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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BÁRBARA BUSCH TAVARES

O ressentimento e o subsolo: um estudo psicanalítico

Belo Horizonte
2013
BÁRBARA BUSCH TAVARES

O ressentimento e o subsolo: um estudo psicanalítico

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos para obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Estudos Psicanalíticos.

Orientador: Oswaldo França Neto.

Co-orientador: Eduardo Dias Gontijo.

Belo Horizonte
2013
Para o Vlad.
AGRADECIMENTOS

Ao Oswaldo França Neto, agradeço a orientação, a leitura e a acolhida do meu tema.

Ao Eduardo Dias Gontijo, meu agradecimento, e também meu carinho e amizade.

A Maria Teresa de Melo Carvalho, pelas valiosas contribuições na banca de qualificação.

Aos professores Carlos Roberto Drawin e Márcia Rosa, pela leitura e participação na banca
examinadora.

A minha mãe, Helenice, e meu pai, Ubirajara, pelo incentivo e por ensinarem a importância
do conhecimento.

A minhas irmãs, Amarílis e Adriana, pelo apoio e pelas tentativas de me tranquilizarem nesse
período.

Ao Vlad, por tudo.

Aos amigos Cris, Fafá, Gabi, Henrique e Suzi, pela presença constante.

Às amigas Anita e Raquel, pela leitura da dissertação.

Ao Marcelo, que encarou a empreitada do subsolo.

À Lourdes, que revisou o trabalho em um prazo inimaginável.


Comigo me desavim
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,


antes que esta assim crescesse:
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim


do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho inimigo de mim?

Sá de Miranda

De fato, contar, por exemplo, longas novelas sobre como eu fiz


fracassar a minha vida por meio do apodrecimento moral a um
canto, da insuficiência do ambiente, desacostumando-me de
tudo o que é vivo por meio de um enraivecido rancor no
subsolo, por Deus que não é interessante: um romance precisa
de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos
os traços de um anti-herói e, principalmente, tudo isto dará uma
impressão extremamente desagradável, porque todos nós
estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns
mais, outros menos.
Dostoiévski
RESUMO

Tavares, B. B. (2013). O ressentimento e o subsolo: um estudo psicanalítico. Dissertação de


Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

O presente trabalho tem por objetivo investigar como o ressentimento poderia ser abordado
por um viés psicanalítico. Por não se tratar de um conceito explicitamente teorizado por
Freud, era de suma importância que uma descrição do ressentimento fosse feita, a partir da
qual interrogaríamos seu lugar na psicanálise. Encontramos na literatura, no livro Memórias
do subsolo, de Dostoiévski, um personagem – o homem do subsolo –, uma descrição quase
ideal. Vemos nesse homem-rato um indivíduo em constante diálogo interior, com uma
consciência que ele designa como hipertrofiada, mas que, de algum modo, atrofiou seu agir no
mundo. Diante da sua impossibilidade para a ação, ele encontra apenas na faculdade
imaginativa um meio de desafogar sua raiva. Para embasar conceitualmente o fenômeno,
partimos das formulações de Nietzsche acerca do ressentimento, abordadas prioritariamente
na Genealogia da moral. Nesta última, lemos que o ressentimento seria marcado por uma
reatividade e uma impossibilidade para esquecer os agravos sofridos, que culminam em um
não querer mais esquecê-los. Vemos que o ressentido encontra na vingança imaginária uma
forma de reação. Impossibilitado de exteriorizar sua agressividade, esta se reverte contra si
mesmo; pelo tratamento da moral, o sofrimento interiorizado passa a ser buscado como forma
sedativa da sua existência. Buscamos entender as consequências perniciosas do ressentimento
na dinâmica psíquica, como esse remorder constante na consciência poderia ser lido por um
aspecto libidinal. O fator patogênico do ressentimento, que paralisa os investimentos
libidinais, revelou-se também como um mecanismo de defesa, com intuito de proporcionar
satisfação e integridade narcísica. Com o conceito do narcisismo, foi possível revelar uma
instância que vigia, cobre e pune o Eu. Diante desse panorama, investigamos a forma com que
o Eu pode se comportar diante da sua consciência moral, que se encontra acolhida pelo
Supereu. O que percebemos é que haveria um masoquismo do Eu, que se comprazeria por ser
punido pelo Supereu sádico. O masoquismo moral apareceu como uma categoria especial para
pensarmos o ressentimento. Isso porque o rato do subsolo nos ensinou que, quando se impõe
situações humilhantes e as rememora constantemente, extrai dessa posição um prazer. É,
portanto, uma busca por sofrimento, e o ressentimento poderia ser uma forma manifesta da
necessidade de punição. Assim, ao se impor a tarefa de investigar um fenômeno que foge ao
escopo tradicional da psicanálise, recorremos às contribuições que outras áreas do
conhecimento – a filosofia e a literatura – ofereceriam para a consecução do trabalho. O que
ficou claro é a irredutibilidade do ressentimento a apenas um conceito psicanalítico,
impedindo uma relação de pura equivalência entre as conceituações de Nietzsche e de Freud.
Entretanto, esse encontro, e incluímos aqui Dostoiévski, revelou-se profícuo para refletirmos
acerca do ressentimento na psicanálise.

Palavras-chave: Ressentimento; Freud; narcisismo; masoquismo moral; homem do subsolo.


ABSTRACT

Tavares, B. B. (2013). Resentment and underground: A psychoanalytic study. Dissertação de


Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

The present study aims to investigate how to approach resentment by a psychoanalytical view.
Due to the fact it is not a concept explicitly theorized by Freud, it was of utmost importance
making a description of resentment, based on which we would ask about its place in
psychoanalysis. We found in literature, in the book Memoirs of the subsoil, by Dostoevsky, a
character – the underground man – an almost ideal description. We see this rat-man as an
individual in a constant inner dialogue, bearer of a consciousness he designates as
hypertrophied, but which, somehow, atrophied his acting in the world. Before his inability for
action, only in the imagination capacity he can find means to vent his anger. To set a
conceptual support to the phenomenon, we set off based on Nietzsche’s formulations about
resentment, primarily addressed to in the Genealogy of Morals. In the latter, we can read that
resentment would be marked by a reactivity and some inability to forget the grief once
suffered, what would culminate in a lack of will to forget them. We observe that resentment
finds in imaginary revenge a form of reaction. Unable to externalize his aggressiveness, it is
reverted against himself; under the treatment of morale that interiorized suffering begings to
be sought as a way of sedating the man’s own existence. We seek to understand the pernicious
consequences of resentment in psychic dynamics, how could that constant gnawing of
consciousness be read by a libidinal aspect. The pathogenic factor of resentment, which
paralyzes libidinal investments, has also revealed itself as a defense mechanism, in order to
provide narcissistic satisfaction and integrity. By the concept of narcissism, it was possible to
reveal a stance that watches over, covers and punishes the Ego. Before this scenario, we
investigated the way that Ego may behave facing his moral conscience, which is hosted by the
Superego. What we notice is that there would be a masochism of the Ego, which would feel
pleased in being punished by the sadistic Superego. Moral masochism appeared as a special
category to think about the resentment. That's why the rat of the subsoil taught us that when
humiliating situations are imposed and are constantly recalled to memory, pleasure could be
drawn from that position. It is, then, a search for suffering, and resentment could be an
obvious way of a need for punishment. This way, when we impose the task of investigating a
phenomenon that goes beyond the traditional scope of psychoanalysis, we resource to
contributions that other areas of knowledge – philosophy and literature – would offer to the
achievement of the work. What became clear is the irreducibility of resentment to a something
as a psychoanalytic concept, preventing a relationship of pure equivalence between the
concepts by Nietzsche and Freud. However, that meeting, and Dostoevsky is included, proved
fruitful to reflect upon resentment in psychoanalysis.

Keywords: Resentment; Freud; narcissism; moral masochism; underground man.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO 1 – Delineando o ressentimento 16

1.1 Sobre Dostoiévski e o homem do subsolo 16

1.2 Nietzsche e o ressentimento 21

1.2.1 Ressentimento e vingança 26

1.2.2 Ressentimento, culpa e esquecimento 34

1.2.3 Ressentimento e narcotização da consciência 38

CAPÍTULO 2 – Psicanálise e ressentimento 44

2.1 Narcisismo e ressentimento 44

2.1.1 Sobre o contexto e importância de À guisa de introdução ao narcisismo (1914) 44

2.1.2 Sobre o narcisismo e suas ramificações 46

2.2 Ressentimento e narcisismo 55

2.3 Ressentimento e vingança 64

2.4 Ressentimento e necessidade de punição 68

CONCLUSÃO 80

REFERÊNCIAS 91
9

INTRODUÇÃO

O ressentimento não pertence ao campo dos conceitos tradicionais abordados pela


psicanálise. No entanto, podemos perceber que o tema vem ganhando espaço no meio
psicanalítico, ainda que de forma incipiente. É o caso de Maria Rita Khel, em seu livro
Ressentimento (2007), Luís Kancyper, que já publica sobre o assunto desde a década de 1980,
e, mais recentemente, Alexandre Abranches Jordão, em Narcisismo. Do ressentimento à
certeza de si (2009).
Para que o tema do ressentimento fosse abordado por um viés psicanalítico era
essencial que uma boa descrição do fenômeno fosse realizada, e o livro Memórias do subsolo,
de Dostoiévski – e seu personagem principal, o rato do subsolo –, foram escolhidos por
atenderem a essa exigência. O livro terá a função de interrogar as conceituações freudianas a
partir da análise de um personagem e sua dinâmica psíquica e sua economia libidinal, ou seja,
maneira de compreender o ressentido à luz da psicanálise. 1
A literatura faria o papel de um caso clínico, no sentido de trazer novos elementos que
interroguem a prática e a teoria psicanalítica. É bem sabido o quanto Freud se servia do
material que encontrava na sua clínica, retirando da escuta de seus pacientes importantes
conceitos e, muitas vezes, era a experiência clínica que o impelia a rever importantes aspectos
de sua teoria. Não temos, portanto, a pretensão de psicologizar o personagem, como se fosse
possível deitá-lo no divã.
Luis Kancyper, uma das importantes fontes deste trabalho, afirma que a psicanálise é
quem deve aguçar sua escuta literária, atentando para aquilo de novidade que nela se pode
encontrar. Não seria, portanto, uma aplicação das interpretações psicanalíticas à literatura,
mas sim aquilo que “a obra literária interrogará sucessivamente à psicanálise até dotá-la de
novos instrumentos de escuta e compreensão” (Kancyper, 2010, p. 11, tradução nossa). Ainda
segundo ele, apenas as grandes obras e os grandes escritores – aqueles que possuem a
capacidade de não perecerem ao longo da história – conseguem alcançar esse feito. E
Dostoiévski, sem sombra de dúvida, pode ser incluído nesse grupo.2

1
É importante salientar que foge ao alcance do trabalho fazer uma investigação de Memórias do subsolo que
contemple também a teoria da literatura; por isso nos autorizamos a servir-nos da obra apenas no que ela
oferece como material para caracterização do ressentimento.
2
No seu livro, Kancyper exemplifica com o shakespeariano, o dantesco e o cervantino. As obras escolhidas por
ele para conduzirem sua análise foram de Albert Camus, Borges e Sandor Marai.
10

Memórias do subsolo teria inclusive cunhado a expressão do “homem do subsolo”, e,


segundo Joseph Frank, biógrafo de Dostoiévski, essa expressão “tornou-se parte do
vocabulário da cultura contemporânea, e esse personagem alçou hoje em dia – como Hamlet,
Don Quixote, Don Juan e Fausto – a estatura das grandes criações literárias arquetípicas”
(Frank, 2002, p. 427).
A relação de Freud com a literatura, assim como com a filosofia, é marcada por
ambivalência; ora a colocando como a mais bela realização do homem, ora como uma “trama
de desconhecimentos” (Girard, 2011, p. 45). Em seu ensaio sobre Dostoiévski, Freud
(1928[1927]/1996i) afirma que o escritor russo ocupa um lugar próximo ao de Shakespeare,
atestando a grandiosidade de Irmãos Karamazov. Mas sua análise vacila diante dessa obra;
Freud, por exemplo, dá ênfase aos ataques convulsivos do escritor russo e não analisa a obra
propriamente dita, mas sim a personalidade de seu autor.
Desse modo, “se Freud não tem nada de decisivo a dizer sobre Dostoiévski, é preciso
perguntar-se se Dostoiévski não tem algo de mais decisivo a dizer sobre Freud. É necessário
considerar a inversão da relação entre a psicanálise e Dostoiévski” (Girard: 2011, p. 45).
No ensaio em que comenta o texto de Freud sobre Dostoiévski, Frank 3 (1992) indica
que seria possível encontrar uma espécie de prefiguração de aspectos da psique humana nas
obras do escritor russo que tempos depois seriam exaustivamente trabalhados pela psicanálise.
Podemos perceber na maioria dos personagens dostoievskianos traços de conflitos
inconscientes e uma ambivalência afetiva quase constante.
A obra literária tem a desvantagem de não nos fornecer um paciente real no
consultório, ou seja, carece de memórias exaustivas da tenra infância, tão caras à psicanálise.
Mas podemos advogar a favor de Dostoiévski, questionando se não é justamente ao divagar
sobre suas experiências e memórias que o personagem se deixa levar pela associação livre, a
regra de ouro de que falou Freud. Essa exigência o personagem parece atender, pois, se não
possuímos relatos de lembranças mais numerosas ou infantis, é como se deparássemos com
conteúdos de uma única sessão, ou melhor, de uma análise inacabada. Existem, portanto,
muitos elementos passíveis de investigação, como suas identificações e fantasias

3
Frank investiga nesse artigo incongruências históricas encontradas no texto de Freud, revisando fatos como o
início dos ataques epiléticos de Dostoiévski e se estes poderiam ser correlacionados à época da morte do seu
pai ou se à época próxima ao exílio na Sibéria (Frank, 1992). Tal fato poderia assumir importância quando se
tem em mente que a teoria de Freud a respeito de Dostoiévski, a saber, que as suas crises epiléticas seriam
expressão da necessidade de punição devido aos impulsos agressivos que direciona ao pai, cairia por terra
(Freud, 1928/1996i). Não é nosso objetivo analisar a personalidade do escritor russo; desse modo,
declinaremos à função de reproduzir a explicação empreendida por Freud a respeito da sua homossexualidade
latente ou a gênese de suas crises epiléticas.
11

inconscientes, e principalmente as consequências de um indivíduo que se sabe, ou melhor, se


sente cindido.
Memórias do subsolo apresenta um tom confessional, dotado de um conteúdo
extremamente íntimo, capaz de expressar uma interioridade característica de quem se examina
profundamente. Ao falar de si, é como se o personagem esperasse uma resposta do outro,
postura que não é diferente também do paciente quando primeiro procura um analista. O herói
parece se colocar diante do leitor como se colocaria diante do outro, do mundo e, por que não,
do analista e, então, começa a “falar”.
Já afirmamos que a relação psicanálise-literatura foi de alguma forma subvertida, pois
é a partir do subsolo que iremos buscar uma caracterização para o ressentimento na
psicanálise. Isso significa que, mais do que aplicar uma interpretação psicanalítica ao
personagem, iremos interrogar como seus arranjos subjetivos encontram lugar na
metapsicologia freudiana. Não priorizamos, portanto, aplicar a teoria psicanalítica com vista à
interpretação do rato do subsolo, ainda que em alguns momentos tenha sido inevitável.
Para fazer a incursão do ressentimento – ou aquilo que primordialmente perturba o
ratinho – na psicanálise, elegemos o narcisismo e suas configurações, em torno das quais
gravitará grande parte das discussões do livro Memórias do subsolo. Isso por entendermos
que o ressentido, na sua posição de vítima coberta de razões que merece desforra, lança mão
dessa posição subjetiva para garantir alguma satisfação narcísica. Poderia ser dessa forma um
mecanismo de defesa, e, nesse sentido, uma defesa da integridade narcísica, pois afasta de si a
percepção da falta, ao mesmo tempo que mantém a ilusão de uma vaidade que foi ofendida.
Como poderemos observar, há uma irredutibilidade do fenômeno do ressentimento, de
modo que não seria possível extingui-lo em apenas um conceito psicanalítico. Ao
percebermos que esse ratinho se impunha constantemente situações penosas, as quais parecia
buscar e se submeter “conscientemente” para depois relembrá-las continuamente a serviço da
sua autotortura, começamos a desconfiar que houvesse algo mais nesse mecanismo. Nesse
sentido, encontramos no masoquismo moral de Freud um conceito que indicava uma base
explicativa para fenômenos dessa ordem. A psicanálise revelou o prazer intrínseco na busca
pela expiação de si mesmo.
Nietzsche foi o filósofo que percebeu a importância e a perniciosidade que os efeitos
do ressentimento podem causar no homem. A intenção, ao trazê-lo para o debate, é que suas
formulações sirvam de indagação para qual seria o lugar desse fenômeno na psicanálise. A
tarefa encontra ainda mais percalços quando se tem em mente que Nietzsche não se
preocupou em delimitar o conceito de ressentimento: ora ele é colocado como uma descrição
12

conceitual, ora é apenas fenomenológico. Não há, portanto, uma distinção clara entre conceito
e fenômeno.
O ressentimento aparece primordialmente na Genealogia da moral, e inúmeras
referências atestam para a proximidade dessa obra com Memórias do subsolo, inclusive
entrevendo a utilização por parte de Nietzsche do homem do subsolo para caracterização
desse tipo psicológico. Em um artigo sobre o assunto, Paschoal afirma que o filósofo teria
sido fortemente impressionado pelas Memórias, e menciona a carta escrita ao seu amigo
Franz Overbeck, em que Nietzsche revela o júbilo com que foi tomado pela leitura, além de
mencionar o “instinto de parentesco” entre eles (Paschoal, 2010, p. 204).
Essa carta é mencionada também por Giacóia Jr., para quem também a novela, cujo
personagem principal – o rato do subsolo – é entendido como o modelo ideal para
exemplificação do ressentido, é uma “versão literária perfeita e acabada (...), como se essa
novela traçasse os contornos de uma figura prototipicamente ressentida, no exato sentido
nietzschiano do termo” (Giacóia Jr., 2006, p. 77). Girard também atesta a afinidade das duas
obras, afirmando que Nietzsche teria reconhecido nessa obra “uma descrição magistral
daquilo que ele próprio chama de ressentimento” (Girard, 2011, p. 94).
A relação entre Nietzsche e Dostoiévski – ou entre o homem do ressentimento e o
homem do subsolo – aparece de forma mais evidente. Além disso, muito se vê a respeito da
apropriação da filosofia de Nietzsche pelas ideias de Freud, mas, do lado da psicanálise, essa
referência não aparece constantemente. Freud nunca foi muito explícito em relação à sua
leitura de Nietzsche. É incontestável que possamos encontrar traços que remetam ao filósofo
nos escritos freudianos, mas essa conexão nunca foi admitida ou bem aceita pelo psicanalista.
Assoun (1992) aponta alguns eventos que confirmam que Nietzsche já havia recebido
ao menos alguma atenção por parte da psicanálise. Teria sido, por exemplo, um tema dos
encontros de quarta-feira da Sociedade Psicanalítica de Viena, bem como em um congresso
de psicanálise em Weimar,4 onde membros da psicanálise teriam visitado a irmã de Nietzsche,
Elizabeth Forster-Nietzsche. Para Elizabeth, atuante fervorosa dos ideias nazistas, não seria
interessante que o nome do irmão estivesse relacionado a um médico psicanalista judeu. Era,
inclusive, quase uma ameaça que deveria ser evitada. Do lado de Freud, essa mesma razão
não seria motivadora de nenhum esforço no sentido contrário.

4
Local onde residia a irmã de Nietzsche que, após a sua morte, teria se encarregado de tutelar suas obras. Esse
fato inclusive teria gerado inúmeras controvérsias a respeito da apropriação da irmã sobre o conteúdo e sua
manipulação para atender aos ideais do III Reich. Suas intervenções nos manuscritos foram de tal modo
tendenciosas que geraram interpretações equivocadas, como a utilização do conceito de super-homem para
fundamentar a necessidade de uma raça pura ariana (Assoun, 1992).
13

Freud também se orgulhava de ver na psicanálise uma invenção sua, e podemos


questionar se haveria um receio de que os créditos de suas descobertas pudessem, mesmo que
em pequeno grau, ser atribuídas a um filósofo. No entanto, a resposta de Freud segue outro
caminho, o de que, antes do medo de perder sua patente, ele não queria ser contaminado por
ideias antecipatórias (Reale & Antiseri, 1991, p. 930).5 Era possível então que Freud sofresse
uma “angústia de antecipação” ao ler Nietzsche, já que muitas das suas ideias estariam
presentes nos escritos do filósofo (Kehl, 2007).
Apenas 12 anos separam o nascimento de Nietzsche do de Freud. Os dois foram
fortemente afetados pelas consequências da incidência da cultura nos impulsos do homem
moderno e críticos da ideia de um Eu como unidade subjetiva superior. Quando Nietzsche
morre em 1900, Freud está apenas começando a inscrever seu nome na história com a
publicação da emblemática Interpretação dos sonhos. Por volta de 1913, o nome do
controverso filósofo rodava a Europa com grande sucesso, época que precede uma grande
produção teórica na psicanálise, como os escritos dos artigos metapsicológicos. Por angústia,
resistência ou posição política, o fato é que Freud nunca se ocupou das formulações
nietzschianas ou até mesmo sobre o ressentimento.
O que permite então que essa articulação seja feita? Freud e Nietzsche não se
conheceram, e articular as formulações dos dois é, antes de tudo, forjar um encontro. No
entanto, o que se percebe é que ambos discorrem sobre a psicologia do homem, mas seguindo
caminhos distintos: Freud “metódico e cientifico”, e Nietzsche “disruptivo e aforístico”
(Assoun, 1992, p. 55). Assoun (1992) acrescentou ainda, a respeito da Genealogia da moral:

Na verdade, é um verdadeiro quadro clínico que Nietzsche esboça ao longo dessas três dissertações. O
que nos interessa é explicitar a representação do aparelho psíquico que torna possível essa
sintomatologia, em busca daquele “algo mórbido” (etwas Ungesundes) que Nietzsche localiza no
fundamento da moralidade. (p. 230)

E seguimos a indicação de Assoun, pois o que Nietzsche evidencia com seu método
genealógico é a sordidez com que os valores modernos foram criados, propiciando o
amolecimento e a interiorização dos impulsos no homem, como ele mesmo afirma. Do lado

