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A FIGURA

FEMININA NOS
CONTOS DE FADAS
TRADICIONAIS E
CONTEMPORÂNEOS
MARIA DA CONSOLAÇÃO MARTINS*

E ste artigo se propõe analisar como algumas personagens femininas são repre-
sentadas nos contos de fadas – tradicionais e contemporâneos – e questionar
a influência que essas personagens podem exercer sobre o comportamento infantil.

*Professora da Rede de Ensino Municipal de Belo Horizonte.


Imagem: O bouquet pronto, Magritte, 1956.
A FIGURA FEMININA NOS CONTOS DE FADAS TRADICIONAIS E CONTEMPORÂNEOS

Souza (1996), ao pesquisar tasia e realidade, o que o auxilia produtor de sentidos do texto que
sobre a expressão “conto de fadas” na elaboração de seus conflitos ouve/lê.
encontrou para a palavra “fada”, internos. A psicóloga Sayão Os contos de fadas estão carre-
de raiz grega, o significado “aqui- (2001) acrescenta que o adulto, ao gados de valores pertencentes ao
lo que brilha”. Da idéia de brilho e contar histórias, demonstra, além contexto em que foram criados,
do radical, a palavra derivou para de um ato de carinho, o reconheci- mas abordam questões considera-
o latim fatum, que significa desti- mento de que a criança pode das universais e atemporais, como
no. Dessa forma, as palavras fabu- aprender muito, de modo lúdico e os conflitos familiares, as relações
loso, fábula, fatalidade, fado e prazeroso, a respeito de tudo que a de poder, a formação de valores,
fada têm a mesma origem. A auto- cerca. O conto de fadas, além de sempre misturando realidade e
ra aponta, ainda, para o emprego estimular a imaginação da crian- fantasia. Daí o seu fascínio e sua
do termo, só popularizado em fins ça, ajuda-a a desenvolver seu inte- importância tanto no ambiente
do século XVII, quando os primei- lecto, a tornar claras suas emo- familiar, quanto na escola. Ao
ros compiladores de contos da tra- ções, a se harmonizar com suas ouvir e/ou ler histórias, a criança
dição oral começaram a publicar ansiedades e aspirações, a reco- poderá fazer associações entre os
suas coletâneas. A denominação nhecer suas dificuldades e, ao personagens e as pessoas com
“conto de fadas” passou então a se mesmo tempo, a sugerir soluções quem lida no seu dia-a-dia. Um
aplicar à espécie de narrativa em para os problemas que a pertur- bom exemplo dessa ligação pode
que interfere o elemento maravi- bam. estar na representação da figura
lhoso. Dessa forma, o conto de fadas feminina na vida da criança. Em
O interesse de vários estudio- merece destaque na literatura grande parte de seu tempo, ela se
sos – psicanalistas, sociólogos, infantil e deve ser alvo de interes- mantém em contato com pessoas
antropólogos e psicólogos – pelos se tanto dos pais quanto dos pro- do sexo feminino (irmãs, mãe,
contos de fadas tem demonstrado fessores. Esses educadores preci- madrasta, tias, avós, professoras)
a importância dessas narrativas sam conscientizar-se da importân- que, de alguma forma, influen-
para o desenvolvimento infantil. cia desse gênero textual para o ciam na sua formação.
Segundo alguns psicanalistas, desenvolvimento da criança. A figura feminina está presen-
dentre eles Betelheim (1980), a Devem ocupar-se em ler histórias te, se não em todos, na maioria dos
leitura e/ou escuta dos contos de e/ou contá-las ao público infantil contos de fadas, e a forma como é
fadas possibilitam ao sujeito, sem a preocupação de explicá-las, apresentada nessas histórias, de
durante o seu desenvolvimento, a mas delegando à criança o papel acordo com vários estudos realiza-
realização da integração entre fan- de intérprete, de leitor criativo, de dos por psicólogos, antropólogos e

