

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A PaixáoSegundoGH:processocolaborativoe performance

pela porta do corredor. E retoma por traz do ça física para as partituras. Estastambém rece-
cenário, agora reveladoem sua totalidade pela berama contribuição de movimentos realizados
luz. Fim. por Enrique Diaz, Fabio Cordeiro e Marcelo
Olinto (equipe de trabalho do solo) que foram
incorporados por .Mariana em suasseqüências
O processo criativo de GH de movimento. O solo apresentaum caráterde
colagemde memóriasfísicasque, mais adiante,
A trajetória de criaçãodo espetáculoseguiutrês funcionaram como referênciasparaa criaçãodo
grandesetapas:realizaçãode uma performance espetáculo.
solo apresentadano SescCopacabana(RJ); pes- A segundaetapado processoocorreu, em
quisa e experimentaçãoem uma sala do Sesc primeiro lugar, com leituras, na casade Enri-
Baden Powel (RJ); ensaiose montagem do es- que Diaz e Mariana Limas, e, posteriormente,
petáculono EspaçoIII do Centro Cultural Ban- numa sala do SescBaden Powel, onde foi de-
co do Brasil (o local da primeira temporada). senvolvidoo processode pesquisade linguagem
De certo modo, o processofoi itinerante em seu mais direcionado para o espetáculo.Formou-se
percurso pelos espaçosde trabalho. Essaitine- um núcleo de criação;atriz, diretor e diretor as-
rância também encontramos na linguagem do sistente.Essenúcleo foi acompanhadoperiodi-
espetáculo. camentepelos integrantesda equipe, atéo final
O processocriativo de GH começoucer- da montagem. O texto foi sendodecorado,cor-
ca de oito mesesantes da estréia. Convidado tado, estudadoe experimentadoatravésde dois
para participar do evento Solosdedançado Sesc, procedimentosmais constantes:a confecçãode
Enrique Diaz propôs a Mariana Lima que ex- partituras físicase a realizaçãode workshops, ou
perimentassemo universo de Clarice Lispector pequenasperformancescom temas específicos
como um solo de dança,que contassecom tre- e relaçãodireta com o universo de GH, partin-
chos do livro. O solo recebeuo título de "Raiz do de algumapropostaou indagaçãoconceitual,
quadradade menos um". Alguns procedimen- ou cênica.A diferençaentre o workshope a im-
tos utilizados adiantejá seriamexperimentados. provisaçãoseriao fato de, no primeiro caso,ha-
O espaçodo SescCopacabana7,local da apre- ver um tempo de preparação,a utilização pre-
sentação,é circular. meditada de objetos, figurinos e iluminação,
Como procura por códigosde linguagem além de ser o ator o principal autor da cena,
houve um investimento na elaboraçãode parti- podendo até mesmo criar um esboçode rotei-
turas físÍcas(seqüênciasde movimentos não ne- ro. Ao mesmotempo em que aconteceuma pre-
cessariamentecoreográficas)que deveriam ser meditação, o ator pode deixar espaçosde im-
executadas junto da fala.Além de algunstrechos precisão,de improviso. O objetivo do workshop
da adaptação,foram escolhidos,como referên- é o de colocar em jogo, em cena,alguma ques-
cias, trabalhos e personagensjá feitos por Ma- tão identificada com o universo ficcional. Não
riana. Por exemplo, a Babilônia do espetáculo se trata de acertar ou errar, mas de testar.Não
Apocalipse 1, 11, do Teatro da Vertigem, de havia um projeto de encenaçãoque servissede
quem emprestoumateriaisgestuaise de presen- premissa.O objetivo era questionar,especulare

7 O solo"Raizquadradade menosum" tambémfoi apresentado


no FestivalInternacionaldeTeatrode
S.Josédo Rio Preto(2002),SãoPaulo.
8 Eles sãocasados.