5
O que podemos ler é uma citação atribuída a Freud, mas, como não foi encontrada a fonte original, optamos
por não reproduzir a citação no corpo do texto. “Durante muito tempo evitei ler Nietzsche, outro filósofo cujos
pressentimentos e cujas intuições frequentemente coincidem, de modo surpreendente, com os laboriosos
resultados da psicanálise, já que mais do que interessar-me pela prioridade, importava-me ficar livre de toda
influência” (Freud, citado por Reale & Antiseri, 1991, p. 930).
14

da psicanálise, tentamos destrinchar a dinâmica de um psiquismo que foi obrigado a adequar-


se à imposição das restrições pulsionais.
A contribuição que a filosofia e a literatura trazem para a psicanálise revela um
artifício poderoso para a compreensão do ressentimento. Assim, ao estudar conceitos que não
se encontram dentro do escopo freudiano, faz-se necessário recorrer às outras áreas, e, mais
especificamente, a contribuição que estas fazem à psicanálise no que se refere ao estudo aqui
empreendido.
No primeiro capítulo, começamos por investigar as Memórias do subsolo e alguns
aspectos contextuais que puderam influenciar a obra. De um lado, aparece Dostoiévski aflito
pelas dívidas e a possibilidade da morte da mulher. Havia cumprido sua pena nos campos
siberianos e flertado, ou melhor, se deparado com a iminência da morte, fatos que com certeza
o marcaram. E, de outro lado, encontramos a peculiaridade da sociedade russa, que vivia um
momento histórico ambíguo: ares modernos invadiam sua cultura, mas a realidade não
acompanhava suas pretensões.
E então aparece a caracterização do homem do subsolo, que entendemos como efeito
desse contexto, mas também como representação quase ideal do ressentido. Sua forma de
posicionar-se no mundo, diante do outro e de si mesmo demonstraram um indivíduo em
constante diálogo interior, detentor de uma consciência que ele designa hipertrofiada e que
investiga a si mesmo a ponto de torturar-se. Em oposição a sua capacidade reflexiva e
imaginativa, encontramos uma atrofia para a ação no mundo.
Buscamos demonstrar como esse personagem poderia ser o expoente do tipo
psicológico ressentido nietzschiano. Adiantamos a ideia de que o ressentimento se manifesta,
tal como Nietzsche apresenta, pela incapacidade de esquecimento do indivíduo por algo que
lhe acometeu; um incessante remorder da consciência e uma reatividade das forças vitais são
a tônica desse fenômeno, que se transforma em um ativo “não querer esquecer” os agravos
sofridos. Diante da impossibilidade para a ação, encontra apenas na vingança imaginária uma
forma de reação.
A impossibilidade de exteriorização dos impulsos acaba por reverter-se contra o
próprio indivíduo, que encontra a si mesmo como um meio e um objeto para desafogar sua
agressividade. Como consequência o sofrimento foi interiorizado, e, ao encontrar um
tratamento moral e religioso, esse sofrimento passou a ser buscado pelo sofredor, como meio
de narcotizar sua existência.
No segundo capítulo, apresentamos as conceituações de Freud acerca do narcisismo, e
como poderíamos perceber as consequências do ressentimento na dinâmica psíquica. O apego
15

ao agravo recebeu um tratamento libidinal, no sentido de demonstrar que a inércia é um fator


patogênico, mas pode também indicar um mecanismo de defesa. É ao objeto externo que a
agressividade vingativa pode ser dirigida, ao mesmo tempo que oferece ao indivíduo uma
garantia de manutenção e satisfação narcísica, pois ele permanece na posição de vítima
arrogante e vaidosa.
O narcisismo promove a criação e a introjeção de um poderoso ideal ao qual o Eu se
compara e se mede, chegando a desenvolver uma instância para essa função, inicialmente
designada apenas como consciência moral. Com sua autonomização, essa instância pode tratar
– e maltratar – uma parte do Eu como se fora um objeto. Diante desse panorama, abriu-se a
possibilidade de verificar como o Eu se comporta diante da tirania dessa instância, o Supereu.
O que percebemos é que haveria um masoquismo do Eu, que se comprazeria e desejaria ser
punido pelo Supereu. O masoquismo moral aparece como uma categoria especial para
pensarmos o ressentimento, pois percebemos no ressentido, ou no rato do subsolo, que há
uma busca por situações humilhantes, ou seja, a busca por sofrimento; é, portanto, uma forma
manifesta da necessidade de punição. Vejamos, pois, os desdobramentos dessas afirmações.
16

CAPÍTULO 1

Delineando o ressentimento

1.1 Sobre Dostoiévski e o homem do subsolo

A vida de Dostoiévski, tanto pessoal quanto profissional, foi repleta de reviravoltas,


momentos de grande aflição e também grande contentamento. Sua primeira obra, Pobre gente
(1845), foi recebida com grande entusiasmo pelos críticos da época, mas logo passou o frenesi
inicial e sua obra posterior, O duplo (1846), recebeu tratamento completamente diverso.
Ainda que contenha o germe das ideias que estariam presentes anos depois em Memórias do
subsolo (1864), já que submerge na densidade psicológica de um funcionário burocrático que
fica obcecado com seu duplo, numa espécie de alucinação psicótica, o livro não foi bem
aceito pela crítica literária russa, por esse mesmo motivo. Bielínski, renomado crítico literário
russo, o mesmo que havia proclamado a genialidade de Dostoiévski inicialmente, teria
afirmado “com mordacidade que esses personagens ficavam bem em manicômios, e não em
obras de arte” (Frank, 2002, p. 26).
Dostoiévski quase não teve tempo de tentar retomar o seu prestígio literário, já que em
1849 foi preso por conspiração política. Ficou um ano preso acreditando que seria executado,
mas, quando a execução estava prestes a ocorrer, soube que seria forçado a trabalhar num
campo de prisioneiros na Sibéria, concluindo sua pena servindo ao Exército. A retomada de
uma carreira como brilhante escritor teve que esperar dez anos, quando finalmente retornou a
São Petersburgo.
A publicação de Memórias do subsolo não foi recebida pelos críticos literários da
época com o entusiasmo merecido, mas essa injustiça foi certamente sanada. Atualmente é
considerada a grande obra escrita após os anos de trabalho forçado na Sibéria e também como
marco inicial do período de incrível criatividade que coroa seus célebres trabalhos, como
Crime e castigo (1866) e Irmãos Karamazov (1879). No período em que escrevia as
memórias, Dostoiévski encontrava-se em uma delicada situação, já que sua esposa, doente de
tuberculose, estava na iminência da morte, além de ver-se numa canhestra situação financeira.
17

Podemos, dessa forma, considerar que tanto o momento pessoal quanto o momento
histórico influenciaram e deixaram sua marca, como pode atestar, por exemplo, Joseph Frank
(2002), ao afirmar que:

Quando o homem do subterrâneo invectiva sua própria aversão a si mesmo e sua culpa, não estava
Dostoiévski também expressando sua autocondenação como expectador cheio de remorsos das agonias
de morte da sua esposa, e arrependendo-se do egoísmo que confessou em seu caderno de anotações? (p.
434)

E ainda encontramos influências do período histórico em que o livro foi escrito, fato
que o próprio Dostoiévski (2009) adverte quando, logo no início, afirma que suas memórias
são fictícias, mas bem que poderiam não o ser, já que “pessoas como seu autor [o homem do
subsolo] não só podem, mas devem existir em nossa sociedade, desde que consideremos as
circunstâncias em que, de modo geral, ela se formou” (p. 06).
Podemos ressaltar o quanto a sociedade russa se via invadida por uma racionalidade
europeia ocidental; uma Rússia predominantemente agrária, rigidamente comandada por
czares, mas que em 1861 havia liberado os servos e caminhava para maior liberdade de
expressão. Estaria ocorrendo uma espécie de descaracterização da cultura, e o homem do
subsolo seria, nas palavras do biógrafo Frank (2002), “concebido como uma persona
parodística, cuja vida exemplifica os impasses tragicômicos que resultam dos efeitos dessas
influências sobre a psique nacional russa” (p. 433).
Seria o produto desse momento histórico ambíguo: a invasão de uma crença na
supremacia da razão para lidar com as questões humanas. E essa crença é dura e
sarcasticamente tratada na primeira parte de Memórias do subsolo. No entanto, não seria uma
crítica desenfreada à razão ou à sua rejeição, mas sim a percepção das consequências da
inserção dessa mentalidade na cultura russa (Frank, 2002, p. 433).

Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz
apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a
vida, isto é, de toda vida humana, com a razão e com todo o coçar-se. (Dostoiévski, 2009, p. 41)

Kehl (2007) analisa especialmente Crime e castigo e afirma que o ressentimento de


Raskolnikov seria expressão do “ressentimento da sociedade russa conservadora, tiranizada,
provinciana, diante dos novos ares vindos de uma Europa que já se modernizava desde o
século anterior” (p. 161). São Petersburgo teria sido construída no início do século XVIII com
pretensões modernizadoras que contrastavam com o estilo de vida imposto pelo regime
czarista. Além disso, a construção da cidade mobilizou grande número de trabalhadores que
18

permaneceram sem lugar ou vivendo às custas de cargos burocráticos ou até mesmo na


miséria (Kehl, 2007, p. 161).
As condições sociais dos habitantes se opunham drasticamente às aspirações modernas
de São Petersburgo. No prefácio de Memórias do subsolo, Schnaiderman atenta que a obra
teria sido um ataque ao racionalismo e ao positivismo, mas também serviria para denunciar o
caráter degradante e desumano da invasão de um ideal desenvolvimentista burguês. Nas suas
palavras, “o ‘anti-herói’ dostoievskiano, que aliás se define assim, perto do final do seu
monólogo, representa o clímax do ‘desligamento do solo’ em que vivia boa parte da sociedade
russa, mas é também o crítico feroz desta” (Dostoiévski, 2009, p. 8).
E do seio desse panorama histórico e social surge o homem do subsolo, que “pertence,
para sua infelicidade, a essa classe burocrática pretensiosa e lastimável cuja mentalidade o
escritor considera extremamente significativa e, em certos pontos, até mesmo profética com
respeito à sociedade que se encontra então em gestação” (Girard, 2011, p. 74).
A novela é dividida em duas partes, o Subsolo e A propósito da neve molhada. A
primeira possui um caráter mais filosófico e descritivo, já que apresenta uma contundente
crítica à primazia da razão como guia da psique e das ações humanas e descreve, com
amargura e ironia, a visão do personagem a respeito do mundo e das coisas.
O Subsolo desfaz a pretensa ideia de que o homem estaria caminhando para uma maior
civilidade. Embora seja sedutora, a ideia de que por meio do progresso e da razão o homem se
comportaria segundo estas leis é ilusória e inviável. A civilização da consciência tornou os
homens mais cruéis, e somente aperfeiçoou e sofisticou suas práticas sanguinárias; o que se
extinguiu foi a violência primitiva. Do subsolo, podemos escutar: “O que suaviza, pois, em
nós a civilização? A civilização elabora no homem apenas a multiplicidade de sensações e...
absolutamente nada mais” (Dostoiévski, 2009, p. 36).
No Subsolo, vemos também exposto um conflito que expressa não somente a luta de
força entre o eu e o mundo ou o outro, mas um conflito que se encena dentro de si mesmo. O
personagem sofre o peso de perceber tantos sentimentos ambivalentes; deseja torturar
qualquer um que apareça na sua frente como forma de exteriorizar sua raiva e, ao mesmo
tempo, percebe que gostaria de ter um lugar reconhecido e junto ao outro. Na luta de forças
internas, dificilmente consegue ceder espaço para os sentimentos bons, quase que por
picardia. Afirma que esses sentimentos pediam para sair, mas ele não deixava.

(...) nunca pude tornar-me mau. A todo o momento constatava em mim a existência de muitos e muitos
elementos contrários a isso. Sentia que esses elementos contraditórios realmente fervilhavam em mim.
19

Sabia que eles haviam fervilhado a vida toda e que pediam para sair, mas eu não deixava. (Dostoiévski,
2009, p. 16)

É curioso notar que esse personagem não possui nome próprio nas suas memórias, o
que, além de dificultar a forma como nos referimos a ele constantemente, levanta a
possibilidade de questionar que tipo de incursão ele faz no campo do outro; de que modo ele
se faz presente e de que maneira ele presentifica o outro para si e em si.
Nessa primeira parte, ficamos sabendo que esse homem se recolhe em seu subsolo
após trabalhar como funcionário público e aposenta-se ao receber um dinheiro de algum
parente distante, o que lhe confere uma pequena renda. O trabalho na repartição o colocava
em contato com as pessoas, e isso já era o bastante para florescer ambivalentes sentimentos
que ora o colocavam em posição superior ao outro, ora o rebaixavam completamente.

Sucedia o seguinte: ora desprezava alguém, ora colocava-o acima de mim. Um homem decente e
cultivado não pode ser vaidoso sem uma ilimitada exigência em relação a si mesmo e sem se desprezar,
em certos momentos, até o ódio. Mas, quer desprezando, quer colocando as pessoas acima de mim, eu
baixava os olhos diante de quase todos que encontrava. (Dostoiévski, 2009, p. 57)

As contradições e ambivalências afloram, aparecendo então um homem angustiado,


enjaulado num mundo que ele mesmo considera medíocre, mas do qual não consegue se
apropriar. É um sujeito dividido, em constante diálogo consigo mesmo. A partir desse diálogo
interior emergem seus paradoxos, sua condição existencial e a degradação da sua relação com
o que lhe é exterior.
Assim, logo são descritas as idiossincrasias do personagem, que diante do outro oscila
entre raiva e desejo de ser acolhido. Mostra a raiva que sentia e o prazer que experimentava
sempre que conseguia magoar alguém que fosse lhe pedir ajuda no trabalho, o que na verdade
seria apenas uma maneira de escamotear o desejo de ser acolhido.
Na segunda parte, A propósito da neve molhada, algumas memórias propriamente
ditas vêm à tona, e podemos ver de fato como esse homem do subsolo se relaciona com o
mundo, e como ele fracassa quando tenta sair do cantinho escuro do seu subsolo.
Recordações indeléveis que atormentam o narrador desde a juventude são trazidas à
superfície. Apesar de não ser uma obra que traz uma narrativa linear – linearidade não é uma
característica imputável a esse personagem –, algumas impressões da juventude são trazidas e
esses elementos embasam impressões e ressentimentos de acontecimentos posteriores.
Quando nos leva para as memórias do tempo de juventude e de escola, nosso
camundongo revela que desde aquela época já experimentava dissonâncias em relação a si
20

mesmo e aos outros. Órfão de pais desde cedo, sem revelar as circunstâncias ou o porquê,
seus estudos foram pagos por um parente distante. Não conseguiu se harmonizar com seus
colegas; sentia ser superior intelectualmente, mas impotente para se posicionar
simetricamente em relação a eles. Quando resolveu que deveria ter um amigo, este serviu para
satisfazer suas inclinações tirânicas, de reestabelecer, ainda que ilusoriamente, a impotência
que sentia diante de seus colegas.
E é justamente um jantar de despedida de um desses colegas que viajaria para o
exterior que conduz o personagem na vida adulta para uma noite de aflições, angústias e
vinganças imaginárias. Vinganças que não consegue desferir sobre os colegas, mas que
encontram alvo em uma pobre prostituta a quem consegue, ou melhor, tenta humilhar.
É na segunda parte também que lemos o fatídico episódio com o oficial, com quem ele
esbarra em um bar e permanece hipnotizado por sua figura. Do subsolo, o narrador passa anos
se deliciando com uma vingança que dificilmente extrapolaria os limites do pensamento, e
que, quando finalmente chega à ação, não propicia nenhum apaziguamento real, pois sabe que
não foi de fato uma vingança real. A vida no subsolo ironiza e desdenha a vida de ação, mas
inveja e não vê outra medida para si que não seja esse ideal exterior a si.
Temos agora um panorama geral da obra, já que as passagens e memórias
mencionadas aqui um tanto superficialmente ganharão tratamento pormenorizado ao longo do
trabalho. No entanto, já podemos vislumbrar importantes elementos no homem do subsolo
que servirão de alicerce para refletirmos sobre o ressentimento tal como Nietzsche vai
apresentar.
O homem do subsolo é marcado por algo que ele chama de consciência hipertrofiada,
uma espécie de agudez psicológica excessiva que faz com que ele julgue a realidade a sua
volta com certa descrença, já que não pode acreditar no progresso da civilização ou na força
da razão para conter os disparates dos impulsos humanos. Um homem que não conseguiu se
efetivar no mundo, que não chegou a ser bom nem mau, mas que satisfaz – será mesmo? –
suas inclinações e agressividade imaginariamente, depreciando tudo e todos, inclusive a si
mesmo. E, cada vez mais que seus impulsos são contidos em sua exteriorização, mais ele
experimenta seu próprio veneno.

O primeiro fator que se encontra na origem dessa substância que irá hipertrofiar o mundo interior desse
homem é que tal homem não reage de forma efetiva diante das agressões que sofre. Desse modo, aquele
quantum de força que se produz nele diante da adversidade e que deveria ser lançada para fora, numa
ação efetiva, é redirecionado para o seu interior na forma de ódio e rancor contidos. (...) Um segundo
fator, contudo, também contribui para a hipertrofia do seu mundo interior. Além de reter aquela
21

substância, esse homem não consegue processá-la. Vale dizer, ele não consegue esquecer as desditas
sofridas e livrar-se do rancor e da sede de vingança. (Paschoal, 2010, p. 211)

Nesse sentido, percebemos como os impulsos agressivos voltaram-se contra si


mesmos. Nem mesmo sua ilimitada vaidade conseguiu salvá-lo da sua paralisação para a
ação, aliás, supomos que é mesmo devido a essa vaidade que o homem não consegue agir,
pois colocar-se em ação é arriscar pôr a perder toda a muralha que construiu em torno de si
para garantir sua integridade psíquica.
Somada à impossibilidade para ação, vemos uma impossibilidade de esquecer uma
ofensa, que para esse homem pode ser qualquer coisa que provoque ranhuras no seu orgulho.
E mais, ele mesmo pode lançar-se em situações que propiciem um desconforto psíquico para
si mesmo.

Quantas vezes me aconteceu, por exemplo, ficar ofendido não por um motivo determinado, mas
intencionalmente! E eu mesmo sabia, por vezes, que me ofendera por nada, que aceitara
voluntariamente a ofensa; mas essas coisas levam uma pessoa a tal estado que, por fim, ela realmente
fica ofendida. A vida toda algo me arrastava a fazer esses trejeitos, a tal ponto que acabei perdendo
poder sobre mim mesmo. (Dostoiévski, 2009, p. 29)

É um estado de autoenvenenamento, que mantém o algoz de si mesmo sempre


presente, por justamente ser ele mesmo, ainda que com roupagem do outro. Há um esforço
para manter essa lembrança presente, mantida por uma ilusão de que um dia o saldo será
quitado. Impossibilidade de esquecer o agravo sofrido, impotência para a ação, vingança
imaginária... temos aqui os principais elementos nietzschianos do ressentimento. Passemos,
pois, a eles.

1.2 Nietzsche e o ressentimento

Com o intuito de restringir ao máximo nosso objeto de pesquisa, vamos centrar nossa
reflexão acerca do ressentimento na Genealogia da moral, quando Nietzsche, a partir do viés
histórico, busca a origem dos valores morais e encontra no próprio fenômeno do
ressentimento uma possível gênese para o estabelecimento de tais valores na sociedade
22

ocidental. Mas, como o próprio título indica, é um estudo genealógico, e a palavra origem
aqui não deve ser compreendida de outra forma senão no sentido de fonte, invenção.6
Não haveria, portanto, uma verdade absoluta nos conceitos; ao adotar a perspectiva
histórica, fica claro que os valores são “advindos ou em devir”, não sendo uma realidade
factual a priori, mas sim interpretações realizadas pelo homem (Machado, 1999, pp. 59-60).
Nietzsche, filólogo de formação, utiliza a filologia e a etimologia para mostrar que, no
fundamento de conceitos como bem e mal, o que realmente existe são relações dinâmicas de
forças, responsáveis por produzir esses mesmos conceitos.
É importante mencionar, ainda que de forma pouco aprofundada, o que se postulou
como tarefa no programa nietzschiano, a saber, a crítica ao valor dos valores morais. “Tirar os
valores morais do lugar de valores supremos, que dominam e dão sentido a todos os valores,
só será possível destruindo este lugar que foi instituído pela própria moral” (Machado, 1999,
p. 88). Como efeito dessa crítica, temos a polêmica transvaloração de todos os valores: a
desvalorização dos ideais dominantes e a consequente valorização dos ideias subordinados.
Inaugura-se um movimento de problematização da própria moral, tida como dado
inquestionável possuidor de valor supremo. Isso evidencia uma tentativa de desconstrução de
uma teoria filosófica que pretendesse ser mais que uma interpretação, uma perspectiva
(Giacóia Jr., 2008, p. 190). A busca pela verdade acima de qualquer coisa é um incômodo
para Nietzsche, que percebe a filosofia como tendo sido, até aquele momento, uma espécie de
confissão particular do autor, ou seja, uma interpretação pessoalmente interessada sobre o
mundo.
Os instintos participariam da dinâmica dos pensamentos conscientes, o que corrobora
a ideia do perspectivismo. Perceber que a produção de teorias e valores morais é influenciada
pela psique do investigador subtrai ao menos a sua parcela de neutralidade e expõe que o
conhecimento produzido está a serviço da defesa de um determinado ponto de vista. “Por trás
de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou falando
mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de
vida” (Nietzsche, 2005b, p. 11).
O que fica evidente é que os valores exaltados durante boa parte da história ocidental
não possuíam nenhuma garantia de verdade, e mais, passam a ser considerados como

6
As duas primeiras dissertações da obra, “Bom e mau”, “bom e ruim”, e “Culpa”, “má consciência” e coisas
afins ganharão maior destaque. A terceira dissertação, O que significam os ideias ascéticos, será
propositalmente relegada a segundo plano, ainda que tenha relação com o ressentimento, não é objetivo aqui
aprofundar a discussão acerca do ideal ascético. Da terceira dissertação iremos extrair a ideia da narcotização
da consciência por meio do ressentimento.
23

dissimuladores da realidade. E esse é justamente o alvo que Nietzsche acerta: a inversão dos
valores que trabalha contra algo que é até mesmo vital, já que o fraco é visto como o bom,
enquanto o forte é visto como o mau.
Dessa maneira, encontramos na crítica à moral empenhada por Nietzsche um enfoque
tanto histórico quanto psicológico. Ao questionar as origens da diferenciação do valor, ele
retira o seu caráter absoluto: não haveria um fato moral por excelência, mas sim
interpretações do fato. Nenhuma moral tem valor por si, ao contrário, ela brota de uma forma
de vida e de um tipo de homem. As pretensões universais e incondicionais caem quando a
moral é colocada como uma possibilidade histórica, social e existente apenas por ter sido
criada pelo homem.
Giacóia Jr. (2006) investiga porque Nietzsche pôde se considerar o primeiro psicólogo
da Europa. A psicologia seria aquela que conduziria o homem à consecução da tarefa
genealógica, na medida em que exporia como sintoma do próprio psicólogo o conhecimento
que havia sido produzido até então. A equação da subjetividade aos processos conscientes é
criticada pelo filósofo em Além do bem do mal, no aforismo 23, analisado também por
Giacóia Jr. É nessa passagem que se encontra a exaltação de Nietzsche à psicologia, no exato
termo em que ela pode oferecer ao estudo científico da subjetividade um olhar despido do
dualismo corpo e alma, assim como põe por terra o privilégio da consciência. Nas palavras de
Giacóia Jr. (2006), lemos:

Por essa razão, Nietzsche considera a psicologia a ciência que conduz aos problemas fundamentas: à
ideia de uma racionalidade ampliada, cujo paradigma é dado pelo corpo e pelos impulsos – a “grande
razão”, de que a consciência ou o “espírito” constituem a fachada e a superfície simplificadora. (pp. 26-
27)