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psicanalistas, pode exercer A menina ontem e sora de Chapeuzinho Vermelho,
influências significativas na per- hoje Buarque (1998) apresenta uma
sonalidade e no comportamento menina medrosa ao extremo, que
de crianças, de adolescentes e, até Em relação à personagem consegue vencer seus medos sozi-
mesmo, de adultos. Personagens feminina representada por uma nha, à medida que se defronta
constantes dos contos de fadas e criança, nas várias histórias infan- com eles, sem a participação de
membros basilares da família, as tis – Chapeuzinho Vermelho, Cha- nenhum adulto. Ao contrário de
figuras femininas são responsá- peuzinho Amarelo, A fada que Chapeuzinho Vermelho, Chapeu-
veis, na maioria das vezes, por tinha idéias, Branca de Neve, Cin- zinho Amarelo torna-se uma meni-
grande parcela da educação das derela, João e Maria – em que na independente, criativa, curiosa,
crianças, podendo ser considera- esta aparece como protagonista, que gosta muito de brincar. Tem
das modelos a serem adotados. percebe-se a existência de algu- muitos amiguinhos e vive, real-
Na família nuclear as figuras mas semelhanças e diferenças em mente, como criança, sem interfe-
femininas são representadas pela relação ao papel desempenhado rência de figura masculina e/ou
filha (criança e adolescente), mãe pela menina, tanto no ambiente adulta.
e/ou madrasta. Ao comparar e familiar, quanto na sociedade em Vê-se nessa versão de Buarque
analisar as personagens femininas que está inserida. um contraponto, pois as meninas
dos contos de fadas tradicionais e Em Chapeuzinho Vermelho, dos contos tradicionais são trata-
contemporâneos, vários aspectos conto de Perrault, a personagem das como adultas em miniatura:
relacionados às diferenças e seme- principal é uma menina que deve aprendem a tecer, como a princesa
lhanças entre essas personagens ser obediente e boazinha. Os mes- de Cisnes Selvagens e, quando não
foram se desvelando. mos valores são transmitidos em são princesas, ajudam nos afazeres
contos como Branca de Neve e domésticos. Uma das poucas
João e Maria, dos Grimm, e Cin- semelhanças entre as personagens
derela, de Perrault. Como crian- crianças nos contos tradicionais e
ças, essas meninas devem apresen- contemporâneos é a curiosidade
tar o mesmo perfil: obedecer sem- apresentada por elas, com a dife-
pre aos adultos (mãe, pai, madras- rença de que a menina do conto
ta ou qualquer outro adulto), passi- contemporâneo pode satisfazer,
vamente, demonstrando bondade e sem culpa, suas curiosidades,
pureza de coração. Em todas essas enquanto a outra deve ser obedien-
histórias, as meninas são também te e recatada, sob pena de ser cas-
apresentadas como belas, frágeis e tigada. Os autores atuais não mais
dependentes. enfatizam a obediência aos mais
Já em Chapeuzinho Amarelo, velhos: as crianças são educadas
considerada uma versão transgres- de forma mais livre, não são passi-

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vas e discutem as ordens dadas Clara Luz consegue convencer a


pelos pais, apresentando argumen- Rainha da urgência na superação
tos para suas decisões. do sistema e da necessidade de
Outro autor que faz modifica- atualização.
ções radicais nos contos de fadas Mas existem ainda autores
tradicionais é Garner (1999). Ao uma fada criança chamada Clara que, em suas histórias, privilegiam
recontar a história de Chapeuzinho Luz. Esta, ao contrário das outras a figura masculina em detrimento
Vermelho adaptando-a aos tempos fadinhas, é desobediente, rebelde, da figura feminina. Um bom
atuais, descreve-a como uma mas muito esperta, além de curio- exemplo disso está em um dos
criança, além de independente, sa e criativa. Detesta a monotonia, contos de Gripari (1967), um autor
politizada, que no desenrolar da por isso sua mãe fica muito preo- francês contemporâneo. Em uma
narrativa, apresenta falas bem ela- cupada com seu comportamento. de suas mais famosas obras Con-
boradas, com uma postura liberta- Clara Luz quer aprender tudo, des- tes de La Rue Broca, o conto Scou-
dora e democrática, contrária a cobrindo e vivenciando, na práti- bidou, la poupée qui sait tout,
qualquer tipo de discriminação ou ca, os conhecimentos. Consegue apresenta uma boneca como per-
preconceito. No final da história, a mudar até o comportamento da sonagem principal. No entanto,
Vovó mata o lenhador e, juntamen- mãe, que também passa a se arris- Scoubidou, a boneca, exerce um
te com Chapeuzinho e o lobo, car, fazendo algumas mágicas por papel secundário e é sujeito passi-
vivem felizes para sempre. conta própria, sem consultar o vo durante o desenrolar dos acon-
Nos contos contemporâneos, livro considerado como guia enci- tecimentos, mostrando-se fragili-
algumas vezes, a menina até reali- clopédico das fadas. Clara Luz zada diante da figura masculina.
za algumas atividades domésticas, representa também a criança que, No estudo que Teodoro (1996,
como fazer bolo, por exemplo. consciente de sua inserção na p. 108) faz desse conto, mais uma
Mas isso é encarado por ela como sociedade, deve contribuir para vez, vê-se confirmada a desvalori-
algo prazeroso, como acontece em mudá-la, melhorando-a. Assim, ao zação da figura feminina: “Apesar
A fada que tinha idéias, de Almei- contrário dos contos de fadas tra- de antropomorfizada, Scoubidou
da (1976). Nessa história, da dicionais, nessa história, o grande não é o sujeito agente a quem se
mesma forma que em Chapeuzi- impedimento, a Fada Rainha, sím- atribuem proezas mirabolantes e
nho Amarelo, a intervenção da bolo da estagnação do poder, é aventuras fantásticas, assim, pode-
figura masculina no comporta- enfrentado através da intervenção ríamos afirmar que a ênfase maior
mento feminino também está humana e não com o auxílio da da ação volta-se para personagens
ausente. A personagem principal é magia. É através das idéias que masculinas”.

