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A Paixão Segundo GH PDF
A Paixão Segundo GH PDF
:
processo colaborativo e performance
Fabio Cordeiro
I-
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A PaixãoSegundoGH:processocolaborativoe performance
3 Bernstein,Ana. A performance
soloe o sujeitoautobiogrdfico.
In: SalaPreta.SãoPaulo:USp, 2001,
p.91-103.
4 FauziArap em Programado espetáculo
A paixãosegundo
GH.
5 Estamoslidando com a montagemqueestreouno CCBB/R], em 15 de outubro de 2002.
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A PaixãoSegundoGH:processocolaborativoe performance
velha quanto um peixe fossilizado. Ela era ta, sendo absorvida pelo fogo que toma a tela e
antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá es- a preenche por inteiro. Agora, o espetáculo tor-
tava a boca real. Eu nunca tinha visto a boca na-se mais sensorial, dependendo cada vez mais
de uma barata. Eu na verdade, eu nunca ti- da presença de Mariana. Seu corpo, seus movi-
nha visto uma barata. S6 tivera repugnância mentos, sua voz, seus estados transformam-se
pela sua antiga e semprepresenteexistência. no "texto". As palavras passam a ter a função de
E eis que eu descobria que, apesarde com- conduzir seu trajeto pelas imagens de GH. Ela
pacta, ela é formada de cascase cascaspar- continua relatando e sofrendo o que relata. Mas
das, finas como as de uma cebola, como se a matéria relatada agora não seria mais factual.
cada uma pudesseser levantadapela unha, e Seria da ordem da experiência. Mas da expe-
no entanto sempreaparecemais uma casca,e riência no plano mais íntimo e subjetivo.
mais uma e mais uma. Talvez as cascasfos-
sem as asas,mas então ela devia ser feita de Sevocê soubesseda solidão dessesmeuspri-
camadase camadasde cascasfinas compri- meiros passos.Não se pareciacom a solidão
midas atéformar aquelecorpo compacto.(...) de uma pessoa.Era como se eu já tivesse
Ali estavaeu diante do ser empoeirado que morrido e dessesozinha os primeiros passos
me olhava- e o que eu via com um constran- em outra vida. E era como se essasolidão
gimento tão penosoe tão espantadoe tão ino- chamassemde gl6ria, e também eu sabiaque
cente, o que eu via era a VIDA me olhando. era uma gl6ria, e tremia toda nessagl6ria di-
vina primária, que eu não s6 não compreen-
A partir dessemomento, Mariana come- dia, como profundamente não queria, por-
ça a se levantar e a se afastar do espectador, e do que eu sabiaque estavana crua e bruta gl6ria
restante do público, recuando em direção ao ar- da natureza.Eu sabia que, a partir dali, não
mário; onde GH teria imprensado a barata com haveria mais diferença entre mim e a barata.
a porta.
)" Como chamar de outro modo aquilo horrí- jetos, Articulando partituras
Mariana segue físicas,
a via crucis de texto, ob-
GH, reti-
vel e cru, matéria prima e plasma seco,que rando cada camada, cada cascade sua identida-
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de para encontrar o elementovital que liga todas assensações de seusmovimentos que obedecem
as coisas.Perdendo-se,procurando por si mes- a um ritmo interno de explosõesde energia e
ma, descobrindo-senovamente,GH fala da no- sons.Eu nunca maisrepousaria:eu havia rouba-
ção de tempo, relativizando-o, como medida do o cavalode caçadade um rei da alegria.Nun-
pessoale subjetiva. ca maisrepousarei:roubeio cavalodo rei do sabd.
Assim, o espetáculocaminha para seudesfecho.
(...) E tornou-seum agora.Era finalmente GH "retornà' de seumundo imagético.
agora. Era simplesmenteagora. Era assim:o :
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A PaixáoSegundoGH:processocolaborativoe performance
pela porta do corredor. E retoma por traz do ça física para as partituras. Estastambém rece-
cenário, agora reveladoem sua totalidade pela berama contribuição de movimentos realizados
luz. Fim. por Enrique Diaz, Fabio Cordeiro e Marcelo
Olinto (equipe de trabalho do solo) que foram
incorporados por .Mariana em suasseqüências
O processo criativo de GH de movimento. O solo apresentaum caráterde
colagemde memóriasfísicasque, mais adiante,
A trajetória de criaçãodo espetáculoseguiutrês funcionaram como referênciasparaa criaçãodo
grandesetapas:realizaçãode uma performance espetáculo.