Assim, vemos a importância da dimensão corpórea e instintual na teoria nietzschiana,


tanto mais por ela se opor a concepções metafísicas que enrijecem o olhar crítico diante do
mundo. Como pode ser possível afirmar a legitimidade, o caráter absoluto das proposições
morais, se o que lhes confere esse estatuto de verdade é um indivíduo que não possui um
fundamento último inabalável, mas se constitui como superfície simplificadora? (Giacóia Jr.,
2006).
Sobre esse ponto, lemos também no capítulo dedicado a Nietzsche na História da
Filosofia, de Reale e Antiseri, que a grande suspeita do filósofo a respeito da concretude dos
valores morais residia na acepção de que na sua gênese se encontravam motivos psicológicos.
Nas suas palavras, “a compreensão da gênese psicológica dos valores, em si mesma, será
24

suficiente para pôr em dúvida a sua pretensa absoluticidade e indubitabilidade” (Reale &
Antiseri, 1991, p. 434). A moral, acrescenta ele, seria a máquina de dominação criada para
subjugar.
No Dicionário de filosofia, lemos igualmente que o alvo da crítica nietzschiana é a
moral da cultura europeia. Ao questionar a criação dos valores e até mesmo o valor desses
valores, fica claro que essa luta “implica por certo o desvelamento de sua chaga secreta, a
evidência tanto da falsidade radical do pretenso objetivismo do homem de ciência como do
espírito decadente do cristianismo” (Mora, 2001, p. 2090). Essa chaga secreta seria portanto
consequência do ressentimento.
Na ausência de verdades absolutas, encontramos apenas interpretações sobre elas,
sendo a moral apenas mais uma forma de interpretar. Ela não seria, portanto, moral em sua
raiz. O que significa também que a moral, sobretudo a cristã, é invenção dos fracos,
ressentidos e doentes de ação.
Veremos com a análise empreendida na Genealogia da moral que o ressentimento é a
impossibilidade de agir de forma autêntica no mundo, que encontra somente na vingança
imaginária uma forma de reação. A matriz da inércia reativa estaria na inversão de valores
que exaltam a bem-aventurança do homem que abdica da sua força e potência, enganado pela
moral vigente que determina que assim se é mais nobre. O cristianismo seria a instituição que
melhor teria se aproveitado do veneno desse afeto no homem. Esse primeiro aspecto será
desenvolvido no primeiro tópico, na articulação entre ressentimento e vingança.
No segundo tópico, trataremos de outra importante característica do ressentimento, a
saber, a impossibilidade de esquecimento da ofensa sofrida. A criação da memória no homem
foi um importante e doloroso momento do seu processo de hominização, da passagem do seu
estado bruto animal para social, quando foi obrigado a sufocar seus instintos e pulsões
agressivas e de dominação. Mas esses instintos não puderam ser calados por completo: eles
continuavam exigindo voz, satisfação, e encontraram no próprio indivíduo um meio e objeto
de escoamento.
Em seguida veremos, que a magnitude do ressentimento acaba por proporcionar um
efeito sedativo para a consciência. A presença constante na memória de um desejo de desforra
revela-se um poderoso artífice para escamotear um desconforto ainda maior. O sacerdote
ascético desvia o caminho que direcionava o afeto venenoso do ressentido para o exterior e
redireciona para o próprio indivíduo, agora culpado de seu próprio sofrimento.
A divisão forjada é apenas didática e serve para ressaltar os aspectos que devem
sobressair quando analisamos o ressentimento. Na verdade, o que percebemos é que esses
25

pontos divisados estão em estreita conexão entre si, ou seja, não podemos pensar o
ressentimento isolando o seu aspecto reativo ou vingativo, ou ainda levando em conta
somente sua função sedativa.
Por fim, é importante ter em mente que, quando Nietzsche postula seus tipos
psicológicos, ele está fazendo uma representação pura de um conceito, que serve como
artefato pedagógico, explicativo. Na prática, não encontramos tipos puros: não é possível
encontrarmos alguém que seja apenas ressentido, fraco, nem alguém somente forte. Essas
diferentes caracterizações coexistem em uma mesma pessoa. Efetivamente, portanto, esses
tipos ideias misturam-se numa mesma sociedade e no interior de um mesmo indivíduo.

Assim também ocorre com os traços característicos do senhor e do escravo que convivem, em
proporções variadas, no âmbito de uma mesma cultura, e até no interior de uma mesma alma [itálicos no
original] (...). A diferença entre ambos não configura uma oposição absoluta, mas se determina pela
configuração, sempre instável, das relações de dominação e sujeição entre forças quantitativamente
distintas, em aliança e oposição. (Giacóia Jr., 2006, p. 88)

Os traços característicos de cada tipo psicológico se engendram em uma mesma


pessoa e tendem a pender para algum polo em diferentes situações. No caso modelo do rato
do subsolo, é evidente que o peso maior está na sua posição rancorosa, do remordimento da
sua consciência e sua dificuldade de agir. No entanto, vemos momentos de lampejos de ação,
da tentativa de reequilibrar as forças antagônicas que povoam sua mente, mesmo que o
resultado seja pouco convincente.
O próprio Nietzsche percebeu possuir afinidades com Dostoiévski e com seu escrito
sobre o subterrâneo, cujo teor psicológico o teria impressionado. Mas o personagem concreto
que lemos nos romances difere do tipo que a filosofia nietzschiana desenvolve. Ao criar esses
tipos, o que está em questão é a apreensão de um fenômeno momentâneo, e, portanto, datado.
Capturado, ele pode ser compreendido (Paschoal, 2010).

Um tipo [typus] é um recurso que Nietzsche utiliza para exprimir uma ideia, uma forma de vida ou um
papel social. No caso específico de um tipo de homem, este corresponde à caracterização de um perfil
psicológico que, no seu extremo, ganha contornos de máscara ou caricatura. (Paschoal, 2010, p. 213)

Desse modo, ao criar um tipo ressentido – o rebento da moral cristã ocidental –, o que
aparece é a crítica do modo de vida surgido e cultivado no seio dessa sociedade e
consequentemente os valores que ela prega como superiores. O que Dostoiévski oferece a
Nietzsche é uma fonte com a qual ele pode trabalhar para caracterizar esse tipo apreendido na
genealogia. Nesse sentido, o ressentido se aproxima bastante do ratinho de consciência
26

hipertrofiada, pois ambos são dotados de grande argúcia e interioridade, mas desprovidos de
ação afirmativa exterior, no mundo (Paschoal, 2010). Vejamos, pois, como esse personagem
pode ser articulado com a filosofia do ressentimento.

1.2.1 Ressentimento e vingança

A primeira dissertação da genealogia é dedicada à análise de como as categorias de


bom e ruim se transfiguraram ao longo da história em bom e mau, em outras palavras, o que
antes possuía uma conotação apenas de força, recebe uma conotação moralmente valorativa.
Quando busca a origem da oposição bom-ruim, Nietzsche afirma que foram os nobres,
“superiores em posição e pensamento”, que designaram seus atos como bons, em oposição e
distância existente entre eles e o plebeu, o vulgar. Não havia inicialmente uma conotação
depreciativa, mas apenas de oposição: o aristocrático, o guerreiro, os homens de ação em
contraposição ao homem comum, fraco.
A classe sacerdotal, doente de ação, mas de alma elevada, que encontra no sacerdote
judeu seu grande exponencial, transformou os pobres e miseráveis naqueles que são bem-
aventurados e abençoados. Assim, como aponta Brusotti (2000), o que vemos brotar é a moral
dos escravos nos sacerdotes, casta cuja “vontade de potência impotente, inibida, torna-se uma
contra-vontade. A impotência do sacerdote faz surgir um ressentimento sem igual” (p. 12).
Esta seria o que Nietzsche chamou de vitória dos fracos na moral: a inversão dos
valores – o bom, ativo, forte é transfigurado em mau, enquanto o fraco se torna o bom, santo.
O ressentimento seria uma das consequências dessa inversão, na medida em que seria o
triunfo das forças reativas, contra a vida sobre a própria vida.

A rebelião escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o
ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma
vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si
mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu
ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez
de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um
mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. (Nietzsche, 2010, p.
26)

O ressentido é aquele que, impotente para ação, apenas obtém uma vingança
imaginária na tentativa de reparação. Por não ser capaz de “dizer sim a si mesmo”, o
27

ressentido coloca o outro, o que vem de fora, como objeto de sua reação. Não há uma ação
genuína, inicial, mas sim uma contra-ação vingativa diante daquele a quem considera forte.
Enquanto os homens da ação não necessitam se convencer de que são felizes e ativos,
são, portanto, medida de si mesmos, o ressentido encontra-se no lado oposto: ele precisa do
outro a quem irá acusar de mau para designar-se como bom. Dessa maneira, o ato inicial do
homem forte é considerar a si como bom em oposição ao que é ruim; já o homem do
ressentimento interpreta essa força como algo mau e lhe confere contornos morais – de
maldade. Isso então lhe traz ares de sofredor inocente e humilde.
Giacóia Jr. (2006) afirma que o ressentimento é a via pela qual a empreitada
genealógica se efetiva. Segundo esse autor, o que fundamenta a distinção entre moral
aristocrática e moral de escravos é a oposição entre ativo e reativo. Ao demarcar a base
conceitual desse fenômeno nesta última distinção, ainda mais primária, fica evidente que é
devido a uma tensão entre forças que uma posição ou o estabelecimento do valor de um
determinado conceito é firmado. Não haveria, pois, uma equação estável entre conceitos; estes
seriam efeito de uma relação instável que determina alianças e até mesmo a verdade.
Baseando-se em um ensaio de Brusotti, Giacóia Jr. (2006) diferencia dentro da moral
aristocrática – ativa e criadora de valores – uma ação que se descarrega exteriormente e
prescinde de um estímulo externo, e tem por isso a carga de força explosiva necessária para
tal; e um outro tipo de ação, na qual ocorre uma interiorização e uma elaboração psíquica que
necessita de um estímulo para que se exteriorize. Haveria neste último modelo uma
premeditação da ação que enfraquece sua cota energética, mas ainda assim é considerada
como ação criadora e autêntica, desde que ela se exteriorize.
Seguindo ainda o raciocínio desse mesmo autor, percebemos que a moral escrava
também necessita de um elemento que incite sua reação, mas nela não há ação verdadeira,
apenas vingança imaginária. Há um trabalho psíquico de elaboração, mas aqui esse
hiperdesenvolvimento da consciência – ou hipertrofia da consciência, como diz o nosso
ratinho do subsolo – esteriliza a ação.
Do subsolo escutamos que agudez excessiva da consciência é uma doença: “Juro-vos,
senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica,
completa” (Dostoiévski, 2009, p. 18). Em contraposição ao homem “normal”, o homem que a
natureza encarregou-se de trazer à terra, encontramos o homem que teve seus instintos
destilados e esconde-se no subterrâneo por não conseguir enfrentar sua antítese de frente.
Ainda que em última instância a reação seja uma ação, ela carece de valor afirmativo.
A ação criadora originária da moral escrava é uma negação; ela se constitui como sombra
28

negativa da moral aristocrática. Não pode nem ser designada como forma de reconhecimento
da alteridade, pois é uma moral dependente – daí Nietzsche afirmar que não há um eu, mas
sim um não eu. Giacóia Jr. (2008) chama essa modalidade de parasitária, como podemos ler:

Trata-se aqui de uma avaliação parasitária, reativa, que tem a necessidade prévia de um elemento
estranho a si para, por antítese, instituir pela via da negação sua própria identidade e seu universo de
valores. É nessa inversão que radica o seu parentesco originário com o ressentimento. (pp. 78-79)

Temos que no ressentido um outro exterior desencadeia e define o processo de


valorização de si; não há então criação, mas uma resposta à força criadora do tipo forte.
Assim, não podemos designar a ação reativa que nega a alteridade como afirmação de si; no
tipo escravo ressentido não há reação espontânea nem elaborada. Na falta de efetivação, a
experiência fica engasgada, remordendo a consciência, desejando vingança.
Todas as pessoas são suscetíveis ao ressentimento, mas ele só acomete alguém a ponto
de ser tomado como enfermidade quando há impossibilidade de se lidar com ele: não é
possível agir nem esquecer. O tipo forte também é acometido pelo ressentimento e desejo de
vingança, mas ele consegue afastar da consciência a experiência do sofrimento: “Um homem
assim sacode de si, de um só golpe, muitos vermes que em outras pessoas se aninham
subterraneamente” (Nietzsche, 2010, p. 28).
Se por acaso esse potente nobre se engana e faz um julgamento errôneo de alguma
situação, ele faz por indiferença ao que lhe parece pouco importante. O ressentido, em
contrapartida, diante da sua impotência, acusa seu adversário pelo ódio com que é tomado:
um ódio que o envenena, mas do qual não consegue se livrar. “O ressentido é alguém que nem
age nem reage realmente; produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável”
(Machado, 1999, p. 64).
É importante ressaltar o realmente da frase acima, pois ele demarca que, ainda que
consideremos a elaboração psíquica como um tipo de ação, ela não pode ser considerada
como ação exterior, legítima. O ressentido não age nem reage fisicamente, daí que sua ação é
imaginativa; não há agir para fora, no mundo. Ação confabulada psiquicamente não
transforma o exterior nem propicia alívio que uma descarga energética é capaz de fornecer; ao
contrário, só atinge o interior do indivíduo.
A inversão de valores é poeticamente exemplificada no capítulo treze da Genealogia,
quando Nietzsche expõe a relação entre o cordeiro e a ave de rapina. Nessa dinâmica do
ressentido que cria valores, o encontramos do lado da ovelha, que sente rancor pela ave de
rapina e se opõe a ela julgando-se boa.
29

Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para
censurar às aves de rapina o fato de pegarem ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de
rapina são más; e quem for o menos ave de rapina, e sim seu oposto, ovelha – este não deveria ser o
bom?” (Nietzsche, 2010, p. 32)

Aqui podemos perceber o quanto a metáfora animal evidencia que a tarefa genealógica
visa trazer para discussão a naturalização dos instintos, ao mesmo tempo que critica a
desnaturalização propiciada pela inversão de valores. A explicação metafísica dá lugar ao
mundano, daí a perplexidade diante da exigência de que os fortes não exerçam sua força,
assim como é absurdo exigir do fraco que seja forte: não há, de antemão, valoração moral
numa diferença imposta pela própria natureza.
Em um ensaio dedicado a esse parágrafo, Ferraz (2008) salienta que as perspectivas
dos dois animais são de fato diferentes, mas ao serem colocadas em oposição denunciam
manobra valorativa do ressentimento. Certamente as ovelhas não irão gostar das aves de
rapina, mas “o problema aqui não reside nem na diferença nem nos inevitáveis embates que
ela em geral suscita, mas nessa necessidade de censurar, culpabilizar” (Ferraz, 2008, p. 149).
Ao culpabilizar, a diferença é suprimida pela culpa.
Ainda de acordo com a análise de Ferraz, ao instituir essa oposição com a ave de
rapina, o cordeiro se coloca em pé de igualdade com seu oposto, ou seja, a despeito da
diferença entre eles, ocorre um nivelamento que nega a diferença. Com isso, pode-se
culpabilizar a ave de rapina pelo que ela simplesmente é, como se houvesse uma possibilidade
de escolha nesse sentido. O ressentimento das ovelhas – e o plural aqui é importante por
demarcar a necessidade que o rebanho tem de confirmar coletivamente seu juízo moral –
aniquila a alteridade a fim de afirmar o próprio eu.
A forma de valoração do nobre é igualmente demonstrada por essa metáfora. A ave de
rapina, diante das ovelhas e das censuras que emitem contra ela, não teria motivo algum para
odiá-las, “pelo contrário, nós [aves de rapina] a amamos: nada mais delicioso que uma tenra
ovelhinha” (Nietzsche, 2010, p. 32). Vemos que não há rancor da parte da ave de rapina pela
diferença existente entre ela e as ovelhas. Como salienta também Ferraz (2008), o nós da ave
de rapina não demonstra a necessidade de rebanho e confirmação de sua ação por um
elemento externo, mas demarca com ironia e bom humor o apreço por essa tenra carne, ou
seja, afirma a si prescindindo da negação da diferença natural do outro.
O cordeiro é emblemático por carregar um elemento cristão consigo: é o animal de
rebanho sacrificado. Segundo o pensamento nietzschiano, a igreja católica foi a instituição
que se consagrou a partir do ressentimento, uma vez que foi a partir do triunfo dos valores
30

débeis do tipo escravo sobre os valores fortes do aristocrata que o cristianismo pôde reinar
como moral praticamente hegemônica. A religião cristã tornou-se assim marcada pelo rancor
contra os homens de ação.
Refletindo sobre como os ideias são “fabricados” pelos homens, Nietzsche mostra que
com a ideologia judaico-cristã a impotência para agir foi transformada em bondade, o medo
em humildade, a submissão a quem se tem ódio em obediência a Deus, a impossibilidade para
vingar-se se converteu em perdão e desejo de não se vingar... e acrescenta ainda que o “golpe
de mestre” que inverteu toda essa renúncia em virtude não deixou espaço para a suspeita de
que estes bondosos homens são doentes de ódio, vingança e ressentimento. Como consolo por
terem que engolir seu ímpeto expressivo e acreditar na justeza da inércia, acreditam que no
além mundo, no Reino de Deus, serão recompensados (Nietzsche, 2010, pp. 34-36).
Scheler (1998), filósofo que também escreveu sobre o assunto e partiu das
formulações nietzschianas para caracterizar esse fenômeno, enfatizou a presença do
sentimento de vingança ao descrever a sua fenomenologia do ressentimento, sendo esta para
ele “o ponto de partida mais importante na formação do ressentimento” (p. 21, tradução
nossa). O ímpeto vingativo demarca também a primazia da presença do outro por ser um
impulso reativo. Duas características são essenciais para que se instale o desejo de vingança:
um refreamento da reação imediata acompanhado de sentimentos hostis acionados no
indivíduo por algum dano sofrido e um adiamento da reação a este dano.
O que subjaz esse refreamento das emoções e o adiamento da reação é o sentimento de
impotência para descarga característico do ressentido. Ainda que sentimento de vingança, e
Scheler (1998) acrescenta também a inveja, a ojeriza, o prazer em ver o mal alheio, sejam
pontos de partida, estes sentimentos não podem ser considerados como o ressentimento
propriamente dito. Para instalar-se, o ressentimento deve vir acompanhado dessa
impossibilidade de tradução motora do afeto hostil que acomete o indivíduo.
As reflexões sobre a vingança conduzem a uma ideia que remete ao homem do
subsolo. É quando o impulso vingativo se transforma em sede de vingança que o
ressentimento encontra maiores chances de se instalar. Sede de vingança se caracterizaria por
uma espécie de perda de objetividade na execução da vingança, que não encontra mais um
objeto de descarga e permanece “em círculos de objetos indeterminados, aos quais basta ter
um caráter comum” (Scheler, 1998, p. 24, tradução nossa).
Esse desejo por desforra insatisfeito acaba levando a um empobrecimento do
indivíduo, que traduz a sua pretensa razão por uma certeza de que há um dever em vingar-se.
31

Dá-se início a um processo de busca – não consciente – de um objeto que pudesse satisfazer
as intenções agressivas e hostis internas, ou seja, lavar a honra maculada.
É necessário também, acrescenta Scheler, que o ofendido se sinta pelo menos em
paridade com aquele que o desonrou, ou seja, que o sentimento próprio seja alto ou ao menos
esteja à altura do ofensor, a quem não admite ter sido ultrajado. Assim, o homem do
ressentimento é descrito de tal forma que não podemos deixar de remeter ao homem do
subsolo.
Giacóia Jr. (2006) inclusive chama a atenção para o fato de que a Genealogia da
moral pudesse ter sido escrita concomitante à leitura de Memórias do subsolo, obra literária
que teria fortemente impressionado Nietzsche. A passagem a seguir não deixa dúvidas de que,
se não podemos afirmar com certeza os ecos do subsolo na escrita nietzschiana, podemos ao
menos perceber certa afinidade entre essas duas obras:

Sua [do ressentido] alma olha de través, ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo
escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não-
esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais
homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará
a inteligência numa medida muito maior. (Nietzsche, 2010, p. 28)

Já mencionamos uma memória que agora merece atenção mais pormenorizada no


nosso estudo: o episódio com um oficial. O nosso personagem encontrava-se em um bar e
atrapalhava a passagem na mesa de bilhar, até que esse oficial precisou passar por ele, e o
mudou de lugar, assim, facilmente, sem maior esforço, sem sequer notar sua presença. Uma
pequena trombada com um desconhecido no bar parece sem importância, mas não nesse caso.
Diz que preferia apanhar a não ser notado, pensa em começar uma briga, mas não consegue
agir. Prefere ressentir-se e imaginar o dia que sua vingança chegaria, nas palavras do
camundongo, ele prefere “apagar-se enraivecido”.
O oficial era forte, robusto, bem diferente do homem do subsolo que, a despeito da sua
consciência hipertrofiada, não encontrava no seu físico qualidades semelhantes. O oficial
representava assim o grupo daqueles que reagem, que não se importam com os obstáculos a
sua frente, pois sabem-se capazes de reagir. E eis que surge um objeto digno de investimento
para ser inserido no círculo flutuante de alvos de desforra.
O oficial encarna a força daquele que age e retira do seu caminho os obstáculos à
medida que estes o interpelam, sem sequer ser assombrado por eles. No lado oposto, está o
homem-rato, inábil para responder ao oficial da maneira que achava que merecia.
32

Anos se passam cozinhando uma vingança: o dia em que cruzaria com o oficial na rua,
e, estando os dois na mesma calçada, não cederia espaço para ele, andariam lado a lado como
dois semelhantes. Durante anos seguia-o a “distância, como se estivesse amarrado a ele”
(Dostoiévski, 2009, p. 64), escrevia acusações, chegou a escrever uma carta que lhe renderia
sua redenção – ser admirado pelo oficial. Dilacerava-o pensar que não conseguia se colocar
diante desse outro de forma paritária, imaginava os dois como bons amigos, cultivava a
imagem do seu rival com veneração e ódio, “contemplava-o encantado”. Ficava andando pela
avenida principal de São Petersburgo esperando o momento certo, mas, sempre que
encontrava seu adorado rival, era incapaz de agir e cedia-lhe espaço.

Era o cúmulo do suplício, uma humilhação incessante insuportável, suscitada pelo pensamento, que se
transformava numa sensação contínua e direta de que eu era uma mosca perante todo aquele mundo,
mosca vil e desnecessária, mais inteligente, mais culta, e mais nobre que todos os demais, está claro,
mas uma mosca cedendo sem parar diante de todos, por todos humilhada e por todos ofendida. Para que
recolhia em mim tal sofrimento, para que ia à Avenida Niévski, não sei; mas algo me arrastava para lá
sempre que possível. (Dostoiévski, 2009, p. 66)

Há uma tentativa de se colocar de igual para igual, que já evidencia que esse
nivelamento é forjado pelo personagem. A passagem demarca tanto a manobra de aniquilação
da diferença entre eles, quanto o sentimento de que está a altura do seu rival. Apesar de
perceber que força e altivez lhe faltam, o ratinho sente-se mais inteligente e culto que o
oficial. E, cada vez que o plano chegava perto de ser efetivado, era o nosso herói que cedia
lugar para o oficial passar.

