Você está na página 1de 35

FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Naturalmente, devemos estar advertidos, embora esses temas


epistemológicos interessem direta e fundamentalmente à
psicanálise, não se trata exatamente do conhecimento que essa
teoria trata. Mas nem por isso são temas menos importantes a
ela.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Ao contrário, o tema da realidade e suas questões associadas


atravessam a teoria freudiana de ponta a ponta. Não é preciso
muito para estabelecer o ponto. Nós vemos, com efeito, que se
formam ao redor desta problemática algumas de suas noções
fundamentais.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Por exemplo, Freud vai distinguir entre realidade material e


realidade psíquica, a primeira designando tudo o que é obtido a
partir do mundo exterior, a segunda designando ao mesmo
tempo as construções fantasmáticas do desejo e a apropriação
que ele faz da realidade material.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Ele vai, de outra parte, opor o princípio do prazer ao princípio da


realidade, atribuindo a este o papel de princípio “corretivo” do
primeiro. E, finalmente, não devemos esquecer que Freud
definiu a neurose como uma espécie de fuga de um fragmento
insuportável da realidade (material) e a psicose como a rejeição
e um remodelamento dramático desta última.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

O QUE É O INCONSCIENTE?

Depois de um século de existência da teoria e da prática


psicanalíticas, tal pergunta poderia, de fato, parecer irrisória.
Não é essa a posição que defendo: tal questão insiste em exigir
de nós uma maior elaboração, desde que Freud introduziu em
seus primeiros trabalhos psicanalíticos o conceito de
inconsciente.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

De fato, a questão sobre “o que é o inconsciente?” foi


continuamente sustentada por Jacques Lacan — cujo ensino
constitui nosso eixo condutor da leitura de Freud — enquanto
enigma maior que exige decifração.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Num de seus escritos mais tardios, por exemplo, Lacan


surpreende ao estabelecer uma analogia entre
inconsciente/psicanálise e natureza/física e asseverar que “a
estrutura, sim, da qual a psicanálise impõe o reconhecimento, é
o inconsciente.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Parece bobo lembrá-lo, mas o é muito menos quando se percebe


que ninguém sabe o que isso é. Isto não deve nos deter. Nós
também não sabemos nada sobre o que é a natureza, o que não
nos impede de ter uma física, e de um alcance sem precedente,
pois ela se chama a ciência”.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Considero sobretudo que, precisamente porque não temos


podido dar uma resposta mais abrangente à tal questão sobre o
que é o inconsciente, a psicanálise tem sido alvo de inúmeros
equívocos.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Mais essencialmente, vê-se que a psicanálise tem sido repudiada


pelos outros saberes em algumas de suas teses fundamentais
ou, ainda, tem sido fonte de grandes mal-entendidos entre os
próprios psicanalistas.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

O conceito freudiano de pulsão, para tomar um exemplo central


nos desenvolvimentos deste volume e cujo estatuto
transdisciplinar pretendo enfatizar, é revelador disso:
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Considerado por Lacan um dos quatro conceitos fundamentais


da psicanálise, a pulsão não abriu via de reflexão junto aos
outros saberes, e, mesmo entre os psicanalistas, prestou-se até
hoje a equívocos básicos, que podem ser atestados pela
desvirtuação produzida pela escola inglesa ao traduzir o termo
alemão Trieb por instinto.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

A história da incompreensão desse conceito talvez possa ser lida


como essencialmente ligada à história das resistências à
psicanálise — a história de uma verdadeira repulsão à pulsão. No
entanto, como veremos, segundo a leitura lacaniana de Freud, a
pulsão é o conceito psicanalítico que mais se revela inseparável
da questão sobre o que é o inconsciente.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

A PSICANÁLISE E SEU FUNDAMENTO EPISTEMOLÓGICO

Nos anos iniciais do século XX houve uma intensa e efetiva


contestação da cientificidade da psicanálise, o que levou Freud a
enfatizar a cientificidade da nova ciência por meio de sua
publicação Os instintos e suas vicissitudes (1915). Esta
contestação, como vimos, era oriunda de filósofos, psicólogos e
médicos, os quais contestavam a pretensão à cientificidade por
parte da psicanálise.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Com efeito, esta rejeição teve início desde que Freud realizou
uma conferência em Viena, em 1886, na qual apresentou a
teoria do trauma e da sedução das psiconeuroses. Nesta ocasião
suas teorias foram consideradas “um conto de fadas científico”
pelo eminente Krafft Ebing, que escrevera uma obra de
referência da sexologia chamada psicopatia sexuais. Em 1900, ao
publicar A interpretação dos sonhos, o não reconhecimento
científico persistiu a ponto de seu tratado ser considerado um
trabalho estético sobre os sonhos e não como uma teoria
científica.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Segundo o Empirismo lógico, a condição para legitimar e


reconhecer cientificamente um enunciado teórico seria a
possibilidade de verificá-lo empiricamente, desta maneira os
enunciados científicos seriam dotados de sentido.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

