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RESUMO - O objetivo deste artigo é realizar uma leitura psicanalítica da animação da Disney
Enrolados (2011), a qual é uma releitura do clássico conto Rapunzel. Isolada por sua mãe em
uma torre, a adolescente Rapunzel com ela vive uma relação de dependência e, aprisionada
no narcisismo materno, desenvolve-se alienada de sua própria história. As autoras entendem
que o filme é uma produção rica para ilustrar fenômenos típicos da adolescência relacionados
ao reordenamento simbólico, às identificações alienantes e aos processos de desidentificação,
tão necessários ao crescimento. Para tanto, cenas são descritas e compreendidas à luz do
referencial de autores como Mahler, Peter Bloss, e Kancyper.
PALAVRAS-CHAVE: Adolescência. Identificações alienantes. Desidentificação.
Introdução
*1
Psicólogas, Especialistas em Psicoterapia da Infância e da Adolescência pelo CEAPIA
Paula Kern Milagre; Vanessa Giaretta Ȋ Enrolados: uma visão psicanalítica sobre a versão de Rapunzel da Disney Ȋ 75
desejo (Kancyper, 1994).
O reordenamento identificatório implica na renúncia à dependência infantil,
no distanciamento das expectativas parentais (e consequente desvencilhar-se
de identificações primitivas) e na união com novos objetos. Trata-se de um
processo angustiante não só para os filhos, como também para os pais, pois re-
acende conflitos ligados ao processo de separação-individuação e, consequen-
temente, interfere na dinâmica familiar (Kancyper, 1994).
As autoras deste trabalho, por compartilharem uma especial admiração pela
riqueza do filme Enrolados, lançado em 2011 pela Disney, se propõem a fazer
uma leitura psicanalítica do mesmo, a partir dos conceitos de reordenamento
simbólico, de identificações alienantes e de desidentificação.O filme é uma re-
leitura do clássico conto Rapunzel, publicado pelos Irmãos Grimm, em 1812.
Contudo, a história que deu origem ao conto foi escrita em 1698, pela francesa
Charlotte-Rose de Caumont de La Force, e se chamava Persinette.
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Sua mãe sabe mais
Ouça o que eu digo
É um mundo assustador
Sua mãe sabe mais
Cheio de perigos, acredite, por favor
Homens do mal, galhos envenenados, canibais e cobras
Há praga sim, insetos enormes, dentes afiados
Pare, eu imploro já estou assustada
Mamãe está aqui, vem que eu te protejo
Deixe de sonhar demais
Colha o trama, vem com a mama
Sua mãe sabe mais!
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lard & Cerqueira (2015), o esforço para manter o filho sob controle absoluto expressa
a recusa de individuação e é a marca do confronto com o outro na sua alteridade.
Deste modo, a impossibilidade de diferenciar-se ocorre à custa da anulação da sub-
jetividade, pois, ao ser vivido como extensão da mãe e ao promover nela sensação
de completude, se é impedido de nascer como sujeito. Este entendimento ilustra-se
na cena em que Gothel e Rapunzel estão em frente ao espelho:
Gothel: - Rapunzel, olhe no espelho. Sabe o que eu vejo? Vejo uma jovem
forte, confiante e linda (Rapunzel sorri). ... Olhe! Você está no espelho também
(ironicamente, ri). ... É brincadeirinha.
Fica evidente o não olhar da mãe para a filha, a falta de espelhamento. Go-
thel não é um espelho para Rapunzel, mas ao contrário: é esta quem sustenta
a beleza da mãe e que a nutre nos seus aspectos narcísicos. Posteriormente no
filme, já após a entrada de Flynn em sua vida, há uma cena em que Rapunzel
se olha novamente no espelho com uma coroa na cabeça e se emociona com a
imagem que vê. Há um misto de surpresa e estranhamento ao talvez enxergar-
-se pela primeira vez de modo diferente da sua imagem de menina frágil, de-
pendente e infantil. Surge a possibilidade de ver-se como uma rainha, talvez se
imaginando em um papel mais adulto.
