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CRÔNICAS - TURMA C0

CRÔNICA 1:

Mulher é tudo igual. Chorona, brava, dirige mal, quer ser mãe. Tudo igual, né? É uma massa sem forma
completamente igual. Tudo igual. Tá com raiva? É a menstruação. Identidade? Não precisa disso não, menina! Elas
agem da mesma forma, sempre. A gente olha para uma e vê a outra, né? Já que é tudo igual. Sentimento? Ah, tem
demais pois é tudinho igual! Eu já te disse!
Eu mesma entro no banheiro da universidade e não enxergo a diferença em nenhuma. Aquela porta de vidro
meio fosca, sabe? Ela mostra todo mundo igual, como sempre ouvi dizer que somos. É só um formato ali que é igual
ao formato da cabine do lado. Às vezes um pouquinho mais alta, mais gorda, com a pele mais escura, mas mesmo
assim não tem como pensar que há diferença. Mulheres sendo diferentes? Piada, menina. É tudo igual. Ok... a
aparência pode mudar, mas isso quer dizer o que? Nada! É tudinho igual, eu escuto desde pequena isso, oxe.
Agora você quer dizer que tem diferença? Pois, aqui do banheiro, enquanto eu tô parada olhando tá tudo
igual. Uma massa sem forma definida, mas que eu tenho certeza que é igual. Às vezes tentam me dizer que não, é
tudo igual não. Pegam aquele negócio de identidade e dizem que existe sim. Existe? Então, por que ninguém me
deixar mostrar a minha? Tem uma amiga minha que também ia gostar de mostrar a dela. Esse negócio de identidade
podia até ser interessante.
Imagina só, um monte de mulher andando na rua e a gente conseguindo enxergar as diferenças. Não só
física, né menina! Mas imagina todo mundo reconhecendo que a gente tem voz. Vixe Maria, seria um negócio muito
doido, quem sabe até bom. E imagina se alguém chegasse para dizer que as diferenças físicas dão as características
de um negócio que o povo chama de militância. Uma vez eu ouvi falar dessa palavra enquanto tava no corredor da
minha aula, eu acho que significa isso daí que eu disse mesmo, tenho certeza não por que ninguém fala sobre isso
para mim. Acho que se falassem seria meio estranho.
Mais estranho seria se dissessem para a gente resgatar a nossa identidade. Ouvi um negócio assim dia
desses quando tava chegando em casa, eram duas meninas conversando e até que ela não pareciam iguais. Tava
sol demais, então eu andei mais rápido e acabei não entendendo a conversa. Era uma ruazinha do lado da minha
casa e me pergunto se eu deveria ter parado, eu poderia tentar entender, né.
Ah, mas seria absurdo demais depois de tanto tempo sem voz, alguém dizer que a gente pode se sentir
diferente da menina que tá na cabine da frente. Tem isso de identidade não… ou eu acho que não tem. Agora, lá no
fundo, bem escondidinho, eu tenho um pensamento sobre como seria alguém conversando comigo sobre tudo isso
aí. Dizendo que as mulheres são diferentes. Não só de sentimento, né. Mas sobre ter mulher branca, negra e
indígena. Será que vão acreditar que a vida delas é diferente da minha, que sou branca, ou vão dizer de novo que
mulher é tudo igual?
Eu sempre achei que era diferente, mas ô vergonha que eu tenho de dizer. Se alguém chegar para mim e
disser que eu posso falar que mulher não é tudo igual eu vou ficar feliz que só, visse? Imagina falar que eu, mulher
gorda, enxergo umas diferenças no tratamento das mulheres pelo corpo, ou então minha amiga preta falar que vê
que o mundo a trata diferente por conta da cor. Menina, que imaginação doida a minha. Acho que isso pode ser
possível para umas pessoas, né. Mas para mulher não, afinal é tudo igual!
CRÔNICA 2:

O fantasma dos tempos modernos

Em um dos quase infinitos prédios altos da zona norte, clichê da classe média do Recife, o menino esperava seu
uber num fim de tarde de domingo para encontrar os amigos num happy hour. Enquanto esperava na portaria, depois
de ter conversado com o porteiro sobre a derrota do time do coração, viu um homem mais velho, já coroa, uns 50 e
tantos anos, se aproximando do portão. Olhou o cara de cima abaixo, depois de baixo pra cima. Franziu a testa,
semicerrou os olhos… Parecia que estava de frente com o inimigo - inimigo esse com quem, muito provavelmente,
compartilha das áreas comuns do edifício.

O coroa em questão passou pelos três portões (porque não dá pra brincar com a violência do Recife, né) e deu um
“boa tarde” animado, com um sorriso que ia de orelha a orelha. O menino, desconfiado, respondeu num tom quase
inaudível. Explico: o cara vestia uma camisa com os dizeres “Bolsonaro presidente” logo abaixo de uma imagem do
“mito”.

O cenário dessa cena só combinaria mais com a situação toda se fosse num prédio da Avenida Boa Viagem. Mas
nesse sentido a zona norte não fica muito atrás, não. Lá tinha panelaço igual. Por que então o menino ficou tão
surpreso, meio pálido, meio suando frio, boca seca, parecendo que tinha visto um fantasma? Se tivessem se
encontrado no elevador, provavelmente conversariam sobre o calor ou a chuva, futebol ou o aviso convocando uma
reunião de condomínio colado no espelho.
Eis então que o homem, em vez de passar direto, parou na portaria pra conversar com o porteiro. Poderia ter falado
sobre o calor, futebol ou a reunião de condomínio, mas falou sobre política. “Por que, meu Deus? Dai-me paciência”,
pensou o menino. Devia ter feito algo terrível e agora estava sendo castigado. Cadê esse uber que não chega?

“As pessoas falam de intolerância, mas os intolerantes são eles! Esses esquerdistas de merda, petistas cegos,
massa de manobra. Pensam que os políticos se importam com eles. Que nada! Só dão essas bolsa-esmola pra
ganhar voto, só isso! Já já não existe mais homem que é homem de verdade nesse mundo, sei não…”.

O uber chegou. O menino, que ouviu esse discurso de cabeça baixa e mordendo o lábio para não responder ao
senhor, saiu quase correndo. Atravessou os três portões até a rua, entrou no carro meio ofegante, fechou os olhos e
respirou fundo. Uma, duas, três vezes. A agonia não passava. “Pro espinheiro, né?” perguntou o motorista, e o
menino só assentiu. Nem conseguia falar. As palavras do coroa bolsominion ainda ecoavam na cabeça. Como assim
“intolerantes são eles, os esquerdistas” se é o candidato do homem que fala que gay tem que apanhar mesmo, que é
a favor da tortura e faz arminha com a mão? E o sorriso do cara? É o retrato do patriarca da família tradicional
brasileira. Ele deve achar que os três portões não são suficientes. Mas medo mesmo teve o menino, e olhe que ele
estava do lado de dentro.
CRÔNICA 3:

Nos últimos dias tenho pensado constantemente em temáticas para os trabalhos acadêmicos, visto que são
tantos. Em uma conversa com um dos professores, recebi um conselho: “não há nada melhor que janela do ônibus
para pensar” e foi assim que o transporte público voltou novamente para as minhas pautas. Temática recorrente nos
causos diários que conto nas redes sociais, falar de ônibus é falar sobre o lugar onde passo 1/3 da minha vida
(porque, infelizmente, já não passo mais tanto tempo assim em um colchão).

Há um tempo, meu despertador tocava precisamente às 05:15 da manhã e eu levantava na carreira. Isso
porque das vezes que resolvi me dar cinco minutinhos a mais, perdi o lendário CDU/Casa Amarela e foi um inferno
chegar no estágio. São tantos traumas causados por esse ônibus de horários fixos e viagens longas, mas houve
sorrisos também, como quando esqueci meu contrato de estágio no ônibus e guardaram os documentos para me
devolver no outro dia ou quando dormi e perdi a parada, mas me deixaram na porta do estágio depois. Criei vínculos
com o único ônibus azul que passa pelo meu bairro, comecei a achá-lo mais bonito.

Responsável por grande parte da minha felicidade diária, o Irmão, como é chamado pelos passageiros do
CDU/Casa Amarela, era o motorista mais amável da Região Metropolitana do Recife. O conheci antes mesmo de
precisar pegar o ônibus diariamente para ir ao estágio. Foi no dia da minha entrevista e eu estava perdida em Casa
Amarela, peguei o ônibus no sentido contrário e o Irmão pacientemente me indicou o caminho certo. Bom, não serviu
de nada e tive que ligar chorando para o meu pai ir me salvar, mas pelo menos agora o motorista do CDU/Casa
Amarela sabia meu nome e minhas habilidades de me perder com facilidade. Por isso eu acho que ele sempre me
dava um risinho cheio de compaixão toda vez que me via entrando com cara de sono no coletivo.