Por que justamente tu e não ele? Não há nenhuma lei nesse sentido, nem isso está escrito em parte
alguma. Ora, que seja de igual para igual, como geralmente se dá quando duas pessoas delicadas se
encontram: ele há de ceder metade do caminho; tu farás o mesmo, e assim passareis um ao lado do
outro, respeitando-vos mutuamente. (Dostoiévski, 2009, p. 67)

Ocorre que em uma determinada tarde, quando a vingança já estava quase sendo dada
por inatingível, os dois se encontraram muito próximos um do outro na calçada, o que
praticamente obrigou que o plano fosse levado a cabo. Esse momento ocasional de um
esbarrão que ocorre de súbito, sem ser por tanto tempo ruminado, proporciona um mínimo de
espontaneidade à ação. A vingança já estava prestes a ser abandonada e o ato suspenso, mas o
elemento surpresa fez com que o bloqueio psíquico que paralisa o agir fosse
momentaneamente superado.
O personagem havia se dado conta de que não iria conseguir efetivar sua desforra, e
havia decidido abandonar seu plano. “Na noite anterior eu resolvera definitivamente desistir
33

do meu ato nefasto, deixar como estava, e com esse propósito saí para Avenida Niévski,
simplesmente com a intenção de ver como ia deixar tudo sem alteração” (Dostoiévski, 2009,
p. 69). Curioso notar que ele vai à rua para assegurar que não iria dar conta de vingar-se.
Chegando lá, no entanto, e vendo-se perto o bastante do seu alvo, o envolvimento era
tamanho que acabou não cedendo espaço, quase que por susto e por não estar preparado para
esquivar-se da desforra. A ocasião o tomou de assalto e o impossibilitou de fugir.
Nesse episódio encontramos mais um ponto no qual podemos aproximar a obra de
Dostoiévski e a de Nietzsche. A originalidade da ação confere um mínimo de desforra da
humilhação; a espontaneidade e exuberância do agir é o que propicia um maior impacto na
realidade e no individuo, por isso é possível sentir-se, mesmo que momentaneamente,
vingado (Giacóia Jr., 2006). Ainda que em última instância a vingança seja uma reação, já que
traz a marca do outro como força motriz do agir, o breve momento que conduz
inesperadamente ao duelo carrega em si aspectos positivos por seu ato criativo. O ato
impulsionado pela vingança, no entanto, é ainda reativo.
Após ter efetivado sua desforra, o ratinho retorna a seu estado anterior e ironiza o seu
feito. Ele sabe que a vingança não foi autêntica, não o satisfaz como esperado. Logo depois é
tomado de arrependimentos, dos quais diz concordar voluntariamente em suportar. Não via
outra solução senão voltar para seus devaneios, para a segurança do seu subsolo. É de lá que
ele diz ser capaz de encontrar resquícios de vida que só o faziam ativar, pelo contraste, seu
sofrimento e sua “torturante análise interior”.
Assoun (1992) reafirma que a caracteriologia do ressentimento remete
necessariamente a uma reatividade primária; um mecanismo tóxico de autoenvenenamento
propiciado pela impossibilidade de descarga imediata da ação. Essa paralisia do
desenvolvimento motor ocorre em oposição a um superdesenvolvimento da memória,
causando uma perturbação da economia psíquica do indivíduo ressentido. A saúde mental
requer, para manter-se minimamente saudável, esquecimento, lugar para o novo, força
plástica. Dessa forma, passamos para as implicações da memória e esquecimento para o
indivíduo e o ressentimento.
34

1.2.2 Ressentimento, culpa e esquecimento

A importância do esquecimento para a saúde psíquica inaugura a segunda dissertação


da Genealogia. Ao contrário da sua aparente inércia e passividade, o esquecimento é uma
força ativa capaz de renovar a consciência, apaziguando o turbilhão de impressões com que
somos afetados. É o que possibilita que a realidade seja digerida e suportada. “Fechar
temporariamente as portas e janelas da consciência, permanecer imperturbado pelo barulho e
a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e a divergir; um pouco de sossego,
(...), para que novamente haja lugar para o novo” (Nietzsche, 2010, p. 47).
Ocorre que essa memória saudável pode adoecer, ou seja, o esquecimento pode ser
suspenso e aquela vivência indigesta permanece latente na memória. O indivíduo, que não
podia se livrar da impressão sofrida, passa a não querer mais se livrar dessa impressão,
mantendo presente esse querer na memória e distanciando-se cada vez mais da ação. O “não-
mais-poder-livrar-se” cede espaço para o “não-mais-querer-livrar-se”, e o indivíduo
permanece desejando o que já antes desejava, ou seja, o querer fica preso à memória e o ato
distancia-se cada vez mais da sua consecução (Nietzsche, 2010, p. 44).
Da mesma forma com que os valores de Bem e Mal, Bom e Ruim receberam o
tratamento genealógico, ou seja, são entendidos com base em uma relação dinâmica de
dominação e poder e, portanto, contingencial, a gênese dos conceitos de memória-
esquecimento e o sentimento de culpa também foram construídos a partir do viés histórico.
A pré-história do homem é retomada, demonstrando que o processo de tornar-se um
ser social encontra sua raiz na necessidade de prometer, ou seja, assegurar a palavra
empenhada. O adestramento necessário do animal selvagem para o animal doméstico, que
precisa viver em sociedade, teria se efetivado a partir da imposição da arcaica relação entre
credor e devedor, que fundamenta a origem da memória, consciência moral e culpa. Antes de
prosseguirmos, é importante frisar que a análise deve ser entendida mais como um
instrumento interpretativo e menos como um relato histórico fiel.
A matriz conceitual da culpa repousaria na ideia de dívida, pelo menos segundo a
interpretação nietzschiana. É importante ressaltar que no alemão encontramos um mesmo
vocábulo para designar culpa e dívida (Schuld). Para que o contrato fosse mantido e a dívida
fosse saldada, era necessário que a obrigação do pagamento fosse lembrada, ou seja, estivesse
presente na memória.
35

Para o homem se tornar capaz de responder por si, ou seja, fazer promessas, era
necessário que ele se tornasse constante, processo que Nietzsche (2010) denominou
“moralidade dos costumes”: “com ajuda da moralidade do costume e da camisa de força
social, o homem foi realmente tornado [itálico no original] confiável” (p. 44). O que
possibilita ao homem ser responsável pela palavra que empenha ao outro é ser consciente das
promessas que faz e, ao mesmo tempo, saber que deve cumpri-las – aqui encontramos a
história da responsabilidade.
Adquirir responsabilidade por suas ações equivaleria a ter consciência de que é
possível responder por elas. Além disso, a percepção de que diante de uma obrigação pessoal
é possível responder por ela pressupõe também que o homem é capaz de dominar a si mesmo
(Giacóia Jr., 2008, p. 202).
“A faculdade de prometer está ligada à representação e ao sentimento de
responsabilidade, de responder por algo perante alguém, de garantir-se a si mesmo, em
relação a uma obrigação” (Giacóia Jr., 2001, p. 38). Esse mecanismo pressupõe que o
esquecimento seja temporariamente suspenso e a lembrança do contrato permaneça presente
na consciência.
Responder por si de forma orgulhosa, poder fazer promessas e honrá-las confere ao
homem sensação de poder e liberdade, pois ele sabe que é forte o bastante para prometer.
Aqui ainda encontramos uma memória saudável, de quem tem confiança em si e pode
responsabilizar-se por suas escolhas e ações.

O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara


liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-
se instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de
uma palavra para ele? Mas não há dúvida: esse homem soberano o chama de consciência [moral]
[itálico no original]. (Nietzsche, 2010, p. XXX)

O método de tornar algo presente na memória é permeado de crueldade, pois somente


o que marca fundo, pela dor, permanece gravado e indelével. A vida em sociedade exigia que
essa memória fosse criada para que os credores não saíssem no prejuízo por suas transações.
“Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: somente o que não cessa de causar dor
[itálico no original] fica na memória” (Nietzsche, 2010, p. 46).
O homem foi obrigado a tornar-se um ser social mesmo contra sua vontade, e passou a
ser possível inclusive distinguir o elemento intencional do agir. Quando analisa o castigo, por
exemplo, Nietzsche percebe que sua origem não repousa no fato de que se castiga devido a
uma indignação por acreditar que deveria ou poderia ser diferente a ação, mas sim que o
36

castigo é uma forma de expurgar a raiva daquele que causou algum dano. Subjacente a esta
ideia, está a crença de que “qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente
compensado, mesmo que seja com a dor [itálicos no original] do seu causador” (Nietzsche,
2010, p. 48).
O devedor assegura a seu credor que a dívida pode e vai ser ressarcida, mesmo que
para isso pague com algo que possua, como sua liberdade, seu corpo, sua dignidade... O
credor pode sentir-se ressarcido quando extrai uma satisfação por causar dor a seu impotente
devedor; como recompensa pelo prejuízo, encontra-se um prazer íntimo em infligir a pena ao
infrator.
O que se percebe nessa relação credor-devedor é que são utilizados meios cruéis para
que o credor seja recompensado por sua dívida e novamente se sinta potente. Pagar a dívida
com dor pressupõe uma possível equivalência entre elas, além de estar subjacente à ideia de
que causar dor traria uma satisfação interna.
Assim, a obrigação pessoal de responder pela promessa da dívida é garantida pela
técnica mnemônica de deixar marcas. O castigo seria “constituído pelas modalidades semi-
bárbaras de satisfação substitutiva, pelos regimes de equivalência e formas de reparação que a
imaginação grosseira do homem primitivo foi capaz de instituir” (Giacóia Jr., 2008, p. 205).
Não estamos ainda nesse ponto no solo moral da culpa-dívida.

Todavia, uma funesta alteração do sentido põe a perder a colheita, fazendo fenecer o fruto da eticidade
primitiva. Nessa mudança, ganha destaque a atuação da má consciência. Esta (e, na verdade, apenas ela)
se ajusta a perspectiva negativa e reativa do ressentimento e da vingança. É por obra dela que surge a
oposição entre Gewissen (consciência moral) e Schlechtes Gewissen (consciência de culpa). Ao explorar
a polissemia deste último termo, Nietzsche tem a intenção de indicar que a má consciência resulta de
uma espécie de corrupção, desvirtuamento da consciência moral, produzida por uma inversão na direção
do ressentimento. (Giacóia Jr., 2008, p. 214)

As obrigações legais cimentam a origem de conceitos morais como dívida, culpa e


dever. Já que o sofrimento pode ser uma compensação pela dívida, o prejudicado troca o
desprazer do dano pelo prazer de fazer sofrer, o que demonstra a solidariedade entre a culpa e
o sofrimento. A crueldade não era motivo de vergonha para o homem primitivo, mas sim um
meio de expurgação do ódio e reequilíbrio de forças.
E então há o questionamento de como é que haveria surgido esse elemento igualmente
indelével na memória e que causa também sofrimento, a má consciência ou a consciência da
culpa. É mais uma vez por meio do método genealógico que a resposta será desenvolvida, a
partir de investigação de relações mais arcaicas entre seres humanos, na luta de força entre
37

seus impulsos e instintos. Mais especificamente, como vimos, a resposta da origem da culpa
repousa na mais antiga relação entre os homens: a relação entre credor e devedor.

A má-consciência, ou o sentimento permanente de culpa consiste numa internalização e moralização da


responsabilidade e se institui como uma re-interpretação das categorias fundamentais de compra e
venda, crédito e débito, retiradas da esfera originalmente jurídica da obligatio, e transpostas em
categorias centrais da moralidade. (Giacóia Jr., 2008, p. 214)

O que ocorreu então foi que esse mecanismo recebeu o tratamento da moral, quando
surgiu a “vergonha do homem diante do homem. (...) – refiro-me à moralização e ao
amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho ‘homem’ aprende afinal a envergonhar-
se dos seus instintos” (Nietzsche, 2010, p. 52). A descaracterização do homem quanto ao seu
lado animal promoveu a repulsa ao que era instintivo, sexual, fisiológico mesmo. O prazer na
crueldade toma formas distintas agora; transposto para o campo psíquico e imaginativo, foi
sutilizado por expressões mais delicadas e espiritualizadas.
O fato de ter tido sua animalidade contida pelas exigências da vida em sociedade não
extinguiu os impulsos agressivos existentes no homem. Estes continuaram atuando, exigindo
ter de volta um lugar para expressarem-se. Foram apenas inibidos de sua descarga, e, nesse
caminho, foram interiorizados e encontraram no eu o meio de escoar a agressividade. Na
impossibilidade de descarrega e interiorização do instinto, este se volta contra o próprio
homem, que sofre com a intensidade da sua crueldade coibida; é, pois, o sofrimento do
homem pelo homem, ou seja, o que Nietzsche denominou de má consciência.

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que eu chamo de
interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois denomina sua “alma”. Todo o
mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se
estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido [itálicos
no original] em sua descarga para fora. (Nietzsche, 2010, p. 70)

A má consciência seria, desse modo, a enfermidade adquirida como consequência das


exigências da vida comunal, uma transformação a que foi constrangido em nome da
sociedade. Esses impulsos coibidos em sua descarga encontram no interior do homem um
meio substitutivo e subterrâneo de descarga.
A restrição de descarga fisiológica atinge então o psicológico. No nível psíquico, a má
consciência se traduz pelo imperativo de torturar a si mesmo, ou seja, atingir a consciência
com a força e a agressividade que foram desviadas do exterior para o interior. “A crueldade,
expressa na vingança, no ressentimento, converte-se, a partir de então, em ‘vontade de torturar
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a si próprio’” (Assoun, 1992, p. 232). O indivíduo interpreta o seu sofrimento como sua culpa,
colocando-se ao mesmo tempo como algoz e vítima.
A agressividade represada encontra caminhos internos e ocultos para desafogar-se, ou
seja, acha seu alvo no próprio sofredor. Mas era necessário encontrar alguma via de escape,
uma forma intensa o bastante para apaziguar esse sofrimento. “Como ‘extravagância do
sentimento’ – a descarga do ressentimento voltada contra o próprio sofredor –, essa figura é,
certamente, paradoxal ao extremo; mas é também o mais eficiente narcótico para mitigação
do sofrimento originado pela renúncia e pela repressão” (Giacóia Jr., 2008, p. 217).
Chegamos aqui em um ponto que merece ser investigado mais a fundo, pela importância para
a patologia ressentimento.

1.2.3 Ressentimento e narcotização da consciência

Bem, com a consciência obtém-se o mesmo resultado, isto é,


também não haverá nada a fazer; mas pelo menos poderemos
espancar a nós mesmos, de vez em quando, e isto, apesar de
tudo, infunde ânimo. Ainda que seja retrógado, é sempre
melhor que nada.
Dostoiévski

Vimos que a impotência para a ação do tipo psicológico fraco característico da casta
dos escravos contamina a consciência de modo que a força plástica do esquecimento
permanece suspensa. O pensamento do indivíduo gravita em torno dessa memória de ofensa,
desejando apenas uma vingança imaginária na tentativa de reparação da indigestão do afeto.
Essa dinâmica de autoenvenenamento da consciência é o ressentimento. Temos que pensar o
que a consciência ganha ao torturar a si mesma.
Giacóia Jr. (2006) afirma que o impulso vingativo é entendido como uma atitude
agressiva que se dirige para fora, chegando a postular o ressentimento como “variante
internalizada do sentimento e instinto de vingança” (p. 83). Assim, diante de um sofrimento –
e a incapacidade de esquecê-lo –, há necessidade de se buscar um culpado, de encontrar um
meio externo para descarregar a raiva e a culpa. O ressentimento não seria um mecanismo de
ação e reação mecânico e simplista, mas sim um sofisticado elaborar psíquico que visa a uma
via expiatória para aliviar-se do afeto desprazeroso. O desejo de vingança e sua magnitude
39

agressiva subjacente propiciam assim um efeito sedativo à consciência. Nas palavras de


Giacóia Jr. (2006):

Portanto, o que diferencia o ressentimento da “elaboração ativa dos estímulos externos”, que é uma
forma de ação, é que o ressentimento é um processo reativo, que pressupõe a vivência de sofrimento e a
necessidade de desembaraçar-se dela por meio de uma descarga súbita de um afeto vigoroso, como
meio de narcotização da consciência. O entorpecimento é o elemento positivo e principal, a busca de
um culpado e a própria descarga são efeitos secundários, reação a experiência de sofrimento. (p. 84)

Vemos que o caráter sedativo do ressentimento coloca o meio de descarga como


secundário, o que se revela um importante elemento para refletirmos a respeito do homem do
subsolo. Agora o encontro com o oficial mencionado anteriormente pode ganhar um novo
tratamento. A sensação que fica para o leitor quando se depara com o relato do episódio
iniciado em torno da mesa de bilhar e que consome por tanto tempo nosso herói é um misto
de perplexidade, estranheza, graça... Enfim, esse encontrão assume ares tragicômicos. Mas o
que podemos vislumbrar é que não era aquele oficial que tanto importava, mas sim toda
mobilização de afeto que ele era capaz de extrair do ratinho ofendido.
Podemos concluir, então, que esse homem do subsolo já se encontrava ofendido de
antemão. Haveria um estado precedente de ofensa que lança, como mostrou Scheler, esse
indivíduo num círculo vicioso que procura qualquer elemento que satisfaça seus impulsos
vingativos imaginários. Daí ele afirmar que se ofende com facilidade, e, “o principal, por mais
que se rumine o caso, está em que eu sou o primeiro culpado e, o que é mais ofensivo,
culpado sem culpa” (Dostoiévski, 2009, p. 21).
A inversão de valores promovida pela classe sacerdotal imputou às noções de forte,
explosivo, potente uma dimensão de pecado, vergonha, culpa. Da má consciência brotaram
indivíduos interiorizados e com instintos represados interiormente. Era necessário fazer surgir
um pastor para esses homens doentes de si mesmos, envenenados pelo ressentimento:
encontramos, então, na terceira dissertação da Genealogia, a figura do sacerdote ascético.
O sacerdote é quem coroa a vingança contra a classe guerreira ao instituir que os
miseráveis e os doentes são os bem-aventurados e piedosos, pois ele cria para esses sofredores
um enredo que oferece sentido para seu sofrimento. Nietzsche afirma que a vontade humana
tem pavor do vazio; ela necessita de um objetivo, e “preferirá ainda o querer o nada a nada
querer [itálicos no original]” (Nietzsche, 2010, p. 80).
O escancaramento da falta desenvolve uma necessidade de querer, mesmo que,
inicialmente, não se encontre uma direção ou fim. O importante é a conservação do dado
fundamental do homem: o querer. A vontade de nada é considerada um “mal menor” porque
40

ainda assim é uma vontade, na falta de outra melhor. Em suma, a vontade como intrínseca
deve querer algo, nem que seja o nada; a crueldade deve descarregar-se, nem que seja para o
interior (Brusotti, 2000).
Desse modo, deparamo-nos com o real sofrimento do homem: objetivar sua vontade,
estabelecer um sentido que entorpeça esse sofrimento primário. O ideal ascético é o bálsamo
do sofrimento insuportável, ele dá sentido à ausência e, por esse fato, dá sentido ao
sofrimento. Dotado de sentido, o sofrimento agora pode ser buscado como meta pelo homem.
Nas palavras de Brusotti (2000): “Mas, exatamente porque o ideal ascético colocou um fim às
duas formas principais de sofrimento, o fato de que ele multiplicou e aprofundou o
sofrimento, tornou-se coisa secundária” (p. 7).
Não seria o sofrimento o maior problema do homem, mas sim a incapacidade de
conferir a esse sofrimento um sentido, um porquê. A vitória dos valores dos fracos em relação
aos fortes, ou seja, a vitória do cristianismo e do ressentimento tem como consequência a
presunção de que o sofrimento é algo que o indivíduo merece.
Moura (2005) compreende o asceta como possuidor de um desejo invejoso de viver de
outro modo, mas é a intensidade desse desejo mesmo que o liga ao mundo. É devido à
potência desse impulso que ele consegue aglutinar todo seu rebanho, revertendo a aparente
contradição da vida em uma força que conserva a vida. Mas a vida que conserva é uma vida
doente, enfraquecida.
A forma com que o sacerdote consegue treinar seu rebanho é rebaixando todo o querer
e o desejo dos seus membros, preconizando a renúncia a si e o amor ao próximo. A astúcia do
sacerdote será interpretar o sofrimento com um sentido de culpa, dando-lhe ares de pecado. O
método do sacerdote ascético será mudar a direção do ressentimento; quando o sofredor busca
o culpado por aquilo que o incomoda, esse pastor lhe diz, sim, existe um culpado, mas esse
culpado é você mesmo (Nietzsche, 2010, p. 109).
A descarga dos instintos teve seu alvo e seu caminho invertido para o interior do
homem, que passa a buscar sua expiação pela autotortura. A magnitude do afeto represado
pode ser vivenciada de outra forma, nos canais mais internos.

Unicamente nisto, segunda minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do


ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do
afeto. (...) quer se entorpecer, mediante uma emoção mais violenta de qualquer espécie, uma dor
torturante, secreta, cada vez mais insuportável, e retirá-la da consciência ao menos por um instante –
para isso necessita de um afeto, um afeto o mais selvagem possível, e, para sua excitação, um bom
pretexto qualquer. (Nietzsche, 2010, p. 108)
41

A narcotização da consciência é dessa forma um conjunto de manobras e estratégias


das quais se mune o ressentido na tentativa de reestabelecer um equilíbrio energético e
psíquico. Diante de um sofrimento – e da incapacidade para esquecê-lo –, há uma busca por
um culpado. O próprio sofredor toma a si como responsável e, para isso se sacrifica, se
martiriza.
No processo envenenador da sede de vingança, a necessidade de um meio expiatório e
até mesmo a descarga do afeto vigoroso assumem um papel secundário. A ênfase recairia no
processo de narcotização da consciência por meio da presença desse afeto, ou seja, o instinto
de desforra já propiciaria um efeito sedativo no indivíduo. Vontade de deserto, como postula
Nietzsche (2010), que se impõe veementemente como instinto dominante – a força para
estancar a fonte da força. Acrescenta ainda Giacóia Jr. (2006):

Dessa maneira, a descarga só se realiza pelo canal subterrâneo da internalização, voltando-se contra o
próprio sujeito, de maneira que o sentimento de vingança tem que cavar abismos cada vez mais fundos
no mundo psíquico do próprio sofredor. Esse é o ressentimento que envenena, o desejo de vingança do
dispéptico, cujo metabolismo psíquico fica transtornado. É assim que tem origem aquele fenômeno
paradoxal que consiste na tentativa de anestesiar a dor por meio da intensificação de outra espécie de
sofrimento psíquico, isto é, pelo auto-martírio da consciência de culpa. (p. 87)

Voltemos para nosso ratinho, confinado por si mesmo no seu subsolo. Se ele se
dilacera tanto por perceber sentimentos antagônicos que fervilhavam em si, por que escolhe a
via do ressentimento? Por que escolhe tiranizar aqueles que cruzam seu caminho, quando
percebemos que no fundo ele não quer outra coisa senão se colocar em pé de igualdade com o
outro?
O que vislumbramos é que, diante desses impulsos antagônicos, da sua inércia para a
ação, esse ratinho, com sua consciência hipertrofiada, desconfia de todos e também de si,
paralisa sua vida para viver “seguro” no subsolo. Sendo assim, concluímos que esse
subterrâneo garante, além de um lugar, algum ganho ou prazer.

