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Barbara Busch O Ressentimento PDF
Barbara Busch O Ressentimento PDF
Belo Horizonte
2013
BÁRBARA BUSCH TAVARES
Belo Horizonte
2013
Para o Vlad.
AGRADECIMENTOS
Aos professores Carlos Roberto Drawin e Márcia Rosa, pela leitura e participação na banca
examinadora.
A minha mãe, Helenice, e meu pai, Ubirajara, pelo incentivo e por ensinarem a importância
do conhecimento.
A minhas irmãs, Amarílis e Adriana, pelo apoio e pelas tentativas de me tranquilizarem nesse
período.
Aos amigos Cris, Fafá, Gabi, Henrique e Suzi, pela presença constante.
Sá de Miranda
O presente trabalho tem por objetivo investigar como o ressentimento poderia ser abordado
por um viés psicanalítico. Por não se tratar de um conceito explicitamente teorizado por
Freud, era de suma importância que uma descrição do ressentimento fosse feita, a partir da
qual interrogaríamos seu lugar na psicanálise. Encontramos na literatura, no livro Memórias
do subsolo, de Dostoiévski, um personagem – o homem do subsolo –, uma descrição quase
ideal. Vemos nesse homem-rato um indivíduo em constante diálogo interior, com uma
consciência que ele designa como hipertrofiada, mas que, de algum modo, atrofiou seu agir no
mundo. Diante da sua impossibilidade para a ação, ele encontra apenas na faculdade
imaginativa um meio de desafogar sua raiva. Para embasar conceitualmente o fenômeno,
partimos das formulações de Nietzsche acerca do ressentimento, abordadas prioritariamente
na Genealogia da moral. Nesta última, lemos que o ressentimento seria marcado por uma
reatividade e uma impossibilidade para esquecer os agravos sofridos, que culminam em um
não querer mais esquecê-los. Vemos que o ressentido encontra na vingança imaginária uma
forma de reação. Impossibilitado de exteriorizar sua agressividade, esta se reverte contra si
mesmo; pelo tratamento da moral, o sofrimento interiorizado passa a ser buscado como forma
sedativa da sua existência. Buscamos entender as consequências perniciosas do ressentimento
na dinâmica psíquica, como esse remorder constante na consciência poderia ser lido por um
aspecto libidinal. O fator patogênico do ressentimento, que paralisa os investimentos
libidinais, revelou-se também como um mecanismo de defesa, com intuito de proporcionar
satisfação e integridade narcísica. Com o conceito do narcisismo, foi possível revelar uma
instância que vigia, cobre e pune o Eu. Diante desse panorama, investigamos a forma com que
o Eu pode se comportar diante da sua consciência moral, que se encontra acolhida pelo
Supereu. O que percebemos é que haveria um masoquismo do Eu, que se comprazeria por ser
punido pelo Supereu sádico. O masoquismo moral apareceu como uma categoria especial para
pensarmos o ressentimento. Isso porque o rato do subsolo nos ensinou que, quando se impõe
situações humilhantes e as rememora constantemente, extrai dessa posição um prazer. É,
portanto, uma busca por sofrimento, e o ressentimento poderia ser uma forma manifesta da
necessidade de punição. Assim, ao se impor a tarefa de investigar um fenômeno que foge ao
escopo tradicional da psicanálise, recorremos às contribuições que outras áreas do
conhecimento – a filosofia e a literatura – ofereceriam para a consecução do trabalho. O que
ficou claro é a irredutibilidade do ressentimento a apenas um conceito psicanalítico,
impedindo uma relação de pura equivalência entre as conceituações de Nietzsche e de Freud.
Entretanto, esse encontro, e incluímos aqui Dostoiévski, revelou-se profícuo para refletirmos
acerca do ressentimento na psicanálise.
The present study aims to investigate how to approach resentment by a psychoanalytical view.
Due to the fact it is not a concept explicitly theorized by Freud, it was of utmost importance
making a description of resentment, based on which we would ask about its place in
psychoanalysis. We found in literature, in the book Memoirs of the subsoil, by Dostoevsky, a
character – the underground man – an almost ideal description. We see this rat-man as an
individual in a constant inner dialogue, bearer of a consciousness he designates as
hypertrophied, but which, somehow, atrophied his acting in the world. Before his inability for
action, only in the imagination capacity he can find means to vent his anger. To set a
conceptual support to the phenomenon, we set off based on Nietzsche’s formulations about
resentment, primarily addressed to in the Genealogy of Morals. In the latter, we can read that
resentment would be marked by a reactivity and some inability to forget the grief once
suffered, what would culminate in a lack of will to forget them. We observe that resentment
finds in imaginary revenge a form of reaction. Unable to externalize his aggressiveness, it is
reverted against himself; under the treatment of morale that interiorized suffering begings to
be sought as a way of sedating the man’s own existence. We seek to understand the pernicious
consequences of resentment in psychic dynamics, how could that constant gnawing of
consciousness be read by a libidinal aspect. The pathogenic factor of resentment, which
paralyzes libidinal investments, has also revealed itself as a defense mechanism, in order to
provide narcissistic satisfaction and integrity. By the concept of narcissism, it was possible to
reveal a stance that watches over, covers and punishes the Ego. Before this scenario, we
investigated the way that Ego may behave facing his moral conscience, which is hosted by the
Superego. What we notice is that there would be a masochism of the Ego, which would feel
pleased in being punished by the sadistic Superego. Moral masochism appeared as a special
category to think about the resentment. That's why the rat of the subsoil taught us that when
humiliating situations are imposed and are constantly recalled to memory, pleasure could be
drawn from that position. It is, then, a search for suffering, and resentment could be an
obvious way of a need for punishment. This way, when we impose the task of investigating a
phenomenon that goes beyond the traditional scope of psychoanalysis, we resource to
contributions that other areas of knowledge – philosophy and literature – would offer to the
achievement of the work. What became clear is the irreducibility of resentment to a something
as a psychoanalytic concept, preventing a relationship of pure equivalence between the
concepts by Nietzsche and Freud. However, that meeting, and Dostoevsky is included, proved
fruitful to reflect upon resentment in psychoanalysis.
INTRODUÇÃO 9
CONCLUSÃO 80
REFERÊNCIAS 91
9
INTRODUÇÃO
1
É importante salientar que foge ao alcance do trabalho fazer uma investigação de Memórias do subsolo que
contemple também a teoria da literatura; por isso nos autorizamos a servir-nos da obra apenas no que ela
oferece como material para caracterização do ressentimento.
2
No seu livro, Kancyper exemplifica com o shakespeariano, o dantesco e o cervantino. As obras escolhidas por
ele para conduzirem sua análise foram de Albert Camus, Borges e Sandor Marai.
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3
Frank investiga nesse artigo incongruências históricas encontradas no texto de Freud, revisando fatos como o
início dos ataques epiléticos de Dostoiévski e se estes poderiam ser correlacionados à época da morte do seu
pai ou se à época próxima ao exílio na Sibéria (Frank, 1992). Tal fato poderia assumir importância quando se
tem em mente que a teoria de Freud a respeito de Dostoiévski, a saber, que as suas crises epiléticas seriam
expressão da necessidade de punição devido aos impulsos agressivos que direciona ao pai, cairia por terra
(Freud, 1928/1996i). Não é nosso objetivo analisar a personalidade do escritor russo; desse modo,
declinaremos à função de reproduzir a explicação empreendida por Freud a respeito da sua homossexualidade
latente ou a gênese de suas crises epiléticas.
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conceitual, ora é apenas fenomenológico. Não há, portanto, uma distinção clara entre conceito
e fenômeno.
O ressentimento aparece primordialmente na Genealogia da moral, e inúmeras
referências atestam para a proximidade dessa obra com Memórias do subsolo, inclusive
entrevendo a utilização por parte de Nietzsche do homem do subsolo para caracterização
desse tipo psicológico. Em um artigo sobre o assunto, Paschoal afirma que o filósofo teria
sido fortemente impressionado pelas Memórias, e menciona a carta escrita ao seu amigo
Franz Overbeck, em que Nietzsche revela o júbilo com que foi tomado pela leitura, além de
mencionar o “instinto de parentesco” entre eles (Paschoal, 2010, p. 204).
Essa carta é mencionada também por Giacóia Jr., para quem também a novela, cujo
personagem principal – o rato do subsolo – é entendido como o modelo ideal para
exemplificação do ressentido, é uma “versão literária perfeita e acabada (...), como se essa
novela traçasse os contornos de uma figura prototipicamente ressentida, no exato sentido
nietzschiano do termo” (Giacóia Jr., 2006, p. 77). Girard também atesta a afinidade das duas
obras, afirmando que Nietzsche teria reconhecido nessa obra “uma descrição magistral
daquilo que ele próprio chama de ressentimento” (Girard, 2011, p. 94).
A relação entre Nietzsche e Dostoiévski – ou entre o homem do ressentimento e o
homem do subsolo – aparece de forma mais evidente. Além disso, muito se vê a respeito da
apropriação da filosofia de Nietzsche pelas ideias de Freud, mas, do lado da psicanálise, essa
referência não aparece constantemente. Freud nunca foi muito explícito em relação à sua
leitura de Nietzsche. É incontestável que possamos encontrar traços que remetam ao filósofo
nos escritos freudianos, mas essa conexão nunca foi admitida ou bem aceita pelo psicanalista.
Assoun (1992) aponta alguns eventos que confirmam que Nietzsche já havia recebido
ao menos alguma atenção por parte da psicanálise. Teria sido, por exemplo, um tema dos
encontros de quarta-feira da Sociedade Psicanalítica de Viena, bem como em um congresso
de psicanálise em Weimar,4 onde membros da psicanálise teriam visitado a irmã de Nietzsche,
Elizabeth Forster-Nietzsche. Para Elizabeth, atuante fervorosa dos ideias nazistas, não seria
interessante que o nome do irmão estivesse relacionado a um médico psicanalista judeu. Era,
inclusive, quase uma ameaça que deveria ser evitada. Do lado de Freud, essa mesma razão
não seria motivadora de nenhum esforço no sentido contrário.
4
Local onde residia a irmã de Nietzsche que, após a sua morte, teria se encarregado de tutelar suas obras. Esse
fato inclusive teria gerado inúmeras controvérsias a respeito da apropriação da irmã sobre o conteúdo e sua
manipulação para atender aos ideais do III Reich. Suas intervenções nos manuscritos foram de tal modo
tendenciosas que geraram interpretações equivocadas, como a utilização do conceito de super-homem para
fundamentar a necessidade de uma raça pura ariana (Assoun, 1992).
13
Na verdade, é um verdadeiro quadro clínico que Nietzsche esboça ao longo dessas três dissertações. O
que nos interessa é explicitar a representação do aparelho psíquico que torna possível essa
sintomatologia, em busca daquele “algo mórbido” (etwas Ungesundes) que Nietzsche localiza no
fundamento da moralidade. (p. 230)
E seguimos a indicação de Assoun, pois o que Nietzsche evidencia com seu método
genealógico é a sordidez com que os valores modernos foram criados, propiciando o
amolecimento e a interiorização dos impulsos no homem, como ele mesmo afirma. Do lado
5
O que podemos ler é uma citação atribuída a Freud, mas, como não foi encontrada a fonte original, optamos
por não reproduzir a citação no corpo do texto. “Durante muito tempo evitei ler Nietzsche, outro filósofo cujos
pressentimentos e cujas intuições frequentemente coincidem, de modo surpreendente, com os laboriosos
resultados da psicanálise, já que mais do que interessar-me pela prioridade, importava-me ficar livre de toda
influência” (Freud, citado por Reale & Antiseri, 1991, p. 930).
14
CAPÍTULO 1
Delineando o ressentimento
Podemos, dessa forma, considerar que tanto o momento pessoal quanto o momento
histórico influenciaram e deixaram sua marca, como pode atestar, por exemplo, Joseph Frank
(2002), ao afirmar que:
Quando o homem do subterrâneo invectiva sua própria aversão a si mesmo e sua culpa, não estava
Dostoiévski também expressando sua autocondenação como expectador cheio de remorsos das agonias
de morte da sua esposa, e arrependendo-se do egoísmo que confessou em seu caderno de anotações? (p.
434)
E ainda encontramos influências do período histórico em que o livro foi escrito, fato
que o próprio Dostoiévski (2009) adverte quando, logo no início, afirma que suas memórias
são fictícias, mas bem que poderiam não o ser, já que “pessoas como seu autor [o homem do
subsolo] não só podem, mas devem existir em nossa sociedade, desde que consideremos as
circunstâncias em que, de modo geral, ela se formou” (p. 06).
Podemos ressaltar o quanto a sociedade russa se via invadida por uma racionalidade
europeia ocidental; uma Rússia predominantemente agrária, rigidamente comandada por
czares, mas que em 1861 havia liberado os servos e caminhava para maior liberdade de
expressão. Estaria ocorrendo uma espécie de descaracterização da cultura, e o homem do
subsolo seria, nas palavras do biógrafo Frank (2002), “concebido como uma persona
parodística, cuja vida exemplifica os impasses tragicômicos que resultam dos efeitos dessas
influências sobre a psique nacional russa” (p. 433).
Seria o produto desse momento histórico ambíguo: a invasão de uma crença na
supremacia da razão para lidar com as questões humanas. E essa crença é dura e
sarcasticamente tratada na primeira parte de Memórias do subsolo. No entanto, não seria uma
crítica desenfreada à razão ou à sua rejeição, mas sim a percepção das consequências da
inserção dessa mentalidade na cultura russa (Frank, 2002, p. 433).
Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz
apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a
vida, isto é, de toda vida humana, com a razão e com todo o coçar-se. (Dostoiévski, 2009, p. 41)
(...) nunca pude tornar-me mau. A todo o momento constatava em mim a existência de muitos e muitos
elementos contrários a isso. Sentia que esses elementos contraditórios realmente fervilhavam em mim.
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Sabia que eles haviam fervilhado a vida toda e que pediam para sair, mas eu não deixava. (Dostoiévski,
2009, p. 16)
É curioso notar que esse personagem não possui nome próprio nas suas memórias, o
que, além de dificultar a forma como nos referimos a ele constantemente, levanta a
possibilidade de questionar que tipo de incursão ele faz no campo do outro; de que modo ele
se faz presente e de que maneira ele presentifica o outro para si e em si.
Nessa primeira parte, ficamos sabendo que esse homem se recolhe em seu subsolo
após trabalhar como funcionário público e aposenta-se ao receber um dinheiro de algum
parente distante, o que lhe confere uma pequena renda. O trabalho na repartição o colocava
em contato com as pessoas, e isso já era o bastante para florescer ambivalentes sentimentos
que ora o colocavam em posição superior ao outro, ora o rebaixavam completamente.
Sucedia o seguinte: ora desprezava alguém, ora colocava-o acima de mim. Um homem decente e
cultivado não pode ser vaidoso sem uma ilimitada exigência em relação a si mesmo e sem se desprezar,
em certos momentos, até o ódio. Mas, quer desprezando, quer colocando as pessoas acima de mim, eu
baixava os olhos diante de quase todos que encontrava. (Dostoiévski, 2009, p. 57)
mesmo e aos outros. Órfão de pais desde cedo, sem revelar as circunstâncias ou o porquê,
seus estudos foram pagos por um parente distante. Não conseguiu se harmonizar com seus
colegas; sentia ser superior intelectualmente, mas impotente para se posicionar
simetricamente em relação a eles. Quando resolveu que deveria ter um amigo, este serviu para
satisfazer suas inclinações tirânicas, de reestabelecer, ainda que ilusoriamente, a impotência
que sentia diante de seus colegas.
E é justamente um jantar de despedida de um desses colegas que viajaria para o
exterior que conduz o personagem na vida adulta para uma noite de aflições, angústias e
vinganças imaginárias. Vinganças que não consegue desferir sobre os colegas, mas que
encontram alvo em uma pobre prostituta a quem consegue, ou melhor, tenta humilhar.
É na segunda parte também que lemos o fatídico episódio com o oficial, com quem ele
esbarra em um bar e permanece hipnotizado por sua figura. Do subsolo, o narrador passa anos
se deliciando com uma vingança que dificilmente extrapolaria os limites do pensamento, e
que, quando finalmente chega à ação, não propicia nenhum apaziguamento real, pois sabe que
não foi de fato uma vingança real. A vida no subsolo ironiza e desdenha a vida de ação, mas
inveja e não vê outra medida para si que não seja esse ideal exterior a si.