Mas um dia eu peguei o ônibus no turno em que o Irmão deveria estar dirigindo e ele não estava lá. Os
passageiros subiam perguntando “oxe, cadê o Irmão?” e o substituto, que pelo visto também era irmão no sentido de
compactuar da fé cristã, repetia “quero falar com vocês depois. Orem por ele”. Fiquei curiosa e aflita, não consegui
tirar o habitual cochilo no ônibus, as pessoas atrás de mim fofocavam sobre algo que eu não sabia, alguma notícia
que tinha rolado no grupo do WhatsApp de passageiros do CDU/Casa Amarela do qual eu ainda não fazia parte (e
não tive tempo hábil para fazer).

“O Irmão precisa da gente” era o que falavam e todo mundo tirava as moedas do bolso e saia passando de
mão em mão até chegar no motorista substituto. A carteira de motorista do Irmão foi suspensa, era o que diziam, mas
ninguém queria falar abertamente sobre o que aconteceu, talvez eu tivesse errado em ter dito que era estudante de
jornalismo. Isso não me dá credibilidade não, eles desconfiaram de mim. A CNH do Irmão venceu e ele não tinha
dinheiro para renovar, a empresa disse que não era responsabilidade dela e o irmão passou um mês sem trabalhar
aguardando a carteira sair. Toda semana uma das funcionárias do Detran que pegava o transporte público com a
gente informava a situação do processo. Todo dia alguém tirava um dinheirinho do bolso e dizia “é para o Irmão” e eu
ficava curiosa olhando. Até contribui com o “salário” do Irmão.

Um dia o Irmão voltou. Até eu, que quase sempre ficava calada, não resisti e soltei um “feliz em te ver de
novo”. Ele não escondia o riso, agradeceu a todo mundo e as pessoas sentavam na parte de trás do ônibus se
sentindo orgulhosas por terem colocado comida na mesa do Irmão por um mês, terem ajudado ele a pagar a luz, o
aluguel, o colégio do filho e a renovação da CNH. Ninguém questionou a empresa, pelo menos não em voz alta.
Estavam todos felizes por terem ajudado o Irmão de forma tão ativa. Filantropia é isso, responsabilidade social é
outra coisa.
CRÔNICA 4:

Malditos Grant

Um amigo me contou que a culpa de tudo é dos Grant. Cary, o primeiro, e, mais tarde, ele, o grande filho da mãe,
Hugh. Nunca um cabelo fora do lugar, todas as roupas sempre sob medida, até as camisetas - e o ar desinteressado
que, se você fizer na vida real, vai lhe valer uma imediata fama de esnobe.

Foi xeretando a estante de filmes de uma conhecida, em mais uma tarde tediosa, que finalmente a verdade ocorreu
para o meu amigo. Em inúmeras capas, impecável em todas as fotos, Cary Grant ficava hora com uma loira, e hora
com outra. Em "Ladrão de Casaca", por exemplo, lá estava ele, o safado elegante, em companhia de Grace Kelly.
Nos filmes, saiu com Mrilyn Monroe, Aurdrey Hepburn, Ingrid Bergman e quem mais quis. E, assim, as fãs
assimilaram direitinho o modelo de homem que Cary vendia e transmitiram a ideia para suas filhas, que passaram
para as suas filhas, que depois ainda caíram de quatro pelo Hugh Grant. E o estrago estava feito.

Nessa tarde meu amigo enfim entendeu o porquê de todos os nãos que já tomou ao longo da vida. Foram alguns, de
quem teve importância para ele e de desconhecidas – sem esquecer de uma que preferiu ficar com outra menina.
Cary, e depois Hugh, fizeram com que as mulheres acreditassem que homens como eles existem de verdade. Que
algum, em seu perfeito juízo, trocaria uma cerveja por um chá, um sofá por um divã, a TV pelo filme cult. Para falar a
verdade, foi com alívio que ele pôde creditar sua solidão ao estrago que os dois miseráveis fizeram à imagem
masculina. A culpa dos seus fracassos não era só dele, finalmente.

A partir dessa descoberta, meu amigo tem se dedicado a provar que há salvação para sujeitos que não acordam de
barba feita e que, pela vontade deles, sequer farão a barba por vários dias. Sujeitos de hábitos simples e
controversos como chegar em casa e abrir uma cerveja, ou abrir a cerveja ainda no meio do caminho, depois de sair
do supermercado e antes de chegar em casa. Sujeitos que não levam os copos sujos para a pia, que não penduram
a cueca na área de serviço, que deixam a tampa do vaso levantada, que perdem um pé de meia dentro do quarto por
semanas.

Não que meu amigo venha obtendo sucesso. O mal que os Grant causaram está arraigadamente incrustado no
inconsciente coletivo. O certo é que, segundo o que ele me disse, não vai mudar nada em si para ter uma
companhia. É orgulhoso demais. Para ser sincero, arriscaria alguns pequenos ajustes, digamos, mas por uma única
e específica pessoa. Anda pensando nisso. Não que pretenda mudar a sua essência por causa de alguém. Trata--se
apenas de algumas concessões.

Quando, por exemplo, buscasse a moça para sair, não se apresentaria com as camisetas de propaganda que usa
inclusive nas sextas à noite: "Vote Dilma", "Seu cão merece Pedigree", "Hexa é luxo". Uma camiseta polo seria mais
apropriada, mas sem aquele brasão maior que a própria cabeça bordado no bolso, ele não chegou a esse ponto.

Não compraria flores, não penduraria quadros, mas recolheria as embalagens de Doritos espalhadas pela sala.
Talvez chutasse algumas roupas para baixo do sofá, mas só depois que a campainha da porta tocar. É contra tomar
providências até que elas sejam absolutamente indispensáveis.

Continuaria vendo filmes madrugada a dentro, porque foi assim que fez suas descobertas sociológicas sobre a
influência dos Grant no imaginário feminino. A sorte é que o Cary já é falecido. E aquele outro, o Hugh, se um dia o
encontrar por aí, desce o desgraçado na porrada. E duvida que o cabelo dele não sair do lugar. Vocês acham que
daria certo? Estou perguntando para um amigo.
CRÔNICA 5:

O Lula que o grupo de direita no WhatsApp gosta

31 de agosto de 2018. Há dois o Senado Federal aprovava o golpe contra Dilma. Golpe não, porque essa palavra é
muito forte, como disse Haddad. Hoje acontece outra parte desse "movimento". O Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
está julgando a candidatura do presidente Lula. Certamente será impugnada. Faz parte do plano tirar o homem que
ganharia no primeiro turno as eleições presidenciais. A vitória, pelo que indicam as pesquisas dos grandes institutos,
seria ampla. Nas ruas e nas redes sociais não se fala de outra coisa. A pauta é o julgamento da candidatura de Lula.

Por isso, fiquei curioso para saber como os eleitores de Bolsonaro, o maior adversário do ex-presidente nestas
eleições tratam o tema. Fiquei pensando por alguns instantes como eu poderia saber disso, se eu não tenho vontade
de ficar me estressando com um bolsominion (como são chamados os eleitores de Bolsonaro) durante uma conversa
que acabaria com um "e o PT?" ou "comunista". De repente, me veio à mente o lugar mais fácil de vê-los: a internet.

Saí como um doido (hoje penso assim, porque que loucura a minha fazer o que fiz) procurando grupos de apoiadores
do candidato do PSL no WhatsApp. Achei uns que pareciam não ser interessantes. Achei outros que pareciam ser,
mas que eu achava perigoso (porque essa galera é cheia de ódio). Achei um excelente. O Direita Pernambuco 2.0.
Sim, esse era o nome. Criado em 19 de outubro de 2015, o grupo reúne 140 pessoas. Nem todas da terra de altos
coqueiros. Maioria jovem. E acho que têm título de eleitor.

Descobri o nome e telefone do administrador numa página do Facebook que recebe o mesmo nome, mas sem estar
atualizada para versão 2.0. Adicionei ele aos meu contatos e falei com ele pedindo para entrar no grupo. De cara, um
grande inquérito. Como não havia pensado que isso aconteceria? Que grande enrascada me meti! Mas fui
respondendo desde quem sou, porque estava ali e quem eu votaria para os legislativos. Fui o mais verdadeiro que
pude. Risos. Omiti muita coisa e, confesso, falei mal da esquerda universitária (que é um problema mesmo). Isso foi
meu passaporte para a desesperança que seria aquele grupo.