Mas é exatamente nesse frigido e repugnante semidesespero, nesta semicrença, neste consciente
enterrar-se vivo, por aflição, no subsolo, por quarenta anos; nesta situação intransponível criada com
esforço e, apesar de tudo, um tanto duvidosa, em toda esta peçonha de desejos insatisfeitos que
penetraram no interior do ser; em toda esta febre de vacilações, das decisões tomadas para sempre e dos
arrependimentos que tornam a surgir um instante depois, em tudo isto é que consiste o sumo daquele
estranho prazer de que falei. Este prazer é a tal ponto sutil, e a tal ponto às vezes inapreensível à
consciência, que as pessoas um pouquinho limitadas ou mesmo as de nervos fortes não compreenderão
dele nem um pouco sequer. (Dostoiévski, 2009, p. 24)

No artigo dedicado à relação entre o homem do ressentimento e o de consciência


hipertrofiada, Paschoal (2010) ressalta que o contato de Nietzsche com a obra de Dostoiévski
42

teria sido a partir da edição francesa L’esprit souterrain, que trazia, além das Memórias do
subsolo, a Senhoria, como se fossem uma obra apenas e conectadas por um texto de autoria
do editor. Mas o aspecto que interessa é que nessa edição a palavra russa zlosti surge
traduzida por ressentiment; e é justamente o excesso de zlosti que envenena, hipertrofia e
paralisa o rato do subsolo. É o zlosti que surge acumulado e gera essa “peçonha dos desejos
insatisfeitos que penetram no interior do ser”.
Paschoal (2010) atesta assim que Nietzsche teria encontrado inspiração no subsolo,
quando o ressentimento ocupará um lugar essencial no corpo da sua teoria crítica. Tanto o
personagem dostoievskiano quanto o tipo idealizado pelo filósofo se constituiriam por
oposição ao que lhe é exterior, por inveja ao homem de ação.

Assim como o personagem de Dostoiévski, também o tipo que segundo Nietzsche estaria na origem
daquela moral não reage de forma efetiva diante das adversidades e também não esquece suas desditas.
Também ele termina por reter em si os sentimentos de rancor, o ódio e a sede de vingança advindos
daquele quantum de força que deveria ser descarregado para fora e que permanece nele, sendo re-
sentido, porém não digerido, [itálicos no original] ocupando todo o seu mundo interior. (Paschoal, 2010,
p. 215)

A linguagem utilizada para expressar as afecções do psiquismo atesta a importância


atribuída ao fisiológico, de maneira que há uma impossibilidade de tratar corpo e mente como
cindidos. Assim como também não há a crença de que exista um agente da ação que aja sem
ser acometido pelas exigências corporais e instintivas ou que estas não estejam presentes no
agir.
Do mesmo modo, quando Nietzsche inventiva o homem do ressentimento como fraco,
em oposição ao forte e guerreiro, não significa que quanto mais força física, mais distante se
está do ressentimento. Os processos do corpo se assimilam aos processos da mente, o que
revela que o fraco é aquele que carrega a expressão da fraqueza por não reagir, por perceber
um “inimigo” mau com quem se sente impotente. A concepção de corpo é ampliada a tal
ponto que não é apenas de metáforas que falamos quando se distingue forte e fraco, mas de
um verdadeiro interligamento entre corpo e “alma” (Pachoal, 2010).
É por esse motivo também que lemos que a interioridade do homem teria surgido a
partir dos instintos que entranharam no seu interior, a partir do desvio que interrompe sua
exteriorização.
Assim, o ressentimento seria um ativo manter na memória a ofensa, um esforço
empreendido pelo indivíduo para não esquecer o agravo sofrido: a aparente inércia é revertida
em atividade psíquica. O que a manobra empreendida por esse tipo psicológico revela é que,
43

por trás dessa inabilidade para a vida ativa, há um dispêndio energético para fixar a ofensa
sempre suspensa, mas presente no psiquismo.
44

CAPÍTULO 2
Psicanálise e ressentimento

2.1 Narcisismo e ressentimento

2.1.1 Sobre o contexto e importância de À guisa de introdução ao narcisismo (1914)

Em 1915, Freud deu início à escrita dos artigos da metapsicologia, espécie de


arcabouço teórico que fundamentaria os principais conceitos da psicanálise. A série de ensaios
seria uma síntese da teoria e também uma garantia de que alguns dos principais e importantes
pontos fossem assegurados e resistissem a possíveis deturpações de seus discípulos (Garcia-
Roza, 2008, p. 15).
O ensaio sobre o narcisismo foi em grande parte uma resposta a essas ameaças. Apesar
de ter sido escrito um ano antes dos ditos artigos da metapsicologia, em 1914, ele está
inserido na série e ocupa lugar de grande importância.
Freud enfrentava na época a ameaça de Jung, que, com sua teoria monista, pretendia
dessexualizar a libido, e de Adler, com seu desconhecimento do recalque e sua teoria do
protesto masculino. No que tange à querela com Jung, estavam em jogo divergências teóricas,
das quais alguns pontos ganham destaque no texto de 1914: a preocupação em manter o
dualismo pulsional e a questão da diferença entre libido objetal e libido do eu e
consequentemente a aplicabilidade da teoria da libido para a teoria da psicose (Garcia-Roza,
2008, p. 44). Na primeira parte do seu artigo, Freud é bastante claro a esse respeito, e afirma
que foi Jung quem o obrigou a reafirmar o caráter sexual da libido, pois duvidava que a teoria
da libido pudesse ser aplicada à esquizofrenia.
A divergência leva Freud a distinguir o curso do investimento libidinal na neurose e na
psicose, lançando, por exemplo, novas perspectivas a respeito do papel da fantasia no
psiquismo. Na psicose, a libido é afastada do mundo externo e dirigida ao eu, dinâmica que
custa o empobrecimento da realidade externa. Já na neurose, o que ocorre é que essa libido
retirada dos objetos externos encontra um meio de escoamento na fantasia. “No neurótico, a
realidade é substituída pela fantasia, enquanto no psicótico há uma perda da realidade sem que
a fantasia forneça qualquer tipo de substituto” (Garcia-Roza, 2008, p. 45). E a consequência
45

disso para a psicanálise é justamente colocar a fantasia como fundamental para o


funcionamento psíquico dos neuróticos, tornando-se “por excelência a via de acesso aos
objetos do mundo” (Jordão, 2011, p. 28).
Em contrapartida, ainda que possamos perceber uma réplica a Jung no ensaio de 1914,
fato é que o tema do narcisismo já estivera presente nas formulações de Freud desde pelo
menos 1899, como atesta a carta 125 a Fliess. Sabemos também por James Strachey,
comentador editorial das obras de Freud para a Edição Standard, que o termo já havia sido
utilizado algumas vezes em ocasiões anteriores. Teria sido assunto em uma reunião da
Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1909, assim como aparece na mesma época em uma
nota de rodapé da segunda edição dos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), e
ainda no livro sobre Leonardo (1910).
Inicialmente, é a partir dos ditos “desvios” que Freud entende o narcisismo, atrelando
o conceito à perversão – tomar o próprio corpo como um objeto sexual, assim como a escolha
objetal de amor homossexual. Assim, se antes poderia ser considerado uma característica da
homossexualidade ou da esquizofrenia, ou parafrenia como ele prefere designar em 1914,
narcisismo agora é considerado como uma fase essencial do desenvolvimento sexual dos
indivíduos, intermediária entre o autoerotismo e o amor objetal. Seria assim uma “forma
necessária de constituição da subjetividade, (...), condição de formação do eu, chegando
mesmo a se confundir com o próprio eu” (Garcia-Roza, 2008, p. 42). De certa forma, não há
Eu sem narcisismo, assim como não há narcisismo sem Eu.
O que o conceito traz ainda de novidade é que o Eu passa a ser objeto de investimento
libidinal, um Eu constantemente sexualizado. Como mostra o verbete do Vocabulário de
psicanálise, “O narcisismo já não surge como uma fase evolutiva, mas como uma estase da
libido que nenhum investimento de objeto permite ultrapassar completamente” (Laplanche &
Pontalis, 2004, p. 288). Um Eu libidinalmente investido coloca em xeque o dualismo
pulsional proposto por Freud na época, exigindo que o conflito entre pulsões do
Eu/autoconservação e pulsões sexuais fosse revisto, fazendo com que um novo dualismo
fosse proposto em 1920: pulsão de vida em oposição à pulsão de morte.
Extremamente condensado, o texto traz ainda os conceitos de eu ideal e de ideal do
eu, oferecendo uma explicação refinada para a origem do recalque, a saber, a criação de um
ideal feita pelo Eu, ao qual ele se mede. Com o parâmetro que criou para si, o Eu pode
examinar e rechaçar aquelas ideias que não condizem com esse ideal: conceito base para
formulação do Supra-eu, que estaria por vir em O Eu e o Isso (1920).
46

2.1.2 Sobre o narcisismo e suas ramificações

Duas questões são colocadas logo no início do ensaio de 1914, À guisa de introdução
ao narcisismo. A primeira diz respeito à relação entre o autoerotismo e o narcisismo, tal como
agora estava sendo proposto. A segunda questão se refere à necessidade de diferenciar uma
libido sexual de uma energia dessexualizada pertencente ao Eu e as diferenciações entre libido
objetal e libido do Eu, pontos importantes para que fosse mantido o dualismo pulsional
proposto na época: pulsões sexuais se opondo às pulsões do Eu. Iniciamos com as
proposições do primeiro ponto.
O autoerotismo foi empregado pela primeira vez em uma carta destinada a Fliess, em
09 de dezembro de 1899 (Garcia-Roza, 2008, p. 39; Jordão, 2011, p. 52), onde podemos ler:
“A camada sexual mais inferior é o autoerotismo, que age sem qualquer objetivo psicossexual
e exige somente sensações locais de satisfação” (Freud, 1899/1996a). Essa carta (125), retrata
uma preocupação em explicar como uma pessoa se torna paranoica ou histérica, e a hipótese
já nessa época era de que a paranoia seria um retorno a essa posição autoerótica inicial. E
Freud finaliza a carta: “As relações especiais do autoerotismo com o “ego” original
projetariam viva luz sobre a natureza dessa neurose” (Freud, 1899/1996a, p. 331).
Essa pequena definição prenuncia as ideias que estariam por vir. Essa “camada sexual
mais inferior” aparece no texto de Garcia-Roza como “estrato sexual mais primitivo”, e
demarcaria assim a sexualidade e seu funcionamento à revelia da função biológica ou
reprodutiva. “No quadro geral da teoria sobre a sexualidade, o autoerotismo caracteriza um
estado original da sexualidade infantil anterior ao narcisismo, no qual a pulsão sexual
encontra satisfação (parcial) sem recorrer a um objeto externo” (Garcia-Roza, 2008, p. 39).
Ainda seguindo esse mesmo texto, o autor nos mostra que a independência de um objeto
externo demarca o distanciamento da sexualidade humana do quesito adaptação da espécie e
não teria a função de articular o ser vivo e o mundo que o rodeia.
Como, então, se dá a passagem dessa satisfação parcial autoerótica no corpo para uma
busca pela satisfação nos objetos exteriores? Quando um indivíduo começa a lançar seu olhar
e interesse para o mundo que o rodeia? A pergunta aparece também no corpo do texto
freudiano e recebe uma resposta do ponto de vista econômico, ou seja, quando a libido atinge
um nível que o Eu considera desprazeroso e sente que precisa escoá-la (Freud, 1914/2004a).
No entanto, a resposta se refere ao trabalho imposto ao psiquismo para lidar com
níveis de excitação que podem ser sentidos como ameaça ou desprazer. O que estruturalmente
47

possibilita esse investimento? Entre o autoerotismo e o investimento objetal, interpõe-se o


narcisismo, e então podemos supor que é aí que reside a questão essencial. Se de alguma
forma as pulsões autoeróticas estão presentes desde o início, o Eu não está, e Freud
(1914/2004a) é bastante enfático a esse respeito, como mostra a passagem a seguir:

É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente desde o início;
o Eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões auto-eróticas estão presentes desde o início, e é
necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que
se constitua o narcisismo. (p. 99)

Essa ação psíquica acrescentada ao autoerotismo seria o próprio Eu (Garcia-Roza,


2008, p. 43), que se desenvolve, como mostra Freud, pelo distanciamento da plenitude do
narcisismo primário infantil ao mesmo tempo que um desejo de recuperá-lo (Freud,
1914/2004a). Vejamos, pois, como a questão se desenvolve.
Vimos que no autoerotismo as pulsões encontram satisfação parcial no próprio corpo,
de forma desorganizada e à revelia do objeto externo. O que se acrescenta é o próprio Eu,
entendido como uma representação de unidade subjetiva e corporal, exatamente o que falta ao
autoerotismo. Sem narcisismo não há Eu, assim como Eu é condição para o narcisismo, ou
seja, Eu e narcisismo podem ser considerados quase uma redundância semântica.
O que propicia a constituição do Eu é o investimento libidinal dos pais no filho, uma
espécie de depósito na criança do seu próprio narcisismo infantil perdido. De fato, o
narcisismo primário é uma suposição da qual se tem acesso a partir da observação do
tratamento que os pais dispensam aos filhos. Estes são dotados de perfeição, não sofrerão as
mesmas restrições que a vida impôs aos pais, o mundo se curvará diante dessa criança...
Assim, “o comovente amor parental, no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o
narcisismo renascido dos pais, que, ao se transformar em amor objetal, acaba por revelar
inequivocadamente sua antiga natureza” (Freud, 1914/2004a, p. 110). O Eu surge assim de
uma unificação imagética do próprio corpo concomitantemente à herança narcísica parental,
dando lugar a um Eu ideal. É o que podemos ler também em Garcia-Roza (2008): “O eu que
surge da confluência da imagem unificada que a criança faz de seu próprio corpo e dessa
revivescência do narcisismo paterno é o eu ideal (Ideal Ich), que corresponde ao narcisismo
primário” (p. 48).
Como efeito do discurso dos pais, surge toda essa ilusão de perfeição, a qual a criança
se vê forçada a abandonar pela dura imposição da realidade. Como abandonar esse sentimento
é difícil para qualquer ser humano, ela tenta recuperar essa satisfação criando para si um
48

ideal-de-Eu. Uma importante passagem no texto freudiano deve nesse ponto ser reproduzida
na íntegra:

O amor por si mesmo que já foi desfrutado pelo Eu verdadeiro na infância dirige-se agora para esse Eu-
ideal. O narcisismo surge deslocado nesse novo Eu que é ideal e que, como o Eu infantil, se encontra
agora de posse de toda a valiosa perfeição e completude. Como sempre no campo da libido, o ser
humano mostra-se aqui incapaz de renunciar à satisfação já uma vez desfrutada. Ele não quer privar-se
da perfeição e completude narcísicas de sua infância. Entretanto, não poderá manter-se sempre nesse
estado, pois as admoestações próprias da educação, bem como o despertar de sua capacidade interna de
ajuizar, irão perturbar tal intenção. Ele procurará recuperá-lo então na nova forma de um ideal-de-Eu.
Assim, o que o ser humano projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de
sua infância, durante a qual ele mesmo era seu próprio ideal. (Freud, 1914/2004a, p. 112)

Podemos perceber, dessa forma, que o narcisismo surgiria então deslocado desse
sentimento de autocentramento da criança, no qual ela gozava da certeza da sua perfeição
narcísica. Ao ter que abrir mão desse momento no qual ela era o seu próprio ideal, cria para si
um ideal-de-Eu, imbuído de grande investimento narcísico. Essa instância psíquica – o ideal-
de-Eu – possui a tarefa de observar, medir e cuidar pela segurança narcísica.
Era preciso, portanto, que alguma instância se encarregasse da tarefa de garantir que
esse ideal fosse atingido; nas palavras de Freud, “uma instância psíquica que, atuando a partir
do ideal-de-Eu, se incumbisse da tarefa de zelar pela satisfação narcísica e que, com esse
propósito, observasse o Eu atual de maneira ininterrupta, medindo-o por esse ideal” (Freud,
1914/2004a, p. 113).
A consciência moral (Gewissen) encarna o lugar dessa instância, que observa o Eu
chegando a perturbá-lo com sua censura. O exagero da auto-observação presente na paranoia
demonstra uma atividade da consciência moral que pode ser estendida a outros tipos de
estruturação psíquica. Seria, para Freud (1914/2004a), o caso da filosofia, na qual o filósofo
se lança em uma busca por respostas a partir de uma investigação pessoal interior.
Aqui estaria inclusive a explicação para a origem do recalque, pois é a partir desse
ideal que o Eu avalia a si mesmo e rechaça as ideias que não condizem com a expectativa que
possui a seu respeito. “Assim, a condição para o recalque é essa formação de ideal por parte
do Eu” (Freud, 1914/2004a, p. 112). Esse ideal ainda seria responsável por aumentar as
exigências do Eu sobre si, gerando um desconforto psíquico pela tensão entre aquilo que o
ideal lhe impõe e o que a realidade lhe subtrai.
Podemos depreender dessa ação de constituição do narcisismo que em última instância
é outro quem possibilita uma coesão euoica, a partir do investimento na criança do seu
próprio narcisismo infantil abandonado. Esse Eu agora dotado de certa unidade subjetiva pode
investir libidinalmente os objetos do mundo, e quando a libido é retirada desses objetos para
49

retornar novamente ao eu, Freud (1914/2004a) distingue esse momento como narcisismo
secundário. O investimento de libido nos objetos situa-se entre o narcisismo primário e o
secundário.
A questão merece tratamento pormenorizado, dada sua importância para o
ressentimento. A formação dos ideais assume uma dupla função: como resposta possível à
necessidade de afastar-se do narcisismo primário e também como tentativa de reaver esse
estado inicial de perfeição. Aqui entra o trabalho do Eu, que, na economia das forças
libidinais, se empobrece quando a libido se encontra investida nos objetos, mas se recupera
quando as relações objetais amorosas cumprem a função de reequilibrar a parcela de libido
doada. Outra maneira de o Eu se recuperar desse empobrecimento é por meio da realização
dos ideais. Com a sensação de ideal minimamente cumprida, é possível ter de volta a sensação
análoga à experimentada nos primórdios do narcisismo primário (Kehl, 2007).
Freud postula, em 1914, o Eu como o grande reservatório da libido, e exemplifica com
a conhecida analogia da ameba que emite seus pseudópodos nos objetos, mas que os retira de
volta ao Eu. “Freud será afeito a essa analogia principalmente porque ela pressupõe uma
anterioridade de investimento euoico em relação ao objetal” (Jordão, 2011, pp. 79-80).
O que podemos vislumbrar é uma espécie de matemática da libido: quanto mais ela
estiver investida nos objetos, menos enriquecido o Eu se encontra. É, portanto, uma relação de
“oposição entre libido do Eu e a libido objetal. Quanto mais uma consome, mais a outra
esvazia” (Freud, 1914/2004a, p. 99).
O trabalho de pesquisa e verificação do valor de si mesmo leva à questão do
sentimento-de-si ou autoconceito (Selbstgefuhl), que a princípio designa “a expressão de
grandeza do Eu” (Freud, 1914/2004a, p. 115). O sentimento-de-si apresenta vestígios da
onipotência infantil e independe de uma apreensão unificada e totalizadora do eu e não se
confunde com este. “O eu, enquanto categoria psicanalítica, diz respeito à economia libidinal,
às séries de sensações de prazer-desprazer e às representações ligadas a essa economia,
enquanto que o sentimento-de-si está referido à vida de relação do indivíduo e à sua
autoconservação” (Garcia-Roza, 2008, p. 53).
O conceito que se constrói a respeito de si encontra a influência de diferentes aspectos.
Um seria proveniente dos investimentos dos pais, pois investem seu próprio narcisismo na
criança e a fazem acreditar, provisoriamente, ser dotada de tal perfeição, ou seja, ser seu
próprio ideal. Uma vez que está ligado à relação com o mundo, o sentimento-de-si pode ser
abalado por acontecimentos da vida, que perturbam o sentimento de onipotência infantil. Do
mesmo modo, caso a experiência se dê de forma oposta, ou seja, confirme ao indivíduo que
50

seu narcisismo passou no teste do seu próprio ideal, o sentimento-de-si se torna relativamente
inflado (Freud, 1914/2004a).
O outro ponto que interfere no conceito pessoal reside na dinâmica dos investimentos
libidinais. A vida amorosa evidencia a presença da libido narcísica no sentimento-de-si, pois
nada mais evidente que se sentir engrandecido por ser amado. Por oposição, a constatação de
que não se é amado propicia um empobrecimento do Eu. O estado de apaixonamento
denuncia uma momentânea fragilidade narcísica, pois a dependência em relação ao objeto
amoroso escancara sua condição frágil. A libido está intensamente dirigida ao objeto, que
pode ser alçado ao estatuto de ideal sexual. Não conseguir entrar no jogo amoroso – amar e
ser amado – gera um sentimento de inferioridade, podendo o Eu sentir-se como empobrecido
(Freud, 1914/2004a).
Uma questão importante também surge no horizonte da economia libidinal, e se refere
à distinção da escolha objetal: a escolha por apoio (veiculação sustentada) e escolha narcísica.
Freud as distingue da seguinte maneira: “Ama-se: 1) Conforme o tipo narcísico: a) o que se é
(a si mesmo); b) o que se foi; c) o que se gostaria de ser; d) a pessoa que outrora fez parte do
nosso Si-mesmo. 2) Conforme o tipo de escolha sustentada: a) a mulher que nutre; o homem
protetor” (Freud, 1914/2004a, pp. 109-110).
Desse modo, na escolha narcísica, o indivíduo toma a si mesmo como referência para
investir a libido amorosa, enquanto a escolha por apoio encontra nas pessoas que dispensam
cuidados e proteção – os pais ou seus avatares – o objeto a quem destinará amor. Essa
diferenciação não é estática; as duas modalidades não se excluem, ou seja, podem existir de
forma simultânea numa mesma pessoa.
Independentemente da forma em que a escolha de objeto tenha se pautado – escolha
por apoio ou narcísica –, fica claro que os objetos passam necessariamente pelo campo do seu
próprio narcisismo. É este, como fase necessária para organização da libido, que permite
haver investimento objetal.

(...) com Freud diremos que eles [os objetos] só podem ser investidos fantasmaticamente, ou seja, que
qualquer objeto tornar-se-á passível de investimento quando venha a integrar o universo imaginário do
indivíduo, em outras palavras, somente quando o indivíduo venha a incluir o objeto na sua esfera
narcísica. É o narcisismo que imprimirá, nas relações com desse indivíduo com o mundo e consigo
mesmo, o caráter objetal. (Jordão, 2011, p. 98)

Assim, o que possibilita que o indivíduo lance seu olhar e invista nos objetos externos,
ou seja, ultrapasse o autoerotismo, é o surgimento de uma unidade do Eu. Vimos que é a
51

presença do outro que confere essa coesão e possibilita que os investimentos libidinais se
dirijam para o que é exterior ao próprio indivíduo e seu corpo, mesmo que momentaneamente.
O narcisismo surgiria da tentativa de recuperação de uma sensação ideal de perfeição,
ao mesmo tempo que cria uma instância ideal para vigiar o que o Eu está fazendo de si
mesmo. Essa instância que aparece como a consciência moral é a encarnação inicialmente das
vozes parentais, às quais se juntam as vozes das autoridades, da sociedade e qualquer objeto
que encarne esse papel.

Sem dúvida, o que se pronuncia aqui é o conceito de supereu, sob a designação de instância da censura
ou ainda como consciência moral. Salienta ainda que essa instância é uma instância que observa e uma
instância que é uma voz, [itálicos no original] instância crítica que mede os desempenhos do indivíduo
pelo ideal, e instância que se instaura como voz, como “dito” dos pais enquanto porta-voz da lei e da
moral. (Garcia-Roza, 2008, p. 71)

De fato, já em 1914, é possível verificar a autonomia do trabalho de uma instância


crítica sobre o Eu. Mas é com o estudo da melancolia, pouco tempo depois, que essa espécie
de clivagem euoica ganha mais contorno, demonstrando que o Eu desdobrado pode tomar a si
mesmo como objeto, assumindo uma postura severa e cruel consigo mesmo.
A questão pressupõe retornar ao problema da escolha narcísica de objeto, e,
consequentemente ao narcisismo, temas abordados por Freud em Luto e melancolia (1917).
Aqui encontramos a análise de diferentes reações diante da perda de objeto, o luto e a
melancolia. Ao distinguir esses dois processos, o que se evidencia é o trabalho que pode
preceder a escolha objetal: a identificação. A substituição do investimento objetal pela
identificação, na melancolia, seria para Freud o ponto forte do artigo, pelo menos é o que
indica Strachey, comentador da Standard Edition.