Temos agora um panorama geral da obra, já que as passagens e memórias
mencionadas aqui um tanto superficialmente ganharão tratamento pormenorizado ao longo do
trabalho. No entanto, já podemos vislumbrar importantes elementos no homem do subsolo
que servirão de alicerce para refletirmos sobre o ressentimento tal como Nietzsche vai
apresentar.
O homem do subsolo é marcado por algo que ele chama de consciência hipertrofiada,
uma espécie de agudez psicológica excessiva que faz com que ele julgue a realidade a sua
volta com certa descrença, já que não pode acreditar no progresso da civilização ou na força
da razão para conter os disparates dos impulsos humanos. Um homem que não conseguiu se
efetivar no mundo, que não chegou a ser bom nem mau, mas que satisfaz – será mesmo? –
suas inclinações e agressividade imaginariamente, depreciando tudo e todos, inclusive a si
mesmo. E, cada vez mais que seus impulsos são contidos em sua exteriorização, mais ele
experimenta seu próprio veneno.
O primeiro fator que se encontra na origem dessa substância que irá hipertrofiar o mundo interior desse
homem é que tal homem não reage de forma efetiva diante das agressões que sofre. Desse modo, aquele
quantum de força que se produz nele diante da adversidade e que deveria ser lançada para fora, numa
ação efetiva, é redirecionado para o seu interior na forma de ódio e rancor contidos. (...) Um segundo
fator, contudo, também contribui para a hipertrofia do seu mundo interior. Além de reter aquela
21
substância, esse homem não consegue processá-la. Vale dizer, ele não consegue esquecer as desditas
sofridas e livrar-se do rancor e da sede de vingança. (Paschoal, 2010, p. 211)
Quantas vezes me aconteceu, por exemplo, ficar ofendido não por um motivo determinado, mas
intencionalmente! E eu mesmo sabia, por vezes, que me ofendera por nada, que aceitara
voluntariamente a ofensa; mas essas coisas levam uma pessoa a tal estado que, por fim, ela realmente
fica ofendida. A vida toda algo me arrastava a fazer esses trejeitos, a tal ponto que acabei perdendo
poder sobre mim mesmo. (Dostoiévski, 2009, p. 29)
Com o intuito de restringir ao máximo nosso objeto de pesquisa, vamos centrar nossa
reflexão acerca do ressentimento na Genealogia da moral, quando Nietzsche, a partir do viés
histórico, busca a origem dos valores morais e encontra no próprio fenômeno do
ressentimento uma possível gênese para o estabelecimento de tais valores na sociedade
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ocidental. Mas, como o próprio título indica, é um estudo genealógico, e a palavra origem
aqui não deve ser compreendida de outra forma senão no sentido de fonte, invenção.6
Não haveria, portanto, uma verdade absoluta nos conceitos; ao adotar a perspectiva
histórica, fica claro que os valores são “advindos ou em devir”, não sendo uma realidade
factual a priori, mas sim interpretações realizadas pelo homem (Machado, 1999, pp. 59-60).
Nietzsche, filólogo de formação, utiliza a filologia e a etimologia para mostrar que, no
fundamento de conceitos como bem e mal, o que realmente existe são relações dinâmicas de
forças, responsáveis por produzir esses mesmos conceitos.
É importante mencionar, ainda que de forma pouco aprofundada, o que se postulou
como tarefa no programa nietzschiano, a saber, a crítica ao valor dos valores morais. “Tirar os
valores morais do lugar de valores supremos, que dominam e dão sentido a todos os valores,
só será possível destruindo este lugar que foi instituído pela própria moral” (Machado, 1999,
p. 88). Como efeito dessa crítica, temos a polêmica transvaloração de todos os valores: a
desvalorização dos ideais dominantes e a consequente valorização dos ideias subordinados.
Inaugura-se um movimento de problematização da própria moral, tida como dado
inquestionável possuidor de valor supremo. Isso evidencia uma tentativa de desconstrução de
uma teoria filosófica que pretendesse ser mais que uma interpretação, uma perspectiva
(Giacóia Jr., 2008, p. 190). A busca pela verdade acima de qualquer coisa é um incômodo
para Nietzsche, que percebe a filosofia como tendo sido, até aquele momento, uma espécie de
confissão particular do autor, ou seja, uma interpretação pessoalmente interessada sobre o
mundo.
Os instintos participariam da dinâmica dos pensamentos conscientes, o que corrobora
a ideia do perspectivismo. Perceber que a produção de teorias e valores morais é influenciada
pela psique do investigador subtrai ao menos a sua parcela de neutralidade e expõe que o
conhecimento produzido está a serviço da defesa de um determinado ponto de vista. “Por trás
de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou falando
mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de
vida” (Nietzsche, 2005b, p. 11).
O que fica evidente é que os valores exaltados durante boa parte da história ocidental
não possuíam nenhuma garantia de verdade, e mais, passam a ser considerados como
6
As duas primeiras dissertações da obra, “Bom e mau”, “bom e ruim”, e “Culpa”, “má consciência” e coisas
afins ganharão maior destaque. A terceira dissertação, O que significam os ideias ascéticos, será
propositalmente relegada a segundo plano, ainda que tenha relação com o ressentimento, não é objetivo aqui
aprofundar a discussão acerca do ideal ascético. Da terceira dissertação iremos extrair a ideia da narcotização
da consciência por meio do ressentimento.
23
dissimuladores da realidade. E esse é justamente o alvo que Nietzsche acerta: a inversão dos
valores que trabalha contra algo que é até mesmo vital, já que o fraco é visto como o bom,
enquanto o forte é visto como o mau.
Dessa maneira, encontramos na crítica à moral empenhada por Nietzsche um enfoque
tanto histórico quanto psicológico. Ao questionar as origens da diferenciação do valor, ele
retira o seu caráter absoluto: não haveria um fato moral por excelência, mas sim
interpretações do fato. Nenhuma moral tem valor por si, ao contrário, ela brota de uma forma
de vida e de um tipo de homem. As pretensões universais e incondicionais caem quando a
moral é colocada como uma possibilidade histórica, social e existente apenas por ter sido
criada pelo homem.
Giacóia Jr. (2006) investiga porque Nietzsche pôde se considerar o primeiro psicólogo
da Europa. A psicologia seria aquela que conduziria o homem à consecução da tarefa
genealógica, na medida em que exporia como sintoma do próprio psicólogo o conhecimento
que havia sido produzido até então. A equação da subjetividade aos processos conscientes é
criticada pelo filósofo em Além do bem do mal, no aforismo 23, analisado também por
Giacóia Jr. É nessa passagem que se encontra a exaltação de Nietzsche à psicologia, no exato
termo em que ela pode oferecer ao estudo científico da subjetividade um olhar despido do
dualismo corpo e alma, assim como põe por terra o privilégio da consciência. Nas palavras de
Giacóia Jr. (2006), lemos:
Por essa razão, Nietzsche considera a psicologia a ciência que conduz aos problemas fundamentas: à
ideia de uma racionalidade ampliada, cujo paradigma é dado pelo corpo e pelos impulsos – a “grande
razão”, de que a consciência ou o “espírito” constituem a fachada e a superfície simplificadora. (pp. 26-
27)
suficiente para pôr em dúvida a sua pretensa absoluticidade e indubitabilidade” (Reale &
Antiseri, 1991, p. 434). A moral, acrescenta ele, seria a máquina de dominação criada para
subjugar.
No Dicionário de filosofia, lemos igualmente que o alvo da crítica nietzschiana é a
moral da cultura europeia. Ao questionar a criação dos valores e até mesmo o valor desses
valores, fica claro que essa luta “implica por certo o desvelamento de sua chaga secreta, a
evidência tanto da falsidade radical do pretenso objetivismo do homem de ciência como do
espírito decadente do cristianismo” (Mora, 2001, p. 2090). Essa chaga secreta seria portanto
consequência do ressentimento.
Na ausência de verdades absolutas, encontramos apenas interpretações sobre elas,
sendo a moral apenas mais uma forma de interpretar. Ela não seria, portanto, moral em sua
raiz. O que significa também que a moral, sobretudo a cristã, é invenção dos fracos,
ressentidos e doentes de ação.
Veremos com a análise empreendida na Genealogia da moral que o ressentimento é a
impossibilidade de agir de forma autêntica no mundo, que encontra somente na vingança
imaginária uma forma de reação. A matriz da inércia reativa estaria na inversão de valores
que exaltam a bem-aventurança do homem que abdica da sua força e potência, enganado pela
moral vigente que determina que assim se é mais nobre. O cristianismo seria a instituição que
melhor teria se aproveitado do veneno desse afeto no homem. Esse primeiro aspecto será
desenvolvido no primeiro tópico, na articulação entre ressentimento e vingança.
No segundo tópico, trataremos de outra importante característica do ressentimento, a
saber, a impossibilidade de esquecimento da ofensa sofrida. A criação da memória no homem
foi um importante e doloroso momento do seu processo de hominização, da passagem do seu
estado bruto animal para social, quando foi obrigado a sufocar seus instintos e pulsões
agressivas e de dominação. Mas esses instintos não puderam ser calados por completo: eles
continuavam exigindo voz, satisfação, e encontraram no próprio indivíduo um meio e objeto
de escoamento.
Em seguida veremos, que a magnitude do ressentimento acaba por proporcionar um
efeito sedativo para a consciência. A presença constante na memória de um desejo de desforra
revela-se um poderoso artífice para escamotear um desconforto ainda maior. O sacerdote
ascético desvia o caminho que direcionava o afeto venenoso do ressentido para o exterior e
redireciona para o próprio indivíduo, agora culpado de seu próprio sofrimento.
A divisão forjada é apenas didática e serve para ressaltar os aspectos que devem
sobressair quando analisamos o ressentimento. Na verdade, o que percebemos é que esses
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pontos divisados estão em estreita conexão entre si, ou seja, não podemos pensar o
ressentimento isolando o seu aspecto reativo ou vingativo, ou ainda levando em conta
somente sua função sedativa.
Por fim, é importante ter em mente que, quando Nietzsche postula seus tipos
psicológicos, ele está fazendo uma representação pura de um conceito, que serve como
artefato pedagógico, explicativo. Na prática, não encontramos tipos puros: não é possível
encontrarmos alguém que seja apenas ressentido, fraco, nem alguém somente forte. Essas
diferentes caracterizações coexistem em uma mesma pessoa. Efetivamente, portanto, esses
tipos ideias misturam-se numa mesma sociedade e no interior de um mesmo indivíduo.
Assim também ocorre com os traços característicos do senhor e do escravo que convivem, em
proporções variadas, no âmbito de uma mesma cultura, e até no interior de uma mesma alma [itálicos no
original] (...). A diferença entre ambos não configura uma oposição absoluta, mas se determina pela
configuração, sempre instável, das relações de dominação e sujeição entre forças quantitativamente
distintas, em aliança e oposição. (Giacóia Jr., 2006, p. 88)
Um tipo [typus] é um recurso que Nietzsche utiliza para exprimir uma ideia, uma forma de vida ou um
papel social. No caso específico de um tipo de homem, este corresponde à caracterização de um perfil
psicológico que, no seu extremo, ganha contornos de máscara ou caricatura. (Paschoal, 2010, p. 213)
Desse modo, ao criar um tipo ressentido – o rebento da moral cristã ocidental –, o que
aparece é a crítica do modo de vida surgido e cultivado no seio dessa sociedade e
consequentemente os valores que ela prega como superiores. O que Dostoiévski oferece a
Nietzsche é uma fonte com a qual ele pode trabalhar para caracterizar esse tipo apreendido na
genealogia. Nesse sentido, o ressentido se aproxima bastante do ratinho de consciência
26
hipertrofiada, pois ambos são dotados de grande argúcia e interioridade, mas desprovidos de
ação afirmativa exterior, no mundo (Paschoal, 2010). Vejamos, pois, como esse personagem
pode ser articulado com a filosofia do ressentimento.
A rebelião escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o
ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma
vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si
mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu
ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez
de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um
mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. (Nietzsche, 2010, p.
26)
O ressentido é aquele que, impotente para ação, apenas obtém uma vingança
imaginária na tentativa de reparação. Por não ser capaz de “dizer sim a si mesmo”, o
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ressentido coloca o outro, o que vem de fora, como objeto de sua reação. Não há uma ação
genuína, inicial, mas sim uma contra-ação vingativa diante daquele a quem considera forte.
Enquanto os homens da ação não necessitam se convencer de que são felizes e ativos,
são, portanto, medida de si mesmos, o ressentido encontra-se no lado oposto: ele precisa do
outro a quem irá acusar de mau para designar-se como bom. Dessa maneira, o ato inicial do
homem forte é considerar a si como bom em oposição ao que é ruim; já o homem do
ressentimento interpreta essa força como algo mau e lhe confere contornos morais – de
maldade. Isso então lhe traz ares de sofredor inocente e humilde.
Giacóia Jr. (2006) afirma que o ressentimento é a via pela qual a empreitada
genealógica se efetiva. Segundo esse autor, o que fundamenta a distinção entre moral
aristocrática e moral de escravos é a oposição entre ativo e reativo. Ao demarcar a base
conceitual desse fenômeno nesta última distinção, ainda mais primária, fica evidente que é
devido a uma tensão entre forças que uma posição ou o estabelecimento do valor de um
determinado conceito é firmado. Não haveria, pois, uma equação estável entre conceitos; estes
seriam efeito de uma relação instável que determina alianças e até mesmo a verdade.
Baseando-se em um ensaio de Brusotti, Giacóia Jr. (2006) diferencia dentro da moral
aristocrática – ativa e criadora de valores – uma ação que se descarrega exteriormente e
prescinde de um estímulo externo, e tem por isso a carga de força explosiva necessária para
tal; e um outro tipo de ação, na qual ocorre uma interiorização e uma elaboração psíquica que
necessita de um estímulo para que se exteriorize. Haveria neste último modelo uma
premeditação da ação que enfraquece sua cota energética, mas ainda assim é considerada
como ação criadora e autêntica, desde que ela se exteriorize.
Seguindo ainda o raciocínio desse mesmo autor, percebemos que a moral escrava
também necessita de um elemento que incite sua reação, mas nela não há ação verdadeira,
apenas vingança imaginária. Há um trabalho psíquico de elaboração, mas aqui esse
hiperdesenvolvimento da consciência – ou hipertrofia da consciência, como diz o nosso
ratinho do subsolo – esteriliza a ação.
Do subsolo escutamos que agudez excessiva da consciência é uma doença: “Juro-vos,
senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica,
completa” (Dostoiévski, 2009, p. 18). Em contraposição ao homem “normal”, o homem que a
natureza encarregou-se de trazer à terra, encontramos o homem que teve seus instintos
destilados e esconde-se no subterrâneo por não conseguir enfrentar sua antítese de frente.
Ainda que em última instância a reação seja uma ação, ela carece de valor afirmativo.
A ação criadora originária da moral escrava é uma negação; ela se constitui como sombra
28
negativa da moral aristocrática. Não pode nem ser designada como forma de reconhecimento
da alteridade, pois é uma moral dependente – daí Nietzsche afirmar que não há um eu, mas
sim um não eu. Giacóia Jr. (2008) chama essa modalidade de parasitária, como podemos ler:
Trata-se aqui de uma avaliação parasitária, reativa, que tem a necessidade prévia de um elemento
estranho a si para, por antítese, instituir pela via da negação sua própria identidade e seu universo de
valores. É nessa inversão que radica o seu parentesco originário com o ressentimento. (pp. 78-79)
Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para
censurar às aves de rapina o fato de pegarem ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de
rapina são más; e quem for o menos ave de rapina, e sim seu oposto, ovelha – este não deveria ser o
bom?” (Nietzsche, 2010, p. 32)
Aqui podemos perceber o quanto a metáfora animal evidencia que a tarefa genealógica
visa trazer para discussão a naturalização dos instintos, ao mesmo tempo que critica a
desnaturalização propiciada pela inversão de valores. A explicação metafísica dá lugar ao
mundano, daí a perplexidade diante da exigência de que os fortes não exerçam sua força,
assim como é absurdo exigir do fraco que seja forte: não há, de antemão, valoração moral
numa diferença imposta pela própria natureza.