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sala preta

experimentarno espaçoalguma idéia cênica.As Durante o processocriativo de GH, Ma-


~ propostastiveram diferentes graus de comple- riana Lima foi incentivada por Enrique Diaz a
i xidade. Poderiamseguir uma propostade expe- utilizar essastécnicas,atravésde sessõesde View-
l~ rimentação do tempo, do espaço,dos estados points, nos workshops,experimentandoo texto,
F emocionaisou sensoriaisda atriz, entre outros. e, mais tarde, naspróprias cenasdo espetáculo.
i Duas técnicasde trabalho do ator mere- Cada workshopsemprecontou com pelo
~- cem destaque
técnica no processo
de performance doscriativo de eGH.
Viewpoints A
o mé- menos um
mínimo umespectador,
integranteno
da sentido de haver
equipe não tendonoa

todo Suzuki. Enrique Diaz e Mariana Lima de- menor idéia da proposta ou do que iria assistir.
senvolvemna Fundição Progresso(RJ) um trei- As propostaspoderiam surgir de qualquer pes-
namento em torno dessastécnicas. Tiveram soado núcleo de criação.Podemosassimperce-
acessoa essastécnicasna SITI Company (Sara- ber nessecontexto, como apontaAna Bernstein
toga Internacional Theatre Institute), sediada em relação à contemporaneidade, uma outra
em Saratoga,estadode Nova York, dirigida por perspectivateórica, frente ao fenômeno teatral:
Anne Bogart, que desenvolveua técnicade per-
formance dos Viewpoints,dando seqüênciaao A obra não podeserreduzidanem à textua-
~ trabalho desenvolvidoem parceriacom o dire- lidadedo textoe nemà subjetividadedo lei-
:I tor japonêsTadashiSuzuki. tor, masé antesalgoque seoriginaentreos
I A utilização dos Viewpointsse constitui dois.O queimplicaem.dizerquenãoháape-
~~ como um procedimento de colaboratividade. nas um significado para o texto, mas muitos
r~ Criam no corpodo ator uma dimensãode sua significados
potenciais
e quea produção
de
i espacialidadeatravésde nove "pontos de vistà' sentidoé um "acontecimento dinâmico".9
I sobre a situação cênica: ~spaço,tempo, repe~i- . . . ~

k ção, duração,gesto,arquitetura, forma, padrao O processocnativo de A pazxaosegundo


1"'- de trajetória, respostakinestésica.Os Viewpoints GH, desdeo início, contou com a presençaco-
~ funcionam como indicadoresde relaçãocom o laborativade um elementode recepçãoda cena;
I próprio corpo, com os elementosdispostosa sua em momentos, com os integrantes da equipe,
volta e até mesmo de interação com um outro e, mais adiante, atravésde convidadosparapre-
ator, de forma cênica, e não necessariamente senciaremo ensaio.A recepção,atravésda fun- ,
narrativa ou dramática. Nessesentido, obrigam ção "espectador",seria um dos eixos de produ- c J
o ator a estar comprometido com um persona-
gem para se apresentar ~enicamente.
O método Suzuki trabalha a relaçao do
~
ção do discurso cênico. A realização de um
~o~kshop foi sempre co~cluída com os comen-
tanos daquelesque funcionaram como especta-
r "4
~

[I
J

ator com o chão, atravésde seuspés(utilizando dorese dos realizadoresda proposta. Dentro do ' (

o stomp),do centro de gravidadedo corpo, com processo


colaborativoa interferênciamaisagudae l
o propósito de produzir presençano aqui e ago- necessdria
é a crltica.iO
ra como fluxo de energia,que influencia direta- O fato de o texto do espetáculonão ser
mente a fala, a partir de uma situação física, e dramático, como um monólogo tradicional, ]~,,~
não psicológica. não possuindouma progressãodramática, nem J
~

9 Bernstein, Ana. Teoriado Speechact, representação


e teoria da performance.Capítulo de tesede doutora-
mento, 2001. Inédito.
10 Abreu, 2003, p. 33-41.