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A moça ontem e sido transformados em cisnes. A impor-se como alguém que pode
hoje jovem desses contos também é participar de decisões importantes
incapaz de sentir ódio ou rancor no Reino e, assim, contribuir para
Em relação à representação da por aqueles que a maltratam, como melhorar a sociedade da qual faz
personagem adolescente, na maio- Branca de Neve, dos irmãos parte. Agindo dessa forma, ela
ria dos contos de fadas tradicio- Grimm, e A Gata Borralheira, de demonstra que homem e mulher
nais, a situação não difere muito Perrault. Como personagens prin- podem ter direitos iguais e que,
daquela vivenciada pela persona- cipais dessas histórias, essas mo- juntos, podem chegar a um acordo.
gem criança. Fidalga ou princesa, ças são vítimas de inumeráveis Essa personagem mostra também
a adolescente submete-se aos maldades de suas madrastas, mas que a mulher pode ser tão compe-
desejos do pai. É este quem lhe as perdoam, demonstrando, com tente quanto o homem, desde que
escolhe o marido, e a moça aceita- isso, não sentirem ódio e possuí- se prepare para tal.
o passivamente. Ela é, muitas rem pureza de coração. Ainda, em O príncipe desen-
vezes, oferecida como prêmio pela Já em alguns contos atuais, cantado, Lima (1995) mostra as
morte de alguma fera ou gigante como em O casamento do rei, Bel- figuras feminina com menos pre-
que ameaça o Reino, como na his- vedere (1986) nos conta a trajetó- conceito: primeiro, na personagem
tória As aventuras de Mata Sete, ria de um rei que quer se casar e, de uma fada negra, que surpreende
de Bechstein, ou salva por um então, manda buscar princesas em o príncipe, pois ele somente
príncipe, com um beijo, tal qual muitos lugares, até que encontra a conhece fadas brancas, de olhos
em A bela adormecida, de Per- que lhe agrada. Porém, a princesa claros; segundo, numa princesa
rault. Isso significa que, de qual- escolhida demonstra que, apesar rebelde, arrogante, negando-se
quer forma, o destino da mulher – de ter também gostado do rei, não diante do pai a ser prêmio pela
criança, adolescente, fidalga ou aceitará nenhuma ordem dele e faz morte do dragão; e, por último, no
princesa – está nas mãos dos questão de que ele seja gentil e papel de uma jovem descrita como
homens. educado com ela e com as outras inteligente, criativa, educada, co-
A mulher assim representada é pessoas. Essa jovem surpreende a rajosa, independente e, além disso
bondosa, bela, ingênua, frágil mas todos, inclusive ao rei, quando dis- tudo, muito bela, que vive sozinha
decidida a realizar qualquer sacri- pensa luxos e gastos supérfluos na floresta e por quem o príncipe,
fício para salvar seus entes queri- com a festa de casamento e preo- disfarçado em um simples cavalei-
dos, como em Os Cisnes Selva- cupa-se com o bem-estar do povo. ro, se apaixona.
gens, de Andersen, em que a Representando a figura feminina Em O espelho mágico, de Jun-
jovem princesa se propõe a fiar que não quer apenas se passar por queira (1986), a figura feminina
túnicas de urtiga, ferindo as mãos, bela, gentil e educada, tornando-se também é representada por uma
sem falar, enquanto não terminas- simplesmente um objeto de reali- personagem inteligente e criativa.
se de tecer todas as túnicas para zação amorosa do rei, a princesa, Nessa história, a princesa é quem
salvar seus irmãos que haviam num tom de protesto, consegue escolhe o seu futuro marido e,

