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LOO IR IE Os géneros literdrios — um subgénero narrativo tendeu, no decorrer da historia da literatura, a sobrepor-se a outros da mesma familia: 0 romance, que se tornou hoje uma forma hegem@nica capaz de absorver todas as variantes da narragio. Esse “canibalismo” do romance (a expressio é de Virginia Woolf), longe de ser uma apoteose gloriosa, poderia marcar, segundo alguns, uma degradagio do gosto: “O romance é 0 ciimulo da grosseria — todos com- preenderio isso um dia, (..) © romance & um géne- to Iiterério que convémn & mais vasta © & mais ingé- tnua classe de leitores.” Valery, Obras, tomo II, Gallimard, col. “Bibliotheque de la Pleiade”, pp- 1146 ¢ 1232, ‘Mas esse problema vai akém dos objetivos deste livro, 128 4 A POESIA E O GENERO LiRICO 1. UM GENERO INCERTO Ainda que venhamos sentir uma certa decepgéo, devemos admitir que, caso facamos referéncia aos funda- mentos da teoria literdria, a poesia ndo constitu! um géne~ 10. O tratado de Aristoteles, A Poética, de onde procede toda reflexio sobre os géneros, abstém-se de descrever em detalhes uma forma original que seria, em simetria com a narragio ou com o teatro, algo de equivalente & “poesia”, no sentido moderno da palavra. Essa dificulda- de & confirmada a propésito de trés critérios que pode- iam definir a estética da poesia e do Krico: a utilizacéo do verso, o papel da subjetividade, a relagio a fiogio. 1.0 critério do verso Asarteslterrias(“pocticas”, como dizo tebrico gre~ £0) “acabam sendo todas, de uma maneira geral, imita- 129 cceeieemeeeeeeee Os géneros literdrios es” (1447a). Em meio a essa mimese generalizada estabelecem-se muitas diferengas, como vimos, de acordo com 0s objetos imitados (superiores ou inferiores), com 10s modos de imitacio (direta ow indireta, isto é modo narratho ou dramético), enfim, de acordo com os meios postos em acéo para imitar (prosa ou verso). Essa éiltima distingio —, que de fato € a primeira no discurso de Aristételes — que corresponde ao que poderiamos cha- mar de uma caracteristica de forma, poderia ser seleciona- a como um crtério de agrupamento, com vistas & iden- tifleagio de um género “poético”. Com uma tinica reser- va: 0 tratado de Aristteles limita-se a desenvolver os dois ‘outros niveis (“objetos” ¢ “modos”) e negligencia 0 exa- ‘me detalhado dessa oposicio formal entre verso e prosa Essa relativa indiferenca diante de uma particularida~ de que nds terfamos tendéncia a julgar essencial deve-se 40 fato de que, para os antigos, ela nio poderia consttuir uum trago pertinente de classificagio, De fato, os dois grandes modos literérios (0 dramético € o narrativo) encontravam uma expressio, indiferentemente, na prosa € no verso. Ou, melhor, sendo a forma prosaica relativa- ‘mente rara na Antiguidade, seria quase licito dizer que, para os antigos, toda forma lterdra é Spoética”. O que é ilustrado, no género dramético, pela poesia trégicae, no sgénero narrativo, pelo ditirambo ou pela epopéia. A dis- tingio genérica — se & que se pode atribuir essa ambigdo a Postica — parece, portanto, transcender o principio de 130 LP Te A poesia e 0 género Iirico scrita para findamentar-se em outros principios tipolé- -gicos, como o modo de enunciagio (primeira ou terceira pessoa) ou o grau de “nobreza” do modelo. nessa perspectiva que se explica 0 primeiro sentic do da palavra “‘poética” (enquanto substantivo ou adjeti- Vo, este tltimo varidvel em género), referencia etimolé- ica que desencoraja, de uma ver por todas, qualquer tentativa para isolay, a partir dos modelos antigos, um “género poético”. O substantivo pottica,escolhido