Em um ensaio dedicado a esse parágrafo, Ferraz (2008) salienta que as perspectivas
dos dois animais são de fato diferentes, mas ao serem colocadas em oposição denunciam
manobra valorativa do ressentimento. Certamente as ovelhas não irão gostar das aves de
rapina, mas “o problema aqui não reside nem na diferença nem nos inevitáveis embates que
ela em geral suscita, mas nessa necessidade de censurar, culpabilizar” (Ferraz, 2008, p. 149).
Ao culpabilizar, a diferença é suprimida pela culpa.
Ainda de acordo com a análise de Ferraz, ao instituir essa oposição com a ave de
rapina, o cordeiro se coloca em pé de igualdade com seu oposto, ou seja, a despeito da
diferença entre eles, ocorre um nivelamento que nega a diferença. Com isso, pode-se
culpabilizar a ave de rapina pelo que ela simplesmente é, como se houvesse uma possibilidade
de escolha nesse sentido. O ressentimento das ovelhas – e o plural aqui é importante por
demarcar a necessidade que o rebanho tem de confirmar coletivamente seu juízo moral –
aniquila a alteridade a fim de afirmar o próprio eu.
A forma de valoração do nobre é igualmente demonstrada por essa metáfora. A ave de
rapina, diante das ovelhas e das censuras que emitem contra ela, não teria motivo algum para
odiá-las, “pelo contrário, nós [aves de rapina] a amamos: nada mais delicioso que uma tenra
ovelhinha” (Nietzsche, 2010, p. 32). Vemos que não há rancor da parte da ave de rapina pela
diferença existente entre ela e as ovelhas. Como salienta também Ferraz (2008), o nós da ave
de rapina não demonstra a necessidade de rebanho e confirmação de sua ação por um
elemento externo, mas demarca com ironia e bom humor o apreço por essa tenra carne, ou
seja, afirma a si prescindindo da negação da diferença natural do outro.
O cordeiro é emblemático por carregar um elemento cristão consigo: é o animal de
rebanho sacrificado. Segundo o pensamento nietzschiano, a igreja católica foi a instituição
que se consagrou a partir do ressentimento, uma vez que foi a partir do triunfo dos valores
30
débeis do tipo escravo sobre os valores fortes do aristocrata que o cristianismo pôde reinar
como moral praticamente hegemônica. A religião cristã tornou-se assim marcada pelo rancor
contra os homens de ação.
Refletindo sobre como os ideias são “fabricados” pelos homens, Nietzsche mostra que
com a ideologia judaico-cristã a impotência para agir foi transformada em bondade, o medo
em humildade, a submissão a quem se tem ódio em obediência a Deus, a impossibilidade para
vingar-se se converteu em perdão e desejo de não se vingar... e acrescenta ainda que o “golpe
de mestre” que inverteu toda essa renúncia em virtude não deixou espaço para a suspeita de
que estes bondosos homens são doentes de ódio, vingança e ressentimento. Como consolo por
terem que engolir seu ímpeto expressivo e acreditar na justeza da inércia, acreditam que no
além mundo, no Reino de Deus, serão recompensados (Nietzsche, 2010, pp. 34-36).
Scheler (1998), filósofo que também escreveu sobre o assunto e partiu das
formulações nietzschianas para caracterizar esse fenômeno, enfatizou a presença do
sentimento de vingança ao descrever a sua fenomenologia do ressentimento, sendo esta para
ele “o ponto de partida mais importante na formação do ressentimento” (p. 21, tradução
nossa). O ímpeto vingativo demarca também a primazia da presença do outro por ser um
impulso reativo. Duas características são essenciais para que se instale o desejo de vingança:
um refreamento da reação imediata acompanhado de sentimentos hostis acionados no
indivíduo por algum dano sofrido e um adiamento da reação a este dano.
O que subjaz esse refreamento das emoções e o adiamento da reação é o sentimento de
impotência para descarga característico do ressentido. Ainda que sentimento de vingança, e
Scheler (1998) acrescenta também a inveja, a ojeriza, o prazer em ver o mal alheio, sejam
pontos de partida, estes sentimentos não podem ser considerados como o ressentimento
propriamente dito. Para instalar-se, o ressentimento deve vir acompanhado dessa
impossibilidade de tradução motora do afeto hostil que acomete o indivíduo.
As reflexões sobre a vingança conduzem a uma ideia que remete ao homem do
subsolo. É quando o impulso vingativo se transforma em sede de vingança que o
ressentimento encontra maiores chances de se instalar. Sede de vingança se caracterizaria por
uma espécie de perda de objetividade na execução da vingança, que não encontra mais um
objeto de descarga e permanece “em círculos de objetos indeterminados, aos quais basta ter
um caráter comum” (Scheler, 1998, p. 24, tradução nossa).
Esse desejo por desforra insatisfeito acaba levando a um empobrecimento do
indivíduo, que traduz a sua pretensa razão por uma certeza de que há um dever em vingar-se.
31
Dá-se início a um processo de busca – não consciente – de um objeto que pudesse satisfazer
as intenções agressivas e hostis internas, ou seja, lavar a honra maculada.
É necessário também, acrescenta Scheler, que o ofendido se sinta pelo menos em
paridade com aquele que o desonrou, ou seja, que o sentimento próprio seja alto ou ao menos
esteja à altura do ofensor, a quem não admite ter sido ultrajado. Assim, o homem do
ressentimento é descrito de tal forma que não podemos deixar de remeter ao homem do
subsolo.
Giacóia Jr. (2006) inclusive chama a atenção para o fato de que a Genealogia da
moral pudesse ter sido escrita concomitante à leitura de Memórias do subsolo, obra literária
que teria fortemente impressionado Nietzsche. A passagem a seguir não deixa dúvidas de que,
se não podemos afirmar com certeza os ecos do subsolo na escrita nietzschiana, podemos ao
menos perceber certa afinidade entre essas duas obras:
Sua [do ressentido] alma olha de través, ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo
escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não-
esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais
homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará
a inteligência numa medida muito maior. (Nietzsche, 2010, p. 28)
Anos se passam cozinhando uma vingança: o dia em que cruzaria com o oficial na rua,
e, estando os dois na mesma calçada, não cederia espaço para ele, andariam lado a lado como
dois semelhantes. Durante anos seguia-o a “distância, como se estivesse amarrado a ele”
(Dostoiévski, 2009, p. 64), escrevia acusações, chegou a escrever uma carta que lhe renderia
sua redenção – ser admirado pelo oficial. Dilacerava-o pensar que não conseguia se colocar
diante desse outro de forma paritária, imaginava os dois como bons amigos, cultivava a
imagem do seu rival com veneração e ódio, “contemplava-o encantado”. Ficava andando pela
avenida principal de São Petersburgo esperando o momento certo, mas, sempre que
encontrava seu adorado rival, era incapaz de agir e cedia-lhe espaço.
Era o cúmulo do suplício, uma humilhação incessante insuportável, suscitada pelo pensamento, que se
transformava numa sensação contínua e direta de que eu era uma mosca perante todo aquele mundo,
mosca vil e desnecessária, mais inteligente, mais culta, e mais nobre que todos os demais, está claro,
mas uma mosca cedendo sem parar diante de todos, por todos humilhada e por todos ofendida. Para que
recolhia em mim tal sofrimento, para que ia à Avenida Niévski, não sei; mas algo me arrastava para lá
sempre que possível. (Dostoiévski, 2009, p. 66)
Há uma tentativa de se colocar de igual para igual, que já evidencia que esse
nivelamento é forjado pelo personagem. A passagem demarca tanto a manobra de aniquilação
da diferença entre eles, quanto o sentimento de que está a altura do seu rival. Apesar de
perceber que força e altivez lhe faltam, o ratinho sente-se mais inteligente e culto que o
oficial. E, cada vez que o plano chegava perto de ser efetivado, era o nosso herói que cedia
lugar para o oficial passar.
Por que justamente tu e não ele? Não há nenhuma lei nesse sentido, nem isso está escrito em parte
alguma. Ora, que seja de igual para igual, como geralmente se dá quando duas pessoas delicadas se
encontram: ele há de ceder metade do caminho; tu farás o mesmo, e assim passareis um ao lado do
outro, respeitando-vos mutuamente. (Dostoiévski, 2009, p. 67)
Ocorre que em uma determinada tarde, quando a vingança já estava quase sendo dada
por inatingível, os dois se encontraram muito próximos um do outro na calçada, o que
praticamente obrigou que o plano fosse levado a cabo. Esse momento ocasional de um
esbarrão que ocorre de súbito, sem ser por tanto tempo ruminado, proporciona um mínimo de
espontaneidade à ação. A vingança já estava prestes a ser abandonada e o ato suspenso, mas o
elemento surpresa fez com que o bloqueio psíquico que paralisa o agir fosse
momentaneamente superado.
O personagem havia se dado conta de que não iria conseguir efetivar sua desforra, e
havia decidido abandonar seu plano. “Na noite anterior eu resolvera definitivamente desistir
33
do meu ato nefasto, deixar como estava, e com esse propósito saí para Avenida Niévski,
simplesmente com a intenção de ver como ia deixar tudo sem alteração” (Dostoiévski, 2009,
p. 69). Curioso notar que ele vai à rua para assegurar que não iria dar conta de vingar-se.
Chegando lá, no entanto, e vendo-se perto o bastante do seu alvo, o envolvimento era
tamanho que acabou não cedendo espaço, quase que por susto e por não estar preparado para
esquivar-se da desforra. A ocasião o tomou de assalto e o impossibilitou de fugir.
Nesse episódio encontramos mais um ponto no qual podemos aproximar a obra de
Dostoiévski e a de Nietzsche. A originalidade da ação confere um mínimo de desforra da
humilhação; a espontaneidade e exuberância do agir é o que propicia um maior impacto na
realidade e no individuo, por isso é possível sentir-se, mesmo que momentaneamente,
vingado (Giacóia Jr., 2006). Ainda que em última instância a vingança seja uma reação, já que
traz a marca do outro como força motriz do agir, o breve momento que conduz
inesperadamente ao duelo carrega em si aspectos positivos por seu ato criativo. O ato
impulsionado pela vingança, no entanto, é ainda reativo.
Após ter efetivado sua desforra, o ratinho retorna a seu estado anterior e ironiza o seu
feito. Ele sabe que a vingança não foi autêntica, não o satisfaz como esperado. Logo depois é
tomado de arrependimentos, dos quais diz concordar voluntariamente em suportar. Não via
outra solução senão voltar para seus devaneios, para a segurança do seu subsolo. É de lá que
ele diz ser capaz de encontrar resquícios de vida que só o faziam ativar, pelo contraste, seu
sofrimento e sua “torturante análise interior”.
Assoun (1992) reafirma que a caracteriologia do ressentimento remete
necessariamente a uma reatividade primária; um mecanismo tóxico de autoenvenenamento
propiciado pela impossibilidade de descarga imediata da ação. Essa paralisia do
desenvolvimento motor ocorre em oposição a um superdesenvolvimento da memória,
causando uma perturbação da economia psíquica do indivíduo ressentido. A saúde mental
requer, para manter-se minimamente saudável, esquecimento, lugar para o novo, força
plástica. Dessa forma, passamos para as implicações da memória e esquecimento para o
indivíduo e o ressentimento.
34
Para o homem se tornar capaz de responder por si, ou seja, fazer promessas, era
necessário que ele se tornasse constante, processo que Nietzsche (2010) denominou
“moralidade dos costumes”: “com ajuda da moralidade do costume e da camisa de força
social, o homem foi realmente tornado [itálico no original] confiável” (p. 44). O que
possibilita ao homem ser responsável pela palavra que empenha ao outro é ser consciente das
promessas que faz e, ao mesmo tempo, saber que deve cumpri-las – aqui encontramos a
história da responsabilidade.
Adquirir responsabilidade por suas ações equivaleria a ter consciência de que é
possível responder por elas. Além disso, a percepção de que diante de uma obrigação pessoal
é possível responder por ela pressupõe também que o homem é capaz de dominar a si mesmo
(Giacóia Jr., 2008, p. 202).
“A faculdade de prometer está ligada à representação e ao sentimento de
responsabilidade, de responder por algo perante alguém, de garantir-se a si mesmo, em
relação a uma obrigação” (Giacóia Jr., 2001, p. 38). Esse mecanismo pressupõe que o
esquecimento seja temporariamente suspenso e a lembrança do contrato permaneça presente
na consciência.
Responder por si de forma orgulhosa, poder fazer promessas e honrá-las confere ao
homem sensação de poder e liberdade, pois ele sabe que é forte o bastante para prometer.
Aqui ainda encontramos uma memória saudável, de quem tem confiança em si e pode
responsabilizar-se por suas escolhas e ações.
castigo é uma forma de expurgar a raiva daquele que causou algum dano. Subjacente a esta
ideia, está a crença de que “qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente
compensado, mesmo que seja com a dor [itálicos no original] do seu causador” (Nietzsche,
2010, p. 48).
O devedor assegura a seu credor que a dívida pode e vai ser ressarcida, mesmo que
para isso pague com algo que possua, como sua liberdade, seu corpo, sua dignidade... O
credor pode sentir-se ressarcido quando extrai uma satisfação por causar dor a seu impotente
devedor; como recompensa pelo prejuízo, encontra-se um prazer íntimo em infligir a pena ao
infrator.
O que se percebe nessa relação credor-devedor é que são utilizados meios cruéis para
que o credor seja recompensado por sua dívida e novamente se sinta potente. Pagar a dívida
com dor pressupõe uma possível equivalência entre elas, além de estar subjacente à ideia de
que causar dor traria uma satisfação interna.
Assim, a obrigação pessoal de responder pela promessa da dívida é garantida pela
técnica mnemônica de deixar marcas. O castigo seria “constituído pelas modalidades semi-
bárbaras de satisfação substitutiva, pelos regimes de equivalência e formas de reparação que a
imaginação grosseira do homem primitivo foi capaz de instituir” (Giacóia Jr., 2008, p. 205).
Não estamos ainda nesse ponto no solo moral da culpa-dívida.
Todavia, uma funesta alteração do sentido põe a perder a colheita, fazendo fenecer o fruto da eticidade
primitiva. Nessa mudança, ganha destaque a atuação da má consciência. Esta (e, na verdade, apenas ela)
se ajusta a perspectiva negativa e reativa do ressentimento e da vingança. É por obra dela que surge a
oposição entre Gewissen (consciência moral) e Schlechtes Gewissen (consciência de culpa). Ao explorar
a polissemia deste último termo, Nietzsche tem a intenção de indicar que a má consciência resulta de
uma espécie de corrupção, desvirtuamento da consciência moral, produzida por uma inversão na direção
do ressentimento. (Giacóia Jr., 2008, p. 214)
seus impulsos e instintos. Mais especificamente, como vimos, a resposta da origem da culpa
repousa na mais antiga relação entre os homens: a relação entre credor e devedor.
O que ocorreu então foi que esse mecanismo recebeu o tratamento da moral, quando
surgiu a “vergonha do homem diante do homem. (...) – refiro-me à moralização e ao
amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho ‘homem’ aprende afinal a envergonhar-
se dos seus instintos” (Nietzsche, 2010, p. 52). A descaracterização do homem quanto ao seu
lado animal promoveu a repulsa ao que era instintivo, sexual, fisiológico mesmo. O prazer na
crueldade toma formas distintas agora; transposto para o campo psíquico e imaginativo, foi
sutilizado por expressões mais delicadas e espiritualizadas.
O fato de ter tido sua animalidade contida pelas exigências da vida em sociedade não
extinguiu os impulsos agressivos existentes no homem. Estes continuaram atuando, exigindo
ter de volta um lugar para expressarem-se. Foram apenas inibidos de sua descarga, e, nesse
caminho, foram interiorizados e encontraram no eu o meio de escoar a agressividade. Na
impossibilidade de descarrega e interiorização do instinto, este se volta contra o próprio
homem, que sofre com a intensidade da sua crueldade coibida; é, pois, o sofrimento do
homem pelo homem, ou seja, o que Nietzsche denominou de má consciência.
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que eu chamo de
interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois denomina sua “alma”. Todo o
mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se
estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido [itálicos
no original] em sua descarga para fora. (Nietzsche, 2010, p. 70)
a si próprio’” (Assoun, 1992, p. 232). O indivíduo interpreta o seu sofrimento como sua culpa,
colocando-se ao mesmo tempo como algoz e vítima.
