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Antero e os cavaleiros da modernidade

Os vencidos

1 Três cavaleiros seguem lentamente


2 Por uma estrada erma e pedregosa.
3 Geme o vento na selva rumorosa,
4 Cai a noite do céu, pesadamente.

5 Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,


6 Têm os corcéis poentos e abatidos,
7 Em desalinho trazem os vestidos,
8 Das feridas lhes cai o sangue, em gotas.

9 A derrota, traiçoeira e pavorosa,


10 As frontes lhes curvou, com mão potente.
11 No horizonte escuro do poente
12 Destaca-se uma mancha sanguinosa.

13 E o primeiro dos três, erguendo os braços,


14 Diz n’um soluço: “Amei e fui amado!
15 Levou-me uma visão, arrebatado,
16 Como em carro de luz, pelos espaços!

17 Com largo vôo, penetrei na esfera


18 Onde vivem as almas que se adoram,
19 Livre, contente e bom, como os que moram
20 Entre os astros na eterna primavera.

21 Por que irrompe no azul do puro amor


22 O sopro do desejo pestilente?
23 Ai do que um dia recebeu de frente
24 O seu hálito rude e queimador!

25 A flor rubra e olorosa da paixão


26 Abre lânguida ao raio matutino,
27 Mas seu profundo cálix purpurino
28 Só ressuma veneno e podridão.

29 Irmãos, amei - amei e fui amado...


30 Por isso vago incerto e fugitivo,
31 E corre lentamente um sangue esquivo
32 Em gotas, de meu peito alanceado.”

33 Responde-lhe o segundo cavaleiro,


34 Com sorriso de trágica amargura:
35 “Amei os homens e sonhei ventura,
36 Pela injustiça heróica, ao mundo inteiro.

37 Pelo direito, ergui a voz ardente


38 No meio das revoltas homicidas:
39 Caminhando entre raças oprimidas,
40 Fi-las surgir, como um clarim fremente.
41 Quando há de vir o dia da justiça?
42 Quando há de vir o dia do resgate?
43 Traiu-me o gládio em meio do combate
44 E semeei na areia movediça!

45 As nações, com sorriso bestial,


46 Abrem, sem ler, o livro do futuro.
47 O povo dorme em paz no seu monturo,
48 Como um leito de púrpura real.

49 Irmãos, amei os homens e contente


50 Por eles combati, com mente justa...
51 Por isso morro à míngua e a areia adusta
52 Bebe agora meu sangue, ingloriamente.”

53 Diz então o terceiro cavaleiro:


54 “Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo.
55 Fiz do seu nome fortaleza e escudo
56 No combate do mundo traiçoeiro.

57 Invoquei-o nas horas afrontosas


58 Em que o mal e o pecado dão assalto,
59 Procurei-o, com ânsia e sobressalto,
60 Sondando mil ciências duvidosas.

61 Que vento de ruína bate os muros


62 Do templo eterno, o templo sacrossanto?
63 Rolam, desabam, com fragor e espanto,
64 Os astros pelo céu, frios e escuros!

65 Vacila o sol e os santos desesperam...


66 Tédio ressuma a luz dos dias vãos...
67 Ai dos que juntam com fervor as mãos!
68 Ai dos que crêem! Ai dos que inda esperam!

69 Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...


70 Por isso vago sem conforto e incerto,
71 Arrastando entre as urzes do deserto
72 Um corpo exangue e uma alma moribunda.”