por Arist6teles como titulo para seu tratado (ou para aquilo ‘que nao passa de um esboco disso) serve-Ihe para desig nar globalmente a teoria dos géneros literdrios ea teoria do discurso. As primeiras palavras da obra descrevern o objeto visado através de uma perffrase da “arte poética: “Vamos tratar da propria arte pottica e de suas espé- ies, do eleito préprio a cada uma delas, da maneira pela qual € preciso agenciar as hist6rias, caso se deseje ter éxito na composicdo.” A Roba, op. ct 14473 A postica, diferentemente da critica (que se interes- sa pelo sentido e pelo valor) ou da retérica (que estuda 4 lels da expressio), apega-se a criagdo sob todas as suas formas. A palavra vem do verbo notev (pica), que sig- niflca, em grego, “fabricar”, “construir", “criar, Spro- duzir”, e que nos deu a série lexical pits (poesia), poid- thos (poética), poitma (poema), pods (poeta). 131 Os géneros literdrios A palavta poesia tendeu muito rapidamente a espe- Cializar-se numa acepcio literéria, mas pode também se aplicar a qualquer tipo de fabricagio ou de construgio concreta (navios, por exemplo) ou abstrata (um raciocf- nio). Em todo caso, segundo o hébito, ela € empregada ‘com um epiteto que indica sua caracterizacio especifica em cada caso; assim, em literatura, poesia trigica, poesia épica, poesia ditirambica etc. Aristételes — e também Platio, que em relagio a esse ponto fot seguido pelo primeiro — parece ter, como diz Genette, “prévia e implicitamente reduzido 0 campo da literatura a0 dominio particular da literatura representativa: poss = mimese (“Fronteiras da narrativa”, Figuras II, op. ct. p. 61). No interior da poesia encontram-se distinguidos trés géneros miméticos: a tragédia, a epopéia, a come dia, mas nada que designe uma escrita especifica basea- da na utilizagio do verso, Aristételes contesta claramen- tea pertinéncia axiomética do metro: “Nio saberfamos, de fato, designar por um termo comum (..) aS imitagBes que se podem fazer com a ajuda de trimetros, de metros elegfacos ou de outros ‘metros do mesmo género.” A Poética, op. ct. 1447. E 0 teérico grego nos explica que tanto Homero quanto Empédocles utilizam, ambos, o metro, mas que 132 ee A poesia ¢ 0 género Ifrico uum deles (0 primero) pode ser justamente chamado de poeta, a0 passo que o outro (0 segundo) deve ser chama- do de “naturalista”, porém por razSes que nao dizem respeito a forma de sua escrita, Um pouco mais adiante em seu texto, ele faz a mesma reserva a propésito de Herédoto, lembrando a invalidagio do critério formal em proveito do assunto da obra e de seu grau mimético: “A diferenca entre o historiador e 0 pocta nio se deve ao fato de que um se exprime em versos ¢ 0 ‘outro em prosa (poderiamos p8r a obra de Heré~ doto em versos, e nem por isso, ela seria, em versos, ‘menos histéria do que é em prosa); mas a diferenca vem do fato de que um diz o que ocorreu, ¢ 0 outro, aquilo que podemos esperar que ocorra.” A Pottica, op. ct. 1451b, reconhecimento da poesia que é formulado por esse texto (em ruptura com 0 julgamento negativo do tmestre Plato, que, no livro IIT de A Replica, expulsa 0 poeta da cidade, com o pretexto de que ele dé uma ima- ‘gem falsa da realidade) ndo deve nos dispensar de reter algo que ¢ essencial para nossos propésitos: que a poesia nio parece, no que diz respeito a sua forma, merecer constituir um género auténomo, Se ela vern insinuar-se nos modos identificéveis que sio a epopéia, a tragédia ou © ditirambo, ela perde, nessa alianca, toda e qualquer caracteristica de originalidade. Mas quando ela se exprime 133

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