Margareth Mahler (1977) propõe um modelo do desenvolvimento emocional
constituído por fases e afirma que o nascimento psicológico da criança não
coincide com o biológico, ocorrendo através de um processo de separação-in-
dividuação. Ela afirma que nas etapas mais precoces do desenvolvimento, a
diferenciação entre o eu e o objeto ainda não ocorreu, de modo que o bebê vive
em relação à mãe um estado de indiferenciação e com ela constitui uma unidade
onipotente e fusionada. A autora demarca, contudo, que a relação simbiótica
que a dupla compõe possui um significado diferente para a mãe, pois “a neces-
sidade que a criança tem da mãe é absoluta; a necessidade que a mãe tem da
criança é relativa” (1977, p.62).
Ao longo do processo de separação-individuação, a criança adquire a cres-
cente consciência da mãe como um objeto diferenciado dela. Perceber-se como
alguém separado estimula o senso de autonomia e reforça o ego, mas, ao mesmo
tempo, desperta angústia e temor. A descoberta do mundo para além da fusão
simbiótica é vivida com prazer, mas é naturalmente acompanhada por angústias
de separação. As atitudes da criança, então, expressam o conflito interno que
vive: por um lado, esboçam tentativas de restabelecer a fusão com a mãe, na
intenção de recuperar a onipotência que agora lhes falta; por outro, denotam
o temor que sente de ser absorvida pela mãe e de perder a autonomia que
há pouco adquiriu. Portanto, necessitará separar-se e reaproximar-se da figura
materna, através de movimentos de ir e vir, para abastecer-se emocionalmente
dela, até que a constância objetal seja uma conquista e a mãe torne-se dispo-
nível intrapsiquicamente para a criança, assim, sentir-se segura (Mahler, 1977).
Rapunzel: - Não acredito que fiz isso! (repete várias vezes, com euforia).
Mamãe ficaria furiosa (ambivalente). Mas tudo bem. O que os olhos não veem, o
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coração não sente, certo? Puxa vida! Isso a mataria (muita culpa). É tão divertido
(muito empolgada)! Sou uma péssima filha. Vou voltar (tristeza). Eu nunca vou
voltar (extremamente alegre)! Sou uma pessoa desprezível (autorrecriminação).
O melhor dia da minha vida (excitação).
Rapunzel empolgada tenta explicar que está em uma viagem incrível. Diz
que acha que Flynn gosta dela, ao que sua mãe responde:
Gothel: - Gosta de você? Por favor, Rapunzel, isto é loucura! Porque ele
gostaria de você? Olhe para você. Não seja boba, vem com a mamãe.
Rapunzel: - Não!
Gothel: - Não?
Este é o primeiro “não” que Rapunzel diz à mãe, ousando sustentar suas
vontades e confrontá-la, o que faz com que Gothel comece a retaliar a filha. Esta
cena evidencia também os aspectos mais invejosos da mãe, que passa a desejar
o fracasso de Rapunzel, para confirmar a sua dependência a ela.
Kancyper (1994) afirma que, para que venha a ser ele mesmo e deixe de ser
através dos pais, o jovem precisa abandonar as imagos idealizadas de seus pro-
genitores, e buscar ideais em outras figuras, no mundo exogâmico. Isto, contu-
do, é um processo dolorido e culposo, pois requer que o adolescente se distancie
das identificações parentais e de seu ideal de ego, que até então constituíam
sua principal fonte de segurança. Exige, também, que encontre identificações
substitutas e novas referências, entre amigos e ídolos, para que o eu encontre
uma proteção frente ao vazio e ao desinvestimento parental e, assim, seja capaz
de desgarrar-se do que constituiu, até então, um pedaço de si mesmo.
Nesta hora, o sentimento de morte e de traição sentidos por Gothel em
função da quebra narcísica são preponderantes. Conforme vimos até aqui, a
desidentificação é um movimento que “põe à prova a estabilidade dos sistemas
narcisistas nos planos intrassubjetivo e intersubjetivo” (Kancyper, 1994, p.88).
Isto ocorre, pois a regulação narcisista da relação pais-filhos, que até então se
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mantinha através da imagem do filho idealizado e messiânico e dos pais salva-
dores e hipervalorizados, passa a ser alterada, rompendo com a ilusão de atingir,
através da fusão, o amor eterno.