73 E os três, unindo a voz n’um ai supremo,


74 E deixando pender as mãos cansadas
75 Sobre as armas inúteis e quebradas,
76 N’um gesto inerte de abandono extremo,

77 Sumiram-se na sombra duvidosa


78 Da montanha calada e formidável,
79 Sumiram-se na selva impenetrável
80 E no palor da noite silenciosa.

O poema tem uma estrutura primária bem simples, que se manifesta ao longo de
todo o texto: um sujeito quer algo e para isso realiza uma ação, contudo, esse ato não dá o
resultado esperado. Além disso, se percebe que é um texto figurativo: o mundo medieval
criado expressa uma visão da sociedade portuguesa do séc. XIX, uma sociedade atrasada em
vez de moderna. Os cavaleiros aparecem como uma figura dos agentes transformativos, que
trariam mudanças nessa sociedade, porém não tem êxito, essa sociedade não permite
mudanças, assim, os cavaleiros aceitam esta realidade vendo o presente como um tempo que
passa lentamente, em gotas, e cujo único futuro, horizonte, agora sombrio, é a morte.
Agora, vamos nos deter ao modo como o autor concretizou o texto. Assim como
há três cavaleiros, o poema se divide em três partes. A primeira parte é formada pelas três
estrofes iniciais, do verso 1 ao 12; a segunda parte se compõe da segunda estrofe até a
antepenúltima, do verso 13 ao 72; por fim, a terceira parte, as duas estrofes finais, do verso
73 ao 80. Chamaremos a primeira parte de quadro, a segunda de lamento e a última de
abandono.
No quadro, há a descrição do ambiente e dos personagens, pelo enunciador, no
aqui e agora, num presente que ocorre simultaneamente com a enunciação, daí o uso de
verbos no presente: “seguem” (verso 1), “vacilam-lhes” (verso 5), “destaca-se” (verso 12).
Entretanto, as três estrofes não atuam da mesma forma, possuindo três movimentos distintos,
na primeira uma visão geral do ambiente e personagens, na segunda uma visão detalhada dos
personagens, e, por fim, a explicação da situação dos cavaleiros (versos 9 e 10) seguida de
numa nova ambientação (versos 11 e 12). Além disso, se encontra duas formas diferentes
dessa caracterização e ambientação: uma objetiva (exemplos: versos 1, 2) e outra
expressionista (exemplos: versos 3, 4).
Ao longo das três estrofes, há uma dialética do expressionismo, culminando com
o auge deste. Nas primeiras estrofes, a ambientação é descrita pelo enunciador
“romanescamente”, o ambiente entra em conformidade com os personagens, estes
moribundos e tristes, estão numa “selva rumorosa” (verso 3), no crepúsculo, quase como um
reflexo dos personagens, tanto que o ambiente “geme” e “cai” (versos 3 e 4) e se mantém uma
divisão entre seres e ambientação (divisão dos versos 1 e 2),além disso, o ambiente se divide
em terrestre (versos 3) e astral (verso 4). No fim da última estrofe, a ambientação passa a ser
uma continuação dos personagens ou vice-versa, assim, o horizonte dos versos 11 e 12 se
apresenta com uma “mancha sanguinosa”, da mesma forma que os cavaleiros que estão
sangrando (verso 8).
Esse expressionismo atinge o grau máximo no abandono, a última parte. Aqui, os
três cavaleiros “unem a voz num ai supremo” (verso 73), deixam de ter singularidade, passam
a uma homogeneidade: são um só. Da mesma maneira, na última estrofe, os personagens
“somem no ambiente” (versos 77 e 79), ou seja, não se diferenciam do meio, não há
diferença, tudo é um só conjunto. O mesmo ocorre com o ambiente que era divido em
terrestre e astral: no quadro havia uma clara divisão, aqui, tudo se apresenta como uma
“sombra duvidosa” (verso 77), em que reina o silêncio. Nem mesmo existe horizonte, todo o
agora e o além é escuridão. Há um abandono total do presente, assim como de qualquer
perspectiva de mudança e de esperança de um futuro progressista.
Entre essas duas partes, há o lamento, a transição. É aqui que o enunciador que
estava por trás da narração, que via e sabia tudo (verso 9 e 10), dá a palavra aos cavaleiros.
Podemos perceber nessa parte a estrutura primária já citada. Além disso, os três cavaleiros,