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quando se apaixona por um dos


pretendentes, dá-lhe várias oportu-
nidades de vencer o desafio pro-
posto por ela, em troca de sua
mão; o desafio é o seguinte: o pre-
tendente tem que se esconder de
tal maneira que a princesa não
consiga encontrá-lo com seu espe-
lho mágico, que à noite, horário
em que se realiza a prova, mostra
todos os lugares do reino, mesmo tura entre amor e sexo. Quando acima citados, como a beleza e a
aqueles que não estejam à sua dois jovens se apaixonam – a lite- bondade, ainda são bastante valo-
frente. ratura tradicional só trata dos rela- rizados pelos escritores. Porém,
Nesses contos, pode-se obser- cionamentos entre um homem e estes apresentam ao leitor outros
var as diferenças entre o compor- uma mulher – os sentimentos de tipos de beleza, procurando não
tamento das jovens personagens amor são glorificados e estão sem- padronizá-la, como faz Lima
das histórias tradicionais e das pre associados à idéia de eternida- (1995) ao criar suas personagens:
contemporâneas. de e fidelidade. Em relação à a fada negra e a jovem morena,
Nas histórias tradicionais a sexualidade há um mutismo total, por quem o príncipe se apaixona.
jovem, além de não ser rebelde, sendo que na maioria dos contos Ambas são descritas como muito
precisa se comportar como uma em que a personagem principal é belas, apesar de não possuírem a
verdadeira adulta, assumindo res- uma jovem, esta é designada como pele branca e os olhos azuis. Em
ponsabilidades, como casamento e donzela, apontando para o leitor a relação ao comportamento, na
filhos. Em nenhum momento, grande importância outorgada à maioria dos contos atuais, a
porém, há indícios de que essas virgindade. Nesses contos, as qua- jovem não se sente fragilizada,
moças recebam orientações para lidades exigidas das mulheres são nem dependente da figura mascu-
assumir tais responsabilidades. a beleza, a modéstia, a pureza, o lina. Ao contrário, quer apresen-
Além disso, no desenrolar da nar- recato e, principalmente, a sub- tar-se sempre em uma relação de
rativa, não há menção alguma a missão à figura masculina. igualdade com o homem, o que
relações sexuais, o que mostra a Em comparação com os con- demonstra um avanço em termos
atitude repressiva frente a esse tos tradicionais, nas histórias de preconceitos contra a mulher.
assunto, apontando para uma rup- atuais, alguns desses aspectos Alguns autores contemporâneos,