A agressividade represada encontra caminhos internos e ocultos para desafogar-se, ou
seja, acha seu alvo no próprio sofredor. Mas era necessário encontrar alguma via de escape,
uma forma intensa o bastante para apaziguar esse sofrimento. “Como ‘extravagância do
sentimento’ – a descarga do ressentimento voltada contra o próprio sofredor –, essa figura é,
certamente, paradoxal ao extremo; mas é também o mais eficiente narcótico para mitigação
do sofrimento originado pela renúncia e pela repressão” (Giacóia Jr., 2008, p. 217).
Chegamos aqui em um ponto que merece ser investigado mais a fundo, pela importância para
a patologia ressentimento.
Vimos que a impotência para a ação do tipo psicológico fraco característico da casta
dos escravos contamina a consciência de modo que a força plástica do esquecimento
permanece suspensa. O pensamento do indivíduo gravita em torno dessa memória de ofensa,
desejando apenas uma vingança imaginária na tentativa de reparação da indigestão do afeto.
Essa dinâmica de autoenvenenamento da consciência é o ressentimento. Temos que pensar o
que a consciência ganha ao torturar a si mesma.
Giacóia Jr. (2006) afirma que o impulso vingativo é entendido como uma atitude
agressiva que se dirige para fora, chegando a postular o ressentimento como “variante
internalizada do sentimento e instinto de vingança” (p. 83). Assim, diante de um sofrimento –
e a incapacidade de esquecê-lo –, há necessidade de se buscar um culpado, de encontrar um
meio externo para descarregar a raiva e a culpa. O ressentimento não seria um mecanismo de
ação e reação mecânico e simplista, mas sim um sofisticado elaborar psíquico que visa a uma
via expiatória para aliviar-se do afeto desprazeroso. O desejo de vingança e sua magnitude
39
Portanto, o que diferencia o ressentimento da “elaboração ativa dos estímulos externos”, que é uma
forma de ação, é que o ressentimento é um processo reativo, que pressupõe a vivência de sofrimento e a
necessidade de desembaraçar-se dela por meio de uma descarga súbita de um afeto vigoroso, como
meio de narcotização da consciência. O entorpecimento é o elemento positivo e principal, a busca de
um culpado e a própria descarga são efeitos secundários, reação a experiência de sofrimento. (p. 84)
ainda assim é uma vontade, na falta de outra melhor. Em suma, a vontade como intrínseca
deve querer algo, nem que seja o nada; a crueldade deve descarregar-se, nem que seja para o
interior (Brusotti, 2000).
Desse modo, deparamo-nos com o real sofrimento do homem: objetivar sua vontade,
estabelecer um sentido que entorpeça esse sofrimento primário. O ideal ascético é o bálsamo
do sofrimento insuportável, ele dá sentido à ausência e, por esse fato, dá sentido ao
sofrimento. Dotado de sentido, o sofrimento agora pode ser buscado como meta pelo homem.
Nas palavras de Brusotti (2000): “Mas, exatamente porque o ideal ascético colocou um fim às
duas formas principais de sofrimento, o fato de que ele multiplicou e aprofundou o
sofrimento, tornou-se coisa secundária” (p. 7).
Não seria o sofrimento o maior problema do homem, mas sim a incapacidade de
conferir a esse sofrimento um sentido, um porquê. A vitória dos valores dos fracos em relação
aos fortes, ou seja, a vitória do cristianismo e do ressentimento tem como consequência a
presunção de que o sofrimento é algo que o indivíduo merece.
Moura (2005) compreende o asceta como possuidor de um desejo invejoso de viver de
outro modo, mas é a intensidade desse desejo mesmo que o liga ao mundo. É devido à
potência desse impulso que ele consegue aglutinar todo seu rebanho, revertendo a aparente
contradição da vida em uma força que conserva a vida. Mas a vida que conserva é uma vida
doente, enfraquecida.
A forma com que o sacerdote consegue treinar seu rebanho é rebaixando todo o querer
e o desejo dos seus membros, preconizando a renúncia a si e o amor ao próximo. A astúcia do
sacerdote será interpretar o sofrimento com um sentido de culpa, dando-lhe ares de pecado. O
método do sacerdote ascético será mudar a direção do ressentimento; quando o sofredor busca
o culpado por aquilo que o incomoda, esse pastor lhe diz, sim, existe um culpado, mas esse
culpado é você mesmo (Nietzsche, 2010, p. 109).
A descarga dos instintos teve seu alvo e seu caminho invertido para o interior do
homem, que passa a buscar sua expiação pela autotortura. A magnitude do afeto represado
pode ser vivenciada de outra forma, nos canais mais internos.
Dessa maneira, a descarga só se realiza pelo canal subterrâneo da internalização, voltando-se contra o
próprio sujeito, de maneira que o sentimento de vingança tem que cavar abismos cada vez mais fundos
no mundo psíquico do próprio sofredor. Esse é o ressentimento que envenena, o desejo de vingança do
dispéptico, cujo metabolismo psíquico fica transtornado. É assim que tem origem aquele fenômeno
paradoxal que consiste na tentativa de anestesiar a dor por meio da intensificação de outra espécie de
sofrimento psíquico, isto é, pelo auto-martírio da consciência de culpa. (p. 87)
Voltemos para nosso ratinho, confinado por si mesmo no seu subsolo. Se ele se
dilacera tanto por perceber sentimentos antagônicos que fervilhavam em si, por que escolhe a
via do ressentimento? Por que escolhe tiranizar aqueles que cruzam seu caminho, quando
percebemos que no fundo ele não quer outra coisa senão se colocar em pé de igualdade com o
outro?
O que vislumbramos é que, diante desses impulsos antagônicos, da sua inércia para a
ação, esse ratinho, com sua consciência hipertrofiada, desconfia de todos e também de si,
paralisa sua vida para viver “seguro” no subsolo. Sendo assim, concluímos que esse
subterrâneo garante, além de um lugar, algum ganho ou prazer.
Mas é exatamente nesse frigido e repugnante semidesespero, nesta semicrença, neste consciente
enterrar-se vivo, por aflição, no subsolo, por quarenta anos; nesta situação intransponível criada com
esforço e, apesar de tudo, um tanto duvidosa, em toda esta peçonha de desejos insatisfeitos que
penetraram no interior do ser; em toda esta febre de vacilações, das decisões tomadas para sempre e dos
arrependimentos que tornam a surgir um instante depois, em tudo isto é que consiste o sumo daquele
estranho prazer de que falei. Este prazer é a tal ponto sutil, e a tal ponto às vezes inapreensível à
consciência, que as pessoas um pouquinho limitadas ou mesmo as de nervos fortes não compreenderão
dele nem um pouco sequer. (Dostoiévski, 2009, p. 24)
teria sido a partir da edição francesa L’esprit souterrain, que trazia, além das Memórias do
subsolo, a Senhoria, como se fossem uma obra apenas e conectadas por um texto de autoria
do editor. Mas o aspecto que interessa é que nessa edição a palavra russa zlosti surge
traduzida por ressentiment; e é justamente o excesso de zlosti que envenena, hipertrofia e
paralisa o rato do subsolo. É o zlosti que surge acumulado e gera essa “peçonha dos desejos
insatisfeitos que penetram no interior do ser”.
Paschoal (2010) atesta assim que Nietzsche teria encontrado inspiração no subsolo,
quando o ressentimento ocupará um lugar essencial no corpo da sua teoria crítica. Tanto o
personagem dostoievskiano quanto o tipo idealizado pelo filósofo se constituiriam por
oposição ao que lhe é exterior, por inveja ao homem de ação.
Assim como o personagem de Dostoiévski, também o tipo que segundo Nietzsche estaria na origem
daquela moral não reage de forma efetiva diante das adversidades e também não esquece suas desditas.
Também ele termina por reter em si os sentimentos de rancor, o ódio e a sede de vingança advindos
daquele quantum de força que deveria ser descarregado para fora e que permanece nele, sendo re-
sentido, porém não digerido, [itálicos no original] ocupando todo o seu mundo interior. (Paschoal, 2010,
p. 215)
por trás dessa inabilidade para a vida ativa, há um dispêndio energético para fixar a ofensa
sempre suspensa, mas presente no psiquismo.
44
CAPÍTULO 2
Psicanálise e ressentimento
Duas questões são colocadas logo no início do ensaio de 1914, À guisa de introdução
ao narcisismo. A primeira diz respeito à relação entre o autoerotismo e o narcisismo, tal como
agora estava sendo proposto. A segunda questão se refere à necessidade de diferenciar uma
libido sexual de uma energia dessexualizada pertencente ao Eu e as diferenciações entre libido
objetal e libido do Eu, pontos importantes para que fosse mantido o dualismo pulsional
proposto na época: pulsões sexuais se opondo às pulsões do Eu. Iniciamos com as
proposições do primeiro ponto.
O autoerotismo foi empregado pela primeira vez em uma carta destinada a Fliess, em
09 de dezembro de 1899 (Garcia-Roza, 2008, p. 39; Jordão, 2011, p. 52), onde podemos ler:
“A camada sexual mais inferior é o autoerotismo, que age sem qualquer objetivo psicossexual
e exige somente sensações locais de satisfação” (Freud, 1899/1996a). Essa carta (125), retrata
uma preocupação em explicar como uma pessoa se torna paranoica ou histérica, e a hipótese
já nessa época era de que a paranoia seria um retorno a essa posição autoerótica inicial. E
Freud finaliza a carta: “As relações especiais do autoerotismo com o “ego” original
projetariam viva luz sobre a natureza dessa neurose” (Freud, 1899/1996a, p. 331).
Essa pequena definição prenuncia as ideias que estariam por vir. Essa “camada sexual
mais inferior” aparece no texto de Garcia-Roza como “estrato sexual mais primitivo”, e
demarcaria assim a sexualidade e seu funcionamento à revelia da função biológica ou
reprodutiva. “No quadro geral da teoria sobre a sexualidade, o autoerotismo caracteriza um
estado original da sexualidade infantil anterior ao narcisismo, no qual a pulsão sexual
encontra satisfação (parcial) sem recorrer a um objeto externo” (Garcia-Roza, 2008, p. 39).
Ainda seguindo esse mesmo texto, o autor nos mostra que a independência de um objeto
externo demarca o distanciamento da sexualidade humana do quesito adaptação da espécie e
não teria a função de articular o ser vivo e o mundo que o rodeia.
Como, então, se dá a passagem dessa satisfação parcial autoerótica no corpo para uma
busca pela satisfação nos objetos exteriores? Quando um indivíduo começa a lançar seu olhar
e interesse para o mundo que o rodeia? A pergunta aparece também no corpo do texto
freudiano e recebe uma resposta do ponto de vista econômico, ou seja, quando a libido atinge
um nível que o Eu considera desprazeroso e sente que precisa escoá-la (Freud, 1914/2004a).
No entanto, a resposta se refere ao trabalho imposto ao psiquismo para lidar com
níveis de excitação que podem ser sentidos como ameaça ou desprazer. O que estruturalmente
47
É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente desde o início;
o Eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões auto-eróticas estão presentes desde o início, e é
necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que
se constitua o narcisismo. (p. 99)
ideal-de-Eu. Uma importante passagem no texto freudiano deve nesse ponto ser reproduzida
na íntegra:
O amor por si mesmo que já foi desfrutado pelo Eu verdadeiro na infância dirige-se agora para esse Eu-
ideal. O narcisismo surge deslocado nesse novo Eu que é ideal e que, como o Eu infantil, se encontra
agora de posse de toda a valiosa perfeição e completude. Como sempre no campo da libido, o ser
humano mostra-se aqui incapaz de renunciar à satisfação já uma vez desfrutada. Ele não quer privar-se
da perfeição e completude narcísicas de sua infância. Entretanto, não poderá manter-se sempre nesse
estado, pois as admoestações próprias da educação, bem como o despertar de sua capacidade interna de
ajuizar, irão perturbar tal intenção. Ele procurará recuperá-lo então na nova forma de um ideal-de-Eu.
Assim, o que o ser humano projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de
sua infância, durante a qual ele mesmo era seu próprio ideal. (Freud, 1914/2004a, p. 112)
Podemos perceber, dessa forma, que o narcisismo surgiria então deslocado desse
sentimento de autocentramento da criança, no qual ela gozava da certeza da sua perfeição
narcísica. Ao ter que abrir mão desse momento no qual ela era o seu próprio ideal, cria para si
um ideal-de-Eu, imbuído de grande investimento narcísico. Essa instância psíquica – o ideal-
de-Eu – possui a tarefa de observar, medir e cuidar pela segurança narcísica.
Era preciso, portanto, que alguma instância se encarregasse da tarefa de garantir que
esse ideal fosse atingido; nas palavras de Freud, “uma instância psíquica que, atuando a partir
do ideal-de-Eu, se incumbisse da tarefa de zelar pela satisfação narcísica e que, com esse
propósito, observasse o Eu atual de maneira ininterrupta, medindo-o por esse ideal” (Freud,
1914/2004a, p. 113).
A consciência moral (Gewissen) encarna o lugar dessa instância, que observa o Eu
chegando a perturbá-lo com sua censura. O exagero da auto-observação presente na paranoia
demonstra uma atividade da consciência moral que pode ser estendida a outros tipos de
estruturação psíquica. Seria, para Freud (1914/2004a), o caso da filosofia, na qual o filósofo
se lança em uma busca por respostas a partir de uma investigação pessoal interior.
Aqui estaria inclusive a explicação para a origem do recalque, pois é a partir desse
ideal que o Eu avalia a si mesmo e rechaça as ideias que não condizem com a expectativa que
possui a seu respeito. “Assim, a condição para o recalque é essa formação de ideal por parte
do Eu” (Freud, 1914/2004a, p. 112). Esse ideal ainda seria responsável por aumentar as
exigências do Eu sobre si, gerando um desconforto psíquico pela tensão entre aquilo que o
ideal lhe impõe e o que a realidade lhe subtrai.
Podemos depreender dessa ação de constituição do narcisismo que em última instância
é outro quem possibilita uma coesão euoica, a partir do investimento na criança do seu
próprio narcisismo infantil abandonado. Esse Eu agora dotado de certa unidade subjetiva pode
investir libidinalmente os objetos do mundo, e quando a libido é retirada desses objetos para
49
retornar novamente ao eu, Freud (1914/2004a) distingue esse momento como narcisismo
secundário. O investimento de libido nos objetos situa-se entre o narcisismo primário e o
secundário.
A questão merece tratamento pormenorizado, dada sua importância para o
ressentimento. A formação dos ideais assume uma dupla função: como resposta possível à
necessidade de afastar-se do narcisismo primário e também como tentativa de reaver esse
estado inicial de perfeição. Aqui entra o trabalho do Eu, que, na economia das forças
libidinais, se empobrece quando a libido se encontra investida nos objetos, mas se recupera
quando as relações objetais amorosas cumprem a função de reequilibrar a parcela de libido
doada. Outra maneira de o Eu se recuperar desse empobrecimento é por meio da realização
dos ideais. Com a sensação de ideal minimamente cumprida, é possível ter de volta a sensação
análoga à experimentada nos primórdios do narcisismo primário (Kehl, 2007).
Freud postula, em 1914, o Eu como o grande reservatório da libido, e exemplifica com
a conhecida analogia da ameba que emite seus pseudópodos nos objetos, mas que os retira de
volta ao Eu. “Freud será afeito a essa analogia principalmente porque ela pressupõe uma
anterioridade de investimento euoico em relação ao objetal” (Jordão, 2011, pp. 79-80).
O que podemos vislumbrar é uma espécie de matemática da libido: quanto mais ela
estiver investida nos objetos, menos enriquecido o Eu se encontra. É, portanto, uma relação de
“oposição entre libido do Eu e a libido objetal. Quanto mais uma consome, mais a outra
esvazia” (Freud, 1914/2004a, p. 99).
