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Rapunzel (re)contada aguentando mais o seu desejo, voltou a

lamentar-se e a chorar, que só os frutos da


Num modesto bairro de uma pequena vizinha lhe dariam uma filha maravilhosa.
aldeia, numa casa com um lindo quintal, O marido, sem saída, prometeu-lhe que lhe
morava um casal com os seus três filhos. O traria um pouco mais.
desejo da mulher era ter uma filha com
À noite, pulou novamente o muro,
longos cabelos loiros e uns olhos azuis, mas
preparando-se para colher mais frutos
tinham-lhe nascido três rapazes, todos
deliciosos. Porém, quando pisou o chão,
morenos, queimados do sol. apanhou um valente susto, pois a bruxa já
Tinham por vizinha uma velha bruxa estava à espera dele.
rabugenta, conhecida por todos como
Com um pavor enorme pelo que ela lhe
sendo muito má e poderosa. O seu jardim
pudesse fazer, ajoelhou-se pedindo mil
estava repleto de belas flores e a sua horta
perdões, explicando-lhe o infortúnio pelo
carregada de suculentos legumes e de
qual a família estava a passar.
frutos tão brilhantes como o oiro.
A bruxa ficou muito mal impressionada
Um dia, apercebendo-se de que estava com pais tão incorrectos! Valorizavam mais
grávida e não parando de cobiçar os frutos
as aparências à essência?! Tinham três
do quintal da vizinha, a mulher decidiu filhos fantásticos, que os ajudavam na lide
pedir ao marido que saltasse o muro e lhe
da casa e tratavam do quintal (que ela bem
apanhasse uns rabanetes para o jantar.
os via, de manhã à noite), enquanto os pais
Assustado, ainda rejeitou a ideia, porém a
os ignoravam por eles não serem tão belos
vontade da mulher não desapareceu, só
como o nascer do sol…
aumentou. Passou a lamentar-se pela má
sorte de não conseguir ter uma filha tão E ainda por cima, davam um exemplo tão
bela como a manhã, de cabelos doirados e mau: assaltarem o quintal ao lado, em vez
olhos de safira. Tinha a certeza de que se de baterem à porta e pedirem gentilmente
comesse um dos frutos enfeitiçados do por uns rabanetes. Ela não se tinha
quintal da bruxa, daria à luz uma criança importado nada de ajudar. Mais rabanete,
magnífica. menos rabanete, nem conseguia comer
tudo sozinha! Não, isto não estava nada
Vendo-a abatida de tanto chorar todos os certo! Estes pais eram muito malvados e
dias, o marido lá se decidiu a arriscar e
tinham demasiado poder na educação dos
durante a noitinha saltou o muro da
seus filhos.
vizinha e roubou meia dúzia de rabanetes.
Vendo o homem apavorado e querendo
No dia seguinte, a mulher saboreou a dar-lhe uma lição, a bruxa propôs-lhe uma
melhor salada que alguma vez havia
troca: podiam levar os rabanetes que
comido. E o seu apetite por rabanetes foi quisessem até ao dia em que a criança
crescendo, crescendo e crescendo. Não
nascesse. Depois, esta seria entregue aos E a menina descia as suas longas tranças,
cuidados da velha. fortes como uma corda, para içar a velhota.

Sem conseguir pensar muito bem e Todas as vezes que a visitava, levava-lhe
desesperado por sair dali, o homem uns bolinhos, ora de chocolate, ora de
aceitou o acordo, levando os rabanetes nos canela, ora de beterraba e rabanete, os
braços. preferidos da cachopa.