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como Lima (1995), já mencio- A mãe mudou? mães de Ariel, de Pinsky (1980).
nam, em suas histórias, aspectos Aqui Ariel pensa ter mais de uma
que demonstram a presença da Apesar de, na maioria dos mãe, pois a imagem da mãe se
relação sexual associada ao senti- contos, as personagens femininas multiplica, uma vez que é relem-
mento de amor. Lima (1995) faz – criança, adolescente – serem brada tanto a figura compreensiva
isso quando narra que o príncipe, possuidoras de grandes virtudes, e amorosa como a irritada e distan-
ao se levantar cedo no dia seguin- de forma geral, quando se trata da te, que se vê dividida em vários
te ao seu casamento, teria que mãe, não se dá ênfase a essa figu- papéis: “É que é muita coisa para
enfrentar o dragão e estava muito ra, deslocando-se o enfoque para a uma mulher só. Emprego, casa,
cansado para isso, pois quase não filha ou filho, personagens princi- dentista, vaso entupido, festa. É
havia dormido, devido à longa pais das histórias. Em muitos con- muita coisa prá pouca mãe. Pensa
noite de amor que tivera com sua tos – A Gata Borralheira; Branca e ri”. (Pinsky, 1980, p. 26).
amada. de Neve; Os Cisnes Selvagens; Khéde, ao analisar esse texto
O filme Shrek, de Vicky Pele de Asno; O pássaro Azul; Fúl- de Mirna Pinsky, aponta o novo
(2001), lançado também em VHS via, a corça e o Gatinho – a mãe conceito de mãe, na sociedade
e DVD, apresenta uma adaptação morre quando a criança é ainda atual:
de um conto de fadas em que o bebê, e sua imagem é sempre con-
autor mistura aspectos dos dois figurada como bondosa, bela e É ao encenar as relações
tipos de narrativas – tradicionais e carinhosa. Em outros, a mãe de Ariel e sua mãe, tanto por
atuais. Trata-se da história de uma demonstra preocupação e carinho intermédio da ação das perso-
princesa que é enfeitiçada por uma por seus filhos, como em O Peque- nagens, como por meio de um
bruxa e é encerrada, por esta, no Polegar, O Bom Carlinhos e confronto dos discursos narra-
numa torre de um castelo muito Chapeuzinho Vermelho. tivos, que o texto introduz sua
distante, vigiado por um dragão. No entanto, em grande parte temática e polemiza um valor
Durante o dia, a jovem é bela e, à da literatura infantil contemporâ- consagrado. Demonstra o
noite, transforma-se em ogro. Essa nea, pode-se notar, de modo geral, equívoco de um clichê – o que
princesa passa os dias a esperar que a mãe aparece como a grande de mãe só tem uma; e afirma
por um cavaleiro que mate o dra- responsável pela administração do que, mesmo sem serem confli-
gão, liberte-a da torre e recite-lhe lar: leva os filhos para a escola, tuosos, os contatos intrafami-
poesias. Mesmo demonstrando ensina os deveres de casa, prepara liares não são preestabeleci-
que é capaz de se defender sozi- a comida e arruma a casa. De- dos, nem constantes ou homo-
nha, pois luta com vários homens e monstra preocupação com cuida- gêneos. (Khéde, 1986, p. 24)
os vence, ela se vê dependente da dos sobre a educação dos filhos,
figura masculina para quebrar-lhe como em O pássaro de ouro, de De acordo com a análise de
o feitiço através de um beijo de Belmonte (1978), e com a vida todos esses contos – tradicionais e
amor. profissional, como em As muitas contemporâneos – a personagem

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que representa a mãe é completa- Khéde, analisando o relato de Maldades e feiúras


mente desprovida de sensualidade, Pinsky, resume o papel de mãe na
e os autores nada mencionam a sociedade contemporânea, da Dentre todas as personagens
respeito desse aspecto. Mas, atra- seguinte forma: analisadas – criança, adolescente,
vés de comparações entre o papel mãe – a madrasta ocupa um lugar
desempenhado pela figura mater- ... a preocupação maior do de destaque, principalmente, nos
na nas histórias infantis e a obser- relato: a polemização de um contos tradicionais. A sua atuação
vação do comportamento de algu- conceito cristalizado de mãe, é que faz ressaltar o papel da
mas mães no cotidiano da “vida que ocasiona um intercâmbio mocinha (enteada), conseqüente-
real”, pode-se inferir que a “– mu- particular entre pais e filhos. mente, provocando, no leitor, um
lher-mãe”, de alguma forma, inter- Pois, de um lado, ele nega a maior interesse pela história, pois
nalizou valores que são considera- existência de uma conduta quando a enteada consegue livrar-
dos como próprios de sua figura. fixa e acabada para a mulher, se das maldades da madrasta é
Assim, julga não precisar ser de outro, constata a determi- considerada heroína, e ganha, por
atraente nem sedutora, uma vez nação exterior de um modelo isso, o enaltecimento de todas as
que já conquistou um marido. atuacional, no relacionamento suas qualidades.
Suas atenções, então, se voltam entre mãe e filho, interferindo As madrastas de Branca de
para cuidados em relação aos no contexto familiar. É essa Neve, dos Grimm, A Princesa e os
filhos, à casa, ao esposo e ao tra- norma que preside a noção de Sete Cavaleiros, de Puchkin, ver-
balho, quando exerce alguma ati- mãe promovida pela socieda- são russa de Branca de Neve, Fúl-
vidade profissional. de e reforçada pelas institui- via, a Corça e o Gatinho, da Con-
Mesmo trabalhando fora, o ções – noção esta que a define dessa de Ségur, O Pássaro Azul, de
papel da mãe atual apenas se como um ente peculiar no Mme d’Aunay, Os Cisnes selva-
amplia em relação ao da mãe dos ambiente doméstico, devido as gens, de Andersen, e de A Gata
contos tradicionais, pois ela adqui- suas atribuições específicas. Borralheira, de Perrault, apresen-
re maiores responsabilidades, (Idem, p. 23) tam as mesmas características.
segundo Pinsky (1980). São personagens representadas
por mulheres egoístas, prepotentes
que, embora belas fisicamente,
demonstram uma inveja incontro-
lável por suas enteadas, também
extremamente bonitas. Como vin-