O trabalho de pesquisa e verificação do valor de si mesmo leva à questão do
sentimento-de-si ou autoconceito (Selbstgefuhl), que a princípio designa “a expressão de
grandeza do Eu” (Freud, 1914/2004a, p. 115). O sentimento-de-si apresenta vestígios da
onipotência infantil e independe de uma apreensão unificada e totalizadora do eu e não se
confunde com este. “O eu, enquanto categoria psicanalítica, diz respeito à economia libidinal,
às séries de sensações de prazer-desprazer e às representações ligadas a essa economia,
enquanto que o sentimento-de-si está referido à vida de relação do indivíduo e à sua
autoconservação” (Garcia-Roza, 2008, p. 53).
O conceito que se constrói a respeito de si encontra a influência de diferentes aspectos.
Um seria proveniente dos investimentos dos pais, pois investem seu próprio narcisismo na
criança e a fazem acreditar, provisoriamente, ser dotada de tal perfeição, ou seja, ser seu
próprio ideal. Uma vez que está ligado à relação com o mundo, o sentimento-de-si pode ser
abalado por acontecimentos da vida, que perturbam o sentimento de onipotência infantil. Do
mesmo modo, caso a experiência se dê de forma oposta, ou seja, confirme ao indivíduo que
50
seu narcisismo passou no teste do seu próprio ideal, o sentimento-de-si se torna relativamente
inflado (Freud, 1914/2004a).
O outro ponto que interfere no conceito pessoal reside na dinâmica dos investimentos
libidinais. A vida amorosa evidencia a presença da libido narcísica no sentimento-de-si, pois
nada mais evidente que se sentir engrandecido por ser amado. Por oposição, a constatação de
que não se é amado propicia um empobrecimento do Eu. O estado de apaixonamento
denuncia uma momentânea fragilidade narcísica, pois a dependência em relação ao objeto
amoroso escancara sua condição frágil. A libido está intensamente dirigida ao objeto, que
pode ser alçado ao estatuto de ideal sexual. Não conseguir entrar no jogo amoroso – amar e
ser amado – gera um sentimento de inferioridade, podendo o Eu sentir-se como empobrecido
(Freud, 1914/2004a).
Uma questão importante também surge no horizonte da economia libidinal, e se refere
à distinção da escolha objetal: a escolha por apoio (veiculação sustentada) e escolha narcísica.
Freud as distingue da seguinte maneira: “Ama-se: 1) Conforme o tipo narcísico: a) o que se é
(a si mesmo); b) o que se foi; c) o que se gostaria de ser; d) a pessoa que outrora fez parte do
nosso Si-mesmo. 2) Conforme o tipo de escolha sustentada: a) a mulher que nutre; o homem
protetor” (Freud, 1914/2004a, pp. 109-110).
Desse modo, na escolha narcísica, o indivíduo toma a si mesmo como referência para
investir a libido amorosa, enquanto a escolha por apoio encontra nas pessoas que dispensam
cuidados e proteção – os pais ou seus avatares – o objeto a quem destinará amor. Essa
diferenciação não é estática; as duas modalidades não se excluem, ou seja, podem existir de
forma simultânea numa mesma pessoa.
Independentemente da forma em que a escolha de objeto tenha se pautado – escolha
por apoio ou narcísica –, fica claro que os objetos passam necessariamente pelo campo do seu
próprio narcisismo. É este, como fase necessária para organização da libido, que permite
haver investimento objetal.
(...) com Freud diremos que eles [os objetos] só podem ser investidos fantasmaticamente, ou seja, que
qualquer objeto tornar-se-á passível de investimento quando venha a integrar o universo imaginário do
indivíduo, em outras palavras, somente quando o indivíduo venha a incluir o objeto na sua esfera
narcísica. É o narcisismo que imprimirá, nas relações com desse indivíduo com o mundo e consigo
mesmo, o caráter objetal. (Jordão, 2011, p. 98)
Assim, o que possibilita que o indivíduo lance seu olhar e invista nos objetos externos,
ou seja, ultrapasse o autoerotismo, é o surgimento de uma unidade do Eu. Vimos que é a
51
presença do outro que confere essa coesão e possibilita que os investimentos libidinais se
dirijam para o que é exterior ao próprio indivíduo e seu corpo, mesmo que momentaneamente.
O narcisismo surgiria da tentativa de recuperação de uma sensação ideal de perfeição,
ao mesmo tempo que cria uma instância ideal para vigiar o que o Eu está fazendo de si
mesmo. Essa instância que aparece como a consciência moral é a encarnação inicialmente das
vozes parentais, às quais se juntam as vozes das autoridades, da sociedade e qualquer objeto
que encarne esse papel.
Sem dúvida, o que se pronuncia aqui é o conceito de supereu, sob a designação de instância da censura
ou ainda como consciência moral. Salienta ainda que essa instância é uma instância que observa e uma
instância que é uma voz, [itálicos no original] instância crítica que mede os desempenhos do indivíduo
pelo ideal, e instância que se instaura como voz, como “dito” dos pais enquanto porta-voz da lei e da
moral. (Garcia-Roza, 2008, p. 71)
O ponto de partida para a articulação do narcisismo com o luto e a melancolia é a noção de identificação
narcísica secundária. O narcisismo, sendo uma forma de investimento libidinal do próprio eu, e sendo o
eu constituído numa relação ao outro, implica uma identificação ao outro, o que faz com que narcisismo
e identificação narcísica possam ser considerados modos idênticos de funcionamento libidinal, além de
dar conta da concomitância entre o narcisismo secundário e a escolha de objeto (...). (Garcia-Roza,
2008, p. 73)
não é possível observar traços de vergonha ou arrependimentos nas críticas que inflige a si
mesmo, o que leva à suposição de que haveria algum prazer em expor a dor. E então há o
questionamento se a perda estaria centrada no Eu ou no objeto (Freud, 1917/2006).
É pressuposto necessário para instalação da melancolia que a escolha de objeto tenha
sido de ordem narcísica. O amor depositado no objeto é substituído pela identificação ao
objeto, mecanismo que estaria presente também nas neuroses narcísicas, ou psicose. A
impossibilidade de aceitar a perda e abandonar o objeto revela que o eu está identificado com
ele; a identificação narcísica permite que a relação amorosa seja mantida de alguma forma
(Freud, 1917/2006).
A identificação aparece no capítulo VII de Psicologia de grupo e análise do Ego
(1921), quando podemos ler uma distinção entre ela e a escolha de objeto: enquanto na
identificação o outro encarna aquilo que gostaríamos de ser, a escolha objetal encarna o
desejo de possuir o objeto. Afirma Freud: “(...) a identificação constitui a forma mais
primitiva e original do laço emocional; frequentemente acontece que, sob as condições em
que os sintomas são construídos, (...) a escolha de objeto retroaja para a identificação: o ego
assume as características do objeto” (Freud, 1921/1996g, p. 116).
A dinâmica do processo melancólico se daria da seguinte forma. A libido liga-se a um
objeto, mas algo frustra essa ligação exigindo que o Eu tome de volta para si, por meio de
uma identificação, a libido que estava investindo. No Eu, o que nele agora está identificado ao
que foi perdido passa a ser tratado como se fosse o próprio objeto externo. Ou seja, pode
servir de “saco de pancada” de si mesmo. O conflito que antes se encontrava entre objeto
amado e Eu dá lugar ao conflito entre Eu (identificado com objeto abandonado) e a crítica
severa imposta ao Eu (Freud, 1917/2006).
Ocorre que a perda do objeto amoroso expõe a ambivalência sob a qual a relação havia
se instaurado. Ao abandonar o objeto, o amor que era direcionado a ele encontra lugar na
identificação narcísica, ao passo que o ódio direcionado a ele volta-se contra o próprio
indivíduo. Os ataques ao objeto encontraram via substitutiva no Eu. Desse modo, uma parte
do investimento erótico regride à identificação e outra ao sadismo, que encontra sustentação
na ambivalência intrínseca a essa relação (Freud, 1917/2006).
E aqui reside o perigo da melancolia, pois o Eu, tratando-se como um objeto e
redirecionando para si todo sadismo que outrora destinava ao objeto exterior, pode alcançar
um nível tamanho de autodestruição que aniquilaria a si mesmo.
53
Na melancolia, devido à proeminência da identificação narcísica, sujeito e objeto estão de tal forma
amalgamados que não se pode distinguir investimento de identificação; as posições são intercambiáveis
e o desaparecimento do objeto implica o aniquilamento do sujeito. (Jordão, 2011, p. 84)
Uma característica principal desses casos é a cruel autodepreciação do ego, combinada com uma
inexorável autocrítica e acerbadas autocensuras. As análises demonstraram que essa depreciação e essas
censuras aplicam-se, no fundo, ao objeto e representam a vingança do ego sobre ele. A sombra do
objeto caiu sobre o ego, como disse noutra parte. Aqui a introjeção do objeto é inequivocamente clara.
(Freud, 1921/1996g, p. 119)
Nesses casos, vemos que uma parte do Eu do paciente se contrapõe à outra e a avalia de forma crítica,
portanto, uma parcela do Eu trata a outra como se fora um objeto. A instância crítica que nesse caso foi
capaz de se separar do Eu também será, sob outras condições, capaz de demonstrar sua independência.
(Freud, 1917/2006, p. 107)
7
É importante ressaltar que o termo clivagem aqui está sendo tomado como a possibilidade de o psiquismo
humano ser desdobrado, tal como aparece no Dicionário internacional de psicanálise: “um processo
54
ataca e outra que sofre recriminações. Já afirmamos que o que possibilita ao Eu se oferecer
como objeto de expiação do ódio direcionado ao objeto perdido é a introjeção (pela
identificação) deste nessa parcela que sofre as acusações. A parcela que acusa e assume a
postura crítica está hiperdesenvolvida na melancolia, mas sua presença se estende para outras
estruturações psíquicas.
Em ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma instância assim,
capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de
“ideal do ego” e, a título de funções, atribuímos-lhe a autoobservação, a consciência moral, a censura
dos sonhos e a principal influência na repressão. Dissemos que ele é o herdeiro do narcisismo original
em que o ego infantil desfrutava de autosuficiência; gradualmente reúne, das influências do meio
ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode sempre estar à altura; de
maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto,
possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego (Freud, 1921/1996g, p.
119)
Assim, vemos que esse ideal surge como veículo de uma herança parental e cultural,
que estabelece um modelo exigente para ser seguido. Como herdeiro das figuras parentais,
pode também encarnar o alvo para onde o amor é direcionado, tornando perenes as condições
sob as quais esse mecanismo se fundou. Ou seja, o amor sexual direcionado às figuras
parentais pode ser superado pelo amor direcionado a esses ideias.
Em Eu e o Id (1923), a função da consciência moral e do Ideal de Eu encontram abrigo
no Supereu. Novamente a melancolia será trazida, para “destacar a dimensão estrutural da
clivagem Eu-Supereu” (Mijolla, 2005, p. 1823). É, pois, o Supereu que irá perseguir o Eu
com suas críticas e acusações.
Como resposta ao embaraço com que certos fenômenos clínicos se apresentavam,
como a reação terapêutica negativa, a necessidade de punição e o masoquismo moral, o
Supereu foi instituído. De fato, o que se percebe é um modo de funcionamento especialmente
cruel e severo, sem necessariamente ser proporcional à severidade da educação dos pais e seus
representantes; “ponto que leva ao reconhecimento de uma origem endógena, pulsional da
crueldade” (Mijolla, 2005, p. 1824). De toda forma, mais que destrinchar a gênese do
Supereu, interessa-nos demarcar a sua função no psiquismo.
Podemos finalizar citando Freud: “O ego pode tomar a si próprio como objeto, pode
tratar-se como trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer
consigo mesmo” (Freud, 1933[1932]/1996k, p. 64). Portanto, vamos analisar algo a mais que
intrapsíquico muito geral na medida em que também alicerça a capacidade do aparelho psíquico se separar em
sistemas (...) e instâncias” (Mijolla, 2005, p. 355).
55
o Eu pode fazer consigo mesmo, que de algum modo não chegou a ser explicitamente
teorizado por Freud: o ressentimento.
8
O tradutor da obra de Kancyper afirma que o termo Verleugnung possui uma conotação de recalcamento da
percepção, encontrado primordialmente no fetichismo. Já o tradutor da nova edição dos textos de Freud
comenta que o termo Verleugnung apresenta a conotação de negação de uma evidência, podendo ser traduzido
também por desmentir, dotado de um aspecto ambíguo, pois fica-se na dúvida se o desmentir traz de volta a
afirmação; e também por renegar, o que significa negar algo que foi aceito. Acrescenta ainda que o uso feito
por Freud pode se referir ao mecanismo da psicose, mas “também empregado no texto do ‘Fetichismo’,
1927, para descrever tanto um mecanismo geral e auxiliar na neurose como para ressaltar seu papel de
mecanismo de defesa prevalente no fetichismo, utilizado pelo sujeito para impedir a percepção de
representações externas incômodas” (nota 69 do tradutor de Introdução, 1914). Desse modo, ressaltamos o
mecanismo de defesa em questão.
57
que atende a realidade, e outra que a nega, servindo ao desejo de evitar a constatação da
castração. É, pois, um triunfo sobre a falta e uma proteção contra ela. Segundo Kancyper
(1994), a recusa da realidade sustentaria o mecanismo subjacente ao ressentimento.
Nesse ponto devemos trazer o homem do subsolo para a discussão e o que ele nos
ensina sobre seu sofrimento. Não nos parece tanto que o objetivo seja recuperar essa perfeição
infantil perdida e daí se instala o ressentimento. O que parece é que o ressentido, tal como
Dostoiévski descreve, sente raiva por saber que a perfeição não existe e, mesmo que existisse,
não estaria ao seu alcance. Não há a crença de que algo vá completar aquilo que lhe falta, e
enfurece ainda mais perceber, ou melhor, imaginar que o outro não sofre com sua falta,
chegando a demonstrar certo despojamento que ele não consegue encontrar em si mesmo.
Assim, não parece tanto, como aponta Kancyper, que esse desejo de alcançar a
completude arraste o indivíduo a compulsivamente tentar encontrar os elos faltosos de seu
narcisismo fragilizado. A questão parece recair mais em aceitar que para ele também foi
subtraída a possibilidade de completude. E isso mostra um narcisismo inflado, vaidoso.
O problema é que essa vaidade não é um estado permanente, mas sim um oscilar
constante: ora se coloca como superior àqueles que o rodeiam, ora como um reles inseto. Não
consegue ser a medida de si, precisa de um outro a quem chame de mau para poder designar a
si mesmo como bom e está sempre se comparando a ele, como apontam as formulações
nietzschianas. E isso nos faz duvidar da autenticidade da sua vaidade, do seu orgulho, do
valor que atribui a si mesmo.
No universo do subsolo, o Outro exerce uma força de gravitação que só pode ser vencida opondo-lhe
um orgulho mais denso e mais taciturno, em torno do qual o próprio Outro será obrigado a gravitar. No
entanto, o orgulho em si não pesa nada, pois ele não é [itálico no original]; de fato, ele só adquire
densidade e peso pela homenagem do outro. (Girard, 2011, p. 96)
Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por
conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida
insatisfação que chegava a repugnância e, por isto, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar.
Detestava, por exemplo, o meu rosto, considerava-o abominável, e supunha até haver nele certa
expressão vil; por isto, cada vez que ia à repartição, torturava-me, procurando manter-me do modo mais
independente possível, para que não suspeitassem em mim a ignomínia e para expressar no semblante o
máximo de nobreza. “Pode ser um rosto feio”, pensava eu, “mas em compensação, que seja nobre,
expressivo e, sobretudo, inteligente ao extremo [itálico no original]”. (Dostoiévski, 2009, p. 56)
58
A impressão que temos não é que se tenta recuperar um narcisismo vivido como ideal,
mas que o que está em jogo é a dificuldade de aceitar um narcisismo que se sinta como
natimorto. Não há nem mesmo a crença de que se tenha sido para os pais em algum tempo His
majesty the baby.
O ratinho ressentido sente que nesse processo de constituição do seu narcisismo algo
lhe faltou, e ele nos diz: “Se eu tivesse família, desde criança, não seria como sou agora.
Penso nisto com frequência. De fato, por pior que possa ser a vida em família, tem-se pai e
mãe e não gente estranha, inimiga” (Dostoiévski, 2009, p. 109).
