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Transtorno Bipolar na infância

Aspectos clínicos: O TB é um transtorno psiquiátrico com característica penetrante (pervasive),


com alterações clínicas que podem permear todo o período de desenvolvimento, devido a um
caráter penetrante e impregnante dos sintomas sobre o modo de pensar e comportar-se de
um indivíduo, regendo sua adaptação social, acadêmica e profissional. Para uma melhor
compreensão dos sintomas e sinais do TB de início precoce, é necessário entender quando e
como ocorre o desenvolvimento emocional.

Mesmo sendo uma patologia com caráter penetrante, o TB compromete crianças e


adolescentes de forma variada, dependendo da gravidade do quadro clínico e/ou da situação.
Crianças com hipomania podem apresentar melhor adequação social em determinada ocasião
do que aquelas com quadro de mania psicótica. A ansiedade pode levar a criança a comportar-
se bem na escola por causa da conscientização da adequação social e, na sequência,
apresentar-se gravemente sintomática em casa, onde se sente mais à vontade.

Aspectos epidemiológicos e demográficos: Investigações em amostras clínicas indicam que há


predomínio da ocorrência de sintomas disruptivos de comportamento nos meninos com TB
tipo I e que a ocorrência do tipo II parece ser mais frequente entre adolescentes do sexo
feminino do que entre os do sexo masculino. Estudos sugerem que o TB pode ocorrer
igualmente em crianças e adolescentes de ambos os sexos.

Todavia, em meninos, podem ocorrer mais episódios de mania e comorbidade com transtorno
de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e, em meninas, mais depressão. Deve-se ter
cautela na avaliação de meninas deprimidas que tendem a demonstrar menos mania ou
hipomania.

Avaliação e processo diagnóstico: Alguns estudos sugerem que a fenomenologia dos


transtornos do humor pode variar de acordo com o funcionamento cognitivo, a habilidade
social e o grau de desenvolvimento psicológico de cada indivíduo. Assim, uma criança pode ter
dificuldade em reconhecer, nomear e demonstrar seus próprios sentimentos. A literatura
científica tem nomeado o TB com início na infância e na adolescência de forma inconsistente
referindo casos de TB pediátrico, TB juvenil, mania juvenil, mania pediátrica, TB puberal ou
pré-puberal, ou fenótipos bem definidos ou pouco definidos. Essas denominações podem ou
não estar referindo uma mesma condição clínica apresentada por crianças e adolescentes com
o mesmo padrão de instabilidade do humor.

Para a definição do diagnóstico de TB, aconselha-se que as crianças tenham seus sintomas e
sinais bem descritos, com avaliação cuidadosa de todas as queixas, verificando-se a frequência
de ocorrência e o grau de comprometimento de cada sintoma. Além dos instrumentos de
apoio ao diagnóstico, são utilizadas várias escalas para a avaliação da intensidade dos sintomas
nas diferentes fases da doença. Algumas delas têm propriedades psicométricas e capacidade
para discriminar o TB de outros transtornos psiquiátricos.

O TB em crianças e adolescentes pode apresentar-se de modo diferente do padrão descrito na


idade adulta. Crianças geralmente apresentam ciclagem rápida, com quatro episódios de
humor por ano, bem como alterações bruscas diárias de humor (i.e., uma vez ao dia), sintomas
depressivos mistos (i.e., muitas vezes maníacos, na forma de irritabilidade) e evolução
insidiosa e crônica desde a infância (Phillips & Kupfer, 2013). No DSM-V (APA, 2013), são
adotados os critérios gerais para diagnóstico do TB em adultos, com adição de dois aspectos:
humor depressivo irritável e dificuldade em ganhar peso. Ainda, se deve comparar os
comportamentos apresentados pela criança com aqueles que são esperados para a etapa do
desenvolvimento na qual ela se encontra. De acordo com a Classificação Estatística
Internacional de Doenças (CID-10; OMS, 1992), os critérios para diagnóstico de TB em crianças
e adolescentes são: irritabilidade, agressividade e estados de humor misto.

Atualmente, recomendam-se os seguintes instrumentos de apoio diagnóstico para o TB de


início precoce: Entrevista para Transtornos Afetivos e Esquizofrenia em Crianças e
Adolescentes – Versão Estado Atual e ao Longo da Vida (K-SADS-PL); entrevista K-SADS com
seção de transtorno afetivo detalhada e de ciclagem rápida elaborada por pesquisadores da
Washington University, em St. Louis (WASH-U-K-SADS); Inventário de Comportamento para
Crianças e Adolescentes (CBCL).