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gança, querem sempre dominar beleza versus feiúra – a criança ria desses contos, pois é malvada
tudo e todos, não admitindo serem poderia internalizar uma imagem ao extremo, chegando a mandar
superadas em nada, principalmen- falsa a respeito das pessoas, basea- matar quem se torna obstáculo
te, na beleza. A madrasta é uma da apenas na aparência. Mesmo para suas realizações. Assim acon-
figura poderosa, possuindo, em que essa concepção, para a crian- tece em Branca de Neve: a
muitas histórias – Branca de Neve; ça, seja passageira, essa estigmati- madrasta manda um criado matar a
Os Cisnes Selvagens; dentre outras zação da personagem/mulher feia, enteada e levar-lhe o coração.
– poderes de bruxa. E, por isso, nos contos infantis, revela a pre- Nos contos citados, todas as
apesar de ser configurada como sença de mais um preconceito madrastas são temidas e obedeci-
bela, em alguns momentos, quan- sobre a figura feminina: a obriga- das fielmente por suas enteadas. E,
do está fazendo maldades, torna-se ção de ser bela. Coitadas das feias! através da leitura de João e Maria,
feia, pois transforma-se em bruxa. Mesmo possuindo qualidades nota-se que não só as madrastas
Essa ambivalência feio versus seria difícil poder demonstrá-las. ricas possuem essas característi-
bonito permeia a maioria dos con- O filme Shrek também aborda a cas, mas também as pobres. Nessa
tos infantis, em que a beleza das questão da aparência, quando o história, um pobre lenhador casa-
personagens está associada às suas protagonista, um ogro chamado se em segundas núpcias para poder
qualidades, como bondade e pure- Shrek, conversando com seu educar melhor os filhos, mas sua
za de coração, enquanto à feiúra amigo Burro, reclama que todos esposa detesta os enteados. Para se
unem-se os sentimentos negativos fogem dele com medo e que o jul- ver livre deles, convence o marido
de inveja e maldade. A moura torta gam sem conhecê-lo só porque é a abandoná-los na floresta, pois
e As fadas são histórias que exem- feio. diante da precariedade da situação
plificam bem essa divisão ao apre- Retomando a análise da perso- financeira familiar, além de não
sentarem personagens femininas nagem madrasta, pode-se dizer querer dividir a atenção do marido
belas e feias, caracterizando as ainda que, nos contos de fadas tra- com os filhos, também não quer
belas como obedientes, bondosas, dicionais, é uma figura feminina dividir, com eles, a pouca comida
ingênuas e as feias como maldosas que apresenta características bem que lhes resta. Desse modo, mais
e egoístas. diferenciadas das demais persona- uma vez, a personagem madrasta é
Essas associações entre bele- gens femininas, pois, em muitos configurada de forma negativa.
za/qualidades e feiúra/defeitos são casos, consegue dominar a figura Rica ou pobre, ela é sempre repre-
preocupantes, devido ao fato de masculina, enganando-a e obtendo sentada como má, egoísta e domi-
que o leitor, principalmente, na tudo o que deseja, demonstrando nadora.
infância, pode mudar ou adquirir força, iniciativa e independência Essa configuração negativa da
comportamentos a partir da em relação aos seus domínios. personagem madrasta ainda se faz
influência de textos que lê e/ou Além disso, quando é apresentada presente na maioria dos contos de
ouve. Dessa forma, em relação aos como bela, contraria a associação fadas atuais. Por isso, alguns pro-
aspectos acima mencionados – beleza/bondade realizada na maio- fessores de português acreditam