Entrei no grupo. Achei que teria uma enxurrada de mensagens em pouco tempo. Me enganei. Quase duas horas
depois que entrei aparece a primeira mensagem. Um foto do Ministro Barroso, do STF, seguido de um vídeo do
mesmo senhor, que é relator do caso, proferindo seu voto no julgamento de Lula. Visualizei e fingi que nada vi. Aí
aparece um ser que, por preguiça de ver o vídeo, pergunta: ''o relator já votou? Qual foi o voto dele?'' Essa foi a
primeira e última vez que falei: Barroso é o relator e ele votou pela impugnação. Minha mensagem foi respondida por
diversos emojis de aplausos..

A partir daí começou a imensa quantidade de mensagens. Que apesar de serem muitas, não apontavam para um
debate minimamente sério. Eram fake news. Coisas depreciativas. E eles todos amando aquilo. Achando lindo. Foi aí
que percebi que não conseguiria passar muito tempo naquele grupo. Fixei o dia em que Bozo viria ao Recife como o
último dia no grupo, 12 de setembro.

O dia seguinte começou com um "Lula não poderá aparecer em nenhuma propaganda política", disse um membro
que foi respondido com "o bandido do Humberto está lascado" por outro jovem eleitor. Esse tipo de coisas se repetia
todos os dias, o dia todo até o momento em que Jair Bolsonaro foi atacado durante um evento de campanha no dia 6
de setembro em Minas Gerais. Tudo começa quando a estudante de jornalismo Gabriela Melo, 25, pergunta: "Saiu no
estadão que Bolsonaro foi esfaqueado em MG. Procede?" O caso é confirmado. A comoção se instaura no grupo e
pela primeira vez desde que eu entrei Lula deixa de ser assunto. É um tipo de tesão que atinge também a esquerda:
só falar do adversário.

Essa comoção foi traduzida votos de recuperação, em pedidos de oração, em ódio pelo esfaqueador. O ódio foi
maior que a comoção, na verdade. Descobriram o perfil do cara que atacou Bolsonaro. Começaram a ligar ele ao PT
e voltaram a falar de Lula. Não durou muito o hiato sem menção ao ex-presidente. Desde esse fatídico dia, tudo
girava em torno do ataque e sua relação com Lula, que estava preso, bem distante de MG.

Não aguentava mais aquele grupo. Para eles a mídia também era culpada pelo ataque a Bozo - eles conspiravam
mais que o Daciolo no debate da Band. Estava cancelada, portanto, a visita de Jair ao Recife. Deveria estar
cancelada também minha estadia no grupo. Mas fiquei até o que me propus. Um mal enorme me fiz. Foi muito ódio,
mentira e Bolsonaro pra minha opinião.

Passaram-se 13 dias desde que entrei no fórum de eleitores de Jair, já é 12 de setembro. Falta um mês para o dias
dos bolsominions, e o grupo acorda com um link para um vídeo do YouTube em que Bolsonaro é apontado como
vencedor das eleições. O que foi ignorado por todos. Mais coisas vinham. Mais coisas sobre Lula, claro. Lula que
chamava a atenção. Até o atentado contra o "mito" foi esquecido. Melhor era ler sobre como Lula e Ciro Gomes
estão aliados para enganar as pessoas. Depois disso saí do grupo, que deveria se chamar Lula 1.3.
CRÔNICA 6:

Nem sempre dá pra negar a origem

Século XXI, redes sociais e mais especificamente o whatsapp fizeram surgir a mais nova e poderosa instituição social
chamada o Grupo da Família. O grupo da família carrega aquele estigma ruim das famigeradas mensagens de “bom
dia, espero que você tenha uma ótima semana” ou daquelas correntes que terminam com “envie para todos que você
ama, inclusive para quem te mandou essa mensagem”. Do textão de autoajuda às piadinhas meio-sem-graça-meio-
machistas do tiozão que jura ser O Comediante do Ano, no grupo da família se encontra de tudo um pouco.

Mas diz-me sobre o que falam e eu te direi quem são. Parafraseio o ditado porque numa família em que 3 dos 5 filhos
fundaram um partido, nada mais lógico do que ter o maior grupo de família (lê-se: palanque eleitoral) petista da
atualidade.

Felizmente, nesse grupo não existe nenhuma vivalma que apoie o Coiso, e nem aquele tio que mora tão-tão distante
foi recentemente embora do país pra se afastar da família petralha. Na verdade, ele apenas se juntou à safra dos que
foram pra estudar fora e lá se tornaram embaixadores do PT “no Brasil e no mundo”, como diz minha mãe. Isso
porque vez ou outra alguém vai mandar uma foto ao lado de algum pensador-intelectual-de-esquerda-que-você-
nunca-ouviu-falar, ou porque entrevistou ele, ou porque estavam juntos numa palestra sobre o Golpe, ou porque
simplesmente se cruzaram na estação de metrô.

À essa altura, você deve estar pensando que, se todo mundo é de esquerda, esse deve ser um dos poucos grupos
de família em que não rola barraco. “Se todo mundo pensa igual”, deve ser até um alívio estar nesse grupo na época
de eleição. E é aí que você se engana, caro leitor.

No fim das contas, não importa muito se é de esquerda, de direita, côncavo ou convexo, o grupo da família - e a
família do mundo real em si - sempre vai ser esse lugar de conflito das gerações. E quando se trata do zapzap, as
diferenças entre quem nasceu na era tecnológica e quem tá começando a usar os aplicativos são óbvias. Se o
parente de mais idade não entender algum emoji ou abreviação e principalmente se ele achar que algum comentário
dos mais novos foi desrespeitoso, pode ter confusão. Da mesma forma, também existe um problema de gerações
quando o assunto for Aquele Partido. E se você apontar meio dedo mindinho pra cima dele é melhor se preparar,
porque, no grupo da minha família, a confusão é mais do que certa.

O pior de todos é o tio do contra. Pessimista que só ele, quer achar defeito onde não tem. Assim, qualquer frase ou
opinião que destoe apenas um pouco da sua vai ser motivo de questionamento, ironia ou teoria conspiratória.
Quando milhares de mulheres se reuniram criando o grupo contra o Coiso, ele disse que podia ser fraude: “deve ter
gente de direita infiltrada para espionar vocês”. E quando a prima mais velha compartilhou o depoimento que fez pra
campanha do #elenão, o encrenqueiro preferiu dizer que tava na hora de começar o #elesim (em referência à
Haddad). Claro, ele não pode deixar que a mídia golpista e os anti-pt alavanquem candidaturas alternativas.

Mas vamos aos outros irmãos. Eles se distinguem entre:


 O das correntes, que envia um conjunto de 10 textos, vídeos e imagens de uma vez só achando que alguém
vai ler só porque fala do PT;
 O intelectual, que vez ou outra dá alguma indicação de leitura ou filme esquerdista, e usa termos vintage
como burguês, ideologia e meios de produção;
 A coroa cética, que deixa para os jovens a tarefa de sonhar, ter esperanças e lutar pelo futuro porque, com o
passar dos anos, cansou da militância;
E, por último,
 A disseminadora de fake news, que manda fotos de uma manifestação que aconteceu na Venezuela nos
anos 2000 dizendo que foi ontem na Conde da Boa Vista.

Já os outros entes, divididos entre cunhados, primos e esposo/as dos primos, ou deixam pra abrir a boca só nos dias
de aniversário, ou compram briga já sabendo no que vai dar. Os mais velhos não vão deixar de votar no PT sem
olhar a quem. E os mais novos continuarão desagradando os pais por não seguirem a máxima. Até que venha o
segundo turno.
CRÔNICA 7:

Muito se fala (e até se crítica) da paixão do homem heterossexual por futebol. Que ele só quer saber disso, só fala
disso. Compra uma camisa do time. Se enxuga com a toalha do time. Até tatua algo ligado ao seu clube no corpo.
Nos dias de jogo lá está ele no estádio gritando a plenos pulmões, xingando time e torcida adversária. Se o time
ganha ele irrompe em alegria. Faz questão de exibir mais uma vitória ou título e zombar da torcida adversária. Um
fanatismo que beira a loucura, diriam uns. Mas você já viu a paixão dos gays por divas pop?

Realmente não há muita coisa de diferente. Muda a sexualidade dos fãs e o objeto da adoração, mas o fanatismo é
igual. Compram discos. Fazem mutirão de visualização no Youtube. Andam de site em site a procura das últimas
notícias sobre sua “rainha!”.

Mude o Brasileirão pela parada do Spotify ou iTunes e começa a disputa pelos pontos (streams e vendas) corridos.
Quanto mais se consome a diva tal mais ela sobe na tabela. Pode até perder, só não pode flopar. Isso nunca, jamais.
Quem não quer ver seu time ganhando todas e levantando a taça no final? Quem não quer ver sua diva emplacando
hit atrás de hit e no topo da lista da Forbes de cantoras mais bem sucedidas do ano?