~
A PaixãoSegundoGH:processocolaborativoe performance

mesmo um cálculo para a cena, permitia que a lhos solos e um forte teor autobiográfico. Sua
equipebuscassecontextoscênitos ou performá- hipóteseé a de que a performancesolo autobio-
ticos que não funcionassemcomo ilustração de gráfica possui um caráter público, como inter-
uma narrativa.A densidadede imagense a sub- vençãona esferapolítica nos termos do debate
jetividade da literatura de Clarice Lispector, em sobrequestõessociais,no casodos exemploses-
última instância, ofereciamsubsídiospara a ela- colhidos, em relaçãoà questãoda mulher. To-
boraçãode performances.O texto foi explora- memos como comparaçãocom o espetáculoA
do, por exemplo, atravésde situaçõesda fala; paixão segundoGH o trabalho de Karen Finley,
como seria dizer tal trecho para um analista? atravésdascolocaçõesde Bernstein.
Como seria falar tal trecho no meio de uma Finley, segundoa pesquisadora,não pos-
conferência?Mas a maioria das propostas de sui nenhuma técnica de atuaçãoe nunca ensaia
workshopdialogaram com a questão do corpo seustrabalhosantesde apresentá-losao público.
no espaço,com a presençafísicae o estadoemo- Mesmo que haja em comum uma linha confes-
cional relacionados direta ou indiretamente sional entre GH e o trabalho da performer, no
com o universo ficcional. primeiro casoos relatosseriamde fato ficcionais
Os workshopstornaram-se a maior fonte (mesmo que hajam nelesum teor autobiográfi-
de definição das cenasdo espetáculo.Funcio- co), e no segundocasoos relatosou monólogos
naram como referências,como materiais pro- apresentamum fluxo de idéiasque abordamex-
priamente ditos, que, reelaborados,foram arti- periênciaspessoaisde Finley.A performer ficci-
culadosentre si, e com novasmarcaçõesem fun- onaliza suasvivências,mesmo que não chegan-
ção do espaço, de outras descobertas e do do a construir uma outra persona.A exposição
amadurecimento da linguagem, formaram o de suaintimidade, de suabiografia, em seusas-
corpo do espetáculo.Seria importante ressaltar pectos mais grotescos,como fluxo incontrola-
que atravésdos workshops,com seucaráterper- do, com seusconteúdos"pervertidos", tem cer-
formático, o espetáculo,e, sobretudo, a atua- tamente uma conotaçãopública e política. Ma-
çãode Mariana Lima ganharamcontornos que riana Lima não funciona exatamentecomo uma
aproximam as noções de monólogo e perfor- performer no espetáculo.Durante o processo,
mance,na medida em que sua fala, sua presen- talvezem suasatuaçõesnos workshops acabouse
ça, a cada espetáculo,acontececomo uma ex- aproximado da idéia deperformer.No espetácu-
perimentação do relatar. O relatar, com suas 10, a atriz adere à ficção autobiográfica através
hesitações,pareceter como condição o instan- de sua presençafísica, na medida em que atra-
te, atravésdos tempos de percepçãoque o pró- vés da primeira pessoado singular experimenta
prio discursosolicita da atriz. A Paixãosegundo no tempo e no espaçoalgumadimensãodo aqui
GH é um espetáculode teatro, não é uma per- e agora atravésda experiênciado relato. Pode-
formance.Mas em suacarpintaria encontramos mos encontrar determinadasaproximações,via
a performancecomo procedimento de um pro- relato autobiográfico,entre o trabalho de Finley
cessocolaborativo. e Mariana, mas para esta última, em A Paixão
Em seu ensaioA performancesoloe o su- segundoGH, a performance seria um procedi-
jeito autobiogrdfico,Ana Bernstein abordao tra- mento de criação; suas memórias e vivências
balho de três performers mulheres e america- funcionam como elementos de aproximação
nas:Karen Finley, PeggyShaw e PennyArcade. com a ficção. Finley fala de si atravésde si mes-
Em comum, as três possuemo perfil de traba- ma. Mariana fala de si atravésde GH.

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sala preta

ReferênciasBibliográficas

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