Pesquisadores discordam quanto à necessidade da presença de humor eufórico/euforia ou


grandiosidade para o diagnóstico de TB em crianças. Para alguns, a presença de intensa
irritabilidade e explosividade é suficiente para o diagnóstico.

Depressão na infância e adolescência: De maneira geral, crianças e adolescentes, meninos e


meninas, apresentam ocorrências iguais de depressão. No entanto, algum sintoma pode ser
mais frequente em determinada faixa etária do que em outra, dependendo do nível de
desenvolvimento cognitivo e de outras habilidades relacionadas. Por exemplo, adolescentes
deprimidos mostraram bem mais desesperança, sensação de desamparo, falta de energia,
fadiga, hipersonia, perda de peso e comportamento suicida quando comparados a crianças.

Pesquisadores concluíram que a idade, e não o sexo tem efeitos significativos na ocorrência e
na prevalência de sintomas depressivos específicos. No entanto, crianças pequenas
demonstram que podem manifestar sintomatologia tão grave quanto adolescentes — em
alguns dos estudos, inesperadamente, crianças apresentaram mais sensação de desvalia e
baixa autoestima do que adolescentes.

Características de mania e hipomania na infância e na adolescência: Na prática clínica,


podemos encontrar a descrição de dois tipos de crianças com TB: o primeiro tipo é o das que
apresentam todos os sintomas e características exigidos pelo DSM-IV para o diagnóstico de TB
tipo I ou tipo II, e o segundo é o das que apresentam apenas alguns sintomas de mania ou
formas atípicas de sintomatologia, tais como manifestação hipomaníaco-depressiva do TB tipo
II, ciclagem por antidepressivos, episódios hipomaníacos de duração inferior a quatro dias,
além de sintomatologia subsindrômica maníaco- depressiva. Por apresentar apenas algumas
características do TB, esse segundo grupo geralmente recebe diagnóstico de TB sem outra
especificação (TB-SOE).

De maneira geral, em crianças e adolescentes em fase de mania, é possível observar os


sintomas clássicos desta, por exemplo, grandiosidade, diminuição da necessidade de sono,
tagarelice, pensamento acelerado, aumento da distraibilidade, diminuição de objetividade
associada a agitação e diminuição da crítica. Quando os sintomas são leves, moderados ou
intermitentes, muitas vezes podem passar despercebidos pelos pais. Os pesquisadores
também ressaltam que, apesar de todos esses sintomas serem frequentes, nenhum deles por
si só é capaz de permitir a identificação de manifestações de mania nessa população.

Em um episódio de mania, a criança geralmente apresenta humor instável e irritadiço. Quando


há hiperatividade e fala ininterrupta, a atitude é de inquietação, de excitação constante e de
diminuição da crítica adequada. Pode queixar-se de ter pensamentos abundantes e apresentar
pensamentos fantasiosos e de grandeza, como possuir poderes mágicos, entender “a língua
dos anjos”, ter aparência excepcional ou ter certeza de saber mais do que os professores. Os
comportamentos extravagantes ou as atitudes de hipersexualização podem chamar a atenção
pela precocidade, mas, nesse caso, deve-se averiguar, também, os fatores culturais ou a
ocorrência de abuso. Devido à sobreposição de sintomas de um episódio de hipomania,
costuma haver confusão com o TDAH.

O humor exaltado, com tagarelice, hiperatividade e grandiosidade, é claramente perceptível


em adolescentes em fase de mania. A diminuição da necessidade de sono e o aumento da
energia são evidentes. O comportamento social é bizarro, inadequado e extravagante.
Sintomas psicóticos podem ser frequentes, e a confusão com esquizofrenia é, muitas vezes,
inevitável.

Outra característica do TB de início precoce é o estado de humor misto. Normalmente,


crianças ou adolescentes mudam seu comportamento, tornando-o mais extravagante, com
hiperatividade psicomotora e mental, ficando socialmente desinibidos. Contudo, referem
sensações desconfortáveis de falta de esperança e de que nada jamais os fará voltar a ficar
felizes. Como o estado de humor misto não é comum em adultos, acaba sendo uma
característica de crianças e adolescentes com TB.

Tipos de TB: O terceiro tipo, a desregulação grave do humor (severe mood deregulation),
refere--se ao caso daquelas crianças constantemente mal-humoradas, chateadas ou
entristecidas, com reação exagerada por interpretar de forma negativa os estímulos
emocionais ou ambientais. Em geral, são hiperativas, distraídas, dormem pouco e falam muito.
Existe uma frequência aproximada de três ou mais explosões de raiva por semana. Essas
crianças têm dificuldade crônica de relacionamento dentro e fora de casa, com prejuízo de
socialização no lar e na escola e no funcionamento global. Faz parte do diagnóstico desse tipo
clínico história familiar positiva de transtorno afetivo.