E, claro, estão nos estádios. Gritando a plenos pulmões. Vestindo a camisa. Dando um show nas arquibancadas. A
diferença é que lá são torcida única. Não por causa de uma medida judicial para impedir bárbaros confrontos entre
torcidas, mas porque é um show único mesmo. A disputa entre torcidas ainda existe, mas se dá em outros campos.
As redes sociais, a aba de comentários dos sites e os fóruns tornam-se os estádios. Lá se dá a grande disputa. E ai
vale tudo. Vale xingar o time (diva) e a torcida adversária. Uma torcida grita “chacota”, a outra responde com “não é
artista!”. Dai em diante a coisa fica intensa, tem até quem baixe o nível e parta para ofensa pessoal. Algumas ofensas
beiram a misoginia, machismo e homofobia que tanto reclamam dos heterossexuais.

O ânimo aumenta quando temos um clássico confronto direto. Cher e Madonna, duas lendas do pop, por exemplo,
protagonizam um clássico “Majestoso” que não deixa nada a desejar a um São Paulo vs. Corinthians. Britney Spears
vs. Christina Aguilera e suas legiões de fãs adolescentes em todo mundo rendeu tanta confusão quanto um “Clássico
dos Milhões”, disputa entre Flamengo e Vasco. Em uma das disputas mais emblemáticas dos últimos anos Lady
Gaga e Katy Perry protagonizaram o que poderia ser um “Clássico das Emoções” (Sport x Náutico). Finalmente as
duas artistas mais populares da atualidade se afrentariam pelo nº 1 na Billboard. Os fãs se engalfinharam em uma
grande disputa cheia de memes e enaltecendo as conquistas prévias de cada “fave”. No fim Katy saiu vencedora,
dando início a melhor fase de sua carreira. Lady Gaga por sua vez foi direto para segunda divisão do pop. Mas
felizmente ela está de volta à primeira divisão, mesmo que sem brilho outrora, ali no meio da tabela.

Veja, nem são tão diferentes assim. Existe até quem tatue o nome da sua cantora ou disco favorito no corpo. Amam,
torcem, sorriem e choram por seus ídolos. São fãs.
CRÔNICA 8:

044 Massangana

Todos os dias desde janeiro deste ano, quase que religiosamente eu pego o mesmo ônibus para ir estagiar
às seis e quarenta e cinco da manhã na parada de casa. Pegar o mesmo ônibus todo dia fez com que eu começasse
a conhecer as pessoas da minha rua e os rostos no 044 Massangana/Conde da Boa Vista foram se tornando cada
vez mais familiares. Minha rotina de pegar o 044 diariamente se firmou, em primeiro lugar, por ser o único ônibus que
passava suficientemente vazio para conseguir passar da catraca naquele horário; segundamente, porque sou um ser
de hábitos e me apeguei à ela.

Tem a mulher que senta na cadeira solitária do lado da sombra; um senhor que sobe ainda na avenida beira
mar e carrega consigo uma mala de mão - sempre fico imaginando o que há dentro da mala de mão dele, seriam
bugigangas para vender? Seriam roupas para trocar durante o dia? - e nunca senta no ônibus mesmo quando tem
lugar vazio; tem um homem que também sobe ainda na avenida da praia e tem a mania de abrir todas as janelas do
ônibus – apelidei ele de “o homem das janelas” - enquanto passa à procura de um lugar e sempre assusta as
pessoas desavisadas com o barulho causado pela abertura das janelas.

Em alguma semana de agosto, resolvi quebrar minha rotina e pegar ônibus diferentes para fazer o mesmo
trajeto. Grande erro. No primeiro dia, resolvi pegar um 069 CJ. Catamarã. Já havia passado pelos prédios baixos do
início de Jaboatão e os cachorros passeando na orla cedinho. Contrastando com a calmaria da praia naquela hora
em dia de semana, havia o falatório de grupos de idosas nos assentos mais ao fundo do ônibus, o moço do
Manassés que veio de Fortaleza e cuja história já sei de cor e o barulho que o ônibus fazia toda vez que o sinal
fechava ou alguém pedia parada. Quando entramos na Conselheiro Aguiar, o barulho começou a ficar mais
prolongado. Todos os passageiros se entreolhavam como se já estivessem prevendo o futuro da nossa viagem. O
motorista pediu para o cobrador ligar para a garagem e avisar que o ônibus estava de mal a pior, mas o cobrador não
conseguia entender o número verbalizado pelo motorista tamanho era o ronco do motor do ônibus. Muitos gritos
depois, quando finalmente o cobrador consegue decifrar o número para ligar: estava sem crédito no celular. O ônibus
quebrou. Roncou, roncou, roncou durante alguns minutos e já era. Todo mundo desce do ônibus e eu já começo a
calcular mentalmente quais seriam meus próximos passos: Valia a pena esperar o outro ônibus da mesma empresa e
provavelmente chegar amassada e atrasada? Pagaria outra passagem pra pegar o primeiro que passasse no
Centro? Bem, acabei esperando o outro ônibus da Borborema mesmo.

Dois dias depois desse infeliz ônibus quebrado, resolvo novamente me aventurar por outras linhas. Dessa
vez, a escolhida foi 061 Piedade, e até estava indo tudo bem apesar da lotação do ônibus até que o bendito quebrou
exatamente no mesmo local em que o seu antecessor. Já estava preocupada achando que ia passar por mentirosa
no estágio: dois dias com o ônibus quebrando? Não acreditei. Não deveria ter trocado meu querido 044
Massangana/Conde da Boa Vista. No final da semana, decidi que não iria cometer o mesmo erro de pegar alguma
outra linha para fazer meu trajeto diário. O Massangana chegou um pouco mais tarde que o normal, mas pelo menos
tinha lugar vago. De repente, novamente na Conselheiro Aguiar, o motorista para o ônibus no mesmo local em que
os dois que peguei naquela semana haviam quebrado e abre as portas do meio e dos fundos. Quando eu já ia me
levantando com raiva pra sair do ônibus quebrado pela terceira vez na semana, começa a subir um mar de gente.

- Ahhhhhhhhhh
Senti nessa hora um misto de alívio por não ter sido meu ônibus a quebrar novamente e perplexidade por
tantos ônibus Borborema estarem quebrando assim. As pessoas começaram a preencher os últimos espaços vazios
do ônibus quando uma mulher que devia beirar os sessenta anos começa a proclamar interrompendo minha trilha
sonora do caminho:

- Eu tenho o número de zap do Grande Recife! Vamos denunciar a Borborema! Anotem aí o número: 99…
Ela repetiu o número, que incrivelmente não me lembro, mais algumas poucas vezes. Quando pensei que ia
encerrar o caso, disse que sozinha não dava conta e que todo mundo tinha que denunciar. Pra minha surpresa,
funcionou! Prontamente alguns passageiros do ônibus pediram pra ela repetir o número e começaram a anotar para
denunciar a Borborema pelo péssimo serviço prestado. A senhorinha aproveitou o espaço naquele coletivo para,
ainda, falar sobre as terríveis condições do transporte público no Recife, as eleições chegando e fechou seu discurso
com espírito revolucionário:

- Todo mundo tem que denunciar pra mudar a situação do transporte público pro trabalhador ou o jeito é tacar
fogo nos ônibus!
No dia seguinte, peguei o 044 Massangana/Conde da Boa Vista com todos os rostos familiares de sempre às
06:45 e, no início de Boa Viagem, ele quebrou. Dessa vez fui eu que tive vontade de mandar todos os passageiros
anotarem o zap do Grande Recife pra denunciar a Borborema.
CRÔNICA 9:

Ibura, a terra do desande

Nascido, criado e vivendo em um dos bairros mais estigmatizados do Recife. “Água que arrebenta”, em tupi-guarani,
devido às fontes naturais presentes na localidade. A mais famosa delas, a dos milagres, dá nome à comunidade mais
violenta da região. Mas fica bem longe de onde eu moro. Afinal, o bairro é tão grande que nem eu o conheço por
inteiro. Uma localização no Instagram, claramente em tom de brincadeira, fala um pouco da fama do local: “Ibura A
Terra Do Desande”.

Moro desde sempre na parte do Ibura dividida pela COHAB. A parte dos morros do bairro. Entre as inúmeras
Unidades Residenciais, as URs, a minha residência fica na 04. Como os antigos moradores chamam, essa parte do
Ibura tá mais pra uma vila. Uma praça, uma quadra ao lado dessa praça, um mercadinho, uma capela e um terminal
de ônibus. Pronto. Descrevi a UR 04 por inteira. Mas além do espaço, o comportamento dos moradores também é de
uma vila. Todo mundo sabe da vida de todo mundo, e conhecem a família inteira. Eis um diálogo fácil de ser
escutado entre dois jovens do sexo masculino na parada de ônibus enquanto se espera o UR 04/ TI Tancredo Neves,
uma verdadeira lenda do grande Recife:

- Mermão, soubesse de Júnior?

