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PEQUENAS MARGARIDAS

POR STEVEN SHAVIRO (Tradução de Arthur Imbassahy, agosto 2014 – revista Usina, n.9)

Pequenas Margaridas, filme de Vera Chytilová, consegue ser abstrato e visceral, intelectual e
infantil, divertido e selvagem, tudo ao mesmo tempo. Quando reassisti ontem à noite, eu
literalmente vibrava de entusiasmo e alegria. Me senti da mesma maneira que na primeira vez
que vi o filme, mais ou menos trinta anos atrás, na graduação.
Pequenas Margaridas é um filme da Nouvelle Vague Tcheca, mas não tem muito em comum –
além de rejeitar a narrativa tradicional e a estética do “realismo social” – com as outras obras
do movimento. Chytilová, como podemos dizer, é o Godard pro Truffaut de Jiri Menzel.
(Chytilová e Menzel estudaram na FAMU, a famosa escola de cinema Tcheca, ficaram amigos e
ocasionalmente trabalharam juntos). Pequenas Margaridas é uma confusão de cores, cortes
bruscos, elipses, erros deliberados de continuidade, inserções escandalosas de imagens, sons e
músicas sem conexão diegéticas, além de efeitos especiais anti-naturalistas. Algumas vezes a
tela é colorida, outras permanece em preto-e-branco, com filtros monocromáticos ou efeitos
granulados de pixels fora de ordem (seja o que for o equivalente pré-digital disso). Este filme é
uma total investida, sem nenhuma piedade, contra as convenções cinematográficas e a forma,
ou o próprio cinema; contra as normas sociais e as regras, ou a sociedade; e contra o
espectador. É um atentado de uma violência niilista, sem deixar de ser perfeitamente alegre e
prazeroso: uma explosão de afeto, que compartilho cada vez que assisto.
Pequenas Margaridas encanta do mesmo jeito que choca — provavelmente, nesse ponto,
encanta mais do que choca, ao menos foi o que percebi ao passar o filme ontem para os meus
alunos. Ainda assim, apesar de um certo grau de devoção cult, nunca lhe foi dado o devido
reconhecimento na história do cinema, ou até mesmo na história dos filmes experimentais,
radicais ou de vanguarda. Owen Hatherley escreve de forma brilhante sobre isso (e muito devo
a ele por sua análise do filme); mas sua discussão é a única que parece fazer jus a arrebatadora
força e radicalidade do filme. Até mesmo aqueles que amam Pequenas Margaridas têm
dificuldade em encontrar os termos adequados para se expressar.
Lá pro final dos anos 1970 e começo dos 1980, no encalço do inovador artigo de Laura
Mulvey, Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975), havia muita discussão sobre o que
significava romper com as satisfações convencionais proporcionadas pelo cinema. Tais
prazeres, como Mulvey demonstrou com vários argumentos, estão integrados às estruturas
heterossexuais da dominação masculina e subordinação feminina. Mulvey pede (de forma um
tanto ambígua) que se faça um esforço “para liberar o olhar da câmera em sua própria
materialidade no tempo e espaço, e o olhar do público na dialética, no distanciamento
apaixonado.” Mas a principal investida do ensaio diz respeito à “destruição do prazer.” Mulvey
convoca uma prática (tanto da crítica quanto do cinema alternativo) que “destrua a satisfação,
o prazer e o privilégio” presentes na maneira convencional de ver um filme.
Em boa medida o debate depois de Mulvey questionava se o cinema feminista deveria ser dali
em diante didático, “alienante”, e difícil; ou se outros regimes de prazer e afeto, além do
patriarcal, poderiam ser atingidos (ou sequer imaginados). Será que ninguém percebeu que,
uma década antes de Mulvey, Chytilová já havia respondido que sim? Pois o imenso
contentamento de Pequenas Margaridas nada tem a ver com os mecanismos de identificação
e objetificação, sadismo e paranoia, dissecados por Mulvey em seu artigo. Pequenas
Margaridas tem agência, muita na verdade; mas nós não temos um vocabulário adequado pra
descrever o como e o porquê dessa agência, e isso explica em parte a razão por ter sido
relegado ao segundo plano da história do cinema.