Essa passagem apresenta um tom quase confessional do nosso personagem, como se
dissesse que diante da ausência do pai e da mãe, ou qualquer figura que possa investir nessa
criança libidinalmente, ele se vê imerso numa solidão extrema. Sem esse outro que vai
depositar narcisismo, o que fica é um buraco representacional do eu ideal e consequentemente
do ideal do eu. Diante dessa falta, ideais são forjados constantemente para que se possa
manter alguma integridade. Esse outro, entretanto, é algo também contra quem se tem que
defender, pois ele chega sempre engrandecido e ameaça invadir e expor novamente a falta.
Nesse panorama, o “melhor” é permanecer no subsolo, pois sair dele é ser sempre lembrado
dessa falta irremediável.
Ainda que possamos entrever a hipótese de que esse narcisismo se perceba como
constitutivamente precário, é importante perceber a tensão intrínseca entre a realidade, ou
seja, o mundo externo, e o narcisismo, assim como a tensão entre o Eu e o outro existente na
dinâmica do ressentimento. Nesse ponto, concordamos que o “impulso ressentido (...) não
visa destruir o objeto, mas sim castigá-lo” (Kancyper, 1994, p. 14).
A querela entre sujeito e objeto teria uma dinâmica descrita da seguinte forma: há um
movimento inicial de imobilização do objeto, ou seja, um movimento de manter o objeto
causador de dano sempre presente; um outro momento de maltratar o objeto, já que ele é o
responsável pela falta sentida, e, por fim, a preservação do objeto (Kancyper, 1994, p. 15).
No ressentimento esse objeto pode nunca ter se feito presente (de forma satisfatória)
para sustentar uma constituição narcísica ulterior mais independente. Comparação constante
entre o Eu e o outro mostra que o outro existe e lhe expõe sua falta, com a diferença que o
ressentido percebe com sua consciência hipertrofiada que ser a completude dos pais é uma
ilusão, e, entre aceitar a ilusão e permanecer no subsolo, permanece escondido neste.
A preservação do objeto teria a função de resguardar a integridade narcísica do
indivíduo, pois destruí-lo poderia significar, além da percepção da incompletude, um risco de
59
“transforma-se ele mesmo, então, no depositário de suas próprias pulsões, o que acarretaria o
risco de sua desagregação psicótica” (Kancyper, 1994, p. 15).
Essa suposição é encontrada também em outra obra de Kancyper, quando afirma que o
sujeito ressentido se mantém nessa posição por ela garantir integridade e, portanto, satisfação.
Somado a isso, adquire função defensiva por proteger o psiquismo de afetos que ameaçariam
desestruturar sua organização psíquica. A recusa da realidade encena dentro do indivíduo uma
oscilação entre o reconhecimento e a recusa da falta, ou seja, da castração (Kancyper, 2010, p.
168).
O ressentido mostra-se inábil para a vida de ação no mundo. Em contrapartida,
percebemos um superdesenvolvimento de sua atividade psíquica, no qual sua inércia para a
ação se desafoga interiormente. Então esse investimento fantasmagórico dos objetos teria a
função de garantir integridade por manter o indivíduo nos limites de uma neurose? A
diferença empreendida por Freud em 1914 para designar a neurose e a psicose não foi
justamente que o investimento libidinal nos neuróticos se mantém na fantasia?
Ocorre que no ressentimento vemos um trabalho de investimento tanto no objeto
quanto no Eu. Os três aspectos que Kancyper evidencia para justificar a adesão da libido ao
objeto – idealização, recusa da realidade e agressividade – aparecem nesse processo da
seguinte forma:
Disso resulta um indivíduo que, apesar do alto valor que atribui a si, não consegue
aceitar – nem esquecer – qualquer coisa que abale seu narcisismo. O homem do subsolo sabe-
se detentor de uma vaidade excessiva que o conduz a ofender-se facilmente; é um homem
angustiado por perceber em si uma falta que nunca será superada.
Abalando a si mesmo, o outro pode cair, e o desmoronamento seria em cadeia. Se
pudermos considerar um outro cuja consistência fraqueja, ele vindo à falência, o Eu vai junto.
O narcisismo sustenta a existência imaginária do outro e vice-versa.
Jordão (2011) ressalta as três frentes de análise que aparecem no texto do narcisismo
em 1914: a formação da unidade egoica, o investimento libidinal no Eu e do Eu – ou as
fantasias ligadas a sua representação – e a onipotência. Ainda que esses três elementos
estejam relacionados entre si, a questão da onipotência ganha ênfase pela importância que
assume para o ressentimento. É a partir de uma categoria designada narcisismo defensivo 9 que
este autor vai pensar o narcisismo do ressentido.
O narcisismo defensivo é o pasteurizador, o que não suporta a diferença, o que precisa confirmar-se
poderoso – necessita verdadeiramente de confirmações constantes de sua potência – para a manutenção
do investimento libidinal que garante sua unidade e sua estabilidade. Uma estabilidade provisória e
frágil, evidentemente, que exige acima de tudo um desconhecimento de si mesmo e das artimanhas
empregadas para tal manutenção, verdadeiros estratagemas para, em termos bem freudianos, escapar do
perigo do reconhecimento da castração ou da constatação do desamparo. (Jordão, 2011, p. 114)
9
Jordão se apropria e amplia a expressão narcisismo defensivo de Jurandir Freire Costa, apresentada no seu livro
Psicanálise e violência (1984). Jordão postula esse narcisismo defensivo, cuja constituição teria sido precária,
em oposição a uma constituição suficientemente boa (expressão de Winnicott), que estaria atrelada a certeza
de si (de Ferenczi). Tais formulações fogem ao objetivo do nosso trabalho, e optamos apenas por reproduzir
algumas considerações acerca do narcisismo defensivo, que para esse autor é o narcisismo típico do ressentido
(Jordão, 2011).
61
Em cada apresentação do homem do ressentimento percebe-se uma pergunta subjacente: a quem isso
interessa? Podemos desdobrá-la em, o que se quer com isso? Quem estaria interessado na promoção
desse tipo de vida e por quê? O que se ganha com isso? A resposta a essas perguntas pode ser: interessa
a um tipo narcísico (narcisismo defensivo), que precisa de confirmações narcísicas constantes e cujo
espectro de possibilidades existenciais não vai além do que tais confirmações lhe garantem; ganha-se
equilíbrio narcísico, calmaria, sensação de poder, satisfações imaginárias. (Jordão, 2011, p. 119)
Novamente trazemos nossa novela para discussão e uma vez mais o encontrão com o
oficial merece ser lembrado. É nítido como esse outro adquire contornos grandiosos, de ideal
e, por que não, de onipotência. Quando imaginava escrever uma carta para esse oficial, nosso
ratinho afirma que, quando a lesse, seu inimigo correria para seus braços e os dois viveriam
muito bem: “Ele me defenderia com a imponência da sua posição; eu o tornaria mais nobre
com a minha cultura, bem... com as ideias também, e muita coisa mais poderia acontecer!”
(Dostoiévski, 2009, p. 65).
Essa fusão nunca ocorreu, nem poderia. Manter esse oficial presente na fantasia
poderia ser uma maneira de tanto garantir uma diferenciação com ele, pois possibilitaria que a
libido estivesse investida em um objeto exterior, ainda que na fantasia, quanto manteria no
horizonte narcísico um objeto que propicie alguma satisfação.
Girard (2011) chama essas figuras tipicamente dostoievskianas de obstáculo-modelo,
quando o ódio e a veneração se encontram amalgamados e dirigidos a um mesmo objeto, que
exerce sobre o personagem um efeito sedutor e hipnótico. Nessa dinâmica,
A ilusão da onipotência é tão mais fácil de destruir quanto mais completa for. Entre Eu e os Outros
sempre se estabelece uma comparação. A vaidade pesa na balança e faz com que ela penda para o Eu.
Se esse peso inexiste, a balança, bruscamente erguida, penderá para o Outro. O prestígio do qual
dotamos um rival excessivamente feliz é sempre a medida de nossa vaidade. Acreditamos empunhar
solidamente o cetro de nosso orgulho, mas ele nos escapa ao menor fracasso para reaparecer, mais
brilhante do que nunca, entre as mãos de outro. (Girard, 2011, p. 71)
É interessante, pois, como Girard caracteriza o modo como os afetos são mobilizados
no narcisismo: como nostalgia e irritação. De fato, é como se o indivíduo estivesse sempre
aprisionado numa nostalgia de um tempo que já passou, ou que talvez nunca tenha existido.
Isso porque em psicanálise é possível sentir falta de algo que nunca esteve em sua posse. Em
contrapartida, a presença de um ideal incutido exteriormente, mas que tem sua aplicação no
interior do eu, mobiliza certa irritação, já que o outro sempre aparece de forma assimétrica.
62
Em Freud e em outros autores, a noção de narcisismo sempre surge numa tonalidade afetiva de
nostalgia e irritação. Só se trata de narcisismo [itálico no original] quando se fala de um outro que
nunca é tratado de igual para igual, mas sempre um pouco mais e um pouco menos que humano, sempre
um pouco sacralizado e bestializado (...). (Girard, 2011, p. 46)
Kehl (2007) afirma que, ao se colocar como vítima de um flagelo do qual não pode se
esquecer e ruminar uma vingança que provavelmente não irá se concretizar, o ressentido
acaba por ter seu Eu empobrecido, mas não consegue ter clareza de que seu valor está sendo
ameaçado. Ao contrário, o valor de si parece estar garantido para ele mesmo, que espera por
reconhecimento ou rever um direito que merecidamente lhe pertence; “no horizonte
fantasmático do ressentido está sempre a figura de um usurpador” (Kehl, 2007, p. 44). Dessa
forma, as lamúrias indicam que algo deveria ser seu por direito, mas que lhe foi usurpado, ou
seja, violentamente tirado.
A hipótese desenvolvida por Kehl é análoga à de Kancyper, ou seja, seria também a
partir do conceito de narcisismo primário que encontraríamos o cerne da questão. O
ressentimento viria da impossibilidade de simbolizar a perda da satisfação narcísica infantil,
quando a criança gozava da certeza da completude do seu Eu.
Luís Kancyper constrói uma hipótese semelhante a esta ao incluir, entre os elementos determinantes da
formação do núcleo do ressentimento, a frustração da certeza imaginária sobre a soberania do eu,
[itálico no original] que ocorre quando a “realidade da vida” (como diria Freud) faz com que o sujeito
se perceba muito aquém do que o Outro lhe fez acreditar que ele fosse. Nesse caso, uma decepção a
respeito de si mesmo traduz-se em decepção com relação a esta certeza antecipada que se fundava no
desejo dos pais. (Kehl, 2007, p. 49)
O ressentido não acusa a si mesmo, como faz o melancólico. A sua falta não é algo
que ele acredita encontrar nele mesmo; o que ele reivindica é que esse alto valor encontrado
em si seja compartilhado e reconhecido pelo outro. Quando Kehl (2007) postula que não foi
possível simbolizar a perda de ter sido objeto de satisfação e plenitude para o outro, ela
acredita que, além de perder um objeto, o ressentido tenha perdido um lugar. É o narcisismo
primário que irá sustentar essa hipótese, já que, antes mesmo de a criança nascer, ela possui
um lugar de exceção na fantasia dos pais, que depositam seus ideais nela. E suas ruminações
queixosas denunciam que esse lugar não foi adquirido a partir de uma conquista, mas é um
lugar que lhe pertence por direito (Kehl, 2007).
O ressentimento estaria, para Kehl (2007), inserido no grupo dos afetos. Segundo a
autora, as ruminações e queixas repetitivas serviriam “aos mecanismos de defesa do eu a
serviço do narcisismo. (...) O ressentido reconhece seu sofrimento, mas atribui toda
63
responsabilidade a um outro, mais poderoso que ele, suposto agente do mal que o vitimou”
(Kehl, 2007, p. 33).
A presença constante da ofensa e o sofrimento do qual se acha vítima oferecem ao
ressentido um ponto de apoio onde pode assegurar-se da sua inocência. Independentemente
dos resultados, ele afasta do seu horizonte a possibilidade de constatar que o fracasso foi seu.
A impossibilidade de esquecer um agravo a que se referiu Nietzsche também aparece nas
reflexões de Kehl, e a sua contrapartida necessária, a paralisação do tempo, indicaria uma
espécie de reivindicação que visaria a neutralizar a passagem temporal, no intuito de erradicar
a constatação da falta. Desse modo, o ressentimento seria “uma das manifestações possíveis
de inconformidade com essa perda inevitável” (Kehl, 2007, p. 53).
O que podemos vislumbrar é o indivíduo pode lançar mão do ressentimento como
possível via de escape ao risco de desintegração narcísica e consequentemente uma psicose. O
desfacelamento narcísico, ou a precariedade da sua constituição, como afirma Jordão, cria o
ressentimento. Ao se instalar a partir de uma posição vitimizada, recobre o empobrecimento
do Eu, que não toma conhecimento desse sentimento de desvalimento. Com o ressentimento,
há uma compensação, pois o indivíduo permanece vaidoso, certo de seu valor e inocência.
Nosso camundongo demonstra maneira semelhante no seu agir. Quando resolve sair
do subsolo, estabelece uma relação com o outro extremamente frustrante, que acaba por
revelar sua falta. Contra isso, ele prontamente acusa seu inimigo, e, na lembrança em questão,
uma inimiga, como a responsável por seu fracasso.
Eu estava enraivecido contra mim mesmo, mas, naturalmente, ela é que devia sofrer as consequências.
Um rancor terrível contra ela ferveu de chofre em meu coração; era capaz de matá-la ali mesmo,
parecia-me. Para me vingar dela, jurei mentalmente não lhe dizer mais nenhuma palavra enquanto
estivesse ali. “Ela é que é a causa de tudo”, pensava. (Dostoiévski, 2009, p. 136)
Podemos perceber a maneira típica com a qual age o ratinho ressentido: ofendido, ele
responsabiliza o outro por sua incapacidade. A vingança é prometida mentalmente, ou seja,
uma reação que não se efetiva no mundo, acrescentando ainda que o seu ataque seria o
silêncio. Assim, deparamos com o papel da vingança para o ressentimento, na psicanálise.
64
outro. Partindo da análise fraterna explicitada no livro, ele demonstra a manobra de uma
irmã ofendida, envenenada por comparações entre ela e seu irmão, encontra uma solução,
ainda que pouco saudável, de abrandar o intolerável da sua chaga narcísica. Esta é
revertida em agressividade externa, que dirige para seu alvo as suas próprias frustrações,
preservando, por meio do triunfo vingativo, sua autoestima e sua posição de vítima
detentora de razão (Kancyper, 2010, p. 25).
Ocorre que esse triunfo nem sempre chega, e o sujeito ressentido permanece
esperando algo de um ofertante que nem sempre existe ou tampouco possui aquilo que
deseja. Ele se recusa a acreditar na realidade dos fatos que lhe impõe essa falta, e constrói
uma explicação de forma a crer que o outro tem aquilo que ele deseja e de propósito não
lhe dá, o que justifica sua vingança reivindicatória. Além disso, essa esperança retaliativa
se sustentaria pelo superinvestimento tanto do objeto, quanto do sujeito (Kancyper, 2010,
p. 167).
De fato, o que percebemos é que tanto o objeto quanto o próprio sujeito
encontram-se engrandecidos no ressentimento. Mas é preciso pensar agora em termos de
dinâmica libidinal, como ela se articula com a temática da vingança.
A partir de observações da sua própria clínica, Kancyper (1994) faz uma descrição
daquilo que escutou dos seus pacientes quando estes relatam não conseguir se livrar de
determinadas lembranças e acontecimentos, ficando libidinalmente presos a certas
situações. Obviamente isso não é o suficiente para caracterizar o ressentimento; o que se
acrescenta a estas lembranças é o desejo vingativo de que a vítima merece ser reparada e
reconhecida pelo outro como detentora da razão. Ressentimento é, segundo esse autor,
“amarga e arraigada lembrança de uma injúria particular, a qual se quer tirar satisfações”
(Kancyper, 1994, p. 07).
Esse autor não utilizou explicitamente as formulações de Nietzsche sobre o
assunto, mas a vingança imaginária está também presente nas suas formulações. O desejo
de vingar-se seria consequência do ruminar constante no psiquismo de alguma humilhação
sofrida, que, sufocada, “sonha” com o momento em que terá sua desforra. Essa lembrança
se faz presente o tempo todo no psiquismo, que a sente como uma verdadeira tortura.