- Que Júnior?

- Júnior de Vilma, pô!

- Oxe, nunca mais vi esse bicho. Soube não... O que foi?

- Saiu daqui jurado, boy! Pegou a boyzinha de um traficante lá no Nacional.

- Oxe vei, ele não tava namorando com Bruna, filha de Xande PM?

- Tava, pô! Aí foi colocar gaia nela nessa festinha, sábado. Pegou em bomba. Tá morando com uma tia lá em
Maranguape.

- Que braba, boy. Tava sabendo não...

- Ientão, pô. Olha o busão aí!

- Eita, falou!

E é assim basicamente com pessoas de qualquer gênero e idade. Os nomes são ligados aos parentes. Eu, por
exemplo, sou o filho de Brega. Ou Breguinha, pros mais antigos. Ou o filho de Valdinho. Ou o filho de Melancia (Meu
pai tem muitos nomes por aqui). Ou filho de Sheyllinha, neto de finado seu Pedro. É mais referência que um clipe de
Childish Gambino.

A UR que eu moro parece uma vila, mas ainda é no Ibura. Isso me faz estar por dentro de todos os bregafunks e
brega melodys do momento. E do passado também, ouvidos em alto e bom som por onde eu passo. Em cima da
posição de privilégio que me encontro, ouço muito: “tu sabe todos os bregas, pô!”. Calmamente, respondo com
orgulho: “me respeita, moro no Ibura!” Se o brega é sucesso, ele toca primeiro aqui.

E é o brega a principal trilha sonora dos “desandes”. É como popularmente é conhecido o ato de reunir a sua galera e
beber até não aguentar mais. Geralmente, um desande dura o fim de semana inteiro. Tem que ter coragem. Nunca
me interessei, não bebo e muito menos tenho dinheiro para isso. Mas perdi os todos os parceiros de pelada para os
famosos desandes do Ibura.

Eu não precisava de uma localização no Instagram para constatar que aqui é a terra do desande. Várias vezes, de
dentro da janela do ônibus, vi desandes acontecendo em plena segunda feira, seis horas da manhã. O que sempre
deixa muita gente com inveja dentro do coletivo, indo ao encontro do engarrafamento da avenida Dom Hélder, outro
clássico Iburense. Em voz alta, falam mal, mas eu sei que queriam estar ali na beira da pista dançando o lançamento
de MC Troinha com um copo de cerveja na mão sem saber que dia da semana é. Eu acho muito engraçado o jeito
que a favela vive, e só quem tem essa experiência todos os dias sabe como é. E o Ibura, antes de qualquer coisa, é
vivo.
CRÔNICA 10:

Pela defesa do batedor de claras

Essas lojas que têm de tudo, estilo Atacado dos Presentes, sempre tiveram um lugar guardado no meu
coração. Quando eu era criança, sabia que a parada certa da minha mãe, lá nas Casas Cabral em Caruaru, era a
certeza de um brinquedo no fim do dia. Dona Flávia (vulgo mainha) gastava horas e horas olhando prateleiras
coloridas com todos os formatos de potes e bacias enquanto eu corria feito uma cabrita elétrica pelos corredores.
Naquela época, eu não entendia porque a mulher ficava tão feliz voltando pra casa com uma sacola cheia de pote,
espremedores, utensílios domésticos e panelas antiaderente.

Agora que eu moro na minha própria casa e uso os meus próprios potes, consigo entender um pouco da
felicidade dela. Na última vez que minha avó veio me visitar, nós fomos juntas fazer compras no bendito Atacado e
eu, que nunca vi tanta graça assim em comprar coisas de cozinha, me vi apaixonada por um batedor de claras. O
dito cujo era perfeito, quase igual ao batedor da minha casa no interior, com um cabo vermelho de madeira e o corpo
de metal em espiral que funcionava como uma mola. Quando eu bati o olho, eu tive certeza de que precisava levar
aquele lindo símbolo da resistência analógica comigo.

Minha vó, de olhos meio arregalados, mas não muito, e com uma cara de “quê?” olhou pra mim na hora que eu
peguei o batedor e soltou o seu mais sincero “Tu num tá pensando em comprar isso não, né menina?” Tentei em vão
argumentar que nunca mais tinha comido uma gemada, mas a velha teimosa insistia em frustrar minha potencial
nova aquisição doméstica.

– Dá pra fazer gemada com garfo.

– Mas com garfo é muito difícil.

– Usa a batedeira.

– Batedeira gasta energia.

– Tudo hoje em dia usa energia, isso não é desculpa.

– Só custa doze reais.

– Não levar custa zero.

– Mas é tão bonitinho...

– Compra logo essa bosta.

Com um sorriso discreto no cantinho da boca pus meu lindo batedor de claras no carrinho enquanto minha vó
ainda resmungava que era melhor eu gastar meu dinheiro com algo mais útil. Eu tentava entender a implicância da
mulher, mas era uma birra sem fim. Entre as minhas desculpas falei que as claras em neve tinham um aspecto mais
autêntico quando batidas à mão, que o cabo vermelho combinava com meu pincel de silicone para untar formas, que
com o batedor eu poderia fazer um bolo quando faltasse luz para me confortar, falei até que seria útil pra servir de
enfeite já que a espiral tinha um aspecto espiral vintage, mas nada adiantou.

Já era fim de tarde, o dia simplesmente tinha voado dentro daquela loja gigante, seguíamos para o caixa na
tentativa (à essa altura já em vão) de não pegar o horário de pico com enormes sacolas dentro em um CDU/Várzea
com catraca na porta traseira. Minha avó vez ou outra ainda reclamava do batedor, naquela hora com bem menos
frequência pois o trânsito agora era o principal alvo da lamúria, eis que do nada surge um silêncio súbito. Olho em
volta e em um piscar de olhos a senhorinha de menos de um metro e meio tinha sumido da minha vista. Ela tinha
avistado uma manteigueira florida.
CRÔNICA 11:

Uma cartinha em defesa dos fuleiros

Normalmente as histórias que escolhemos contar são aquelas em que as coisas acontecem. Mas essa aqui vai ser
sobre os não-acontecimentos. Aliás, sobre aqueles que não vão onde estão os acontecimentos.

Em todo grupo de amigos há aquela pessoa. Farrapeira, vacilona, furona. Nos grupos em que convivo, é comum esta
pessoa ser eu. E por ocupar tal posição, queria tentar fazer a defesa dos intitulados “fuleiros”, aqueles que não vão a
lugares, faltam encontros e saídas.

Neste sábado, por exemplo, havia uma saída incrível na praia. A festa começava por volta das 21h, na orla do Pina, e
duraria até o sol nascer. Fiquei encantada com a ideia há semanas: ver o sol nascer na praia com amigos, que
grande momento. Imaginei diversas conversas que teríamos na beira do mar, cheguei a sentir os quilos de areia que
estariam no meu short na volta para casa, short este que eu já havia combinado mentalmente de ir para a festa.

Mas coisas acontecem. Uma feira mensal inesperada que tive que fazer no dia. Foram horas nos corredores e fila do
supermercado: cheguei às 22h30 em casa, exausta. Ainda mandei mensagens para alguns amigos, com o intuito de
saber se ainda valeria a pena ir, mas a verdade é que eu sabia o destino que me esperava ao sentar na cama e me
entregar ao sono. Mesmo pensando todo o fim de semana sobre o encontro, empecilhos acontecem recorrentemente
e impedem a minha ida, é quase sobrenatural.

Na segunda-feira de manhã, eu já esperava o discurso pós-vacilo: “Olha, tu é uma fuleira mesmo, visse?”, “Só um
milagre mesmo pra tu aparecer“. Tentei tecer minhas desculpas mas ouvi de volta: “Meu amigo foi de pulseira de
hospital!”. Assustei-me com tamanha coragem do indivíduo mas não pude deixar de notar a principal diferença entre
o fuleiro e o não-fuleiro: a resistência a intempéries do dia a dia.

Quando ocorre um empecilho (feiras de mercado cansativas, carona cancelada, dinheiro curto, bronca de mãe,
dentre outros), o não-fuleiro é afetado digamos que 2 pontos percentuais em sua possibilidade de ida ao evento. Já o
não-fuleiro perde entre uma margem de 20 a 40 pontos, dependendo da gravidade da situação. Pequenos atos
afetam o fuleiro de forma mais intensa, o que compromete sua ida ao evento. Uma questão puramente biológica,
muito além do racional.