E o que se colocava, então, para a psicanalise era a


impossibilidade de verificação dos enunciados metapsicológicos,
como os conceitos de instinto (ou pulsão) de vida e de morte.
Estes, por sua vez, não teriam sentido, pois não poderiam ser
verificados empiricamente.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Portanto, foi por causa destas oposições que Freud retomou a


problemática da fundação epistemológica da psicanálise na sua
obra Os instintos e suas vicissitudes (1915) para oferecer uma
justificativa para a metapsicologia e para a psicanálise,
juntamente com diversas monografias clínicas com
preocupações epistemológicas, além de promover a difusão da
psicanálise e a formação de analistas (BIRMAM, 2009).
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Até o presente momento nota-se a irrefutabilidade da existência


de um registro inconsciente no psiquismo humano, registro este
ratificado pela experiência clínica, da qual surgiu legitimamente
uma nova ciência: a ciência que possui por objeto material os
processos inconscientes.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Todavia, não seria possível para Freud desenvolver os conceitos


fundamentais da psicanálise sem uma epistemologia, sem a qual
também não é possível a construção metodológica de qualquer
discurso científico, pois, com efeito, necessariamente um existe
em referência a outro.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

A argumentação freudiana é simultaneamente simples e clara ao


sustentar a cientificidade da psicanálise, pois, a psicanálise não
empregaria nenhum procedimento distinto daquele realizado no
campo dos demais discursos científicos.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

A psicanálise deve ter o mesmo tratamento reservado às demais


ciências. Desta forma, é preciso enfatizar que as ciências em
geral não surgiram conceitualmente prontas. Com efeito, todas
demoraram muito até fixarem seus conceitos fundamentais e
sua metodologia.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Ademais, não foi pela construção clara e bem definida destes


que as ciências foram estabelecidas e reconhecidas. Foi preciso,
portanto, que elas ultrapassassem momentos de dúvida até que
seus conceitos fundamentais pudessem ser estabelecidos.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Com efeito, ao comparar a psicanálise com a medicina, por


exemplo, é possível afirmar que a segunda possui por objeto
material definido o corpo humano, e como objeto formal, o
conhecimento da causa das doenças com o intuito de atenuá-las
e promover a saúde.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Por seu turno, a psicanálise, em síntese, possui por objeto


material o inconsciente e por objeto formal a etiologia das
neuroses, seu significado subjetivo, objetivando, por
conseguinte, sua cura pelo método da associação livre.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Assim como o corpo humano e as doenças são dados empíricos


imediatos na medicina (não obstante seus desenvolvimentos
históricos, desde Hipócrates até os nossos dias, ora
abandonando conceitos, ora aprimorando-os), a psicanálise,
igualmente, possui seu objeto material de estudo na qualidade
de dado inegável da experiência, a saber, o inconsciente e suas
manifestações, sobre o qual, então, deve erigir seu edifício
conceitual.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

O quadro da presença da psicanálise na cultura neste fim de


século XX, que comemora um centenário da descoberta
freudiana, é ambíguo, senão confuso.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Na cultura, a psicanálise tem sido alvo de enorme assimilação e,


simultaneamente, de grande repúdio: a onipresença da
psicanálise nos quadros da universidade, por um lado, e no
discurso diário da mídia, por outro, atesta o primeiro fato; ao
passo que um certo descrédito do meio savant, ilustrado
pontualmente, mas de maneira bastante significativa, pela
recente suspensão e adiamento da exposição “Freud, conflito e
cultura” pela Biblioteca do Congresso de Washington, manifesta
o segundo.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Cada um a seu turno, Freud e Lacan ressaltaram que a cultura


norte-americana sempre se pautou por uma poderosa
resistência ao discurso psicanalítico.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Decorre desse fato que a pluralidade das produções teóricas


mais criativas da psicanálise contemporânea venha se norteando
por uma referência quase absoluta aos desenvolvimentos
trazidos pelo ensino de Lacan.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Como apontou recentemente Alain Didier-Weill, a “tarefa que


Lacan nos deixou, por seu trabalho de retorno a Freud, é de uma
grande exigência, pois reconhecemos que esse retorno se
especifica por não poder ser realizado de uma vez por todas”.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Se não tivermos em mente que o retorno a Freud é um ato que


deve ser repetido em sua virulência, nosso pensamento se
desenvolverá sob o ascendente exclusivo do princípio de prazer
e não resistirá “à tentação que lhe é proposta pelo pensamento
dogmático, ou ideológico, cuja função é a de fazer com que se
cale a questão singular, trazendo-lhe, de uma vez por todas, uma
resposta coletiva”.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Por um lado, a vida da psicanálise depende da abertura que ela


mantenha para o novo, trazido continuamente pelo
aprofundamento da especificidade de sua experiência.
FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

Sua vitalidade depende de ela não se tornar uma intrincada


armadura teórica afastada da experiência clínica, da escuta do
sujeito em análise, a partir da qual sua teoria se fundou e da
qual ela continua retirando sua força.

Você também pode gostar