Essa presença constante da memória de agravo, como aparece nas formulações
nietzschianas, trabalha a favor de assegurar para o indivíduo o seu lugar de “vítima
privilegiada” (Kancyper, 1994, p. 08), designação que consideramos pertinente quando
falamos de ressentimento. É desse lugar privilegiado que o ressentido percebe que possui
66
o direito de vingar-se contra aqueles que destruíram a sua integridade narcísica, tentando
fazer com que o outro pague por aquilo que lhe falta. Assim, escreve Kancyper:
É na vingança que se reverte a relação. O sujeito ressentido, na sua possibilidade de inversão de papéis,
passa de um objeto anterior humilhado a um sujeito agora torturador.
O sujeito torturador anterior converte-se durante a vingança num objeto atual humilhado devedor,
mantendo a mesma situação de imobilização dual dominador/submisso, com aparência de mobilidade.
(Kancyper, 1994, p. 08)
Esse primeiro aspecto nos leva para nossa novela modelo, mais especificamente para a
segunda parte, quando encontramos algumas lembranças do nosso personagem. Após jantar
com antigos colegas de escola, com os quais não só não tinha afinidades, como também sentia
até repulsa e acreditava na reciprocidade do sentimento, o personagem se dirige para uma casa
onde trabalhavam prostitutas, local onde seus colegas também estariam, mas em que não
chegou a encontrá-los.
O jantar havia sido um fiasco e agora ele acreditava que poderia dar o troco nos seus
colegas. Imagina que eles irão implorar pela sua amizade, por seu perdão, que poderia
bofetear-lhes a cara, mas o que encontra é Liza, uma frágil prostituta. E, se é que podemos
chamar assim, a relação entre eles começa.
Havia chegado ao local embriagado, e, à medida que ia retomando a consciência, as
humilhações da noite iam tomando espaço em sua mente novamente, com mais ardor ainda.
Mesmo embriagado, não conseguia se livrar das impressões dolorosas, que ficavam em
suspenso, parecendo esperar pelo momento certo para torturar-lhe novamente.
E mesmo em meu alheamento, algo persistiu em mim, uma espécie de ponto que eu não conseguia
esquecer e em torno do qual meus sonhos giravam pesadamente. (...) Tinha uma fumaceira na cabeça.
Algo parecia pairar sobre mim, tocar-me, excitar-me, infundir-me intranquilamente. A angústia e a bílis
ferviam novamente e buscavam saída. De repente vi, ao meu lado, dois olhos abertos que me
examinavam curiosa e fixamente. (Dostoiévski, 2009, p. 103)
O outro olhou para ele, finalmente. Era Liza, que esteve ao seu lado enquanto dormia.
Encontrou nela alguém contra quem pudesse deferir sua raiva, passando adiante as ofensas
que havia ele mesmo se submetido. E é contra ela que ele investe todo seu ódio, pois tinha ido
ao local vingar-se de seus colegas (provavelmente não daria conta de efetivar-se), e, não os
encontrando, sente que precisa desabafar seu rancor; castigar alguém na tentativa de restituir o
equilíbrio das suas forças libidinais e obter com isso alguma satisfação interna.
67
Eu tinha sido ofendido, ao jantar, pelos que estiveram naquela casa antes de mim. Fui até lá para
espancar um deles, um oficial; mas não deu certo, não o encontrei; tinha que desabafar sobre alguém o
meu despeito, tomar o que era meu; apareceu você, e eu descarreguei sobre você todo o meu rancor,
zombei de você. Humilharam-me, e eu também queria humilhar; amassaram-me como um trapo, e eu
também quis mostrar que podia mandar... (Dostoiévski, 2009, p. 137)
Começa a discursar sobre a vida, a morte, o amor, e Liza percebe que nada do que diz
lhe soa autêntico, tudo parece ser tirado dos livros. Diz a Liza que sentia pena dela, e, quando
ela parece não se importar que ele sentisse pena dela, infla-se de raiva novamente, com medo
de que não conseguisse atingi-la. E isso enfurece ainda mais nosso herói, que, de fato, sabe
não saber agir de outra forma senão a dos livros. “Ansiava por expor minhas ideiazinhas
secretas, cultivadas num canto” (Dostoiévski, 2009, p. 107). Liza era apenas uma peça de
manobra na sua mão, mas que acaba subvertendo sua vingança, já que acaba expondo para o
próprio personagem sua fraqueza.
Ao fim do encontro, o personagem dá a Liza o endereço de sua casa e pede para que
ela vá vê-lo. No outro dia, conta ao chefe da repartição onde trabalha que havia farreado no
dia anterior e lhe pede dinheiro para saldar as dívidas da farra. Humilhar Liza havia trazido
momentaneamente leveza e poder para ele, mas tão logo passa esse sentimento, ele se vê
novamente imerso em sua própria angústia. Ele havia se revelado para ela, e então “ela
adivinhara que o arrombo da minha paixão fora justamente uma vingança, uma nova
humilhação, e que ao meu ódio de antes, quase sem objeto, se acrescentara já um ódio
pessoal, invejoso, um ódio por ela...” (Dostoiévski, 2009, p. 141).
Tomado por sentimentos ambíguos, este anti-herói percebe a artificialidade livresca de
sua crueldade. Envergonha-se e desespera-se pelo fato de que todas as suas tentativas de
vingança foram forjadas, uma maldade intelectual, desprovida de originalidade e de ação
genuína. Agora é ele quem se sente humilhado por Liza, que descobriu seus segredos: ele era
escravo de si mesmo e incapaz de viver fora do subsolo. Não havia mobilidade na sua
vingança.
E essa falta de mobilidade indica que o nosso homem-rato está preso e se fere, como
nos diz Nietzsche, na jaula que ele mesmo colocou para si. Mesmo após humilhar Liza, sente
que é ela quem “haveria de pagar por tudo aquilo” (Dostoiévski, 2009, p. 134); ele ainda é
vítima de toda situação degradante em que se colocou – vítima privilegiada de que falamos há
pouco.
Há, portanto, um trabalho de expurgação da ofensa sentida, mas esse trabalho não se
conclui nunca, pois em contrapartida há um dispendioso esforço em manter essa ofensa e
consequentemente o lugar de vítima coberta de razão. Kancyper (1994) afirma, assim, que o
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A melancolia mostrou como uma parte do Eu pode tratar a outra como objeto de forma
crítica e cruel; uma parte que se desdobra e pode trabalhar de forma independente: a
consciência moral, que mais tarde desemboca no Supereu. Até aqui, entretanto, não
acrescentamos nada que já não tenha sido afirmado.
É preciso, então, aprofundar a maneira como o Eu se comporta diante das exigências
que o seu próprio ideal lhe impõe. Segundo Kehl, “O estudo da melancolia nos faz ver que a
identificação do eu com os ideais, e a satisfação obtida pela realização de alguns deles, nem
sempre é suficiente para deslocar o supereu de uma fixação tirânica ao eu ideal” (Kehl, 2007,
p. 46). Assim, passemos à investigação do masoquismo moral, entendido como uma forma
peculiar de como o Eu se comporta.
Kehl (2007) retoma a expressão covardia moral, empreendida por Freud ainda nos
Estudos sobre a histeria (1893-1895), e a articula com o masoquismo moral. A autora
compreende tal covardia a partir de duas frentes, não excludentes: haveria uma análise no
âmbito da moral e outra que se vale de justificativas morais para sua compreensão. O termo é
empregado para designar uma histérica, Miss Lucy, mas seu alcance atinge a neurose de
forma geral.
A covardia aqui significaria a impossibilidade de se responsabilizar pelo seu desejo, e
o sintoma aparece como forma de evitar que essa covardia alcance a consciência. “O
ressentimento expressa a tentativa do eu de evitar confrontar-se com sua própria covardia e
com os prejuízos que ela lhe causou” (Kehl, 2007, p. 59).
Podemos encontrar uma expressão análoga empregada pelo nosso ratinho, quando
percebe que sua paralisação para agir foi devido a sua falta de coragem moral. É curioso notar
que esse jogo de palavras – covardia moral e falta de coragem moral – recobre de alguma
forma a evidência da covardia, de modo que a passividade para ação se relaciona à garantia de
vaidade, deixando-a ao menos ilusoriamente intacta.
Daquela vez não me intimidei por covardia, mas em virtude da mais ilimitada vaidade. Não me assustei
com a altura do oficial, nem com a perspectiva de ser dolorosamente espancado e jogado pela janela; e
realmente eu teria suficiente coragem física, o que me faltou foi coragem moral. (Dostoiévski, 2009, p.
64)
Quando ele coloca que não se assustou com a altura do oficial, nem com a
possibilidade de ser defenestrado, não acaba por confessar justamente o contrário, que essas
ideias lhe passaram à cabeça e o paralisaram?
70
10
A nota do tradutor aponta para esse parágrafo ao comentar o masoquismo moral em O problema econômico do
masoquismo (1924).
11
A nota do tradutor evidencia que a explicação é retomada dos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(1905).
71
O movimento seria descrito de tal forma que essa pulsão de morte, após ter sido
dirigida para o exterior, teria deixado um resto no interior do organismo, que, aliado à libido
sexual, dá origem ao masoquismo erógeno ou original. E isso graças à solidariedade já
mencionada entre prazer e dor. Amalgamadas – a pulsão de morte é incorporada à libido –
tomam o próprio organismo como objeto de satisfação. O masoquismo moral seria então
secundário, ou seja, o retorno no Eu da agressividade direcionada aos objetos externos, e
encontra no masoquismo originário um reforço.
Portanto, não devemos nos espantar em ouvir que, sob certas circunstâncias, o sadismo – ou pulsão de
destruição – projetado e voltado para fora, poderá novamente ser reintrojetado, redirecionada para
dentro, regredindo assim à sua antiga condição e resultando, então, em um masoquismo secundário que
se somaria ao masoquismo original. (Freud, 1924/2007b, p. 110)
Via de regra, os diferentes ganhos obtidos com a permanência neste estado de doença derivam de um
somatório de forças que se rebelam contra a cura, mas eu diria que dentre esses ganhos é o
apaziguamento [Befriedigung] do sentimento de culpa inconsciente o mais significante e poderoso. É
justamente pelo sofrimento propiciado que a neurose se torna mais valiosa para a tendência masoquista.
(...) Vemos, então, que uma forma de sofrimento foi rendida pela outra, era apenas uma questão de
manter ativa uma certa magnitude de sofrimento. (Freud, 1924/2007b, p. 111)
72
Não podia mais dominar-me, e a febre fazia-me tremer. Imaginava, desesperado, como aquele
“canalha” do Zvierkóv me receberia altiva e friamente; com desprezo embotado, invencível, me olharia
o néscio Trudoliubov; de modo maldoso e insolente haveria de rir de mim o inseto Fierfítchkin,
procurando agradar a Zvierkóv; como Símnov compreenderia tudo isto muito bem, em seu íntimo, e
como ele me desprezaria pela baixeza da minha vaidade e fraqueza e, sobretudo, como tudo aquilo seria
miserável, não literário, cotidiano. Está claro que o melhor seria não ir, definitivamente. Mas isso, mais
74
que tudo, era impossível: quando algo começava a me puxar, deixava-me afundar de cabeça; senão,
depois, eu próprio zombaria de mim mesmo a vida inteira. (Dostoiévski, 2009, p. 84)
Entrevemos nesse relato que, independentemente da decisão que tomasse, ele não
tinha escapatória dos ataques que viriam de si mesmo, o que nos faz supor que o que buscava
era alguma forma de sofrimento. A narrativa se desenvolve de tal maneira que a situação
caminha para a degradação contínua. Diante do fracasso que havia sido o jantar, era de se
esperar que o camundongo se retirasse para seu subsolo. Ao contrário, ele permanece com os
colegas quando estes se retiram para uma sala com intuito de continuar a comemoração. E
então ele é ainda mais cruel consigo; sua implacável consciência o ataca ferozmente, mas ele
não é capaz de retirar-se da degradação a que se submeteu.
De quando em quando cravava-se em mim, com dor profunda, venenosa, um pensamento: passariam
dez, vinte, quarenta anos, haveria de lembrar com humilhação e repugnância estes momentos, os mais
imundos, ridículos e terríveis da minha vida. Eu compreendia isso perfeitamente, mas assim mesmo
continuava a caminhar da mesa à lareira e vice-versa. (Dostoiévski, 2009, p. 94)
É de se supor com que perplexidade o leitor é tomado ao ler a deterioração moral que
o rato se impôs, atacando-se a si mesmo e remordendo sua consciência continuamente. Talvez
seja por isso também que Freud (1924/2007b) considera que o masoquismo do Eu seja ainda
mais difícil de ser aceito por seus pacientes. Além da culpa que sentiam ainda teriam que
aceitar um imperativo que os impele a se punirem?
O anseio do Eu por castigo – seu masoquismo – por vezes permanece obscuro; Freud
(1924/2007b) afirma que o masoquismo do Eu é mais difícil de ser percebido que o sadismo
do Supereu e oferece uma explicação para o fato. Ainda que ambos designem uma relação
conflituosa entre Eu-Supereu e que expressem uma satisfação via sofrimento e autocastigo,
alguma diferença se impõe nesse horizonte.
Afirmamos que no masoquismo moral ocorre um afrouxamento dos objetivos sexuais;
mas a definição do Dicionário de psicanálise aponta também para a busca do desprazer na
inconsciência da satisfação sexual. Então, há uma satisfação sexual, mas que se encontra de
alguma forma inconsciente.
A fantasia de conteúdo punitivo revela uma ligação com a fantasia mais arcaica de ser
punido pelo pai, que por sua vez encobre o desejo ainda mais primitivo e inconsciente de
efetivar com esta figura a relação sexual. Se as figuras parentais se encontram acolhidas no
Supereu, o herdeiro do complexo de Édipo, então é de se supor que o Eu, ao se comportar de
forma passiva diante de sua instância tirânica, encontra aí alguma satisfação de ordem sexual.
75
Freud (1924/2007b) faz uma analogia entre a fantasia passiva sexual da criança de ser
açoitado – e coitado – pelo pai e a relação Eu e Supereu, o que designa uma mesma dinâmica,
com a diferença de ser “um novo cenário num novo palco” (Freud, 1928/1996i, p. 191). Nas
suas palavras:
(...) embora a consciência moral e a própria Moral tenham surgido a partir da superação e
dessexualização do complexo de Édipo, a Moral será novamente ressexualizada e o complexo de Édipo
de novo reavivado pela atuação do masoquismo moral, o qual promoverá uma regressão da Moral em
direção ao complexo de Édipo. (Freud, 1924/2007b, p. 114).
Essa passagem da autopunição pelo Supereu sádico para o masoquismo do Eu está repleta de
consequências deletérias: arruína a consciência moral que é agora utilizada em proveito de uma
satisfação interna de essência edipiana. Ocorre, com efeito, uma ressexualização da relação com os pais
através da erotização da relação do Eu com o Supereu. (Mijolla, 2005, p. 1148)
Ou seja, normalmente nos é explicado que a exigência moral seria o elemento primário e a renúncia à
satisfação da pulsão, a sua consequência. Mas isso não explica a origem da Moral. Na verdade, parece
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ocorrer o contrário: primeiro forças externas impõe a renúncia à satisfação e, em seguida, essa renúncia
leva à instituição das normas da moralidade, as quais se expressam então na consciência moral, a qual
passa exigir ainda mais renúncias pulsionais. (Freud, 1924/2007b, p. 115)
Para conseguir que esse representante [Vertretung] do casal parental o castigue, o masoquista deve fazer
coisas inadequadas e trabalhar contra seu próprio beneficio, destruir as perspectivas que se lhe abrem no
mundo real e eventualmente aniquilar sua própria existência real. (Freud, 1924/2007b, p. 114)
O nosso personagem modelo parece não fugir a essa lógica. Percebemos como, no seu
modo de funcionamento psíquico, uma parte trata a outra como objeto e a acusa; é assim alvo
do sadismo que, impedido de ser exteriorizado, alojou-se internamente e o expia. Mas a
atividade não se encerra aqui, pois o que percebemos é um rastreamento contínuo das
lembranças e eventos que possam ser censurados. Essa busca parece assumir o intuito de
atingir a superfície psíquica e molestar mais profundamente o camundongo, que encontra
nesse processo um prazer.