solo apresentadano SescCopacabana(RJ); pes- A segundaetapado processoocorreu, em
quisa e experimentaçãoem uma sala do Sesc primeiro lugar, com leituras, na casade Enri-
Baden Powel (RJ); ensaiose montagem do es- que Diaz e Mariana Limas, e, posteriormente,
petáculono EspaçoIII do Centro Cultural Ban- numa sala do SescBaden Powel, onde foi de-
co do Brasil (o local da primeira temporada). senvolvidoo processode pesquisade linguagem
De certo modo, o processofoi itinerante em seu mais direcionado para o espetáculo.Formou-se
percurso pelos espaçosde trabalho. Essaitine- um núcleo de criação;atriz, diretor e diretor as-
rância também encontramos na linguagem do sistente.Essenúcleo foi acompanhadoperiodi-
espetáculo. camentepelos integrantesda equipe, atéo final
O processocriativo de GH começoucer- da montagem. O texto foi sendodecorado,cor-
ca de oito mesesantes da estréia. Convidado tado, estudadoe experimentadoatravésde dois
para participar do evento Solosdedançado Sesc, procedimentosmais constantes:a confecçãode
Enrique Diaz propôs a Mariana Lima que ex- partituras físicase a realizaçãode workshops, ou
perimentassemo universo de Clarice Lispector pequenasperformancescom temas específicos
como um solo de dança,que contassecom tre- e relaçãodireta com o universo de GH, partin-
chos do livro. O solo recebeuo título de "Raiz do de algumapropostaou indagaçãoconceitual,
quadradade menos um". Alguns procedimen- ou cênica.A diferençaentre o workshope a im-
tos utilizados adiantejá seriamexperimentados. provisaçãoseriao fato de, no primeiro caso,ha-
O espaçodo SescCopacabana7,local da apre- ver um tempo de preparação,a utilização pre-
sentação,é circular. meditada de objetos, figurinos e iluminação,
Como procura por códigosde linguagem além de ser o ator o principal autor da cena,
houve um investimento na elaboraçãode parti- podendo até mesmo criar um esboçode rotei-
turas físÍcas(seqüênciasde movimentos não ne- ro. Ao mesmotempo em que aconteceuma pre-
cessariamentecoreográficas)que deveriam ser meditação, o ator pode deixar espaçosde im-
executadas junto da fala.Além de algunstrechos precisão,de improviso. O objetivo do workshop
da adaptação,foram escolhidos,como referên- é o de colocar em jogo, em cena,alguma ques-
cias, trabalhos e personagensjá feitos por Ma- tão identificada com o universo ficcional. Não
riana. Por exemplo, a Babilônia do espetáculo se trata de acertar ou errar, mas de testar.Não
Apocalipse 1, 11, do Teatro da Vertigem, de havia um projeto de encenaçãoque servissede
quem emprestoumateriaisgestuaise de presen- premissa.O objetivo era questionar,especulare
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todo Suzuki. Enrique Diaz e Mariana Lima de- menor idéia da proposta ou do que iria assistir.
senvolvemna Fundição Progresso(RJ) um trei- As propostaspoderiam surgir de qualquer pes-
namento em torno dessastécnicas. Tiveram soado núcleo de criação.Podemosassimperce-
acessoa essastécnicasna SITI Company (Sara- ber nessecontexto, como apontaAna Bernstein
toga Internacional Theatre Institute), sediada em relação à contemporaneidade, uma outra
em Saratoga,estadode Nova York, dirigida por perspectivateórica, frente ao fenômeno teatral:
Anne Bogart, que desenvolveua técnicade per-
formance dos Viewpoints,dando seqüênciaao A obra não podeserreduzidanem à textua-
~ trabalho desenvolvidoem parceriacom o dire- lidadedo textoe nemà subjetividadedo lei-
:I tor japonêsTadashiSuzuki. tor, masé antesalgoque seoriginaentreos
I A utilização dos Viewpointsse constitui dois.O queimplicaem.dizerquenãoháape-
~~ como um procedimento de colaboratividade. nas um significado para o texto, mas muitos
r~ Criam no corpodo ator uma dimensãode sua significados
potenciais
e quea produção
de
i espacialidadeatravésde nove "pontos de vistà' sentidoé um "acontecimento dinâmico".9
I sobre a situação cênica: ~spaço,tempo, repe~i- . . . ~
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ator com o chão, atravésde seuspés(utilizando dorese dos realizadoresda proposta. Dentro do ' (
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A PaixãoSegundoGH:processocolaborativoe performance
mesmo um cálculo para a cena, permitia que a lhos solos e um forte teor autobiográfico. Sua
equipebuscassecontextoscênitos ou performá- hipóteseé a de que a performancesolo autobio-
ticos que não funcionassemcomo ilustração de gráfica possui um caráter público, como inter-
uma narrativa.A densidadede imagense a sub- vençãona esferapolítica nos termos do debate
jetividade da literatura de Clarice Lispector, em sobrequestõessociais,no casodos exemploses-
última instância, ofereciamsubsídiospara a ela- colhidos, em relaçãoà questãoda mulher. To-
boraçãode performances.O texto foi explora- memos como comparaçãocom o espetáculoA
do, por exemplo, atravésde situaçõesda fala; paixão segundoGH o trabalho de Karen Finley,
como seria dizer tal trecho para um analista? atravésdascolocaçõesde Bernstein.