O ponto de partida para a articulação do narcisismo com o luto e a melancolia é a noção de identificação
narcísica secundária. O narcisismo, sendo uma forma de investimento libidinal do próprio eu, e sendo o
eu constituído numa relação ao outro, implica uma identificação ao outro, o que faz com que narcisismo
e identificação narcísica possam ser considerados modos idênticos de funcionamento libidinal, além de
dar conta da concomitância entre o narcisismo secundário e a escolha de objeto (...). (Garcia-Roza,
2008, p. 73)

Na melancolia, o que vemos é uma depreciação do sentimento de si, que invade o


indivíduo a ponto de ele desejar ser punido de alguma forma. Esta é inclusive a característica
mais evidente que a diferencia do luto. Diante do sentimento de desvalimento que acomete o
melancólico, surge o empobrecimento do Eu, que se coloca à mostra para comprovar a sua
desvalorização e insignificância. Expõe seus sofrimentos quase como se quisesse exibi-los:
52

não é possível observar traços de vergonha ou arrependimentos nas críticas que inflige a si
mesmo, o que leva à suposição de que haveria algum prazer em expor a dor. E então há o
questionamento se a perda estaria centrada no Eu ou no objeto (Freud, 1917/2006).
É pressuposto necessário para instalação da melancolia que a escolha de objeto tenha
sido de ordem narcísica. O amor depositado no objeto é substituído pela identificação ao
objeto, mecanismo que estaria presente também nas neuroses narcísicas, ou psicose. A
impossibilidade de aceitar a perda e abandonar o objeto revela que o eu está identificado com
ele; a identificação narcísica permite que a relação amorosa seja mantida de alguma forma
(Freud, 1917/2006).
A identificação aparece no capítulo VII de Psicologia de grupo e análise do Ego
(1921), quando podemos ler uma distinção entre ela e a escolha de objeto: enquanto na
identificação o outro encarna aquilo que gostaríamos de ser, a escolha objetal encarna o
desejo de possuir o objeto. Afirma Freud: “(...) a identificação constitui a forma mais
primitiva e original do laço emocional; frequentemente acontece que, sob as condições em
que os sintomas são construídos, (...) a escolha de objeto retroaja para a identificação: o ego
assume as características do objeto” (Freud, 1921/1996g, p. 116).
A dinâmica do processo melancólico se daria da seguinte forma. A libido liga-se a um
objeto, mas algo frustra essa ligação exigindo que o Eu tome de volta para si, por meio de
uma identificação, a libido que estava investindo. No Eu, o que nele agora está identificado ao
que foi perdido passa a ser tratado como se fosse o próprio objeto externo. Ou seja, pode
servir de “saco de pancada” de si mesmo. O conflito que antes se encontrava entre objeto
amado e Eu dá lugar ao conflito entre Eu (identificado com objeto abandonado) e a crítica
severa imposta ao Eu (Freud, 1917/2006).
Ocorre que a perda do objeto amoroso expõe a ambivalência sob a qual a relação havia
se instaurado. Ao abandonar o objeto, o amor que era direcionado a ele encontra lugar na
identificação narcísica, ao passo que o ódio direcionado a ele volta-se contra o próprio
indivíduo. Os ataques ao objeto encontraram via substitutiva no Eu. Desse modo, uma parte
do investimento erótico regride à identificação e outra ao sadismo, que encontra sustentação
na ambivalência intrínseca a essa relação (Freud, 1917/2006).
E aqui reside o perigo da melancolia, pois o Eu, tratando-se como um objeto e
redirecionando para si todo sadismo que outrora destinava ao objeto exterior, pode alcançar
um nível tamanho de autodestruição que aniquilaria a si mesmo.
53

Na melancolia, devido à proeminência da identificação narcísica, sujeito e objeto estão de tal forma
amalgamados que não se pode distinguir investimento de identificação; as posições são intercambiáveis
e o desaparecimento do objeto implica o aniquilamento do sujeito. (Jordão, 2011, p. 84)

As autorrecriminações presentes na melancolia são em última instância acusações; na


verdade as recriminações foram originalmente dirigidas ao objeto, e, com sua queda, essas
acusações são retiradas e redirecionadas para o Eu. Em última instância, as queixas
melancólicas são acusações. Isso explica por que não há motivos para envergonhar-se de sua
desqualificação: ela não se refere necessariamente ao Eu (Freud, 1917/2006).

Uma característica principal desses casos é a cruel autodepreciação do ego, combinada com uma
inexorável autocrítica e acerbadas autocensuras. As análises demonstraram que essa depreciação e essas
censuras aplicam-se, no fundo, ao objeto e representam a vingança do ego sobre ele. A sombra do
objeto caiu sobre o ego, como disse noutra parte. Aqui a introjeção do objeto é inequivocamente clara.
(Freud, 1921/1996g, p. 119)

Já afirmamos que a escolha do objeto ter sido de natureza narcísica – e a presença da


ambivalência característica desse modelo – é precondição para instalação da melancolia, e,
agora, acrescentamos: é necessária uma “fraca resistência e aderência do investimento
depositado no objeto” (Freud, 1917/2006, p. 108), que, diante da frustração da perda do
objeto, é introjetado no Eu via identificação. Esse mecanismo se revela paradoxal, pois, ao
mesmo tempo, o objeto perdido era alvo do amor e grande investimento.
O modo como o melancólico trata a si mesmo demonstra que uma parcela do seu Eu
se desdobrou e trata o próprio Eu como um objeto, no caso referido, um objeto empobrecido,
desvalido de aspectos louváveis.

Nesses casos, vemos que uma parte do Eu do paciente se contrapõe à outra e a avalia de forma crítica,
portanto, uma parcela do Eu trata a outra como se fora um objeto. A instância crítica que nesse caso foi
capaz de se separar do Eu também será, sob outras condições, capaz de demonstrar sua independência.
(Freud, 1917/2006, p. 107)

É possível acompanhar como a melancolia foi sendo retomada em momentos


posteriores na obra freudiana para demarcar o caminho de autonomização da função do Ideal
do Eu, até cristalizar-se no conceito do Supereu, em Eu e o Id (1923).
A patologia melancólica encontra também em Psicologia de grupo e análise do Ego
(1921) lugar como fenômeno explicativo para a clivagem 7 do Eu em duas partes, uma que

7
É importante ressaltar que o termo clivagem aqui está sendo tomado como a possibilidade de o psiquismo
humano ser desdobrado, tal como aparece no Dicionário internacional de psicanálise: “um processo
54

ataca e outra que sofre recriminações. Já afirmamos que o que possibilita ao Eu se oferecer
como objeto de expiação do ódio direcionado ao objeto perdido é a introjeção (pela
identificação) deste nessa parcela que sofre as acusações. A parcela que acusa e assume a
postura crítica está hiperdesenvolvida na melancolia, mas sua presença se estende para outras
estruturações psíquicas.

Em ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma instância assim,
capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de
“ideal do ego” e, a título de funções, atribuímos-lhe a autoobservação, a consciência moral, a censura
dos sonhos e a principal influência na repressão. Dissemos que ele é o herdeiro do narcisismo original
em que o ego infantil desfrutava de autosuficiência; gradualmente reúne, das influências do meio
ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode sempre estar à altura; de
maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto,
possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego (Freud, 1921/1996g, p.
119)

Assim, vemos que esse ideal surge como veículo de uma herança parental e cultural,
que estabelece um modelo exigente para ser seguido. Como herdeiro das figuras parentais,
pode também encarnar o alvo para onde o amor é direcionado, tornando perenes as condições
sob as quais esse mecanismo se fundou. Ou seja, o amor sexual direcionado às figuras
parentais pode ser superado pelo amor direcionado a esses ideias.
Em Eu e o Id (1923), a função da consciência moral e do Ideal de Eu encontram abrigo
no Supereu. Novamente a melancolia será trazida, para “destacar a dimensão estrutural da
clivagem Eu-Supereu” (Mijolla, 2005, p. 1823). É, pois, o Supereu que irá perseguir o Eu
com suas críticas e acusações.
Como resposta ao embaraço com que certos fenômenos clínicos se apresentavam,
como a reação terapêutica negativa, a necessidade de punição e o masoquismo moral, o
Supereu foi instituído. De fato, o que se percebe é um modo de funcionamento especialmente
cruel e severo, sem necessariamente ser proporcional à severidade da educação dos pais e seus
representantes; “ponto que leva ao reconhecimento de uma origem endógena, pulsional da
crueldade” (Mijolla, 2005, p. 1824). De toda forma, mais que destrinchar a gênese do
Supereu, interessa-nos demarcar a sua função no psiquismo.
Podemos finalizar citando Freud: “O ego pode tomar a si próprio como objeto, pode
tratar-se como trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer
consigo mesmo” (Freud, 1933[1932]/1996k, p. 64). Portanto, vamos analisar algo a mais que

intrapsíquico muito geral na medida em que também alicerça a capacidade do aparelho psíquico se separar em
sistemas (...) e instâncias” (Mijolla, 2005, p. 355).
55

o Eu pode fazer consigo mesmo, que de algum modo não chegou a ser explicitamente
teorizado por Freud: o ressentimento.

2.2 Ressentimento e narcisismo

Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isso


nos agrada cada vez mais.
Dostoiévski

Kancyper, em Ressentimento e remorso (1994), faz um estudo da dinâmica do


ressentimento privilegiando a questão da temporalidade do indivíduo ressentido, sustentando-
se principalmente nos conceitos que circulam em torno do narcisismo e na agressividade
direcionada ao objeto externo. Vejamos, pois, o que esse autor nos diz a respeito do assunto.
Haveria no ressentimento o que Freud chamou de adesividade da libido, e que é
retomado no texto de Kancyper (1994) como viscosidade: “A tenacidade com que a libido
adere a determinadas tendências e objetos – o que se pode descrever como ‘adesividade’ da
libido – surge como fator independente, variando de indivíduo para indivíduo, e suas causas
nos são praticamente desconhecidas” (Freud, 1916-1917/1996c, p. 351).
Nesse texto, Conferência XXII, encontramos que a facilidade com que a libido pode
ser deslocada de um objeto a outro – trabalho que a frustração impõe constantemente ao
psiquismo – possibilita um poderoso efeito neutralizador, evitando as consequências
perniciosas destes eventos frustradores. Acrescenta também que a falta de mobilidade da
libido, ao atar o indivíduo ao objeto, reduz o número de possibilidades com que ele pode
investir o mundo. A frustração e a fixação da libido seriam dois importantes fatores na
etiologia das doenças (Freud, 1916-1917/1996c).
A dificuldade que a libido possui para desligar-se de certos objetos evidencia também
um psiquismo marcado pela inércia. O ressentimento seria uma “amarga e arraigada
lembrança de uma injúria particular, a qual se quer tirar satisfações” (Kancyper, 1994, p. 07).
O sujeito ressentido fica amarrado em suas lembranças, naquilo que o ofendeu. Por que a
libido insiste em fixar-se em certos objetos? E, quando falamos em objeto, estamos falando de
representações de objetos, investidos libidinalmente. O que vemos é que, apesar da aparente
56

inércia psíquica, há um grande dispêndio de energia disposta a manter a viscosidade da libido,


substanciada por diversas batalhas ambivalentes.
Os três aspectos assinalados por Kancyper para demonstrar o trabalho empreendido
pelo psiquismo para manter a libido atrelada a esses objetos, ou seja, a viscosidade da libido,
seriam a recusa da realidade (Verleugnung),8 idealização e agressividade. Assim,
diferentemente de Freud, que afirmou desconhecer porque diferentes constituições psíquicas
se fixam a certos objetos, ele propõe uma base explicativa para este apego libidinal.
Freud caracteriza a idealização como “processo que ocorre com o objeto e por meio do
qual o objeto é psiquicamente engrandecido e exaltado” (Freud, 1914/2004a, p. 113). Isso
teria como possível consequência um indivíduo amarrado libidinalmente a uma determinada
situação ou ao próprio objeto. Já a recusa da realidade demarcaria uma defesa empregada pelo
Eu para evitar uma escolha que necessariamente lhe causaria danos. A agressividade se
expressaria na raiva direcionada ao objeto externo.
Baseando-se também no texto freudiano sobre o narcisismo, o autor afirma que o
ressentimento surgiria “pela ameaça que significa a perda da completude ou da perfeição
narcísica, que no seu início inclui a tudo” (Kancyper, 1994, p. 12), e, ainda, como
“consequência da impossibilidade, por parte do sujeito, de assumir o desmoronamento da
unidade espacial e temporal imaginária, sem fraturas” (Kancyper, 1994, p. 12).
A ideia é que o indivíduo se vê impelido a recuperar o sentimento infantil de
completude, quando ele era o seu próprio ideal e bastava para si mesmo e, porque não, para
seus pais também. Diante da impossibilidade de conservar esse sentimento, que a realidade
externa e as frustrações edípicas se encarregam de corromper, ele se ressente e paralisa. Seria,
portanto, uma tentativa de recuperar uma realidade que não está mais disponível para o
aparelho psíquico.
Quando Freud (1927/2007c) apresenta o mecanismo de defesa sustentado pela recusa
da realidade, fica claro que a percepção da falta permanece, mas um trabalho contrário é
erigido para evitar a confrontação com a realidade. Duas percepções opostas coexistem: uma

8
O tradutor da obra de Kancyper afirma que o termo Verleugnung possui uma conotação de recalcamento da
percepção, encontrado primordialmente no fetichismo. Já o tradutor da nova edição dos textos de Freud
comenta que o termo Verleugnung apresenta a conotação de negação de uma evidência, podendo ser traduzido
também por desmentir, dotado de um aspecto ambíguo, pois fica-se na dúvida se o desmentir traz de volta a
afirmação; e também por renegar, o que significa negar algo que foi aceito. Acrescenta ainda que o uso feito
por Freud pode se referir ao mecanismo da psicose, mas “também empregado no texto do ‘Fetichismo’,
1927, para descrever tanto um mecanismo geral e auxiliar na neurose como para ressaltar seu papel de
mecanismo de defesa prevalente no fetichismo, utilizado pelo sujeito para impedir a percepção de
representações externas incômodas” (nota 69 do tradutor de Introdução, 1914). Desse modo, ressaltamos o
mecanismo de defesa em questão.
57

que atende a realidade, e outra que a nega, servindo ao desejo de evitar a constatação da
castração. É, pois, um triunfo sobre a falta e uma proteção contra ela. Segundo Kancyper
(1994), a recusa da realidade sustentaria o mecanismo subjacente ao ressentimento.
Nesse ponto devemos trazer o homem do subsolo para a discussão e o que ele nos
ensina sobre seu sofrimento. Não nos parece tanto que o objetivo seja recuperar essa perfeição
infantil perdida e daí se instala o ressentimento. O que parece é que o ressentido, tal como
Dostoiévski descreve, sente raiva por saber que a perfeição não existe e, mesmo que existisse,
não estaria ao seu alcance. Não há a crença de que algo vá completar aquilo que lhe falta, e
enfurece ainda mais perceber, ou melhor, imaginar que o outro não sofre com sua falta,
chegando a demonstrar certo despojamento que ele não consegue encontrar em si mesmo.
Assim, não parece tanto, como aponta Kancyper, que esse desejo de alcançar a
completude arraste o indivíduo a compulsivamente tentar encontrar os elos faltosos de seu
narcisismo fragilizado. A questão parece recair mais em aceitar que para ele também foi
subtraída a possibilidade de completude. E isso mostra um narcisismo inflado, vaidoso.
O problema é que essa vaidade não é um estado permanente, mas sim um oscilar
constante: ora se coloca como superior àqueles que o rodeiam, ora como um reles inseto. Não
consegue ser a medida de si, precisa de um outro a quem chame de mau para poder designar a
si mesmo como bom e está sempre se comparando a ele, como apontam as formulações
nietzschianas. E isso nos faz duvidar da autenticidade da sua vaidade, do seu orgulho, do
valor que atribui a si mesmo.

No universo do subsolo, o Outro exerce uma força de gravitação que só pode ser vencida opondo-lhe
um orgulho mais denso e mais taciturno, em torno do qual o próprio Outro será obrigado a gravitar. No
entanto, o orgulho em si não pesa nada, pois ele não é [itálico no original]; de fato, ele só adquire
densidade e peso pela homenagem do outro. (Girard, 2011, p. 96)

Então vejamos mais uma memória do subsolo. A rotina de trabalho na repartição e o


convívio com os colegas exasperavam o nosso homem-camundongo; criticava a todos e a si
cruelmente, já que nem ele próprio nem ninguém era capaz de atender a exigências que sua
“ilimitada vaidade” impunha.

Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por
conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida
insatisfação que chegava a repugnância e, por isto, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar.
Detestava, por exemplo, o meu rosto, considerava-o abominável, e supunha até haver nele certa
expressão vil; por isto, cada vez que ia à repartição, torturava-me, procurando manter-me do modo mais
independente possível, para que não suspeitassem em mim a ignomínia e para expressar no semblante o
máximo de nobreza. “Pode ser um rosto feio”, pensava eu, “mas em compensação, que seja nobre,
expressivo e, sobretudo, inteligente ao extremo [itálico no original]”. (Dostoiévski, 2009, p. 56)
58

A impressão que temos não é que se tenta recuperar um narcisismo vivido como ideal,
mas que o que está em jogo é a dificuldade de aceitar um narcisismo que se sinta como
natimorto. Não há nem mesmo a crença de que se tenha sido para os pais em algum tempo His
majesty the baby.
O ratinho ressentido sente que nesse processo de constituição do seu narcisismo algo
lhe faltou, e ele nos diz: “Se eu tivesse família, desde criança, não seria como sou agora.
Penso nisto com frequência. De fato, por pior que possa ser a vida em família, tem-se pai e
mãe e não gente estranha, inimiga” (Dostoiévski, 2009, p. 109).
Essa passagem apresenta um tom quase confessional do nosso personagem, como se
dissesse que diante da ausência do pai e da mãe, ou qualquer figura que possa investir nessa
criança libidinalmente, ele se vê imerso numa solidão extrema. Sem esse outro que vai
depositar narcisismo, o que fica é um buraco representacional do eu ideal e consequentemente
do ideal do eu. Diante dessa falta, ideais são forjados constantemente para que se possa
manter alguma integridade. Esse outro, entretanto, é algo também contra quem se tem que
defender, pois ele chega sempre engrandecido e ameaça invadir e expor novamente a falta.
Nesse panorama, o “melhor” é permanecer no subsolo, pois sair dele é ser sempre lembrado
dessa falta irremediável.
Ainda que possamos entrever a hipótese de que esse narcisismo se perceba como
constitutivamente precário, é importante perceber a tensão intrínseca entre a realidade, ou
seja, o mundo externo, e o narcisismo, assim como a tensão entre o Eu e o outro existente na
dinâmica do ressentimento. Nesse ponto, concordamos que o “impulso ressentido (...) não
visa destruir o objeto, mas sim castigá-lo” (Kancyper, 1994, p. 14).
A querela entre sujeito e objeto teria uma dinâmica descrita da seguinte forma: há um
movimento inicial de imobilização do objeto, ou seja, um movimento de manter o objeto
causador de dano sempre presente; um outro momento de maltratar o objeto, já que ele é o
responsável pela falta sentida, e, por fim, a preservação do objeto (Kancyper, 1994, p. 15).
No ressentimento esse objeto pode nunca ter se feito presente (de forma satisfatória)
para sustentar uma constituição narcísica ulterior mais independente. Comparação constante
entre o Eu e o outro mostra que o outro existe e lhe expõe sua falta, com a diferença que o
ressentido percebe com sua consciência hipertrofiada que ser a completude dos pais é uma
ilusão, e, entre aceitar a ilusão e permanecer no subsolo, permanece escondido neste.
A preservação do objeto teria a função de resguardar a integridade narcísica do
indivíduo, pois destruí-lo poderia significar, além da percepção da incompletude, um risco de
59

“transforma-se ele mesmo, então, no depositário de suas próprias pulsões, o que acarretaria o
risco de sua desagregação psicótica” (Kancyper, 1994, p. 15).
Essa suposição é encontrada também em outra obra de Kancyper, quando afirma que o
sujeito ressentido se mantém nessa posição por ela garantir integridade e, portanto, satisfação.
Somado a isso, adquire função defensiva por proteger o psiquismo de afetos que ameaçariam
desestruturar sua organização psíquica. A recusa da realidade encena dentro do indivíduo uma
oscilação entre o reconhecimento e a recusa da falta, ou seja, da castração (Kancyper, 2010, p.
168).
O ressentido mostra-se inábil para a vida de ação no mundo. Em contrapartida,
percebemos um superdesenvolvimento de sua atividade psíquica, no qual sua inércia para a
ação se desafoga interiormente. Então esse investimento fantasmagórico dos objetos teria a
função de garantir integridade por manter o indivíduo nos limites de uma neurose? A
diferença empreendida por Freud em 1914 para designar a neurose e a psicose não foi
justamente que o investimento libidinal nos neuróticos se mantém na fantasia?
Ocorre que no ressentimento vemos um trabalho de investimento tanto no objeto
quanto no Eu. Os três aspectos que Kancyper evidencia para justificar a adesão da libido ao
objeto – idealização, recusa da realidade e agressividade – aparecem nesse processo da
seguinte forma:

No âmbito da libido egóica, o sujeito ressentido apresenta um aumento de seu sentimento de si


(Selbstgefuhl) a partir de uma ferida narcísica que não cicatriza. Isto é a causa de um orgulho tanático
que nutre a vulnerabilidade arrogante, o que legaliza diante de si mesmo e diante dos outros seus
justificados e onipotentes direitos.

No campo da libido do objeto, o objeto do ressentido é um objeto idealizado, herdeiro do narcisismo


infantil; consequentemente possuidor, num presente atemporal, de todas as perfeições valiosas. Para
isso a realidade das suas castrações deve ser recusada: as incompletudes, as impotências, as
imperfeições. É um objeto supervalorizado pelo sujeito, porém que retém avaramente suas bondades e
possibilidades para si (...). (Kancyper, 1994, p. 17)

Assim, a idealização e a recusa da realidade apresentam tanto aspectos da libido


egoica, pois manter em si uma ferida que nunca cicatriza requer grandes investimentos e de
certa forma demonstra um engrandecimento do Eu por merecer um reparo, quanto da libido
objetal, demonstrando um objeto engrandecido, com estreita ligação do narcisismo infantil
(perfeito). O sujeito recusa sua castração, sua imperfeição, para exaltar o outro que retém
aquilo que ele tem de bom. Assim, fica obrigatoriamente fadado à frustração, já que nunca vai
conseguir uma revanche que case exatamente com aquilo que ele imagina.
60

Disso resulta um indivíduo que, apesar do alto valor que atribui a si, não consegue
aceitar – nem esquecer – qualquer coisa que abale seu narcisismo. O homem do subsolo sabe-
se detentor de uma vaidade excessiva que o conduz a ofender-se facilmente; é um homem
angustiado por perceber em si uma falta que nunca será superada.
Abalando a si mesmo, o outro pode cair, e o desmoronamento seria em cadeia. Se
pudermos considerar um outro cuja consistência fraqueja, ele vindo à falência, o Eu vai junto.
O narcisismo sustenta a existência imaginária do outro e vice-versa.
Jordão (2011) ressalta as três frentes de análise que aparecem no texto do narcisismo
em 1914: a formação da unidade egoica, o investimento libidinal no Eu e do Eu – ou as
fantasias ligadas a sua representação – e a onipotência. Ainda que esses três elementos
estejam relacionados entre si, a questão da onipotência ganha ênfase pela importância que
assume para o ressentimento. É a partir de uma categoria designada narcisismo defensivo 9 que
este autor vai pensar o narcisismo do ressentido.