Algumas semanas depois, nasceu-lhes uma E assim foi crescendo, sem perceber muito
bebé linda, Rapunzel, de cabelos cor de bem o porquê de estar presa numa torre,
mel, e logo a bruxa lhes bateu à porta. Por tal e qual uma culpada, vigiada numa cela.
entre lágrimas e gritos, não tiveram
Ao princípio, pensou que se tinha portado
alternativa senão cumprir com a sua parte
mal. Que talvez tivesse faltado ao respeito
no tratado.
a alguém e a “avó” a castigasse daquela
A Rapunzel cresceu feliz e saudável, criada forma. Ganhou coragem e perguntou-lhe a
pela sua querida “avozinha”, a quem muito razão, todavia sempre que tocava no
amava e estimava. A menina foi instruída a assunto a sua doce “avó” começava a
ler, a cantar, a desenhar, a fazer ioga, a chorar. Nunca compreendeu.
nadar e a resolver complicadas contas de
Com o tempo, resolveu aceitar o que a
matemática. E principalmente foi ensinada
“avozinha” lhe pedia, que esquecesse
a respeitar todas as pessoas, animais e
aquele assunto. Como gostava
plantas e a dar muito valor ao perdão.
profundamente dela, não a queria ver
Quando completou doze anos, os pais da triste. Não voltou a tocar na questão e com
menina tentaram raptá-la. No entanto a um sorriso nos lábios dedicou-se a
bruxa, uma mulher precavida, impediu-os aprimorar os seus dotes musicais e a ler os
de concretizarem o seu plano. Então, para livros que ela lhe trazia.
salvaguardar a Rapunzel, mudou-a para
O livrinho de que mais gostava era: As
uma torre muito alta, no meio da floresta,
grandes mulheres que fizeram história no
onde ninguém a conseguisse encontrar.
mundo. Quando o lia, dava largas à
Era uma casa simples, contudo confortável, imaginação e passava horas sem fim, ora a
o que afinal era o mais importante. Mas descobrir novas poções para tratar todo o
não tinha portas nem escadas, só uma tipo de doenças, ora a projectar sistemas
grande sala, uma pequena cozinha e um complicados de comunicação
quarto de dormir. Por isso, a criança sentia- intergaláctica, ora a calcular as trajectórias
se lá presa. das varinhas mágicas que tentavam chegar
às estrelas, ora a inventar um método de
Para subir, a bruxa estabeleceu um código
teletransporte…
secreto. Gritava lá de baixo: Rapunzel,
Rapunzel, lança-me as tuas tranças de mel!
Um dia, enquanto cantava à janela da importantes. Só que a par do medo que
torre, esperando pela chegada da avó, a sentia, também vinha uma certa
rapariga avistou um rapaz charmoso, que curiosidade… que era imensa! Quem seria
se aproximava enfeitiçado pela força da aquele rapaz? Queria fazer-lhe mal, ou ser
sua voz. seu amigo? E ela sentia tanto a falta de
amigos…
O jovem não encontrava a entrada
daquela estranha torre e não sabendo o Andava nestas divagações quando ouviu
código secreto para que a Rapunzel chamar lá de baixo: Rapunzel, Rapunzel,
descesse as suas tranças, desatou a bramir lança-me as tuas tranças de mel! Levantou-
para ela, mas sem resposta. A moça estava se apavorada. A “avó” teria percebido a
assustada e seguindo as recomendações da sua mentira?
velha bruxa, escondeu-se dentro da torre.
Lançou rapidamente as suas tranças, a
O rapaz não teve alternativa senão desistir,
inventar a desculpa que iria dar à velhota.
mas antes de partir prometeu a si mesmo
Só que na sua vez, apareceu-lhe o rapaz à
regressar no dia seguinte e ser capaz de
frente, cansado de tanto subir.
escalar a torre.
Ficou pálida ao vê-lo. Queria pedir por
Porém, no dia seguinte o rapaz ia dando de
socorro, mas o seu grito mais parecia um
caras com a bruxa! Por sorte, não o tendo
som pasmado, suspenso no ar pela
ela avistado, teve oportunidade de se
surpresa… Bem, na verdade não sabia se
esconder atrás de uma árvore. E foi assim
tinha mais medo do rapaz ou se estava
que ficou a conhecer o código secreto:
antes aliviada por afinal não ser a “avó”…
Rapunzel, Rapunzel, lança-me as tuas
tranças de mel! Ele transpirava do esforço (olhou para
baixo espantado, como é que a velha se
A velhota subiu tranças a cima, levando o
içava tão ligeiramente), que nem reparou
seu cestinho cheio de bolinhos e tomou o
bem que a rapariga estava toda
seu chá na companhia da sua “neta”, até o
atrapalhada. Sentou-se e pediu-lhe
sol se pôr, por detrás da torre.
delicadamente um copo de água e um
Despediram-se com muitos mimos, a
lencinho. Recuperando os sentidos e
Rapunzel deu um doce beijo na testa da
percebendo que ele até era simpático e
“avó” (sim, porque por esta altura a
respeitador, a Rapunzel atendeu aos seus
“criança” já era uma jovem mulher, mais
pedidos. Trouxe-lhe um copo de água e um
alta do que uma girafa), e a bruxa foi-se
pano, com que ele limpou as gotas
embora, sem que ela lhe tivesse contado
cristalinas que lhe escorriam da testa,
da presença do rapaz nas vésperas.
enquanto principiavam uma conversa.
Não que se sentisse bem em esconder-lhe
Primeiro ele barafustou das dores das
coisas. Nem fora nada disso que a “avó”
pernas e dos braços, depois falaram sobre