Como seria falar tal trecho no meio de uma Finley, segundoa pesquisadora,não pos-
conferência?Mas a maioria das propostas de sui nenhuma técnica de atuaçãoe nunca ensaia
workshopdialogaram com a questão do corpo seustrabalhosantesde apresentá-losao público.
no espaço,com a presençafísicae o estadoemo- Mesmo que haja em comum uma linha confes-
cional relacionados direta ou indiretamente sional entre GH e o trabalho da performer, no
com o universo ficcional. primeiro casoos relatosseriamde fato ficcionais
Os workshopstornaram-se a maior fonte (mesmo que hajam nelesum teor autobiográfi-
de definição das cenasdo espetáculo.Funcio- co), e no segundocasoos relatosou monólogos
naram como referências,como materiais pro- apresentamum fluxo de idéiasque abordamex-
priamente ditos, que, reelaborados,foram arti- periênciaspessoaisde Finley.A performer ficci-
culadosentre si, e com novasmarcaçõesem fun- onaliza suasvivências,mesmo que não chegan-
ção do espaço, de outras descobertas e do do a construir uma outra persona.A exposição
amadurecimento da linguagem, formaram o de suaintimidade, de suabiografia, em seusas-
corpo do espetáculo.Seria importante ressaltar pectos mais grotescos,como fluxo incontrola-
que atravésdos workshops,com seucaráterper- do, com seusconteúdos"pervertidos", tem cer-
formático, o espetáculo,e, sobretudo, a atua- tamente uma conotaçãopública e política. Ma-
çãode Mariana Lima ganharamcontornos que riana Lima não funciona exatamentecomo uma
aproximam as noções de monólogo e perfor- performer no espetáculo.Durante o processo,
mance,na medida em que sua fala, sua presen- talvezem suasatuaçõesnos workshops acabouse
ça, a cada espetáculo,acontececomo uma ex- aproximado da idéia deperformer.No espetácu-
perimentação do relatar. O relatar, com suas 10, a atriz adere à ficção autobiográfica através
hesitações,pareceter como condição o instan- de sua presençafísica, na medida em que atra-
te, atravésdos tempos de percepçãoque o pró- vés da primeira pessoado singular experimenta
prio discursosolicita da atriz. A Paixãosegundo no tempo e no espaçoalgumadimensãodo aqui
GH é um espetáculode teatro, não é uma per- e agora atravésda experiênciado relato. Pode-
formance.Mas em suacarpintaria encontramos mos encontrar determinadasaproximações,via
a performancecomo procedimento de um pro- relato autobiográfico,entre o trabalho de Finley
cessocolaborativo. e Mariana, mas para esta última, em A Paixão
Em seu ensaioA performancesoloe o su- segundoGH, a performance seria um procedi-
jeito autobiogrdfico,Ana Bernstein abordao tra- mento de criação; suas memórias e vivências
balho de três performers mulheres e america- funcionam como elementos de aproximação
nas:Karen Finley, PeggyShaw e PennyArcade. com a ficção. Finley fala de si atravésde si mes-
Em comum, as três possuemo perfil de traba- ma. Mariana fala de si atravésde GH.
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ReferênciasBibliográficas
ABREU, Luís Alberto de. "Processocolaborativo: relato e reflexõessobre uma experiênciade cria-
ção". In: Cadernosda ELT (EscolaLivre de Teatro).Santo André, EscolaLivre;de Teatro, Ano I,
n. O, março de 2003, p. 33-41.
BERNSTEIN, Ana. Teoriado Speechact, representação
e teoria daperformance.Capítulo de tesede
doutoramento, 2001. Inédito.
. A performancesoloe o sujeitoautobiogrdfico.In: SalaPreta,Ano 1, n° 1, São Paulo, Uni-
versidadede SãoPaulo, 2001. p. 91-103.
COHEN, Renato. Performancecomolinguagem:Criaçãode Tempo- Espaçode Experimentação.São
Paulo, Edusp/Perspectiva,1989.
CORDEIRO, Fabio. Processos e Autorias: a Cia. dosAtorese à tradição moderna.Rio de Janeiro,
Departamento de Teoria do Teatro/Uni-Rio, 2001. mimeo.
DIXON, Michael & SMITH, JoelA. (org.).AnneBogart: viewpoints.NovaYork, Smith and Kraus,
1995.
LISPECTOR, Clarice. A PaixãosegundoG.R. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.