Comorbidades: As comorbidades comuns com TB de início precoce incluem TDAH, TDO,


transtorno da conduta (TC), transtornos de ansiedade (TA) e, em adolescentes, abuso de
substâncias. Outras possibilidades, como transtorno global do desenvolvimento (TGD),
esquizofrenia ou transtornos da aprendizagem, foram menos avaliadas.

Crianças do grupo de risco: Chamamos de grupo de risco para TB, crianças e adolescentes,
filhos de pai ou mãe ou de ambos com essa condição.

Fatores correlacionados: ocorrência de eventos estressantes da vida, estilo cognitivo negativo,


negligência ou hostilidade parental (p. ex., deficiência de acolhimento materno), pouco
suporte social, divórcio ou conflitos entre os pais, baixo nível de organização e coesão familiar,
aumento de conflitos familiares e abusos físicos e sexuais são identificados como fatores de
precipitação ou agravamento de TB na infância e na adolescência. Insegurança nos vínculos
afetivos é um fator de risco para desregulação emocional e transtornos de comportamento
nos filhos de pais com TB.

Transtorno Bipolar e transtornos globais do desenvolvimento comórbidos

Há vários estudos que descrevem casos de TGD comórbido a TB, nos quais é possível observar
um padrão cíclico de mudanças comportamentais, oscilações de humor, com períodos de
apatia e lentificação psicomotora e outros de extrema agressividade e hostilidade, além de
respostas atípicas ou agitação extrema após uso de antidepressivos ou psicoestimulantes.

Características clínicas de pacientes com TGD e TB: Os primeiros sintomas observados em


pacientes com TGD e TB comórbidos são piora acentuada dos sintomas de TGD, ou seja, piora
de comportamentos autistas, como maneirismos, rituais e estereotipias.

Nos autistas de baixo funcionamento, ocorre uma regressão importante das habilidades
recém-desenvolvidas (p. ex., linguagem, autocuidado e conteúdos pedagógicos). Esses
pacientes podem ficar mais agitados, irritados ao extremo, podendo perder o controle motor e
colocar-se em situações de risco, tomando-se extremamente agressivos e provocando sérias
automutilações.

Já nos portadores da TAS - considerada a patologia do EA de melhor funcionamento global -,


observa-se importante regressão dos ganhos recém obtidos , principalmente na esfera social
e académica, associada a piora do humor e agressividade. Os sintomas autísticos,
comportamentos muitas vezes não observados anteriormente, como os maneirismos e as
estereotipias, podem se tomar mais evidentes devido à regressão que o paciente apresenta.

Fase depressiva: Nas fases depressivas, os portadores costumam se isolar mais e perdem o
interesse pelas poucas coisas que os atraíam e pelas atividades que executavam. Tomam-se
mais irritados, pouco tolerantes e hostis, inclusive com as pessoas às quais têm maior apego,
como a mãe ou outro cuidador próximo. Às crianças também podem apresentar uma piora no
padrão do sono e do apetite, mas o que fica mais evidente é um acentuado quadro de
lentificação psicomotora e piora marcante na interação com o meio social e familiar.

Fase de mania: Nas fases de (hipo)mania, é possível observar uma ativação global dos
processos psíquicos, com elação do humor e aumento da atividade motora. Os indivíduos
tomam-se extremamente irritados e explosivos, e há piora dos movimentos estereotipados.
Eles podem agitar-se e correr para todos os lados. Aceleração do pensamento e da fala está
presente (dificultando, algumas vezes, a compreensão do que dizem), e podem ocorrer
sintomas psicóticos, como alucinações e delírios, sendo, em alguns casos, necessária
contenção física ou internação para o controle de sintomas.
Evolução: As mudanças de comportamentos de crianças e adolescentes que apresentam TGD
associado a TB costumam ser episódicas. Ocorrem dentro de um contexto de alterações de
estado de humor e respondem ao tratamento farmacológico para TB.

Crianças e adolescentes com TGD apresentam limitações no pensamento abstrato, restrição


das manifestações efetivas e baixa capacidade de expressão, interpretação e reconhecimento
dos próprios sentimentos. Isso faz com que seja um grande desafio descrevem o que está
acontecendo com eles, o que estão sentindo e o porquê do comportamento alterado. Tanto
crianças com TGD com as TB apresentam inabilidade social, pois não conseguem perceber
quando estão desagradando.