Desse modo, há duas garotas – ou jovens mulheres, se preferir; as atrizes (Jitka Cerhova e
Ivana Karbanova) estão na faixa dos vinte anos. (O IMDB não lista as datas de nascimento, e diz
que elas nunca mais atuaram, com exceção de pequenos papeis logo depois de Pequenas
Margaridas, em 1966 e 1967). Não sabemos como as personagens se chamam – de fato,
ambas são chamadas de diversos nomes ao longo do filme – apesar da maioria das discussões,
e da lista de créditos do IMDB, as listarem como “Maria I” e “Maria II”.
Depois dos créditos iniciais – passados contra a montagem que combina, por um lado, planos
de uma escultura-máquina Dadaísta ou Construtivista; por outro, vídeos antigos de
bombardeio e destruição – vemos as duas Marias sentadas lado a lado olhando para a câmera,
dentro de algo que parece uma grande caixa ou a frente de um palco. Seus corpos estão
travados, os movimentos são desajeitados, como se fossem fantoches. Toda vez que uma
delas se move, ouvimos um alto ranger na trilha sonora, o que sugere uma animação mecânica
malfeita. Elas estão entediadas. Conversam entre si que já que o mundo vai “mal”, a única
alternativa é serem “más” também. (Outra tradução possível é spoiled [estragado, mimado]
em vez de mal).
As duas Marias se entregam à satisfação de várias formas de comportamento antisocial. Ficam
reclamando entre si e batem boca. Mas parece que elas não têm nenhum interesse nos
argumentos em jogo, de modo que é impossível fazer qualquer distinção consistente entre
seus pontos de vista. (Uma é loira a outra morena, as diferenças não passam disso). Elas saem
para restaurantes chiques com velhos bem-sucedidos (o que isso significa no contexto
comunista? Sabemos que o socialismo não foi sem classes nem igualitário, tampouco houve
igualdade entre os gêneros, como deveria ter acontecido). Os homens pagam bebidas e
comidas caras, com a esperança (presume-se) de seduzi-las, mas em vez disso têm de lidar
com o comportamento irascível das garotas. Maria e Maria se vestem com vestidos curtos;
uma delas com rabo de cavalo; ambas usam muita maquiagem. Menos do que sedutoras, o
que elas lembram são garotinhas brincando de se arrumar, ou (pior) objetos de fantasia para
pervertidos. Os homens nunca conseguem o sexo que esperavam; em vez disso são
empurrados pra pegar um trem e abandonados. As garotas riem com suas brincadeiras, e vão
embora causar mais problemas.
As duas Marias alegremente destroem seu próprio apartamento, assim como todos os espaços
públicos por onde andam; elas estão sempre em movimento, da latrina de um restaurante
luxuoso às margens do rio, de uma estação de trem até por fim passarem por corredores e
subirem os andares (dentro de um pequeno elevador de comida) de um importante edifício do
governo, onde elas encontram comida em louças de prata meticulosamente dispostas sobre a
imponente mesa para o que (pensamos ser) um banquete oficial. Na sequência de maior
tensão do filme, elas continuam a arrasar a sala de banquete, se enchendo com uma
quantidade gigantesca de carnes, devorando bolos e bebidas, quebrando copos e pratos,
fazendo uma guerra convulsiva de comida, para no final se pendurar no candelabro. Enquanto
isso, a trilha sonora se torna bélica ou insólita, extraída do Nibelungo de Wagner, dentre
outros lugares. Certamente trata-se da melhor sequência que envolva comida em toda a
história do cinema.
Um mecanismo de diferenciação está em funcionamento. A má conduta das duas Marias não
tem nada a ver com o garotas-também-podem-ser-obscenas que vemos tanto nos últimos
anos, seja em séries de TV tipo Sex and the City, ou nas atitudes de celebridades como as
analisadas no último livro de Ariel Levy: Female Chauvinist Pigs: Women and the Rise of
Raunch Culture. Tais situações em que as mulheres simplesmente substituem os homens no
culto fálico de dominação – terminam com o efeito de reproduzir um comportamento tão
estúpido e opressor quanto o masculino.
