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Universidade de Brasília – UNB

Instituto de Ciências Humanas - ICH


Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
Disciplina: Seminário 2 Discurso, Imaginário e Cotidiano código: 339491
Professoras: Thereza Negrão e Márcia Kuyumjian
Período: 1o/2002 12/08/02

Aluno: Luís Fernandes do Nascimento Lima (aluno especial – mestrado) matrícula: 02/61424
Aluna: Stella Montalvão Ferraz matrícula: 01/36182

Ficha de Leitura

a) Referência bibliográfica completa


BUENO, André. Sinais da cidade: forma literária e vida cotidiana. In: LIMA, Rogério & FERNANDES,
Ronaldo Costa (orgs) O imaginário da cidade. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. pp. 89-110.
b) Tema do texto
A relação entre a forma literária e a vida cotidiana na cidade e na metrópole capitalista.
c) Objetivos do autor
A partir de uma abordagem dialética do cotidiano urbano e capitalista, o autor defende que diversos
escritores partem de uma visão baseada no estranhamento (conceito retomado de Marx e Freud pelo
autor) para construir suas narrativas.
d) Conceitos principais
Entfremdung – estranheza/estranhamento
Marx: distância, alheamento, alteridade, fragmentação e opacidade.
Freud: alienação, distanciamento, alheamento, desrealização (sentimento de irrealidade, sensação
de estranhamento).
Alienação – “(...) usado para indicar as crises e os conflitos de sujeitos sociais cindidos, fragmentados,
sem raízes, à deriva, muitas vezes anômicos e expostos à violência de uma vida cotidiana burocrática e
impessoal, que parece ir muito além de qualquer entendimento ou controle humanos.” (p.89)
e) Estrutura e linha de argumentação
O texto não se encontra formalmente dividido, mas pode-se perceber uma seqüência bem delimitada.
O primeiro bloco se refere às duas visões extremas do processo de urbanização:
 O anticapitalismo romântico (Lukács) que tem sua origem no mal-estar na metrópole moderna e
contemporânea criada pelo capitalismo (Marx e Freud) -“É recorrente a reação ao mundo urbano
como violência, ruptura de raízes, alienação, impessoalidade, empobrecimento da experiência e
dos vínculos culturais, afetivos e familiares (...)” (p.89) que geram a nostalgia do passado, o
sentimento de decadência1 (Ortega y Gasset - “A Revolta das Massas” e Nietzsche)
 A idealização do futuro - o sonho milenarista de um apocalipse seguido do paraíso2.

1
A decadência vista pelos intelectuais a partir do surgimento das massas é o tema de CAREY, John. Os intelectuais e as massas
– orgulho e preconceito entre a intelligentsia literária, 1880-1939. São Paulo: Ars Poética, 1993.
2
Sobre milenarismo, ver ELIADE, Mircea. “Escatologia e Cosmogonia” In: ____________ Mito e realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1991. p. 53-69.
O autor nega estas posições extremistas – “a crítica extrema ou extrema aceitação da metrópole
contemporânea” (p.92) - posto que redutoras da realidade e define-se por uma posição dialética que
considera “o movimento histórico, complexo e contraditório”(p.93) como base para uma análise da
relação entre forma literária e vida cotidiana urbana.
O segundo bloco traz uma análise do conceito de estranheza/estranhamento em Marx e Freud como
embasamento teórico para análise da leitura que fazem os escritores dos “sinais da cidade”.
Esse estranhamento surge na narrativa nos personagens cindidos, “(...) sujeitos que se sentem
estranhos, estrangeiros, longe de casa, em relação à vida cotidiana na grande cidade e na metrópole (...)
(p.96) E a “religação” deste sujeito acaba sendo procurada, muitas vezes, em manuais de auto-ajuda,
terapias e religiões diversas ou dissolução do homem no coletivo.
Ao mesmo tempo, em uma visão dialética, destaca-se a possibilidade do ser humano de, na vida
comunitária, estabelecer relações solidárias e pessoais “que dê satisfação e permita encontros, que
fortaleça o indivíduo.”3 (p.97)
Nesse sentido, o autor afirma que “os sinais da cidade, como aparência e fenômeno, são um ponto
necessário de passagem, mas não de chegada, para uma elaboração crítica da vida cotidiana, opaca,
atravessada sempre pela ideologia, que é força prática e também comunicação distorcida.” (p.94)
Quanto à possibilidade de a forma literária buscar um realismo puro, o autor afirma: “Evitam-se, desde
logo, os falsos problemas teóricos e analíticos, pois não se trata de um campo configurado e legível que a
forma literária pudesse diretamente espelhar, imitar, refletir ou copiar, sem maiores problemas. Longe
disso, trata-se da vida cotidiana na cidade e na metrópole capitalista como campo configurado de
opacidades, de sinais que estabelecem comunicação difícil e distorcida, não cabendo à forma literária
tornar esse lugar legível e transparente, confortável e pacificado. Talvez seja mesmo mais produtiva a
hipótese de forma literária como lugar de elaboração, também sutil e complexa, sempre contraditória,
desse campo configurado da vida cotidiana e da experiência humana.” (p.98)
Assim, o centro de sua argumentação é discutir “como é que a forma literária lida com esse mundo
urbano da estranheza, do alheamento, da alteridade, da fragmentação” (p.99). Nesse sentido, ele afirma
que: “A partir do presente, pode-se sugerir que trata disso fornecendo uma imaginação crítica e ampliada
da vida cotidiana e histórica, dando espaço para que o leitor confronte, digamos assim, uma estranheza (a
da forma literária) com outra estranheza (a opacidade da vida cotidiana, os fetiches da mercadoria, os
sinais dispersos, a apenas aparente falta de hierarquia na reprodução do cotidiano).” (p.99)
O terceiro bloco apresenta uma análise a partir de textos de diversos autores que construíram suas
narrativas perpassadas por essa noção de estranhamento discutida pelo autor. São citados os seguintes
autores:
Kafka – o cotidiano modificado radicalmente sem explicação, a convivência na contradição4,
Joyce – o inesperado no banal (Ulisses);
Brecht – é fundamental na visão de teatro de Brecht a visão do distanciamento;
Formalistas russos – a ênfase na linguagem e literalidade como “estranhamento”.