Contudo, mais importante do que justificar a não-ida, é desmistificar a ideia criada que o fuleiro é alguém que não
valoriza as pessoas com as quais ele farrapou. O valor que ele dá aos amigos não se concretiza na ida ao evento,
ele se concretiza em pensamentos sobre a ida. Muitas vezes são criadas desculpinhas mesmo, mas aposto que
todas foram carinhosamente pensadas e planejadas. Olhe bem, o cuidado pode vir de várias formas. Não fui à praia,
mas meus pensamentos certamente estavam lá.

Os não-fuleiros podem até não terem caído nessas desculpinhas que expliquei aqui, mas é importante abrir a mente
para essa nova perspectiva. Sonhamos sim com este dia em que finalmente nós fuleiros vamos concretizar nossos
“sim!” para convites em idas reais. Mas como esse futuro de idas contínuas parece um pouco longe, resta-nos
apenas o carinhoso pedido. Continuem a chamar as pessoas fuleiras, porque eventualmente elas vão aparecer, e vai
valer a pena.
CRÔNICA 12:

Eu era feliz e não me avisaram

Domingo de tarde. Me encontro com meu macacão florido na festa de treze anos do amigo da escola do meu
irmão. Depois de passar o final de semana assistindo séries e filmes, resolvi aceitar o convite e terminar o fim de
semana procrastinando de uma forma diferente. Mas vou ser sincera, o que me fez ir mesmo foi a prometida comida
de aniversário.

Em meio a minhas coxinhas, pastéis e empadas não pude deixar de olhar os agora pré-adolescentes (como
meu irmão faz questão de frisar) brincar e senti algo estranho. Uma sensação vindo de dentro. Não era tristeza nem
raiva. Também não era enjoo de tantos docinhos.

Resolvi abandonar a mesa dos adultos, que já estava bem chata e a única pauta que rendia era a bendita
das eleições. Sentei em um puff cor de rosa que era baixo demais pra mim. Me lembrei do meu amado puff amarelo,
que para o eu de 10 anos era grande demais. Me pergunto o que aconteceu com aquele puff. E com meu fogão cor
de rosa que eu tanto adorava e cozinhava as melhores comidinhas de massa de modelar do condomínio.

De repente tem uma menina no puff vizinho. Com um celular. Encaro. Ela me lembra a menina de Stranger
Things. A principal, não a ruivinha. Ofereço o brigadeiro em minhas mãos. Ela aceita e me paga com seu nome.
Aninha. Jogando meu charme consigo engatar uma conversa com minha mais nova amiga. Ela tem nove anos, está
no quarto ano na escola e tem três instagrams. É que sempre que ela esquece a senha cria outro. Nessa idade e já
está esquecida, coitada!

Chega uma outra menina e leva minha mais nova ex amiga. Ela realmente lembra a menina de Stranger
Things. Com nove anos eu jogava joguinhos da Barbie e da Polly no Ojogos. Enquanto isso, Aninha tem três
instagram’s, fotos de biquíni e frases motivacionais tiradas do google como legenda.

Tive a sorte de ter primos da minha idade. Festas do pijama, esconde esconde na rua. Íamos para a fazenda
do meu primo, andavámos de cavalo e uma semana depois descobríamos carrapatos escondidos pelo corpo. As
tardes de domingos eram marcadas pela peregrinação para comprar sorvete no final da rua. Aquele frutilly. O com
uma casquinha dura de chocolate e com bolinhas brancas. Nunca superei a descontinuação desse picolé. Alô,
Kibom.

Eu lembro quando meu pai me entregava moedinhas e eu juntava para conseguir comprar um Tamagoshi.
Como adorava ir ao Brennand e fazer um pedido na fonte dos desejos. Ou da maior dor que eu achava que poderia
sentir, o elixir sanativo no meu joelho ralado. Eu era feliz e queria crescer.

E agora só quero voltar. Mas não pra essa infância de hoje em dia. Pra a de Tv Globinho e Kim Possible.
Chamar atenção e mudar o status do MSN, jogar colheita feliz e segredos do mar. Passar mais tempo desenhando a
amarelinha com giz no chão do que de fato pulando. E quem sabe finalmente aprender a brincar de elástico. Será
que é tarde demais? Talvez Aninha me ensine. Vou pedir a meu irmão o Whatsapp dela.
CRÔNICA 13:

A cultura da musculação

Às vezes questiono o porquê de ter demorado tanto para começar a frequentar a academia. Hoje considero-a
como um ambiente tão bacana, divertido. Local para espairecer, mesmo. Achava que quem dizia isso havia corroído
o cérebro de tanto beber Whey Protein, confesso. Aliás, eu pintava a academia, com os meus preconceitos, como um
espaço totalmente diferente do que se é. Pensava que iria me deparar com uma atmosfera opressora de pessoas
não-fitness como eu, mas acabei me surpreendendo.

Calma aí. Não quis dizer que todos os estereótipos da academia simplesmente não existem. Na verdade,
quando se trata de musculação, infelizmente tenho o dever de confirmar seus medos. Há pelo menos dois ou três
daqueles caras bombados, que gritam “birl” quando levantam peso, circulando no ambiente. Não importa o horário
em que você vá. Um segredo que o Bambam não revelou pra gente naqueles memes é que esses caras são os que
menos malham. Eles parecem realmente enxergar a academia como um ambiente para ser social, tal qual um bar.
Outro dia me deparei com cinco deles reunidos em frente a uma das televisões estrategicamente colocadas para as
pessoas que estão na esteira se distraírem. Todas as esteiras vazias, eles comentando a partida de futebol que
passava na TV.

Quem não conhece a cultura da musculação muito julga esses bodybuilders, coitados. Nunca pensam na
pressão que eles sentem para pegar cada vez mais quilos nos braços. Certa vez avistei um deles pegando pesos de
vinte quilos para uma modalidade em que essa quantidade é bastante coisa. Parado em frente ao espelho, trajando
uma regata minúscula com a frase “DNA MUTANTE”, com fone de ouvido que mais parecia de piloto de helicóptero,
ele fez três honrosas repetições de doze. Bem lentas. Com cara de sofrimento. As veias dos braços saltando. O suor
escorrendo. Um gritinho abafado entre cada levantamento. No pain, no gain, meus amigos. Quando percebeu que
era demais para ele, sentiu-se derrotado. Colocou os pesos no lugar. Desistiu. Foi pro próximo exercício. Exercício
esse que não buscava fortalecer as pernas. Quem liga para pernas é mulherzinha.

Eu até me identifico com o bombado da academia oprimido, na verdade. Lembro de ter ficado surpresa com
o público que frequenta o espaço quando comecei a ir. Jovens, em sua maioria, todos eles já dentro de padrões
estéticos, usando um Nike da moda e um fone de ouvido bluetooth da Apple. Quando o personal trainer me
entrevistou para montar minha ficha de exercícios, fui inocente. Não queria me meter naquilo de correr atrás de
padrões. Eu já caminhava cerca de três quilômetros por dia, não era exatamente uma pessoa sedentária. Mesmo
assim, quando ele questionou qual era o meu objetivo, respondi que era me livrar do sedentarismo. E aí ele fez uma
ficha com base nisso. Duas semanas depois, vendo mulheres com pernas tão mais bonitas, tão mais magras, tão
mais que eu, procurei por ele e desabafei:

- Não aguento mais, meu parceiro. Vou ser sincera. Coloque o máximo de exercícios para pernas. Agora só
saio daqui com as coxas da Gracyanne Barbosa.
E assim iniciei minha jornada para entrar nos padrões também. Eu, que nunca liguei para marcas, comecei a
querer tênis da Nike também. E um fone legal para me isolar quando estivesse malhando. Quis começar a correr
mais rápido para perder mais peso, sendo que nem precisava. Tinha vergonha das minhas limitações corporais,
afinal de contas, que ridículo pegar tão pouco peso em tal máquina. Passei a checar com quantos quilos estava pelo
menos três vezes por dia. Pior é saber que isso acontece com basicamente todos, uma hora ou outra. A mulher que
é meu padrão não se acha padrão, e vê outra mulher como padrão. É a cultura da musculação: se comparar com
outras pessoas e buscar ficar igual a elas. Todo mundo meio infeliz, talvez se perguntando: por que eu comecei a
frequentar a academia mesmo?

Eu, particularmente, decidi que frequento academia pelas aulas de FitDance, pois a cultura da musculação
não é mesmo para mim. As aulas de FitDance são legais, vai por mim. É bacana, divertido, ninguém se julga. Quem
não gosta de dançar funk em dia útil para espairecer?
CRÔNICA 14:

Rivalidade no Rui Barbosa

Essa história vai muito além de uma discussão merda de machos, pra ver quem é o ‘alfa que tem o maior falo’ - credo, passei dessa fase
já faz um bom tempo! Se você já sofreu desrespeito, sacanagem ou até trapaça por algum motorista de ônibus, certamente vai me
entender e, no melhor dos cenários, vai regozijar-se com a minha vitória.

