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z ls oe a Zoos < a 2 ° 2 22 6 aS s$ efE #8 Boe 4 Bg z 3g é Soa 7 é A poesia sopra onde quer. Murilo Mendes I No Engenho do Pau d’Arco, na Paraiba, nas ruas do Recife e de Jodo Pessoa, nos primeiros anos deste século, cismava, softia, escrevia poemas, um homem jovem, magro ¢ taciturno, ‘que se tornaria conhecido na historia da literatura brasileira pelo nome de Augusto dos Anjos. Nascido ecriado sob o regime rural do patriarcalismo, alimen- tado com leite de escrava, Augusto (de Carvalho Rodrigues) dos Anjos descende pelo lado materno de antigos senhores de terras, os Fernandes de Carvalho, proprietarios de engenhos za varzea da Paraiba, & margem do Rio Una, um dos afluentes do rio maior Nasceu a 20 de abril de 1884. Em 1892, os dois engenhos de propriedade da familia, 0 Pau d’Arco e 0 Coité, arcaicos, movidos a agua, so hipotecados. Com a baixa do prego do agiicar e da aguardente, a situacdo financeira da familia se agrava, o Coité é vendido, como o seria também, mais tarde, © proprio Pau d’Atco, residéncia dos Carvalho, onde Augusto escrevera tantos de seus poemas. O pai do poeta, dr. Alexandre Rodrigues dos Anjos, vitima de um insulto cerebral, esté imo- bilizado numa cama. Morre em 1905. O tio, dr. Aprigio Carlos TBaRBOSA, Francisco de Assis, “Notas BiogeSficas” in Eu, 30¢ed, Ride Janico: Livraria Sdo José, 1965. 15 annette Pessoa de Melo, morre em 1908. Dois anos depois, a fami se desfaz. do Pau d’Atco, do qual jé se mudara, transferindo-se para a casa da rua Direita, 103, na cidade, £ nesse ambiente de decadéncia, doenga e luto que vive Augusto dos Anjos. Mas o que desmorona nfo é apenas sua prépria familia: € todo um amplo setor da classe latifundidria do Nordeste atingida pelas transformagdes econémicas, sociais, € politicas das tltimas décadas: a aboligdo da escravatura, a proclamagao da Reptiblica, a construgdo da The Conde d’Eu Railway Company Limited, o estabelecimento da Companhia de Engenhos Centrais anglo-holandesa.? £ a penetragdo do capitalismo que, se por um lado significa progresso, por outro agrava a miséria legendéria da regio. Assim, tudo em sua volta parece estar morrendo, desmoronando: E eu me converta na cegonha triste Que das ruinas duma casa assiste Ao desmoronamento de outra casat No ambiente universitério do Recife, em cuja Faculdade de Direito se formaré em 1907, Augusto entraré em contato com o espirito cientificista que se tornara tradigao da famosa Escola do Recife, a partir de Tobias Barreto. Ali, certamen- te, tomou conhecimento das varias doutrinas derivadas do materialismo ¢ do evolucionismo (Comte, Haeckel, Darwin, Spencer), que marcariam profundamente sua visio de mundo e sua poesia. Lendo Spencer convenceu-se de que a ciéncia é incapaz de penetrar a esséncia das coisas — 0 incognoscivel —, a realida- de absoluta que seria fonte de todo o conhecimento humanos que 0 evolucionismo nao era um fendmeno limitado aos seres biden, 16 vivos mas se estenderia a todo 0 mundo material e também & sociedade humana, Com Haeckel aprendeu que a monera es- tava na origem de todos os seres animais. Dessas concepcdes materialistas, atingiu-o sobretudo a nogio da morte como fato material, da vida como um processo quimico dentro do qual o corpo humano nao era mais que uma organizagio “de sangue e cal”, condenada inapelavelmente ao apodrecimento e a desintégragao. A isso veio somar-se a influéncia de Schope- shauer, com seu idealismo voluntarista que nega 0 progress hist6rico, afirma que a esséncia do mundo é uma vontade cega ‘¢apresenta como iinica perspectiva para o homem, condenado 0 sofrimento, o aniquilamento da vontade de viver. Essa filo- sofia negativa se tornava tanto mais aceitavel para Augusto dos Anjos porque apresentava a arte como o caminho para atingir a ideia de Homem Absoluto, Tanto a filosofia de Spencer como a de Schopenhauer re- fletem a atitude de setores da sociedade europeia em face do avango da ciéncia e da técnica. Por caminhos diversos, che- ‘gam ambos a uma concepgao negativa do processo social e do destino humano. O Nordeste de Augusto dos Anjos nao conhecia nem as conquistas cientificas nem os avangos sociais ‘© econémicos contra os quais surgiram aquelas filosofias. No ‘entanto, na dialética da cultura dependente, elas se tornam, para 0 poeta, a expresso do desmoronamento do seu mundo pré-industrial. De fato, na realidade que o rodeava — marcada pela misétia fisica e social das familias falidas, dos caboclos e negros famintos, do tio louco a vagar pelos matos —era dificil descobrir argumentos para contestar o niilismo que aprendera ‘nos livros. Pelo contrario, tudo o confirmava.? E, mais que isso, oferecia-Ihe, sendo um consolo, pelo menos uma expli- REGO, José Lins do. “Augusto dos Anjos eo Engenho do Paud'Atco” ie Augusto dos Anjos — INL, 1973, 7

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