O narcisismo defensivo é o pasteurizador, o que não suporta a diferença, o que precisa confirmar-se
poderoso – necessita verdadeiramente de confirmações constantes de sua potência – para a manutenção
do investimento libidinal que garante sua unidade e sua estabilidade. Uma estabilidade provisória e
frágil, evidentemente, que exige acima de tudo um desconhecimento de si mesmo e das artimanhas
empregadas para tal manutenção, verdadeiros estratagemas para, em termos bem freudianos, escapar do
perigo do reconhecimento da castração ou da constatação do desamparo. (Jordão, 2011, p. 114)

Uma estruturação narcísica que tenha se estabelecido de forma precária percebe o


desamparo como uma ameaça; quanto maior a precariedade, maior o trabalho exigido para
que uma estabilidade narcísica seja mantida. O trabalho de confirmação da onipotência impele
o indivíduo a buscar estratégias que o auxiliem na consecução dessa tarefa, podendo imbuir o
outro dessa grandiosidade buscada. Assim, a onipotência pode tanto se expressar no poder
atribuído ao Eu, como também no poder atribuído ao outro (Jordão, 2011).
Diferentes constituições narcísicas assumem formas distintas de se empreender a
confirmação de onipotência, ou evitar a constatação da sua insuficiência, que em último caso
são dois lados da mesma moeda. O que o ressentido ganha ao lançar mão desse mecanismo de
defesa é manter seu valor e inocência garantidos, assim como extrair satisfação

9
Jordão se apropria e amplia a expressão narcisismo defensivo de Jurandir Freire Costa, apresentada no seu livro
Psicanálise e violência (1984). Jordão postula esse narcisismo defensivo, cuja constituição teria sido precária,
em oposição a uma constituição suficientemente boa (expressão de Winnicott), que estaria atrelada a certeza
de si (de Ferenczi). Tais formulações fogem ao objetivo do nosso trabalho, e optamos apenas por reproduzir
algumas considerações acerca do narcisismo defensivo, que para esse autor é o narcisismo típico do ressentido
(Jordão, 2011).
61

fantasisticamente. A manutenção do investimento na fantasia afasta o risco da desintegração


narcísica, o que Jordão também atesta:

Em cada apresentação do homem do ressentimento percebe-se uma pergunta subjacente: a quem isso
interessa? Podemos desdobrá-la em, o que se quer com isso? Quem estaria interessado na promoção
desse tipo de vida e por quê? O que se ganha com isso? A resposta a essas perguntas pode ser: interessa
a um tipo narcísico (narcisismo defensivo), que precisa de confirmações narcísicas constantes e cujo
espectro de possibilidades existenciais não vai além do que tais confirmações lhe garantem; ganha-se
equilíbrio narcísico, calmaria, sensação de poder, satisfações imaginárias. (Jordão, 2011, p. 119)

Novamente trazemos nossa novela para discussão e uma vez mais o encontrão com o
oficial merece ser lembrado. É nítido como esse outro adquire contornos grandiosos, de ideal
e, por que não, de onipotência. Quando imaginava escrever uma carta para esse oficial, nosso
ratinho afirma que, quando a lesse, seu inimigo correria para seus braços e os dois viveriam
muito bem: “Ele me defenderia com a imponência da sua posição; eu o tornaria mais nobre
com a minha cultura, bem... com as ideias também, e muita coisa mais poderia acontecer!”
(Dostoiévski, 2009, p. 65).
Essa fusão nunca ocorreu, nem poderia. Manter esse oficial presente na fantasia
poderia ser uma maneira de tanto garantir uma diferenciação com ele, pois possibilitaria que a
libido estivesse investida em um objeto exterior, ainda que na fantasia, quanto manteria no
horizonte narcísico um objeto que propicie alguma satisfação.
Girard (2011) chama essas figuras tipicamente dostoievskianas de obstáculo-modelo,
quando o ódio e a veneração se encontram amalgamados e dirigidos a um mesmo objeto, que
exerce sobre o personagem um efeito sedutor e hipnótico. Nessa dinâmica,

A ilusão da onipotência é tão mais fácil de destruir quanto mais completa for. Entre Eu e os Outros
sempre se estabelece uma comparação. A vaidade pesa na balança e faz com que ela penda para o Eu.
Se esse peso inexiste, a balança, bruscamente erguida, penderá para o Outro. O prestígio do qual
dotamos um rival excessivamente feliz é sempre a medida de nossa vaidade. Acreditamos empunhar
solidamente o cetro de nosso orgulho, mas ele nos escapa ao menor fracasso para reaparecer, mais
brilhante do que nunca, entre as mãos de outro. (Girard, 2011, p. 71)

É interessante, pois, como Girard caracteriza o modo como os afetos são mobilizados
no narcisismo: como nostalgia e irritação. De fato, é como se o indivíduo estivesse sempre
aprisionado numa nostalgia de um tempo que já passou, ou que talvez nunca tenha existido.
Isso porque em psicanálise é possível sentir falta de algo que nunca esteve em sua posse. Em
contrapartida, a presença de um ideal incutido exteriormente, mas que tem sua aplicação no
interior do eu, mobiliza certa irritação, já que o outro sempre aparece de forma assimétrica.
62

Em Freud e em outros autores, a noção de narcisismo sempre surge numa tonalidade afetiva de
nostalgia e irritação. Só se trata de narcisismo [itálico no original] quando se fala de um outro que
nunca é tratado de igual para igual, mas sempre um pouco mais e um pouco menos que humano, sempre
um pouco sacralizado e bestializado (...). (Girard, 2011, p. 46)

Kehl (2007) afirma que, ao se colocar como vítima de um flagelo do qual não pode se
esquecer e ruminar uma vingança que provavelmente não irá se concretizar, o ressentido
acaba por ter seu Eu empobrecido, mas não consegue ter clareza de que seu valor está sendo
ameaçado. Ao contrário, o valor de si parece estar garantido para ele mesmo, que espera por
reconhecimento ou rever um direito que merecidamente lhe pertence; “no horizonte
fantasmático do ressentido está sempre a figura de um usurpador” (Kehl, 2007, p. 44). Dessa
forma, as lamúrias indicam que algo deveria ser seu por direito, mas que lhe foi usurpado, ou
seja, violentamente tirado.
A hipótese desenvolvida por Kehl é análoga à de Kancyper, ou seja, seria também a
partir do conceito de narcisismo primário que encontraríamos o cerne da questão. O
ressentimento viria da impossibilidade de simbolizar a perda da satisfação narcísica infantil,
quando a criança gozava da certeza da completude do seu Eu.

Luís Kancyper constrói uma hipótese semelhante a esta ao incluir, entre os elementos determinantes da
formação do núcleo do ressentimento, a frustração da certeza imaginária sobre a soberania do eu,
[itálico no original] que ocorre quando a “realidade da vida” (como diria Freud) faz com que o sujeito
se perceba muito aquém do que o Outro lhe fez acreditar que ele fosse. Nesse caso, uma decepção a
respeito de si mesmo traduz-se em decepção com relação a esta certeza antecipada que se fundava no
desejo dos pais. (Kehl, 2007, p. 49)

O ressentido não acusa a si mesmo, como faz o melancólico. A sua falta não é algo
que ele acredita encontrar nele mesmo; o que ele reivindica é que esse alto valor encontrado
em si seja compartilhado e reconhecido pelo outro. Quando Kehl (2007) postula que não foi
possível simbolizar a perda de ter sido objeto de satisfação e plenitude para o outro, ela
acredita que, além de perder um objeto, o ressentido tenha perdido um lugar. É o narcisismo
primário que irá sustentar essa hipótese, já que, antes mesmo de a criança nascer, ela possui
um lugar de exceção na fantasia dos pais, que depositam seus ideais nela. E suas ruminações
queixosas denunciam que esse lugar não foi adquirido a partir de uma conquista, mas é um
lugar que lhe pertence por direito (Kehl, 2007).
O ressentimento estaria, para Kehl (2007), inserido no grupo dos afetos. Segundo a
autora, as ruminações e queixas repetitivas serviriam “aos mecanismos de defesa do eu a
serviço do narcisismo. (...) O ressentido reconhece seu sofrimento, mas atribui toda
63

responsabilidade a um outro, mais poderoso que ele, suposto agente do mal que o vitimou”
(Kehl, 2007, p. 33).
A presença constante da ofensa e o sofrimento do qual se acha vítima oferecem ao
ressentido um ponto de apoio onde pode assegurar-se da sua inocência. Independentemente
dos resultados, ele afasta do seu horizonte a possibilidade de constatar que o fracasso foi seu.
A impossibilidade de esquecer um agravo a que se referiu Nietzsche também aparece nas
reflexões de Kehl, e a sua contrapartida necessária, a paralisação do tempo, indicaria uma
espécie de reivindicação que visaria a neutralizar a passagem temporal, no intuito de erradicar
a constatação da falta. Desse modo, o ressentimento seria “uma das manifestações possíveis
de inconformidade com essa perda inevitável” (Kehl, 2007, p. 53).
O que podemos vislumbrar é o indivíduo pode lançar mão do ressentimento como
possível via de escape ao risco de desintegração narcísica e consequentemente uma psicose. O
desfacelamento narcísico, ou a precariedade da sua constituição, como afirma Jordão, cria o
ressentimento. Ao se instalar a partir de uma posição vitimizada, recobre o empobrecimento
do Eu, que não toma conhecimento desse sentimento de desvalimento. Com o ressentimento,
há uma compensação, pois o indivíduo permanece vaidoso, certo de seu valor e inocência.
Nosso camundongo demonstra maneira semelhante no seu agir. Quando resolve sair
do subsolo, estabelece uma relação com o outro extremamente frustrante, que acaba por
revelar sua falta. Contra isso, ele prontamente acusa seu inimigo, e, na lembrança em questão,
uma inimiga, como a responsável por seu fracasso.

Eu estava enraivecido contra mim mesmo, mas, naturalmente, ela é que devia sofrer as consequências.
Um rancor terrível contra ela ferveu de chofre em meu coração; era capaz de matá-la ali mesmo,
parecia-me. Para me vingar dela, jurei mentalmente não lhe dizer mais nenhuma palavra enquanto
estivesse ali. “Ela é que é a causa de tudo”, pensava. (Dostoiévski, 2009, p. 136)

Podemos perceber a maneira típica com a qual age o ratinho ressentido: ofendido, ele
responsabiliza o outro por sua incapacidade. A vingança é prometida mentalmente, ou seja,
uma reação que não se efetiva no mundo, acrescentando ainda que o seu ataque seria o
silêncio. Assim, deparamos com o papel da vingança para o ressentimento, na psicanálise.
64

2.3 Ressentimento e vingança

Mas vejamos agora esse camundongo em ação. Suponhamos


agora que ele esteja ofendido (quase sempre está) e queira
vingar-se.
Dostoiévski

Percebemos, com as descrições de Nietzsche e Scheler, que a vingança é intrínseca


à dinâmica do ressentimento. Vimos que a impossibilidade de ação no mundo se reverte
em uma atividade psíquica, uma reação que vê na ruminação interior da vingança
imaginária um meio de escoar o impulso coibido. Quanto mais o indivíduo se vir refém
dessa vingança, sendo tomado pela sede de vingança, maior é a chance de se instalar o
ressentimento.
Jordão (2011) analisa a questão a partir das premissas nietzschianas, demarcando
que a forma de instituir o valor de si mesmo do ressentido – assumindo-se como bom por
oposição ao outro mau – consiste numa maneira de garantir alguma gratificação narcísica.
Essa forma de valoração que passa pelo outro primeiro “determina também a própria
dinâmica psíquica do indivíduo em questão porque organiza as coisas de modo que tudo o
que lhe diz respeito só tem valor de forma secundária, um valor que passa pelo outro antes
de chegar a ele mesmo” (Jordão, 2011, p. 123).
Como consequência dessa forma valorativa, a ação cede lugar para a vingança, que
encontra na função imaginária seus ganhos. O ressentido quer punir o outro pela falta que
possui, suprimindo a alteridade com objetivo de confirmar seu narcisismo. De fato, a
estruturação narcísica se dá pelo investimento dos pais na criança, ou seja, um outro
sempre exterior a ela. O efeito desse arranjo para o homem do ressentimento é que o
sentimento de onipotência que se tenta conservar encontra sua origem externamente
(Jordão, 2011, p. 124).
E, de fato, constatar a autoinsuficiência não é tarefa fácil para o narcisismo, que
traduz essa sua dependência de elementos externos como ameaça a sua integridade e seu
valor.
Kancyper (2010) afirma que o ressentimento implica um sentimento de exercer um
poder retaliativo sobre o outro e o mundo, justamente pela impossibilidade de aceitar uma
falta. O autor examina um personagem da obra El malentendido, de Albert Camus, cuja
afirmação de si teria se constituído a partir de uma reatividade que visa à destrutividade do
65

outro. Partindo da análise fraterna explicitada no livro, ele demonstra a manobra de uma
irmã ofendida, envenenada por comparações entre ela e seu irmão, encontra uma solução,
ainda que pouco saudável, de abrandar o intolerável da sua chaga narcísica. Esta é
revertida em agressividade externa, que dirige para seu alvo as suas próprias frustrações,
preservando, por meio do triunfo vingativo, sua autoestima e sua posição de vítima
detentora de razão (Kancyper, 2010, p. 25).
Ocorre que esse triunfo nem sempre chega, e o sujeito ressentido permanece
esperando algo de um ofertante que nem sempre existe ou tampouco possui aquilo que
deseja. Ele se recusa a acreditar na realidade dos fatos que lhe impõe essa falta, e constrói
uma explicação de forma a crer que o outro tem aquilo que ele deseja e de propósito não
lhe dá, o que justifica sua vingança reivindicatória. Além disso, essa esperança retaliativa
se sustentaria pelo superinvestimento tanto do objeto, quanto do sujeito (Kancyper, 2010,
p. 167).
De fato, o que percebemos é que tanto o objeto quanto o próprio sujeito
encontram-se engrandecidos no ressentimento. Mas é preciso pensar agora em termos de
dinâmica libidinal, como ela se articula com a temática da vingança.
A partir de observações da sua própria clínica, Kancyper (1994) faz uma descrição
daquilo que escutou dos seus pacientes quando estes relatam não conseguir se livrar de
determinadas lembranças e acontecimentos, ficando libidinalmente presos a certas
situações. Obviamente isso não é o suficiente para caracterizar o ressentimento; o que se
acrescenta a estas lembranças é o desejo vingativo de que a vítima merece ser reparada e
reconhecida pelo outro como detentora da razão. Ressentimento é, segundo esse autor,
“amarga e arraigada lembrança de uma injúria particular, a qual se quer tirar satisfações”
(Kancyper, 1994, p. 07).
Esse autor não utilizou explicitamente as formulações de Nietzsche sobre o
assunto, mas a vingança imaginária está também presente nas suas formulações. O desejo
de vingar-se seria consequência do ruminar constante no psiquismo de alguma humilhação
sofrida, que, sufocada, “sonha” com o momento em que terá sua desforra. Essa lembrança
se faz presente o tempo todo no psiquismo, que a sente como uma verdadeira tortura.
Essa presença constante da memória de agravo, como aparece nas formulações
nietzschianas, trabalha a favor de assegurar para o indivíduo o seu lugar de “vítima
privilegiada” (Kancyper, 1994, p. 08), designação que consideramos pertinente quando
falamos de ressentimento. É desse lugar privilegiado que o ressentido percebe que possui
66

o direito de vingar-se contra aqueles que destruíram a sua integridade narcísica, tentando
fazer com que o outro pague por aquilo que lhe falta. Assim, escreve Kancyper:

É na vingança que se reverte a relação. O sujeito ressentido, na sua possibilidade de inversão de papéis,
passa de um objeto anterior humilhado a um sujeito agora torturador.
O sujeito torturador anterior converte-se durante a vingança num objeto atual humilhado devedor,
mantendo a mesma situação de imobilização dual dominador/submisso, com aparência de mobilidade.
(Kancyper, 1994, p. 08)

Esse primeiro aspecto nos leva para nossa novela modelo, mais especificamente para a
segunda parte, quando encontramos algumas lembranças do nosso personagem. Após jantar
com antigos colegas de escola, com os quais não só não tinha afinidades, como também sentia
até repulsa e acreditava na reciprocidade do sentimento, o personagem se dirige para uma casa
onde trabalhavam prostitutas, local onde seus colegas também estariam, mas em que não
chegou a encontrá-los.
O jantar havia sido um fiasco e agora ele acreditava que poderia dar o troco nos seus
colegas. Imagina que eles irão implorar pela sua amizade, por seu perdão, que poderia
bofetear-lhes a cara, mas o que encontra é Liza, uma frágil prostituta. E, se é que podemos
chamar assim, a relação entre eles começa.
Havia chegado ao local embriagado, e, à medida que ia retomando a consciência, as
humilhações da noite iam tomando espaço em sua mente novamente, com mais ardor ainda.
Mesmo embriagado, não conseguia se livrar das impressões dolorosas, que ficavam em
suspenso, parecendo esperar pelo momento certo para torturar-lhe novamente.

E mesmo em meu alheamento, algo persistiu em mim, uma espécie de ponto que eu não conseguia
esquecer e em torno do qual meus sonhos giravam pesadamente. (...) Tinha uma fumaceira na cabeça.
Algo parecia pairar sobre mim, tocar-me, excitar-me, infundir-me intranquilamente. A angústia e a bílis
ferviam novamente e buscavam saída. De repente vi, ao meu lado, dois olhos abertos que me
examinavam curiosa e fixamente. (Dostoiévski, 2009, p. 103)

O outro olhou para ele, finalmente. Era Liza, que esteve ao seu lado enquanto dormia.
Encontrou nela alguém contra quem pudesse deferir sua raiva, passando adiante as ofensas
que havia ele mesmo se submetido. E é contra ela que ele investe todo seu ódio, pois tinha ido
ao local vingar-se de seus colegas (provavelmente não daria conta de efetivar-se), e, não os
encontrando, sente que precisa desabafar seu rancor; castigar alguém na tentativa de restituir o
equilíbrio das suas forças libidinais e obter com isso alguma satisfação interna.
67

Eu tinha sido ofendido, ao jantar, pelos que estiveram naquela casa antes de mim. Fui até lá para
espancar um deles, um oficial; mas não deu certo, não o encontrei; tinha que desabafar sobre alguém o
meu despeito, tomar o que era meu; apareceu você, e eu descarreguei sobre você todo o meu rancor,
zombei de você. Humilharam-me, e eu também queria humilhar; amassaram-me como um trapo, e eu
também quis mostrar que podia mandar... (Dostoiévski, 2009, p. 137)

Começa a discursar sobre a vida, a morte, o amor, e Liza percebe que nada do que diz
lhe soa autêntico, tudo parece ser tirado dos livros. Diz a Liza que sentia pena dela, e, quando
ela parece não se importar que ele sentisse pena dela, infla-se de raiva novamente, com medo
de que não conseguisse atingi-la. E isso enfurece ainda mais nosso herói, que, de fato, sabe
não saber agir de outra forma senão a dos livros. “Ansiava por expor minhas ideiazinhas
secretas, cultivadas num canto” (Dostoiévski, 2009, p. 107). Liza era apenas uma peça de
manobra na sua mão, mas que acaba subvertendo sua vingança, já que acaba expondo para o
próprio personagem sua fraqueza.
Ao fim do encontro, o personagem dá a Liza o endereço de sua casa e pede para que
ela vá vê-lo. No outro dia, conta ao chefe da repartição onde trabalha que havia farreado no
dia anterior e lhe pede dinheiro para saldar as dívidas da farra. Humilhar Liza havia trazido
momentaneamente leveza e poder para ele, mas tão logo passa esse sentimento, ele se vê
novamente imerso em sua própria angústia. Ele havia se revelado para ela, e então “ela
adivinhara que o arrombo da minha paixão fora justamente uma vingança, uma nova
humilhação, e que ao meu ódio de antes, quase sem objeto, se acrescentara já um ódio
pessoal, invejoso, um ódio por ela...” (Dostoiévski, 2009, p. 141).
Tomado por sentimentos ambíguos, este anti-herói percebe a artificialidade livresca de
sua crueldade. Envergonha-se e desespera-se pelo fato de que todas as suas tentativas de
vingança foram forjadas, uma maldade intelectual, desprovida de originalidade e de ação
genuína. Agora é ele quem se sente humilhado por Liza, que descobriu seus segredos: ele era
escravo de si mesmo e incapaz de viver fora do subsolo. Não havia mobilidade na sua
vingança.
E essa falta de mobilidade indica que o nosso homem-rato está preso e se fere, como
nos diz Nietzsche, na jaula que ele mesmo colocou para si. Mesmo após humilhar Liza, sente
que é ela quem “haveria de pagar por tudo aquilo” (Dostoiévski, 2009, p. 134); ele ainda é
vítima de toda situação degradante em que se colocou – vítima privilegiada de que falamos há
pouco.
Há, portanto, um trabalho de expurgação da ofensa sentida, mas esse trabalho não se
conclui nunca, pois em contrapartida há um dispendioso esforço em manter essa ofensa e
consequentemente o lugar de vítima coberta de razão. Kancyper (1994) afirma, assim, que o
68

traumático se mantém como corpo estranho, alheio à cadeia de significação, permanecendo


cindido.
Se, de algum modo, manter-se como vítima inocente possui, como já observamos, uma
função estabilizadora para o Eu, e ainda, manter uma vingança imaginativa é garantia da
presença do objeto e uma diferenciação necessária a ele, é hora de desconfiar se não haveria
algo a mais nessa operação. É nosso dever, portanto, desconfiar que o ressentimento apresente
um prazer intrínseco ao trabalho que opera no psiquismo.