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que as histórias infantis sejam as próprio nome. Os enteados, por para que elas, através do sacri-
grandes responsáveis pelo signifi- sua vez, também refutam a palavra. fício, aprendam a dar valor à
cado negativo da palavra madrasta. Alguns escritores tentam vida que possuem.
Segundo a lingüista Nelly Car- amenizar a imagem da madras- Percebe-se que, apesar de
valho, citada por Galvão (1999), a ta, dentre eles Belvedere (1986) todos os protestos em relação à
palavra madrasta já vem carregada ao contar a história Um amor de utilização da palavra madrasta,
de tom pejorativo, pois, no imagi- Cinderela. Apesar de comparar devido ao seu significado negati-
nário popular, ela já está consoli- a madrinha da menina a uma vo, ainda existem autores de con-
dada pela imagem de uma mulher madrasta dos contos de fadas tos de fadas contemporâneos que
malvada. tradicionais, pois Dona Mastro- preservam a imagem da madrasta
Essa afirmativa se justifica, gilda obriga a afilhada a fazer dos contos de fadas tradicionais,
talvez, pelo fato de que, até mea- todos os trabalhos domésticos, ou pelo menos alguns aspectos de
dos do século XX, as separações no final da história se revela sua personalidade. Talvez isso
eram muito raras e o pai só se casa- que, mesmo aplicando maus ocorra devido ao desejo da criança
va novamente quando enviuvava. tratos à garota, a madrinha lhe de dar solução aos seus conflitos
Hoje em dia, como as separações quer bem e reza para que sua associados à relação mãe/filho. É
estão cada vez mais constantes, o afilhada seja feliz. Dessa forma o que explica Bettelheim (1980):
pai casa-se de novo e, muitas ambígua, muda um pouco a
vezes, leva os filhos do primeiro imagem da madrasta, atribuin- a divisão típica do conto de
casamento para morar com ele e do-se-lhe, também, bons senti- fadas entre a mãe boa (normal-
sua nova esposa. E o que parece mentos. Com esse desfecho, a mente morta) e uma madrasta
estar acontecendo, atualmente, é narrativa sugere que todo o malvada é útil para a criança.
uma rejeição da palavra “madras- rigor utilizado pela madrinha, Não é apenas uma forma de
ta”, que é substituída por “namo- na educação da afilhada, tinha preservar a mãe interna total-
rada do pai”, “minha outra mãe” por finalidade contribuir para mente boa, quando na verdade
dentre outras denominações. sua formação. Isso demonstra a mãe real não é inteiramente
De acordo com Galvão que alguns adultos ainda consi- boa, mas permite à criança ter
(1999), as esposas dos pais deram correta uma educação raiva da “madrasta” malvada
têm recusado a denominação baseada em maus tratos e casti- sem comprometer a boa vonta-
“madrasta” e querem ser cha- gos, por pensarem que, agindo de da mãe verdadeira que é
madas, pelos enteados, por dessa maneira, estarão moldan- encarada como uma pessoa
“mãe” ou simplesmente pelo do a personalidade das crianças, diferente. (p.86)

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Considerações finais Acredito que não serão neces- frente ao mundo masculino, esse
sários cem anos mais para que a conteúdo pode ser bem trabalhado
Atualmente, segundo Teodoro mulher seja respeitada como cida- pelos pais e, principalmente, pelos
(1997), muitos autores de textos dã, independentemente de ques- professores. Que eles apresentem
infantis, através da literatura, ten- tões de gênero, pois estamos pas- às crianças narrativas diversifica-
tam criar um espaço harmonioso sando por uma fase de transição. E, das, de forma que elas possam
entre a criatividade e as relações apesar de ainda existirem alguns estabelecer comparações entre os
da criança com o mundo. Nessa autores contemporâneos repetindo valores transmitidos através dessas
linha, encontram-se, por exemplo, muitos preconceitos dos contos de leituras e os percebidos nas várias
Nunes (1978), Almeida (1976) e fadas tradicionais, considerados informações que recebem no seu
Lago (1995), que tornam o espaço ultrapassados, como, por exemplo, dia-a-dia, fazendo, assim, suas
literário o lugar da diversão, da a passividade da figura feminina opções de vida. •
magia e da reflexão.
A literatura infantil, ao ocupar Referências bibliográficas/ Sugestões de leitura

o lugar da reflexão, estará contri- ALMEIDA, Fernanda Lopes. A fada que tinha idéias. São Paulo: Ática, 1976.
buindo para amenizar e, quem ANDERSEN, Hans Christian et al. Enciclopédia da fantasia - São Paulo: Gegraf S. A.
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v.8 n.48 • nov./dez. 2002 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 21

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