Envergonha-me disso (e talvez me envergonhe ainda hoje); chegava a ponto de sentir certo prazerzinho
secreto, anormal, ignobilzinho quando às vezes, em alguma horrível noite de Petersburgo, regressava ao
meu cantinho e me punha a lembrar com esforço que, naquele dia, tornara a cometer uma ignomínia e
que era impossível voltar atrás. Remordia-me então em segredo, dilacerava-me, rasgava-me e sugava-
me, até que o amargor se transformasse, finalmente, em certa doçura vil, maldita e, depois, num prazer
sério, decisivo! Sim, num prazer, num prazer! Insisto nisso. (Dostoiévski, 2009, p. 19)
77
necessidade de punição que induziu à busca pelo castigo para, por retroação, apaziguar seu
sentimento de culpa.
Encontramos nesses criminosos por sentimento de culpa uma das poucas menções que
Freud faz a Nietzsche ao longo de suas obras. Em um dos discursos de Zaratustra, deparamo-
nos com a figura do pálido criminoso, que comete o crime não por um desarranjo da razão,
mas porque lhe pesava a alma, uma “capa de chumbo da sua culpa”: “Ouvi, juízes! Ainda há
outra loucura, e esta é antes da ação. Não penetraste bastante a fundo nessa alma. (...) Mas eu
vos digo: sua alma queria sangue, e não roubo, sua alma tinha sede da volúpia da faca!”
(Nietzsche, 2000, p. 55).
Assim vemos uma culpa que precede o crime, e não, como é costume acreditar, o
contrário, ou seja, após a execução do ato de delito. A alma quer se fazer sangrar. Então os
criminosos por sentimento de culpa não demonstrariam uma contradição com o masoquista
moral?
O que percebemos foi que no masoquismo moral é o sofrimento o motor maior para
que o indivíduo busque e se submeta às situações penosas. Ser expiado pela tirania da
consciência moral subverte a impessoalidade da relação Eu-Supereu e a ressexualiza, fazendo
do sofrer o motivo que leva à transgressão.
Kehl (2007) aponta que no masoquismo moral o sentimento de culpa vem após a
subjugação do Supereu, trazendo à cena, como a autora afirma, a articulação entre moral e
gozo. Acrescenta ainda que é porque o indivíduo gosta de ser castigado por sua consciência
moral que ele necessita da punição, e não porque ele se sente culpado.
A culpa, com todo seu infindável elenco de argumentos morais, viria depois da submissão masoquista,
para justificar o gozo. A submissão ao supereu presente no masoquismo moral, e o gozo que ela
proporciona, cobram do sujeito o preço da culpabilidade. É porque o sujeito goza com o excesso de
rigor moral do supereu que ele se sente culpado, e não o contrário. (Kehl, 2007, p. 61)
Assim, haveria uma diferença para os infratores que buscam o delito para ter na pena
um apaziguamento do sentimento de culpa? O circuito do masoquismo moral poderia ser
descrito da seguinte forma: há uma necessidade de punição (buscando o prazer que já
afirmamos encontrado na submissão ao Supereu tirânico), que impele a agir de forma
condenável; a condenação – e sua satisfação correlata – são encontradas, a culpa aparece. Se
pudermos considerar como um circuito, a culpa poderá ser também o motor da transgressão, e
lançar o indivíduo novamente a buscar o ato infrator na tentativa de encontrar algum
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Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores,
ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente de si mesmo e irritando-se com sua própria
imaginação. Ele próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo
examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto de que também estes
poderiam ter acontecido, e nada perdoará. (Dostoiévski, 2009, p. 23)
CONCLUSÃO
Como vimos, ressentimento não foi trabalhado por Freud, mas sim por Nietzsche.
Assoun (1992) afirmou que não é indicado tomar Nietzsche como simples precursor de Freud,
pois dessa forma estaríamos determinando o peso de Nietzsche a partir de Freud. Do mesmo
modo, colocar o peso no lado contrário significaria avaliar a psicanálise a partir das premissas
nietzschianas. É preciso, pois, criar esse espaço de diálogo entre eles.
Vislumbramos a possibilidade de Nietzsche ter se apropriado do homem do subsolo de
Dostoiévski para caracterizar o ressentimento. E, do mesmo modo, tomamos a liberdade de
empreender uma manobra semelhante, ou seja, tomar como inspiração tanto as formulações
filosóficas do ressentimento, como aquilo que o subsolo poderia ensinar à psicanálise.
O ressentimento não se reduz a um conceito da psicanálise, ou seja, não foi possível
fazer uma relação de correspondência completamente satisfatória entre o tipo ressentido e um
único postulado freudiano. A irredutibilidade do fenômeno impôs que diferentes aspectos
fossem abordados no campo psicanalítico; não havia como transcrever o conceito de
Nietzsche e fazer uma relação de pura equivalência. O objetivo foi servir-nos das suas
formulações como ponto de partida, de onde retiramos os questionamentos do lugar que o
ressentimento poderia ocupar junto à psicanálise.
Se o que Nietzsche operou na Genealogia da moral foi o estabelecimento de um
quadro clínico a respeito daquilo que percebia como o elemento mórbido da moralidade, foi
devido à percepção de quão perniciosos os valores morais podem ser para a saúde do homem.
Ficamos tentados a escrever aqui saúde psíquica, mas o que vemos na filosofia nietzschiana é
um corpo que não pode ser dissociado do psíquico; o que indica que processos somáticos
estão intrinsecamente atrelados aos efeitos da moral no psiquismo. (Assoun, 1992).
Há, desse modo, uma diferença que demarca o tratamento dedicado à doença na
perspectiva de Nietzsche e Freud; para o primeiro, a morbidade psíquica – o ressentimento,
por exemplo – escancara a dimensão valorativa das escolhas morais e denuncia sua falácia, ao
passo que em Freud a patologia é utilizada como base explicativa. É a partir dos exageros das
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(...) discurso axiológico de um lado, discurso explicativo de outro: mas esta oposição banal não impede,
de modo algum, uma surpreendente convergência da abordagem psicopatológica, como se todo discurso
sobre o normal e o patológico deparasse com a questão do valor e da norma, e aquela, correlata, da
interpretação. (Assoun, 1992, pp. 228-229)
este pode lançar seus investimentos libidinais nos objetos do mundo externo. Diante da
frustração da realidade, que impôs que esse investimento não poderia ter seguimento, a libido
teve que ser abrigada novamente no Eu. No entanto, o investimento objetal não se dá
totalmente por encerrado, ele permanece na fantasia.
A maneira como trata o objeto, que se mantém via investimento na fantasia
vingativa, também assume um caráter especial. O desejo retaliativo, que nunca se consome
de fato – pois a característica fundamental do ressentido é sua inabilidade ativa –, acaba por
manter esse objeto em suspenso no psiquismo, para o qual é direcionada a agressividade.
E podemos apresentar, como propôs Kancyper (1994), a peculiar forma com que o
objeto é tratado no ressentimento resumida da seguinte maneira: imobilizado, maltratado e
preservado. Assim, não é possível esquecer uma ofensa sofrida, pois o objeto se mantém
presente, e é para ele que o ódio se dirige; mas como é ele quem também encarna a promessa
da dívida a saldar, ele precisa ter seu lugar preservado.
Desse modo, o ressentimento, ao manter constantemente o objeto presente, mesmo que
o atormentando, afasta a possibilidade de que o objeto seja introjetado e o Eu se identifique
com ele, tal como ocorre na melancolia. Assim, podemos demarcar a diferença entre essa
patologia e o ressentimento com mais clareza.
Com a melancolia é possível perceber a ameaça que significa o empobrecimento do
Eu. O melancólico, diante da perda do objeto o recolhe para si, a partir da regressão da
escolha de objeto narcísica para a identificação. Como o objeto abandonado encontrou seu
lugar junto ao Eu, é para ele que o ódio será direcionado. Desse modo, se objeto e Eu se
encontram fundidos, uma parte do Eu pode desdobrar-se e tratar a outra como trata o objeto
(perdido e odiado).
Ao estabelecer o ressentimento como mecanismo de defesa, é possível tanto garantir
uma distância do empobrecimento do sentimento de si, quanto garantir a presença do objeto
externo, mesmo investido pela vingança imaginária. Este último mecanismo apresenta uma
dupla função: interpõe-se como alvo da agressividade, evitando que o Eu encarne esse posto
por completo; e como manutenção do investimento na fantasia, mantendo o funcionamento
psíquico dentro dos limites de uma neurose.
Em contrapartida, a manutenção constante da figura contra quem a vingança deve ser
desferida indica também um apego a ela, denominada viscosidade da libido. A dinâmica dos
investimentos libidinais esclarece melhor como o processo se dá no ressentimento. Haveria
uma economia libidinal que se efetivaria da seguinte forma: quanto mais libido no objeto,
menos libido estaria disponível no Eu. Diante da libido doada ao objeto externo, o Eu se
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empobreceria, mas a satisfação poderia ser reencontrada caso a qualidade da relação objetal
oferecesse algum ressarcimento.
No ressentimento, a relação objetal ocorre de maneira peculiar, e nosso ratinho nos
ensinou bastante a esse respeito. Ele demonstrou ser detentor de uma vaidade sem limites, que
se conservava mesmo diante da realidade que, por vezes, provava o contrário, ou seja, quando
não há retorno libidinal da relação empreendida. Admitimos, então, que, no âmbito da sua
libido narcísica, seu Eu se encontrava engrandecido, cheio de orgulho e arrogância, ao passo
que, no âmbito da sua libido objetal, haveria também um superinvestimento, demonstrando
um objeto engrandecido e idealizado. Como isso é possível?
Só podemos supor que o Eu não se dá conta desse empobrecimento, ou melhor, ele
pode até se dar conta inconscientemente, e empreender um trabalho sobre-humano de
tamponar esse empobrecimento, com intuito de garantir sua integridade narcísica. É por isso,
talvez, que Girard (2011) afirma que “o orgulho encontra-se na origem da grandeza
imaginária e da baixeza efetiva do herói do subsolo” (p. 75)
Escutamos do camundongo que era impossível aceitar, por exemplo, o fracasso da sua
vingança malsucedida. Em contrapartida, ele inflava-se novamente, nos seus devaneios de
superioridade. “E podia eu acaso conformar-me com uma devassidãozinha simples, vulgar,
direta, de amanuense, e carregar sobre mim toda esta imundice?! (...) Não, eu tinha saída
nobre para tudo...” (Dostoiévski, 2009, p. 71).
Assim, manter o Eu engrandecido, contra o sentimento de empobrecimento pelo qual
pode ser tomado, demarca um mecanismo de defesa, e nesse sentido entendemos que o
ressentimento pode ser entendido como tal. A forma com que o camundongo se coloca pode
indicar que, mesmo nos momentos em que percebia sua baixeza, havia uma forma de se
consolar. Não agir, ou reagir, é evitar por à prova, no mundo fora do subterrâneo, a verdadeira
grandeza ou pequeneza de si.
O ressentido se coloca numa posição de vítima detentora de direitos e razões diante de
um outro mau e usurpador, posição subjetiva que encarna uma defesa contra a constatação de
que a falta é dele mesmo. E mais, independentemente dos resultados da ação que empreende
no mundo, seu narcisismo sempre estará isento de ser responsabilizado por algum fracasso,
como se encarrega de assegurar sua posição de vítima.
Outra questão igualmente importante se apresenta no horizonte do narcisismo. Vimos
que é o eu, como unidade representacional, que se interpõe e possibilita a passagem do
autoerotismo para o narcisismo primário e possibilita que o investimento libidinal encontre os
objetos do mundo externo.
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desta vez proponho já da minha parte uma pergunta ociosa: o que é melhor, uma felicidade
barata ou um sofrimento elevado? Vamos, o que é melhor?” (Dostoiévski, 2009, p. 145).
O episódio entre o ratinho e o oficial consegue condensar boa parte do que consiste o
ressentimento. A figura forte e robusta desse outro que age à sua revelia – a ação autêntica de
que falou Nietzsche, que não necessita se amparar em motivos exteriores que não a afirmação
de si – o exaspera de tal modo que ele não admite não ser enxergado. Aqui o personagem se
mostra novamente vaidoso e inferiorizado. Responsabiliza o outro por sua incapacidade para a
ação e expurga de si a constatação de que a fraqueza é sua.
Como não conseguiu reagir no momento, e aqui nos referimos à verdadeira reação
nietzschiana, a ação apenas encontra na vingança imaginária um meio de desafogar sua
agressividade. Sentia-se esmagado diante da figura do oficial, mas cultivava a imagem do
rival com uma hostil adoração: aqui encontramos duas atitudes opostas dirigidas ao mesmo
objeto.
Para Kehl (2007), o ressentimento seria uma solução de compromisso entre o
narcisismo e o outro, entendidos aqui como dois campos psíquicos, e sua superação reside
justamente em ultrapassar a conflituosa constatação que diz que Eu sou o outro, e ao mesmo
tempo quero expulsá-lo de mim. Acrescenta, ainda, que “A relação com o semelhante na
diferença é essencial para fornecer a medida, ao mesmo tempo, da grandeza e da
insignificância de cada um” (Kehl, 2007, p. 51). E parece que a medida não está facilmente ao
alcance do rato do subsolo, que só encontra seu lugar na extrema grandeza ou na extrema
insignificância.
Não podia compreender sequer secundário e justamente por isso desempenhava bem tranquilamente, na
realidade, o último dos papéis. Herói ou imundice, não havia meio-termo. Foi exatamente isto que me
perdeu, porque na imundice eu me consolava com o fato de ser herói em outra hora, e o herói disfarçava
consigo a imundice, como se dissesse: “ao homem comum é vergonhoso chafurdar na imundice, mas
um herói paira demasiado alto para ficar completamente sujo; por conseguinte, lhe é permitida a
imundice. (Dostoiévski, 2009, p. 71)
Do mesmo modo, o outro aparece nesses mesmos polos, mas sempre pendendo para o
engrandecimento. O ressentido recusa sua imperfeição, mas ao mesmo tempo exalta aquilo
que o outro tem de bom.
A vingança imaginária é o correlato da impossibilidade de descarga dos afetos
agressivos que acomete o tipo ressentido, mas, como aponta Nietzsche, essa frustração acaba
por atingir o interior do indivíduo. Aqueles impulsos que são impedidos de se efetivarem no
mundo exterior retornam para trás e encontram no interior um meio e alvo de escoamento.
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(2006) apresenta que esse termo, “consciência moral”, versão luso-brasileira da expressão
Gewissen, vem do grego syneidésis, apoiado pelo termo latino conscientia. Trata-se do
fenômeno psíquico da consciência religioso-moral, e enfatiza a relação de testemunha que
existe entre o sujeito e seu interior (com-scientia interior). “Nessa acepção, a consciência
moral está relacionada ao senso moral das próprias ações, ao sentimento provido de uma
faculdade de autojulgamento, à consciência de incondicional conformidade ao dever”
(Giacóia J., 2006, p. 104).
A investigação genealógica e a metapsicológica reestabelecem as condições históricas
de surgimento, transformação e desenvolvimento das formações culturais e sua aplicação na
interioridade humana (Giacóia J., 2006). Em Freud e Nietzsche, a consciência moral surge da
interiorização da agressividade. Na psicanálise, há uma internalização da influência parental e
da sociedade que se prolonga internamente no Supereu; que se encontra repousada, em última
instância, na gênese da formação da cultura.
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No processo que vai da atividade ao ressentimento, e deste à má consciência, é como se houvesse visto
seu aprofundamento em espiral. Na “interiorização” vimos consumar-se a mudança de direção, meta e
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objeto. A partir desse momento, a tonalidade sadomasoquista da má consciência assume todo o seu
significado pulsional. (Assoun, 1992, 233)
e satisfação narcísica. Kancyper (2010) afirma, inclusive, que é como defesa que o
ressentimento pode se tornar interminável. Mais difícil ainda se torna a tarefa quando abrimos
a possibilidade de que esse lugar é também uma posição de extração de prazer.
É fato que ganhamos em abrangência ao analisarmos o ressentimento em diferentes
vertentes conceituais da psicanálise, mas também corremos o risco de que alguns pontos
perdessem em profundidade. Assumimos esse risco, na expectativa de tê-lo sanado dentro dos
limites do possível, e também na certeza de que mais trabalho se impõe à frente.
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De acordo com o estilo APA – American Psychological Association.
92
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