3
É possível perceber uma aproximação com o conceito de socialidade de Michel Maffesoli.
4
São exemplos clássicos: Metamorfose e O Processo.
Há um destaque para a obra dos seguintes autores: Júlio Cortázar, Ricardo Piglia, José de Saramago e Ítalo
Calvino, como representantes “de variações em torno do realismo, por meio de procedimentos
construtivos bem variados nos quais está sempre presente algum grau de estranheza/estranhamento, nos
detalhes, no todo, nas articulações das partes, no movimento dos personagens, na visão de mundo que se
apresenta ao leitor. São narrativas que variam em torno do realismo, porque os adjetivos estranho,
fantástico, absurdo, surreal, mágico só ganham sentido por contraste e em tensão com a própria espessura,
complexidade e resistência do real.” (p.101)”
Cortázar:
Romances:
Los autonautas de la cosmopista o Um viaje atemporal Paris-Marsella – viagem dos amantes posto à
margem, quebra temporal e social;
Rayuela – personagens sensíveis à estranheza do cotidiano;
História de cronópios y famas – quebra do cotidiano estabelecido;
Último round e La vuelta al día en ochenta mundos – quebra das convenções literárias;
Contos:
La autostrada del sur
Las babas del diablo a estranheza na multiplicidade de olhares
Apocalipse de Solentiname
José de Saramago:
O ano da morte de Ricardo Reis – um personagem que, no presente, retoma a História Portuguesa;
História do Cerco de Lisboa – deslocamento do cotidiano;
Todos os nomes – o cotidiano deslocado pela busca de uma desconhecida;
Ensaio sobre a Cegueira – crise de valores apontando a humanização possível;
Ricardo Piglia:
A cidade ausente – um mundo paralelo, virtual, que nega o princípio de realidade;
Ítalo Calvino
As Cidades Invisíveis - diálogo entre Marco Pólo e Kublai Khan, resistência ética e política;
Marcovaldo ou as estações na cidade – o vagabundo de Chaplin, a cidade como o Outro adverso;
Paul Auster
The invention of solitude – a memoir – consciência solitária do sujeito – solidão e memória.
f) Conclusões do autor
“Muito diferentes entre si, guardam, no entanto, esse ponto de contato fundamental para a imaginação
literária como percepção crítica e ampliada da realidade: o exame atento e cuidadoso, irônico e amoroso,
racional e sensível, da condição humana vivida no contexto da cidade e da metrópole capitalista
contemporânea.” (p.110)
“Em todos, lemos as sutilezas humanas em confronto com processos impessoais, que desumanizam e
acabam por afirmar a violência e a barbárie contra o que podemos, ao menos, imaginar como sociedade
civilizada, justa, que proteja o sujeito contra a violência cega e amplie o campo do possível. Se o real
resiste, a forma literária continua sendo o lugar da crise, do conflito e da contradição, de tudo que não
pode ser pacificado e integrado ao existente, sem restos.” (p.110)
g) Críticas ao texto
A diversidade de exemplos no sentido de clarificar a forma como os escritores aplicam esse conceito de
estranhamento, em alguns momentos, dificulta a compreensão. Mesmo que consideremos que o autor
citou grande número de obras no sentido de “provocar um interesse” do leitor por esses textos, talvez
fosse melhor optar por menos textos e analisá-los com mais profundidade.
h) Dúvidas e indagações
A afirmação de que “Como Água para Chocolate” de Laura Esquivel, apresentado como pertencente a
uma vertente do realismo mágico latino-americano, é uma reunião de clichês e “truques de mágicas
folclóricos e banalizados” parece superficial. Em que pressupostos se baseia o autor para fazer tal
afirmação?
i) Sugestões de leitura
Ensaios:
As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino – http://www.cce.ufsc.br/~neitzel/tese/cidades.htm
A Cidade Ausente de Ricardo Piglia – http://www.hispanista.com.br/revista/artigo50.htm
Cortázar Poliédrico – http://www.wblivros.com.br/especial/juliocortazat.shtml
Cortázar e os jogos das construções hipertextuais:
http://geocities.yahoo.com.br/ciberliteratura/tese/jogo.htm
Saramago – Ensaio sobre a Cegueira – http://www.ipn.pt/literatura/letras/crit019.htm
Saramago – História do Cerco de Lisboa – http://www.ipn.pt/literatura/letras/crit008.htm
Paul Auster - http://www.unicamp.br/iel/memoria/ensaios/eliane.html (trecho)

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