lhe ensinara, a omitir assim,
o tempo, sobre a torre e logo trocaram os
descaradamente, novidades tão
nomes, tagarelaram sobre a velhota, preocupada. Já se sentia tão mal por lhe
enfim… A jovem foi ficando cada vez mais mentir, que ainda ficou pior ao vê-la
convencida de que afinal tinha sido naquele estado.
atingida mais por um alívio do que por um
Ela amava muito aquela mulher que a
pânico!
criara e tomara sempre conta de dela. Não
Descobriu que ele era um príncipe, que queria mesmo enganá-la nem fazê-la
adorava fazer experiências no laboratório sofrer, só que também sentia que não
do seu castelo. Por isso, fazia excursões podia ficar ali eternamente, sem amigos,
para aqueles lados à procura de plantas sem futuro. Talvez conseguisse chamá-la à
raras e venenos potentes. Parecia ter razão e ainda houvesse a possibilidade de
descoberto a cura para a preguiça, até se darem todos bem e viverem satisfeitos e
alguma coisa ter corrido mal. De muito felizes com o desfecho da história.
preguiçosos, os seus colaboradores tinham
Não aguentando mais tantas mentiras, mal
passado a muito activos e por fim a
a “avozinha” acordou, a Rapunzel contou-
extremamente cansados. Agora dormiam
lhe toda a verdade. A bruxa ficou
dezasseis horas e só estavam oito
enraivecida e provou porque tinha fama de
acordados, o que dava um rendimento de
ser tão má! A rapariga tentou pedir-lhe
trabalho mesmo curto.
perdão, mas foi em vão. Já uma faca se
Entusiasmada, a Rapunzel começou a dirigia aos seus cabelos e as suas tranças
pensar numa solução para o problema do caíram no chão. A malvada levou-a para o
príncipe e todos os dias, depois da bruxa se deserto, abandonando-a lá, sozinha à sua
ir embora, ele visitava-a e faziam sorte.
experiências juntos. Quando deram por si,
Quando o príncipe chegou à torre e
perceberam que estavam apaixonados.
bramiu: Rapunzel, Rapunzel, lança-me as
Então, o rapaz implorou-lhe que ela fugisse
tuas tranças de mel, umas tranças
com ele para o castelo, que lá estariam
apareceram, mas lá em cima, a bruxa
sempre juntos e ela protegida.
esperava por ele.
Combinaram o dia e a hora e o príncipe
Só que ao contrário do que a malvada tinha
prometeu trazer uma escada para ela
planeado (atirar o rapaz da torre abaixo),
descer e ter tudo preparado para ela se
acabou por não ser capaz de lhe fazer mal.
tornar na sua princesa.
Embora estivesse magoada, e por vezes
Nesse dia, a bruxa visitou a rapariga como fosse terrível, não tinha afinal tão mau
de costume. Sentia-se mais cansada e coração. A bruxa começou a chorar e ele
demorou mais tempo a subir as tranças do aproveitou o momento para ser simpático
que o habitual. Sem nunca se esquecer dos com ela, ouviu a sua história desde o início,
bolinhos para a sua “netinha” e do seu as suas queixas e os seus receios. É que
chazinho, a velhota adormeceu sentada no apesar de ser uma bruxa, não deixava de
sofá. Ao vê-la assim, a moça ficou ser uma pessoa como as outras, com
problemas, momentos bons e momentos científica, tendo a sua equipa ganho o
menos bons. prémio para a melhor investigação na área
da saúde do sono.
Ela ficou encantada com a atenção do
rapaz. Para além da Rapunzel, era a Ah, e os seus três irmãos, trabalhadores
primeira vez que alguém se importava com incansáveis, tornaram-se empresários de
os seus sentimentos e a ouvia. Percebeu sucesso no ramo da agricultura biológica.
que a Rapunzel até tinha tido muita sorte. Mesmo morenos, de pele torrada e cabelos
Nem todos os homens são assim tão escuros, eles são hoje os solteirões mais
íntegros e a bruxa que o diga… Há muitos cobiçados do reino, ainda à procura das
anos atrás ela sofreu um desgosto de princesas que vão finalmente arrebatar os
amor, mas também, sendo ele um troll, seus corações.
dificilmente poderia ter corrido bem, não é
verdade?

Enfim, entre confissões, lágrimas e


segredos revelados, fizeram as pazes e Ana Maymone
foram buscar a Rapunzel ao deserto. A
velhota (que afinal também escondia as (adaptado do conto Rapunzel dos irmãos

suas mentirinhas) admitiu toda a verdade Grimm)

sobre a vida da rapariga: contou-lhe o que


tinha acontecido desde o seu nascimento
até à sua clausura no topo da torre. Tinha
percebido que não era nada fácil criar uma
criança, mesmo que em bons princípios, e
que nem sempre conseguimos dar um bom
exemplo, pois todos somos pessoas que a
qualquer momento podem errar. Resta-nos
saber arrependermo-nos e saber perdoar.

E grata por tudo o que a bruxa tinha feito


por ela, a jovem perdoou-a. E foi uma tão
grande caldeirada de perdões e desculpas,
que até os pais da moça foram absolvidos,
tendo, claro está, mudado de atitude!

Foram todos viver para o castelo, que


quartos não faltavam por ali. A Rapunzel
sempre casou com o príncipe e passou a
trabalhar no grande laboratório, que ficava
na torre mais alta do palácio! Actualmente
dirige vários trabalhos de pesquisa

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