Rapunzel, mesmo confusa, dá seguimento a sua jornada. Quando chega
à cidade, vê uma imagem da princesa perdida quando bebê e, nessa contem-
plação, parece expressar um misto de familiaridade e estranhamento, embora
somente venha a desvendar o mistério que aquilo lhe suscita mais tarde. Aqui
podemos pensar no conceito de conhecido não-pensado, de Cristopher Bollas
(1992), o qual diz respeito às primitivas sensações compartilhadas das relações
infantis, que foram reprimidas e não ganharam representação mental, mas que
se referem ao âmago do que há de mais verdadeiro no núcleo da nossa persona-
lidade. É o idioma sem palavras singular compartilhado com a mãe antes mes-
mo de reconhecê-la como objeto inteiro, e que permitem a sensação especial
de existência e unidade. É o que nos é inerente, como uma força coercitiva que
une passado e futuro.
Antes que a criança pequena seja capaz de representações mentais,
topograficamente significativas (envolvendo a repressão secundária e os processos
pré-conscientes), ela já ‘tem conhecimento’ dos fundamentos básicos da vida
humana e, particularmente, da sua vida. (Bollas, 1992, p. 338)
Deste modo, podemos entender que quando Rapunzel pintava repetida-
mente no seu quarto imagens que produziam certa sensação de familiaridade e
estranheza, representava o conhecido não-pensado, que esforçava-se de modo
estético para ganhar passagem em sua mente e transformar-se em conhecido e
pensado. A busca incessante por esse objeto primevo permite guiar as transfor-
mações profundas e harmônicas de nosso self.
Após, ao divertir-se no Reino e experimentar um senso de liberdade por ela
até então desconhecido, Rapunzel é levada por Flynn a um barco para assistir
às lanternas flutuantes de perto. Entretanto, expressa seu temor diante da pro-
ximidade da realização de seu desejo. Mais uma vez, Flynn estabelece com ela
um diálogo terapêutico.
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esteve ali. Raramente se ausentava e, quando o fazia, fica evidente a vivência da
separação como uma ameaça, equivalente à própria morte.
Rapunzel e Flynn, após verem emocionados as luzes flutuantes, quase se
beijam, nitidamente apaixonados um pelo outro. Mas ele avista seus inimigos
em terras próximas e resolve ir até eles para entregar a tiara que havia roubado e
que motivava, até aqui, sua perseguição. Os vilões, contudo, não mais queriam
este objeto de valor. Queriam a garota dos cabelos mágicos. Rendem Flynn, o
amarram no mastro de um barco, enviando-o para longe. Rapunzel é rendida
pelos bandidos, mas é resgatata pela sua mãe, que esclarece que, preocupada,
estava seguindo ela. Perplexa com a situação, Rapunzel avista Flynn aparente-
mente indo embora em um barco e pensa que foi traída. A mãe abre seus braços,
ao que Rapunzel se rende em meio às lágrimas, confirmando que ela tinha razão
sobre tudo que disse, e a mãe a leva novamente consigo para a Torre, sugerindo
que apenas esqueçam-se de tudo.
Gothel: -Olha o que você fez Rapunzel. Não se preocupe querida, nosso
segredo morrerá com ele. Quanto a nós, iremos para onde ninguém poderá nos
encontrar... (um porão escondido).
Flynn não aceita a ajuda de Rapunzel, pois entende que quem morrerá com
essa promessa é ela. Ele, então, num só golpe corta os cabelos dela, que escu-
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recem na mesma hora, perdendo sua magia. Neste exato momento, sua mãe en-
velhece, enlouquece, cai da torre e morre, virando pó. Na fantasia adolescente,
muitas vezes desidentificar-se dos pais equivale à perda do objeto de amor e à
consumação do parricídio (Kancyper, 1994), o que é expresso no filme de forma
concreta através da morte de Gothel.
Rapunzel chora sobre Flynn e sua lágrima se ilumina ao tocar a face dele,
curando-o. Eles se beijam. Por amor, ambos se salvam. Podemos pensar que o
corte do cabelo de Rapunzel representa a ruptura simbólica do vínculo simbi-
ótico entre ela e a mãe, para o advir do seu nascimento psicológico e de sua
reorganização identitária.
Referências