Aconteceu um dia desses, enquanto me dirigia à faculdade para apresentar um trabalho que foi jogado no lixo - isso fica para um outro
momento. Passei a manhã toda decupando uma entrevista de mais de uma hora de duração e batendo umas quatro matérias, enquanto
lidava com uma dor de cabeça que me fez vomitar e despencar a pressão arterial. Mal consegui almoçar. Entreguei tudo e parti: “Acho
que ainda dá tempo de pegar o ônibus das 13h20”, pensei.

Enquanto andava a passos rápidos pelo corredor do Jornal, fazia todos os cálculos possíveis pra ganhar mais tempo, em um diál ogo
insano com a minha consciência.

- Será que dá pra dar um mijão?


- Dá nada! Segura aí até chegar na Federal.
- Nem beber água, véi?
- Melhor não, pra não aumentar a vontade de mijar.
Ganhei todo o tempo possível. Passei o crachá voado na catraca e acelerei ainda mais o passo, olhando a todo tempo a disgraça do
quadrado cinza de Schrödinger, no CittaMobi do celular: “Vamo, meu amigo. Me ajude!” Não ajudou. Perto de dobrar a esquina, levanto a
vista e reconheço os traços do ‘dito cujo’. Era o Dois Irmãos/Rui Barbosa, parado no sinal da Suassuna! E eu tinha que pegá-lo. O
próximo, só em 20 minutos e isso significaria chegar na Federal por volta das 15h. Arriscado demais, pra aula de CONTEÚDO
CENSURADO PELO MINISTÉRIO DO BOM SENSO.

Nessa hora, pirraia, não tinha pressão baixa e nem bolsa pesada que jogasse contra. A playlist ‘CS 1.6’ no Deezer, tocando ‘Wait and
Bleed’ até ajudou, reconheço. Corri o quanto pude, dibrei uns dois carros, alcancei o ônibus de forma triunfal e bati no vidro da porta
dianteira, já esboçando o sorriso da vitória. Foi quando o puto do motorista - pasme! - esticou o braço e apontou para a parada da
Biblioteca Pública do Estado, 200m mais à frente: “É lá, boy!”, balbuciou, exibindo um largo sorriso no rosto.

Mermão, véi! Beleza que, de fato, ele não tinha a obrigação de abrir a porta. Beleza que, realmente, a parada era mesmo lá. Mas custava
nada, pô. Tudo bem. Dei-me por derrotado. Desolado, dei um legal meio irônico, mas conformado: “Tá massa, parceiro!” Abriu o sinal,
segui a minha caminhada, já aceitando que passaria mais 20 minutos naquela parada escaldante que algum imbecil projetou pra oferecer
o mínimo de sombra, com a possibilidade de ser assaltado e perder o computador que ainda vou passar um tempão pagando, e aind a
levar a velha ‘comida de rabo’ na aula.

O problema veio depois. Não satisfeito em ter ‘vencido’, o escroto ainda quis tirar onda com a minha cara. Parou para subir uma mulher e
ainda ficou com a porta aberta por uns 40 segundos, esperando o trouxa aqui sair correndo feito um donzelo. Véi, se tem uma coisa que
eu não faço na vida é dar gosto pro cão. Escorpiano todo, segui o meu passo normalmente, observando aquela traseira de busú com uma
mulher na propaganda de uma popular loja de calçados (que eu não vou dizer pra não fazer Merchan de graça aqui). Até que o nojento
deu partida e arrancou. Lamentei o fumo, mandei mensagem pra avisar que atrasaria na aula e joguei a velha cara de ‘fazer o quê, né?’
¯\_(ツ)_/¯.

Para a minha surpresa, pouco mais de cinco minutos, lá vem outro Rui Barbosa. Vazio, tinindo, garboso, esplendoroso e cheio de cadeira
pra sentar. O fumo seria menor. Entrei, dei o meu costumeiro ‘boa tarde’ ao motorista e à cobradora (afinal, nem toda a classe é escrota,
né?) e me sentei de boa.

A viagem seguiu normal. Joguei meu velho joguinho de botão no celular, monitorei o grupo do trabalho até ver que não deixei nada
pendente e tirei o velho cochilo de quem não dorme direito de noite. Afinal, tinha mais 1h e pouca de chão e engarrafamento até
desembarcar. Acordei já no fim do bairro de Casa Forte, assustado, conferindo se não tinha babado na gola da camisa e passado alguma
outra vergonha gratuita. Para a minha surpresa, olho pela janela e vejo quem? A MULHER DA LOJA DE CALÇADOS!

Meu ônibus alcançou o do escroto e virou uma questão de honra reverter aquela filhadaputagem. Na minha cabeça mórbida, veio até a
voz de Galvão Bueno narrando uma corrida de Fórmula 1, com Ayrton Senna e Alain Prost emparelhados na largada de Suzuka: “Bem
amigos da Rede Globo… Foi dada a largada!” Parada a parada, curva a curva, sinal a sinal, eu espichava a cabeça e cruzava os dedos,
torcendo pela minha McLaren MP4/4. “Só falta chover pra ficar mais épico”, pensei em um devaneio.

Seguiu assim, do Horto de Dois Irmãos até a Praça da Várzea, quando Ayrton entrou na curva à esquerda com a preferência. Só cabia
um ônibus. Ou o ‘francês’ seboso aceitava a derrota, ou ia bater e pagar o prejú. E não bateu. A partir dali, virou Mônaco. Pista única e
Senna na frente. Não passava nem moto. A vitória era certa e eu comecei a planejar a minha comemoração de vingança.

Quando desci na minha parada, ‘Prost’ ainda entrava na avenida da Federal, quando me avistou atravessando o meio da rua. Não fiz
cerimônia. Levantei os dois dedos no meio apontados para o céu, com um sorriso quase esquizofrênico no rosto. Aquele momento era
meu. Cheguei atrasado na aula? Sim, como sempre. Mas valeu tanto a pena, que eu nem me lembrava mais os fumos que tinha levado
naquele dia.

No dia seguinte, para a minha surpresa, quem eu vejo quando abre a porta do Rui Barbosa? ‘Prost’. Sorri automaticamente, enquanto ele
arrancava o ônibus sem sequer obedecer à ordem natural das marchas, provocando um solavanco que quase me fez cair. Mas segui
sorrindo, saboreando aquele sinal clássico de mal perdedor do meu rival. Dei ‘boa tarde’ à cobradora, já preparado para o novo solavanco
do tabacudo, que freava e acelerava de forma alternada na tentativa frustrada de me derrubar. Sentei em uma cadeira que pudesse mirar
o retrovisor, esperei ele olhar e levantei os pés na muretinha da porta do meio, com as mãos na cabeça e os cotovelos arqueados. Se não
bastasse vencer, ainda ganhei uma apoteose de brinde.
CRÔNICA 15:

Antologia poética

Dia desses tropecei numas releituras. Fuçava, insone, às 4 da manhã por algo pra ler quando as rugas da capa - no
rosto, não no livro, me chamaram a atenção para o volume bonito, azulado, da Companhia das Letras.

Folheando, parei nuns versos marcados alguns meses antes. O poeta, numa elegia que incomumente falava mais
sobre o homenageado que o autor, anunciava: "A poesia não faz acontecer nada".

Continuava nas linhas seguintes a intercalar rimas com a denúncia. O morto, um grande poeta irlandês, dedicou boa
parte da vida e da obra à salvação da Irlanda Louca, acometida pelo conflito contra os ingleses. Na morte, lhe
restaram só as palavras, que não mudaram uma agulha no mundo real - a Irlanda continuou louca e invariavelmente
contra os mesmos ingleses.

Reli várias vezes e dormi, absorta no diagnóstico, mais pragmático que cruel, do poema.

Nos dias seguintes, vi pela internet o fenômeno do #EleNão tomando até mesmo mares internacionais. De Madonna
a Mark Hamill, famosos de cacife hollywoodiano vieram nos salvar brandindo a hashtag. No meio cultural local, o
suplemento de cultura publicava poemas de protesto e belíssimos versos pela liberdade, contra o autoritarismo.

Dias de uma inquietação difusa generalizada, que tomou forma no desgosto trazido pelas pesquisas atualizadas.
Enquanto escrevo, as cifras confirmam liderança de um projeto de fascista nas intenções de voto. Para mim, a
inquietação concretizou-se ainda mais por causa do poeta das faces enrugadas, que já tinha diagnosticado, dias
antes: "Poesia não faz nada acontecer".