Mas a atuação das duas Marias acontece num plano distinto. É completamente infantil. Elas
não parecem interessadas na sexualidade por si só: vestem-se com trajes liberais dos anos
1960 apenas pra confundir e humilhar os velhos (nisso elas mostram interesse) e criar uma
desordem generalizada. Em vez de sexo, elas querem comida. Não perdem uma oportunidade
de se empanturrar. E se divertem como crianças ao quebrar, rasgar e queimar as coisas a sua
volta. Particularmente, elas fazem uso de tesouras pra cortar sem parar. Essa última ação
repercute com o “corte” no sentido cinematográfico; a agressão delas tem correspondência na
edição sem continuidade de Chytilová, que corta várias vezes a ação ou o objeto apenas pra de
repente mudar tudo de lugar. Em determinada sequência, Maria corta as partes de seus
corpos junto com a tela – do nada um braço some, seguido de uma cabeça; finalmente a
imagem é picotada, quebrando-se em pequenos quadrados embaralhados por todo o quadro.
Em termos freudianos, pode-se dizer que a sexualidade foi reprimida em favor de uma
regressão ao impulso – narcisista, incorporativo e agressivo – dos prazeres orais. Mas acredito
que seria melhor entendermos o comportamento das Marias de forma afirmativa, como uma
construção positiva, ao invés de uma reação ou regressão. Esse movimento que vai da
sexualidade para a comida é, mais precisamente, um detournement no sentido Situacionista, e
não uma “falha em se desenvolver.” É também uma “desordem sistematica dos sentidos”,
como diz Rimbaud, ou no sentido nietzschiano de se esforçar “para perceber dentro de si
próprio a eterna alegria de se tornar – aquela alegria que também encerra o deleite de
destruir.” Embora Nietzsche não fosse capaz de imaginar que isso, como acontece no filme,
seria levado a cabo de forma tão encantadora por duas meninas.
O prazer das duas Marias em se encher de comidas e bebidas está intimamente ligado ao seu
prazer de recortar. Sua brincadeira com tesouras sem dúvida deixa implícito a castração. Além
de jornais, colchas, e suas próprias roupas, elas cortam com frequência objetos em formatos
fálicos, como salsichas e pepinos – e outros supostamente femininos, por exemplo as maçãs.
(Castração, seja figurativa ou literal, parece ser um tema recorrente na obra de Chytilová. Um
de seus trabalhos mais recentes, Traps (1998), o qual infelizmente nunca tive a oportunidade
de ver, gerou muita controvérsia com a história de uma mulher que castra os dois homens que
a estupraram).
A destruição do falo não significa apenas minar o poder masculino, mas sim colocar em xeque
toda a “Ordem Simbólica.” Dentre outras coisas, significa destruir a oposição – ou acabar com
a separação – entre as palavras e as coisas, de modo geral entre as coisas e suas
representações (sejam elas verbais ou visuais). Em certo momento, uma das Marias recorta da
revista uma imagem de comida, ela então abre a boca e a devora com a mesma vontade que
comeria uma refeição de verdade. Isso acontece no decurso da cena em que as duas Marias
assam salsichas na fogueira feita com partes de seu apartamento em chamas. Então, com um
enorme espeto, elas pegam as salsichas e as cortam ao meio com um par de tesouras
igualmente grandes. Enquanto isso, riem das queixas de um amante rejeitado, cujos patéticos
apelos podem ser escutados no telefone fora do gancho. Durante toda a cena, uma espécie de
canto sacramental é tocado, extradiegeticamente, ao fundo.
Tudo que as duas Marias fazem é destrutivo. Elas se divertem no completo desperdício, na
“negatividade sem emprego” e na “despesa sem retorno.” Acima de tudo, Pequenas
Margaridasexpressa o desprezo absoluto por qualquer tipo de produtividade, seja econômica,
social ou semiótica. É claro que se trata de uma bela razão pro filme ser denunciado pelas
autoridades do Partido por desperdiçar recursos do governo, e insultar “os trabalhadores nas
fábricas, nos campos e nas construções.” Já que produzir era o valor supremo em todos os
estados socialistas, a inquietante chacota que Pequenas Margaridas faz dessa concepção a
torna mais ameaçadora para a ideologia oficial do que qualquer crítica mais explícita, imediata
e específica do sistema social poderia ter sido.