apesar das diferenças, também compartilham a mesma estrutura secundária: cinco estrofes
que seguem a ordem: ação, modo da ação, resultado da ação, reflexão sobre o tema, reflexão
sobre si. As duas estruturas não se realizam separadamente, a estrutura primária se
concretizada com a secundária.
O primeiro cavaleiro é o romântico, aqui, o sujeito quer algo, alcançar o “amor
verdadeiro”, assim, realiza o ato “amar”, porém a ação não dá o resultado desejado. A
figurativização desse esquema se mostra como um combate, assim como nos outros
cavaleiros, em que o cavaleiro deve derrotar o inimigo a fim de alcançar seu objetivo. Aqui,
seu inimigo não é uma figura, mas um tema: a paixão. Temos então o combate: cavaleiro x
paixão, na qual o personagem sai derrotado (verso 31 e 32). Por fim, reflete sobre o tema
(versos 25 ao 28) e sobre si (29 ao 32). Encerra sua fala reconhecendo sua derrota, e vê seu
estado atual como consequência da realização do ato “amar”.
A base, exposta no primeiro cavaleiro se repetirá nos restantes. O segundo
cavaleiro é o revolucionário. O personagem quer a igualdade entre os homens, “sonha ventura
ao mundo inteiro”, daí, realiza atos pela “justiça heroica”, mas não são suficientes para
alcançar seu objetivo. Temos o combate entre o cavaleiro x sociedade. O cavaleiro busca a
igualdade entre os homens, pela reflexão e argumentação, a “voz” que se figuratiza no
“gládio”, e não pela violência, porém não consegue, pois o “povo” está num estado de
letargia, assim, “semeou na areia movediça”, em uma alusão a parábola do semeador presente
na Bíblia. Já o terceiro cavaleiro é metafísico, o crente. O sujeito quer manter a crença em
algo além do material, logo, realiza o ato de por “alma e tudo”, mas, novamente, o resultado é
ingrato. Há o combate entre o cavaleiro x realidade material. As expressões são menos
materiais, “pecado”, “vento de ruína”. Deus, que aqui é uma figura para qualquer coisa que se
crê, seja religião, progresso histórico, etc, entretanto, não dá sinais de sua existência, dessa
forma, o cavaleiro deixa de crer em algo além do físico. Os três cavaleiros, a modernidade
figurativizada são derrotados pela sua realidade, a sociedade portuguesa do séc. XIX.
Agora, faremos uma análise, do efeito desse “mundo de Antero”. O texto foi
escrito em 1886, na modernidade, contudo, Antero descreve um mundo medieval com
cavaleiros que se mostram como o inverso do que comumente imaginamos e que nos é
contado, “vitorioso, nobre e elegante”. Relacionando essa figura, a estrutura do texto, com a
sociedade portuguesa do século XIX, se pode pensar que essa sociedade, em vez de moderna,
seria medieval. Dessa maneira, as mudanças sociais e econômicas ocorridas em toda a Europa
nesse período, entrariam em contraste com a portuguesa, que estaria atrasada, estática. Por
isso o texto insiste na lentidão do tempo presente (versos 1), assim como o uso de expressões
como “ressuma” e “em gotas”. Os cavaleiros seriam os agentes da transformação da
sociedade portuguesa, contudo todas as tentativas de mudança não trazem resultados. A
sociedade portuguesa do séc. XIX não aceita a mudança, seria impossível de transformação,
assim como a medieval, daí o uso de “raças” (verso 39), no lugar de classes, ou seja, eram de
natureza distinta, sem possibilidade de ascensão. Dessa forma, os cavaleiros da modernidade
não veem nenhuma esperança de mudança, vendo o presente como um tempo que passa
lentamente e cujo único horizonte é a morte. Contudo, Antero não se metamorfoseia em um
cavaleiro, ele permanece distante como enunciador, e os abandona no fim do poema,
deixando-os seguir pelas sombras, na escuridão e no silêncio. Fica a pergunta: Antero também
é um derrotado que assim como os cavaleiros abandona tudo, inclusive a narração, e toda
possibilidade de mudança ou apenas abandona os cavaleiros e suas perspectivas de
impossibilidade de transformação¿

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