No eterno retorno das reações extremas a ações políticas completamente inócuas, repetimos o caminho dos EUA
nas eleições anteriores. Enquanto artistas - de sua bolha urbana, hollywoodiana - discursavam sob os holofotes
contra o autoritarismo em tons laranjas, o "americano médio" se preocupava em arranjar um emprego. Aqui no nosso
latifúndio, inacreditavelmente, repetimos até as figurinhas dos artistas anti-trump, com a diferença de que o escopo
da pobreza e do desamparo de quem tem problemas concretos demais para se preocupar com abstrações é muito
maior no Brasil. Afinal, entre o médico que poderia curar o pneumotórax e os músicos que tocaram o tango,
certamente Manuel Bandeira teria escolhido seu conforto acima da poesia.

Alguns poemas mais tarde no mesmo volume, Auden, da profundidade intelectual de suas bonitas rugas, afirma ser a
bondade uma realidade que podemos encontrar até nas salas apinhadas de gente jogando conversa fora. Mas a
maldade também come na nossa mesa, dorme na nossa cama. À medida que a poesia não muda a vida real, o
potencial para a desumanização de quem não a enxerga como instrumento de mudança social também é perverso. E
os poemas de protesto empáticos, belíssimos, sensíveis, usados contra o caudilho da vez são nada mais que um
simulacro de ação política.

O potencial dessas palavras, acredito, não está na mudança social massiva, mas numa esfera individual - na empatia
e no contato entre subjetividades que a poética, a beleza artística, proporcionam. Auden provavelmente vai
reverberar sobre toda minha experiência sensível futura, então fico feliz ao saber que essa também tenha sido sua
ideia: a poesia como um impacto metafísico, não social.

Mesmo não tendo os artistas e arte o poder prático de curar nossas mazelas sociais, felizmente nada impede que
acompanhemos Manuel Bandeira, e Auden, ao aproveitar esse tango.
CRÔNICA 16:

A dor e a delícia de crescer

Olhando o facebook dia desses, reparei em uma postagem da minha irmã Juliana com o seguinte texto: ‘’o jovem
hoje só pensa em uma coisa: se formar, ter um bom dinheiro, morar sozinho em um apartamento, sem ninguém para
incomodar fazendo barulho’’

Ah, como os 14 anos de idade é tão genuinamente puro, inocente e sonhador. Mal sabe Juliana que, depois que a
gente cresce, ter um apartamento pra morar sozinho e não ser incomodado, não é exatamente nossa prioridade
imediata. Depois de finalmente conseguir responder (talvez, ainda com dúvidas) a pergunta ‘’o que você quer ser
quando crescer?’’ a vida vai ficando mais acelerada. Precisamos nos graduar, se encontrar na profissão, conseguir
estabilidade financeira tudo isso de forma rápida... Aí a realidade bate na nossa porta. Cobranças (internas ou
externas), decepção com a graduação, insistência por parte do tio, pai ou mãe pra tentar concurso público porque é
melhor e te paga bem... E assim, a gente vai empurrando com a barriga até conseguir chegar na colação de grau.

É exatamente por isso quem nossas prioridades vão mudando com o passar do tempo. O jovem ‘’que cresceu mais
um pouquinho’’ pensa em coisas mais simples como: ter um emprego que pague razoavelmente bem, conseguir sair
com os amigos no fim de semana, se mimar com um presentinho ou outro, passar uns dias na praia e até mesmo ter
uma graninha extra para fazer terapia. Talvez, algum dia ‘’o apartamento para morar sozinho sem ter ninguém para
incomodar fazendo barulho’’ entre lista de desejos, mas a prioridade ainda não é essa. E isso, de forma alguma, é se
contentar com o pouco. Tá tudo bem se for assim.

No auge dos vinte anos consigo enxergar dessa forma, mas um dia já fui como Juliana. Na minha adolescência,
sonhava em fazer um intercâmbio pela Europa e morar com minha melhor amiga quando completasse dezoito anos.
É engraçado perceber o quanto a gente cresce e tudo muda. Nessa coisa de mudar, alguns sonhos se reinventam e
parece que a outra parte vai diminuindo aos poucos. Dessa forma, gente vai perdendo a capacidade de sonhar.

Tá aí uma das coisas mais legais de ser adolescente. Eles sonham. Fazem projetos de vida que aos nossos olhos
podem de alguma forma não dar certo, mas eles acreditam como toda força e convicção. É mágico estar nessa fase,
justamente por ser um intenso e bonito momento idealizações.

Que um dia possamos retirar da caixinha quem já fomos há seis ou sete anos atrás e que possamos olhar com
carinho para tudo aquilo que pretendíamos fazer e por algum motivo maior ou imprevisto, não fizemos. Pode ser
aquele desejo de mudar o mundo ou de ter um cachorro pra chamar de seu.

Por fim, não faço ideia de como Juju vai estar quando estiver com minha idade (ainda faltam uns sete anos para que
isso), mas espero que consiga enxergar que a vida não precisa ser somente isso e que ela nunca esqueça dos
sonhos de quando foi uma garota de quartorze anos.
CRÔNICA 17:

Era só uma aparadinha

Eu só queria cortar o cabelo. Não são longas madeixas, nem exigem grandes cuidados, apenas uma simples
execução daquilo que se está catalogado na tabela de preços como “corte masculino”. Basta apenas água e uma
tesoura, no máximo uma navalha para os rodapés deste grande exemplar de cabeça. Eu até consegui, após quatro
horas em uma tarde de quarta-feira, escutando uma playlist que acredito ter o título “Nando Reis: As Mais
Entediantes”, além dos R$ 30 a menos na conta.

Não sei se é a sinuca ocupando a maior parte no centro do espaço, os fliperamas espalhados, a geladeira com todas
as variedades de cervejas ou, até mesmo, a decoração com nomes da bandas de rock dos anos 1980 (que não
deveriam ter chegado aos anos 1990). Talvez seja tudo isso que os faz acreditar que esse seja um ambiente em que
se é aceitável esperar entre 1h30 e 2h por cada pessoa que está na sua frente na fila do corte, mesmo que sejam
todos simples e realizados por, pelo menos, quatro ex-cabeleireiros, agora barbeiros.

Após três horas sentado, observando um garoto descobrir qual o nível máximo de barulho ele poderia fazer chocando
uma bola de sinuca na outra, fui convidado para aquela quase escondida área do estabelecimento, que deve ocupar
um quinto do espaço, onde são realizados os cortes. As instruções foram “só uma aparadinha, para ele não ficar tão
sem jeito”. Ele parecia ter entendido e começou sua artesania. Contei, no mínimo, umas quatro tesouras diferentes,
serrilhadas, com dentes, pontudas, além de máquinas, navalhas e prendedores. Diversidade também era vista no
arsenal de pentes, justificável, já que ele passava a maior parte do tempo penteando e medindo do que fazendo
algum corte.

Ficou uma merda. A “aparadinha” levou bem uns 70% do meu cabelo, me deixando mais uma vez distante do sonho
de uma juba Jim Morrison, resquícios de uma adolescência rebelde. No final, sempre chega aquele espelho para a
visualização da parte traseira, acompanhado do “E aí? Ficou bom?”. Confrontações não são meu forte, eu só queria
ir para casa, então confirmei para evitar qualquer climão. Ao pagar os chorados R$ 30, a moça do caixa solta um
“ficasse outra pessoa”. Sorri, pensando que realmente fiquei, uma com um pouco mais de ódio no coraçãozinho. Não
cortar o cabelo está sendo muito mais uma escolha de conforto do que estética. Obrigado, jovens barbearias
olindenses.

Lembro que as coisas já foram mais fáceis um dia. Antes das barbearia e da desistência de cortar o cabelo, tudo era
resolvido com Williamys, conhecido como o “Irmão” por seus clientes. Era cabeleireiro, nada de barbeiro, e com uma
eficiência que nada deve a essa nova geração. Seu salão ficava em uma das principais avenidas de Rio Doce, não
havia nenhum letreiro ou placa na porta, mas todo mundo sabia do serviço de qualidade que havia lá.

Música gospel era o som ambiente em qualquer horário, mas não incomodava, passava no máximo uma hora lá, isso
em dias de maior movimento, com apenas duas pessoas fazendo os cortes. Sentado na cadeira, o jogo era rápido.
Adepto da tesoura/máquina, navalha e água, eu estimo uns 25 minutos no máximo até ele jogar aquele talco cheiroso
no pescoço. Se alguma coisa não estivesse nos conformes, era só dar um toque que ele ajeitava igualmente rápido.
Tudo por R$ 15, talvez R$ 20 hoje com as correções inflacionárias. A saída de lá sempre era premiada com um
caldinho e uma coca no bar com papai. Memória afetiva das boas e sem Nando Reis presente.

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