Há uma sequência em Pequenas Margaridas em que as duas Marias observam um camponês
cuidando de sua lavoura. Ele não presta atenção nelas, apesar das roupas chamativas. Então
elas ficam paradas no meio da praça enquanto uma turma de homens passa em cima de
bicicletas, provavelmente trabalhadores a caminho do emprego na fábrica. Mais uma vez,
ninguém repara nelas. Elas começam a se questionar se existem de verdade: obviamente, não
há lugar pras Marias no mundo do “socialismo real.” (É também duvidoso se no “capitalismo
real” elas conseguiriam existir. Suas orgias de ostentação poderiam ser entendidas como um
exagero consumista, só que elas jamais pagam por nada. Elas roubam dinheiro, mas não
chegam a gastá-lo. Elas não tem nenhuma estima, sequer respeito, à noção de propriedade;
nenhuma ideia de que bens materiais são fonte de status, poder e prestígio. Sua infantilidade,
diferente do consumidor no capitalismo, não é egoísta. Seu interesse não é o de possuir e
acumular).
Depois que as duas Marias destroem o banquete governamental, o filme termina por mostrar
o remorso e o castigo que sofrem por seu mau comportamento. Esse clichê da retratação é
conduzido de forma tão sarcástica que só aumenta o caráter infantil do deleite em destruir
presente em todo o filme. (Será que é preciso lembrar de que, após a invasão soviética em
1968, Chytilová e outros diretores da Nouvelle Vague Tcheca foram forçados, de maneira
parecida, a se retratar e fazer uma auto-análise de seus filmes?) As Marias murmuram o seu
pesar, e se dizem agora felizes por serem socialmente úteis, enquanto segundo todas as
aparências elas colocam as coisas de volta em ordem: o que envolve juntar pedaços de pratos
estraçalhados, e jogar os restos de comida em largas travessas. Por fim, elas se deitam sobre a
mesa de banquete, vestidas com um macacão de jornal e papel-machê, sussurando que
finalmente estão em paz… até que um enorme candelabro cai do teto e as esmaga numa
profusão colorida de pixels. Apesar de Chytilová dizer, sob pressão política, de que seria esta a
punição moral para o comportamento transgressor das personagens, ao invés disso nos parece
que o rastro de destruição termina consumindo não apenas as duas, mas o próprio filme.
O extraordinário em Pequenas Margaridas é que mesmo com o festival de negatividade e
destruição, e mesmo que as protagonistas sejam motivadas (até onde se pode afirmar) por um
tipo de mal-estar, não há nenhuma sensação de falta ou incompletude, nenhuma
subjetividade alienada, nenhum não-todo lacaniano, não existe a dialética proposta por
Mulvey de distanciamento, ou qualquer revelação adorniana da insuficiência da obra – mas só
uma alegre plenitude, uma superabundância afetiva e material que ganha forma na
exuberante inventividade do filme.
O esforço dos primeiros modernistas em alinhar uma estética radical com uma política radical
sofreu um baque com os horrores do stalinismo, sem mencionar a estética ultra-conservadora
do “realismo social” imposta por Stalin. Depois da guerra, no Leste Europeu comunista pós-
Stalin, Dusan Makavej foi um dos únicos a se aventurar no restabelecimento dessa ligação
entre estética e política radical. O tardio modernismo esteticamente radicalizado por Chytilová
de maneira nenhuma segue esse projeto. Claramente não é só apolítico, mas violentamente
anti-político. Em vez de apenas afirmar os direitos do indivíduo sobre a sociedade – algo que
ainda assim seria “político” no sentido convencional da palavra – Pequenas Margaridas arrasa
tanto o indivíduo quanto a coletividade com seu fervoroso gozo antisocial. (As duas Marias não
podem viver uma sem a outra; sua duplicidade é tão irredutível à solidão ou individualidade,
quanto aos laços sociais do coletivo). E essa virulência antipolitica é justamente sua (crucial)
relevância política: algo que talvez precisamos hoje em dia, no nosso mundo “conectado” de
redes inescapáveis e mercantilizações onipresentes, tanto quanto era necessário 40 e poucos
anos atrás no mundo do “socialismo real.”
O que seria uma história do cinema, ou do modernismo, ou da vanguarda, ou um relato das
estratégias de resistência, evasão e recusa, que realmente levasse em conta o filme Pequenas
Margaridas?

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