Ideação e tentativa de suicídio no transtorno bipolar na infância e na adolescência

Pacientes com TB têm alto risco de suicídio durante o curso de duas vidas. Muitos pacientes
com TB apresentam o primeiro episódio dessas condições durante a infância ou a
adolescência. Quanto mais precoce o inicio do quadro do TB, mas grave é a sua apresentação
clínica, e pior o prognóstico. Isso aumenta o risco de tentativas de suicídio nesses pacientes ao
longo da vida, quando comparados à população com início mais tardio.

Perfil neuropsicológico do TB na infância e na adolescência

Um problema que se delineia com relação às características cognitivas do TB na infância é o


fato de que ainda não foi possível definir déficits específicos desse transtorno, uma vez que
estudos com outras patologias psiquiátricas na infância também relataram a existência de
déficits cognitivos semelhantes.

A avaliação neuropsicológica de crianças com TB tem sido usada para caracterizar


anormalidades na atenção e nas funções executivas, principalmente na memória operativa
(working memory). Estudos sugerem:

No que se refere às diferenças entre TB tipos I e II, verifica-se que:

Crianças com o tipo I tinham mais dificuldade para realizar uma prova que avaliava
aprendizagem verbal pela repetição de uma lista de palavras do que as com o tipo II, com TB-
SOE e com controles saudáveis. Nessa lista, algumas palavras pertenciam a uma mesma
categoria semântica. Se isso fosse identificado pelo sujeito, a memorização poderia ser
facilitada. As crianças com TB tipo l relembraram poucas palavras durante as sucessivas
apresentações da lista e após um intervalo de tempo. A tarefa de reconhecimento também foi
difícil para esse grupo, mostrando que a dificuldade estava no momento da aquisição da
informação.

TB tipo II e TB-SOE : Erros perseverativos e intrusões foram observados apenas nos grupos
com TB tipo II e TB-SOE, mas, de modo geral, esses grupos não tiveram diferenças significativas
no desempenho cm comparação aos controles.

- Em outro estudo pacientes com TB apresentaram dificuldades em uma tarefa que exigia inibir
uma resposta automática e executar uma resposta alternativa. O problema não estava na
ocorrência de respostas impulsivas, mas sim na lentidão para responder ao estímulo. A
hipótese para explicar esse comportamento é que a diminuição da velocidade para processar
informações deriva do esforço para sustentar a atenção e garantir a eficiência do desempenho.

- Crianças com TB têm escores menores do que os de controles em medidas de flexibilidade


mental e memória visuoespacial. Estudos realizados na população adulta com TB identificaram
dificuldades na execução da mesma prova o que fez com que se levantasse a hipótese de que
a capacidade de flexibilizar o pensamento teria início na infância e continuaria até a vida
adulta.

Cognição social:

Crianças e adolescentes com TB apresentam uma hiper-reatividade ou seja, elas tenderiam a


ser hiper-responsivas ante ao resultado negativo, mesmo que este ocorresse em uma situação
positiva. Paralelamente, também responderiam com maior intensidade a um resultado
positivo, principalmente se este estivesse em um contexto negativo. Essa hiper-reatividade
interfere negativamente na adaptação social, levando a dificuldades nos relacionamentos
interpessoais.

Estes pacientes também têm dificuldade para reconhecer na face de crianças para fazer o
julgamento correto de aspectos pragmáticos na linguagem, o que ocasiona problemas
importantes na modulação do comportamento provocador e agressivo ante outras crianças.

Os episódios de humor dificultam as expressões adequadas das habilidades sociais interferindo


de forma negativa na adaptação social. Além disso, tais habilidades estão diminuídas nessa
população, mesmo que haja o conhecimento de normas vigentes para a resolução de
problemas hipotéticos. Isso sugere que saber o comportamento considerado certo ou errado
em determinada situação social não ajuda necessariamente, a modular a conduta quando se
está envolvido na situação, principalmente quando há alteração de humor.

Correlatos neuroanatômicos:

Até o momento, as pesquisas mostram que os déficits cognitivos descritos na população


pediátrica com TB são praticamente os mesmos encontrados nas amostras de adultos. Dessa
forma, os correlatos neuroanatômicos são os mesmos e envolvem estruturas pré-frontais e
fronto límbicas, responsáveis pela capacidade de sustentar a atenção e resistir a interferências,
de alternar o foco de atenção para mais de uma variável, de flexibilizar o pensamento,
adaptando-se às demandas do ambiente, e de tomar decisões e reconhecer emoções. Há
evidências de que o volume da amígdala seja menor nas crianças bipolares, e essa estrutura é
responsável pela regulação do humor e pelo reconhecimento das emoções.

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