2.4 Ressentimento e necessidade de punição

Mas, senhores, quem é que pode vangloriar-se das próprias


doenças, e ainda procurar causar com elas um efeito?
Dostoiévski

O ressentimento recebeu até o momento um tratamento do seu aspecto libidinal, tanto


no que tange ao apego aos objetos quanto a seu aspecto de engrandecimento (ilusório) do Eu.
O indivíduo preso nessa trama interrompe o fluxo de troca de investimento e permanece atado
a uma temporalidade inerte e ruminante, ou seja, não há fluidez no trabalho de investir e
reinvestir a libido nos objetos e em si mesmo.
Não é possível “largar” o objeto investido, pois seu valor permanece engrandecido
psiquicamente. Diante desse objeto, o Eu se ressente por atribuir a ele um poder que ele
possui e que em contrapartida lhe falta. Se o narcisismo, em última instância, toda escolha de
objeto, independentemente da sua natureza (apoio ou narcísica), está referido ao próprio
indivíduo, é essencial também lançar nossos olhares para o palco interior. Assim, a ênfase que
aparentemente recai na relação Eu-outro expõe o modo como o Eu trata a si mesmo, ou seja, a
relação encenada interiormente, que subjaz toda operação.
No processo de constituição narcísica, encontramos uma tentativa de reencontro com a
satisfação intrínseca do narcisismo primário, quando era possível desfrutar de si mesmo como
sendo ideal. Diante da frustração desse período, um Ideal-de-eu é criado, com base no modelo
parental, que se estende para a sociedade e seus códigos morais. É para esse ideal que o amor
desfrutado na infância passa a ser direcionado, que também assume a função de vigiar o Eu.
69

A melancolia mostrou como uma parte do Eu pode tratar a outra como objeto de forma
crítica e cruel; uma parte que se desdobra e pode trabalhar de forma independente: a
consciência moral, que mais tarde desemboca no Supereu. Até aqui, entretanto, não
acrescentamos nada que já não tenha sido afirmado.
É preciso, então, aprofundar a maneira como o Eu se comporta diante das exigências
que o seu próprio ideal lhe impõe. Segundo Kehl, “O estudo da melancolia nos faz ver que a
identificação do eu com os ideais, e a satisfação obtida pela realização de alguns deles, nem
sempre é suficiente para deslocar o supereu de uma fixação tirânica ao eu ideal” (Kehl, 2007,
p. 46). Assim, passemos à investigação do masoquismo moral, entendido como uma forma
peculiar de como o Eu se comporta.
Kehl (2007) retoma a expressão covardia moral, empreendida por Freud ainda nos
Estudos sobre a histeria (1893-1895), e a articula com o masoquismo moral. A autora
compreende tal covardia a partir de duas frentes, não excludentes: haveria uma análise no
âmbito da moral e outra que se vale de justificativas morais para sua compreensão. O termo é
empregado para designar uma histérica, Miss Lucy, mas seu alcance atinge a neurose de
forma geral.
A covardia aqui significaria a impossibilidade de se responsabilizar pelo seu desejo, e
o sintoma aparece como forma de evitar que essa covardia alcance a consciência. “O
ressentimento expressa a tentativa do eu de evitar confrontar-se com sua própria covardia e
com os prejuízos que ela lhe causou” (Kehl, 2007, p. 59).
Podemos encontrar uma expressão análoga empregada pelo nosso ratinho, quando
percebe que sua paralisação para agir foi devido a sua falta de coragem moral. É curioso notar
que esse jogo de palavras – covardia moral e falta de coragem moral – recobre de alguma
forma a evidência da covardia, de modo que a passividade para ação se relaciona à garantia de
vaidade, deixando-a ao menos ilusoriamente intacta.

Daquela vez não me intimidei por covardia, mas em virtude da mais ilimitada vaidade. Não me assustei
com a altura do oficial, nem com a perspectiva de ser dolorosamente espancado e jogado pela janela; e
realmente eu teria suficiente coragem física, o que me faltou foi coragem moral. (Dostoiévski, 2009, p.
64)

Quando ele coloca que não se assustou com a altura do oficial, nem com a
possibilidade de ser defenestrado, não acaba por confessar justamente o contrário, que essas
ideias lhe passaram à cabeça e o paralisaram?
70

O que pode elucidar o mecanismo que articula a covardia moral ao ressentimento é o


conceito de masoquismo moral (Kehl, 2007). O Dicionário internacional de psicanálise
apresenta o conceito dessa forma: “O masoquismo moral é a busca do desprazer na
inconsciência da satisfação sexual masoquista assim encontrada, em relação com o sentimento
de culpa inconsciente” (Mijolla, 2005, p. 1148). É uma apresentação condensada, que merece
ser desdobrada.
Freud já havia mencionado, em um parágrafo acrescentado em 1909 à Interpretação
dos sonhos (1900),10 haver um elemento masoquista na composição psíquica sexual de
diversas pessoas, e postula algo bastante próximo do que desenvolveria tempos depois:
“[A]queles que encontram prazer não na inflição de dor física a eles, mas na humilhação e na
tortura mental, podem ser descritos como ‘masoquistas mentais’” (Freud, 1900/1996b, p.
192).
Tempos depois, o Problema econômico do masoquismo (1924) examina três formas de
masoquismo: erógeno, feminino e moral. O masoquismo moral, que inicialmente se
manifestaria como sentimento inconsciente de culpa, “apesar de ser a mais importante delas,
apenas recentemente recebeu a atenção da psicanálise” (Freud, 1924/2007b, p. 107).
O masoquismo erógeno é o que sustenta as outras formas de masoquismo, pois é ele
quem explica como o prazer e a dor podem ser solidários um com o outro. Freud se vale de
argumentos fisiológicos para sua explicação, assumindo que uma conexão entre as excitações
derivadas da dor e do desprazer e as excitações sexuais foi selada no psiquismo infantil.
Diferentes modos de organização psíquica e sexual indicam que cada indivíduo foi marcado
por um nível de “solidariedade excitatória libidinosa” com o desprazer11 (Freud, 1924/2007b,
p. 109).
A novidade, entretanto, ficou a cargo da introdução da pulsão de morte na dinâmica do
masoquismo e sua relação com o sadismo. A libido teria a função de neutralizar de alguma
forma a destrutividade da pulsão de morte, direcionando-a para fora, “com a ajuda de um
sistema especial de órgãos, a musculatura, (...) contra os objetos do mundo externo” (Freud,
1924/2007b, p. 109). A pulsão de morte exteriorizada se expressa como “pulsão de
apoderamento ou vontade de exercer poder”; ou ainda, ao se juntar aos objetivos sexuais,
expressaria o sadismo (Freud, 1924/2007b, p. 109).

10
A nota do tradutor aponta para esse parágrafo ao comentar o masoquismo moral em O problema econômico do
masoquismo (1924).
11
A nota do tradutor evidencia que a explicação é retomada dos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(1905).
71

O movimento seria descrito de tal forma que essa pulsão de morte, após ter sido
dirigida para o exterior, teria deixado um resto no interior do organismo, que, aliado à libido
sexual, dá origem ao masoquismo erógeno ou original. E isso graças à solidariedade já
mencionada entre prazer e dor. Amalgamadas – a pulsão de morte é incorporada à libido –
tomam o próprio organismo como objeto de satisfação. O masoquismo moral seria então
secundário, ou seja, o retorno no Eu da agressividade direcionada aos objetos externos, e
encontra no masoquismo originário um reforço.

Portanto, não devemos nos espantar em ouvir que, sob certas circunstâncias, o sadismo – ou pulsão de
destruição – projetado e voltado para fora, poderá novamente ser reintrojetado, redirecionada para
dentro, regredindo assim à sua antiga condição e resultando, então, em um masoquismo secundário que
se somaria ao masoquismo original. (Freud, 1924/2007b, p. 110)

O masoquismo moral se caracteriza pelo aparente afrouxamento do objetivo sexual,


assim como a indiferença da pessoa amada para justificar a submissão ao sofrimento.
Independentemente de onde emane, o que importa é o sofrimento buscado e suportado. O
comportamento autodestrutivo poderia indicar um trabalho da pulsão de morte que não
encontra ajuda da libido, mas veremos também que há um prazer nessa operação (Freud,
1924/2007b). Aqui reside a busca do desprazer na inconsciência da satisfação sexual.
É o que o Vocabulário de psicanálise também aponta na sua definição de masoquismo
moral: o indivíduo que, “em razão de um sentimento de culpa inconsciente, procura posição
de vítima sem que um prazer sexual esteja diretamente implicado no ato” (Laplanche &
Pontalis, 2004, p. 274). Essa afirmação é consoante com a seguinte constatação freudiana:
“(...) o verdadeiro masoquista, sempre que houver necessidade, oferecerá a outra face” (Freud,
1924/2007b, p. 111), ou seja, o que realmente envolve o masoquista moral é seu sofrimento.
Freud (1924/2007b) remete o leitor ao capítulo V de O Eu e o Id (1923), e vamos
reproduzir algumas formulações que se encontram nesse capítulo, dada sua relevância pra o
ressentimento. A observação clínica levou à constatação de que alguns pacientes, diante da
possibilidade de melhora, empreendem um esforço contrário e se agarram a seu sofrimento.
Pior, ao flertarem com uma melhora, esses pacientes intensificam ainda mais seu sofrimento,
processo que recebeu o nome de reação terapêutica negativa.

Via de regra, os diferentes ganhos obtidos com a permanência neste estado de doença derivam de um
somatório de forças que se rebelam contra a cura, mas eu diria que dentre esses ganhos é o
apaziguamento [Befriedigung] do sentimento de culpa inconsciente o mais significante e poderoso. É
justamente pelo sofrimento propiciado que a neurose se torna mais valiosa para a tendência masoquista.
(...) Vemos, então, que uma forma de sofrimento foi rendida pela outra, era apenas uma questão de
manter ativa uma certa magnitude de sofrimento. (Freud, 1924/2007b, p. 111)
72

Diante desse panorama, é de se supor que renunciar ao sofrimento significaria algo


ainda mais perturbador. É, portanto, ao castigo que não se renuncia, o que indica que o
sofrimento traz algum bem para o doente, a saber, o apaziguamento do sentimento de culpa
(Freud, 1923/2007a).
O sentimento de culpa normal e consciente não é difícil de compreender, já que ele
estaria relacionado à tensão entre o Eu e o Ideal-de-Eu, como uma manifestação da
condenação moral ao Eu promovida pela sua instância crítica. Inclusive estaria aqui a
explicação para os sentimentos de inferioridade expressados nos neuróticos. A neurose
obsessiva e a melancolia são evocadas para exemplificar a expressão do sentimento de culpa:
nelas o Ideal-de-Eu comporta-se de modo extremamente cruel contra o Eu (Freud,
1923/2007a).
Foge a nossa proposta atrelar o ressentimento a um diagnóstico clínico, mas a
diferenciação que aparece nesse momento a respeito da neurose obsessiva e da melancolia
pode nos auxiliar a compreender a dinâmica psíquica característica do ressentimento. É,
portanto, a partir da diferença que vamos demarcar o funcionamento típico do ressentido. Pois
bem, na melancolia, o Supereu se apodera de tal forma da consciência que o Eu sequer ousa
questionar a possibilidade de opor-se a essa tirania. Ao contrário, ele identifica-se com essa
punição, pois acredita ser culpado, e submete-se a ela; uma submissão total e incondicional
em que o recurso ao objeto externo é extinto (Freud, 1924/2007b).
Na neurose obsessiva, um objeto depositário da agressividade é preservado, ao passo
que, na melancolia, o objeto depositário do ódio encontra lugar no Eu via identificação. Mas,
ao contrário do luto, a melancolia se apresenta como um Supereu inflado de sadismo que
ataca o Eu impiedosamente, Supereu como pura pulsão de morte, consequência da perda de
uma parte do próprio Eu, que vê sua libido se esvair. Algo tem que reverter essa manobra para
que a morte saia do horizonte do Eu. A mania poderia ser uma saída, estancando a hemorragia
e levando a uma inflação desmesurada do Eu, que se torna radicalmente mais importante que
qualquer outro objeto (Freud, 1923/2007a).
No ressentimento, a questão se desenvolve de outra forma. Na melancolia (e na
mania), a ambiguidade é perdida, característica da neurose que permanece marcante no
ressentido. Amor e ódio permanecem dirigidos ao objeto. A segurança é preservada por meio
da manutenção tanto do objeto externo quanto do Eu. O que era direcionado na forma de amor
reverte-se em agressividade, ímpeto por destruir o objeto. O que no ressentimento aparece
como desejo de castigá-lo.
73

Diante das exigências do Ideal-de-Eu – que encontra abrigo no Supereu –, o censor da


consciência moral vigia como o Eu está se comportando: se está atendendo às exigências
impostas pelo seu próprio ideal. Se o Eu é reprovado no teste, ou seja, se não atinge as
expectativas que lhe foram impostas, ele reage com um sentimento ruim, de peso na
consciência (Freud, 1924/2007b).
Encontramos, pois, na relação entre o Eu e o Supereu uma dinâmica em que a balança
pode pender para o sadismo do Supereu, que cobra em demasia do Eu que ele está muito
aquém do que se esperava, mas também para o masoquismo do Eu, que anseia por ser
castigado pelo Supereu. É nesta última que reside a especificidade do masoquismo moral
(Freud, 1924/2007b).
Como é comum no raciocínio freudiano, a explicação é invertida; não é o sentimento
de culpa que promove a neurose, mas é esta que vem dar um apaziguamento no dilacerante
sentimento de culpa, fazendo com que a terminologia se transforme em “necessidade de
punição” (Freud, 1924/2007b, p. 112).
Assim, necessidade de punição guarda uma especificidade por se referir ao
masoquismo do Eu, mas ao mesmo tempo “anseia por um castigo provindo do Supra-eu, ou
dos poderes parentais” (Freud, 1924/2007b, p. 113). O que não significa que, ao postular a
ênfase na busca de sofrimento pelo Eu, o Supereu esteja isento de exercer seu sadismo.
Podemos encontrar a necessidade de punição definida da seguinte maneira: “(...) uma
exigência interna de certos indivíduos que procuram situações penosas e nelas se comprazem”
(Mijolla, 2005, p. 1232). Esse mecanismo, acrescenta ainda o excerto de Mijolla, expressa um
comportamento altamente destrutivo, quando o “apetite libidinal sádico” da necessidade de
expiação é direcionado para o Eu.
Podemos fazer uma pausa para introduzir uma vez mais aquilo que o subsolo
apresenta. Novamente o mote será a despedida de um colega que viajaria para o exterior e o
seu jantar de despedida. Nosso camundongo reencontra antigos colegas de escola e
praticamente impõe sua presença na tal solenidade. Era claro que não havia lugar para ele
junto àquele grupo, mas mesmo assim decidiu que deveria comparecer. E, do alto de sua
tortura imaginativa, repassava toda aflição que poderia causar-lhe o evento.

Não podia mais dominar-me, e a febre fazia-me tremer. Imaginava, desesperado, como aquele
“canalha” do Zvierkóv me receberia altiva e friamente; com desprezo embotado, invencível, me olharia
o néscio Trudoliubov; de modo maldoso e insolente haveria de rir de mim o inseto Fierfítchkin,
procurando agradar a Zvierkóv; como Símnov compreenderia tudo isto muito bem, em seu íntimo, e
como ele me desprezaria pela baixeza da minha vaidade e fraqueza e, sobretudo, como tudo aquilo seria
miserável, não literário, cotidiano. Está claro que o melhor seria não ir, definitivamente. Mas isso, mais
74

que tudo, era impossível: quando algo começava a me puxar, deixava-me afundar de cabeça; senão,
depois, eu próprio zombaria de mim mesmo a vida inteira. (Dostoiévski, 2009, p. 84)

Entrevemos nesse relato que, independentemente da decisão que tomasse, ele não
tinha escapatória dos ataques que viriam de si mesmo, o que nos faz supor que o que buscava
era alguma forma de sofrimento. A narrativa se desenvolve de tal maneira que a situação
caminha para a degradação contínua. Diante do fracasso que havia sido o jantar, era de se
esperar que o camundongo se retirasse para seu subsolo. Ao contrário, ele permanece com os
colegas quando estes se retiram para uma sala com intuito de continuar a comemoração. E
então ele é ainda mais cruel consigo; sua implacável consciência o ataca ferozmente, mas ele
não é capaz de retirar-se da degradação a que se submeteu.

De quando em quando cravava-se em mim, com dor profunda, venenosa, um pensamento: passariam
dez, vinte, quarenta anos, haveria de lembrar com humilhação e repugnância estes momentos, os mais
imundos, ridículos e terríveis da minha vida. Eu compreendia isso perfeitamente, mas assim mesmo
continuava a caminhar da mesa à lareira e vice-versa. (Dostoiévski, 2009, p. 94)

É de se supor com que perplexidade o leitor é tomado ao ler a deterioração moral que
o rato se impôs, atacando-se a si mesmo e remordendo sua consciência continuamente. Talvez
seja por isso também que Freud (1924/2007b) considera que o masoquismo do Eu seja ainda
mais difícil de ser aceito por seus pacientes. Além da culpa que sentiam ainda teriam que
aceitar um imperativo que os impele a se punirem?
O anseio do Eu por castigo – seu masoquismo – por vezes permanece obscuro; Freud
(1924/2007b) afirma que o masoquismo do Eu é mais difícil de ser percebido que o sadismo
do Supereu e oferece uma explicação para o fato. Ainda que ambos designem uma relação
conflituosa entre Eu-Supereu e que expressem uma satisfação via sofrimento e autocastigo,
alguma diferença se impõe nesse horizonte.
Afirmamos que no masoquismo moral ocorre um afrouxamento dos objetivos sexuais;
mas a definição do Dicionário de psicanálise aponta também para a busca do desprazer na
inconsciência da satisfação sexual. Então, há uma satisfação sexual, mas que se encontra de
alguma forma inconsciente.
A fantasia de conteúdo punitivo revela uma ligação com a fantasia mais arcaica de ser
punido pelo pai, que por sua vez encobre o desejo ainda mais primitivo e inconsciente de
efetivar com esta figura a relação sexual. Se as figuras parentais se encontram acolhidas no
Supereu, o herdeiro do complexo de Édipo, então é de se supor que o Eu, ao se comportar de
forma passiva diante de sua instância tirânica, encontra aí alguma satisfação de ordem sexual.
75

Freud (1924/2007b) faz uma analogia entre a fantasia passiva sexual da criança de ser
açoitado – e coitado – pelo pai e a relação Eu e Supereu, o que designa uma mesma dinâmica,
com a diferença de ser “um novo cenário num novo palco” (Freud, 1928/1996i, p. 191). Nas
suas palavras:

(...) embora a consciência moral e a própria Moral tenham surgido a partir da superação e
dessexualização do complexo de Édipo, a Moral será novamente ressexualizada e o complexo de Édipo
de novo reavivado pela atuação do masoquismo moral, o qual promoverá uma regressão da Moral em
direção ao complexo de Édipo. (Freud, 1924/2007b, p. 114).

Desse modo, a aparente dessexualização se reverte numa ressexualização na relação


do Eu com o Supra-eu, explicada pela estreita relação das fantasias de punição com as
fantasias sexuais incestuosas. “O sujeito ver-se-á obrigado a se punir sem fim, visto que todo
castigo é ele próprio subvertido pelo gozo masoquista” (Mijolla, 2005, p. 1148).
E quem paga por toda essa operação só pode ser o próprio indivíduo. De fato, ele não
abandona as exigências da Moralidade (Sittlichkeit) e continua comportando-se de acordo
com elas, mas sua consciência moral se vê refém do seu masoquismo (Freud, 1924/2007b).

Essa passagem da autopunição pelo Supereu sádico para o masoquismo do Eu está repleta de
consequências deletérias: arruína a consciência moral que é agora utilizada em proveito de uma
satisfação interna de essência edipiana. Ocorre, com efeito, uma ressexualização da relação com os pais
através da erotização da relação do Eu com o Supereu. (Mijolla, 2005, p. 1148)

O sadismo que foi impedido de ser exteriorizado devido às exigências da sociedade é


redirecionado para a própria pessoa. Ao encontrar no Eu uma via substitutiva para escoar sua
crueldade, a reforçou ainda mais. A consciência moral indica que o retorno da agressividade
recebeu guarita no Supereu, que por sua vez incrementa ainda mais seu poder cruel sobre o
Eu.
É no mínimo estranho supor que, quanto mais o indivíduo cerceia seus impulsos
agressivos em nome de um ideal moral imposto socialmente, mais cruel se torna a sua
consciência moral e a tirania que exerce sobre si. Ele está agindo como mandam os preceitos
morais, aquilo que a sociedade ordenou como tendo valor. Ele poderia, assim, sentir-se mais
leve, livre do jugo e da vigilância do seu Supereu, pois sabe que está agindo “bem”. No
entanto, não é assim que a situação se desenrola. Quanto mais seus impulsos agressivos são
sufocados e represados, mais severa se torna sua consciência moral (Freud, 1924/2007b).

Ou seja, normalmente nos é explicado que a exigência moral seria o elemento primário e a renúncia à
satisfação da pulsão, a sua consequência. Mas isso não explica a origem da Moral. Na verdade, parece
76

ocorrer o contrário: primeiro forças externas impõe a renúncia à satisfação e, em seguida, essa renúncia
leva à instituição das normas da moralidade, as quais se expressam então na consciência moral, a qual
passa exigir ainda mais renúncias pulsionais. (Freud, 1924/2007b, p. 115)

Vemos que o sadismo do Supereu e o masoquismo do Eu formaram um par e


trabalham juntos para a consecução dos seus objetivos. Diante desse panorama, a renúncia
pulsional, longe de garantir paz psíquica, gera comumente sentimento de culpa.
O masoquista passa a se impor uma vida errante, e age no mundo de forma com que
sua “ação seja, então, expiada por meio das críticas da consciência moral sádica (como
encontramos nos vários tipos de caráter russo) (...).” (Freud, 1924/2007b, p. 115) O que
vemos então é que no masoquismo moral o eu deseja ser submetido e punido pelo Supereu.
Com o intuito de provocar a sua culpa e encontrar a satisfação na própria expiação, o que se
busca é a transgressão.
No entanto, esse mecanismo não revela sua ação, mas age em surdina, no subsolo. Por
isso Freud (1924/2007b) afirmou que esses indivíduos na clínica se comportam como se
estivessem sob o domínio de uma rigidez moral elevada. De forma alguma eles poderiam
supor que o sofrimento fosse um caminho para satisfação, e mais, que esse sofrimento
estivesse a serviço dos desejos incestuosos recalcados.

Para conseguir que esse representante [Vertretung] do casal parental o castigue, o masoquista deve fazer
coisas inadequadas e trabalhar contra seu próprio beneficio, destruir as perspectivas que se lhe abrem no
mundo real e eventualmente aniquilar sua própria existência real. (Freud, 1924/2007b, p. 114)

O nosso personagem modelo parece não fugir a essa lógica. Percebemos como, no seu
modo de funcionamento psíquico, uma parte trata a outra como objeto e a acusa; é assim alvo
do sadismo que, impedido de ser exteriorizado, alojou-se internamente e o expia. Mas a
atividade não se encerra aqui, pois o que percebemos é um rastreamento contínuo das
lembranças e eventos que possam ser censurados. Essa busca parece assumir o intuito de
atingir a superfície psíquica e molestar mais profundamente o camundongo, que encontra
nesse processo um prazer.

Envergonha-me disso (e talvez me envergonhe ainda hoje); chegava a ponto de sentir certo prazerzinho
secreto, anormal, ignobilzinho quando às vezes, em alguma horrível noite de Petersburgo, regressava ao
meu cantinho e me punha a lembrar com esforço que, naquele dia, tornara a cometer uma ignomínia e
que era impossível voltar atrás. Remordia-me então em segredo, dilacerava-me, rasgava-me e sugava-
me, até que o amargor se transformasse, finalmente, em certa doçura vil, maldita e, depois, num prazer
sério, decisivo! Sim, num prazer, num prazer! Insisto nisso. (Dostoiévski, 2009, p. 19)
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É curioso observar como o caráter russo aparece. Freud em Dostoiévski e o parricídio


(1928), analisa a personalidade de Dostoiévski, partindo também do que ele enxergava como
intrínseco ao tipicamente russo. A análise recai sobre a personalidade do escritor russo e nos
interessa aqui reproduzir o processo do destino de seus impulsos agressivos, mais que
corroborar as ideias defendidas por Freud acerca das suas afecções psíquicas. 12
Em Dostoiévski coexistiriam diferentes e irreconciliáveis aspectos de uma só
personalidade, a saber, a do moralista, a do pecador, a do artista e a do neurótico. A do
neurótico, curiosamente, não nos preocupa tanto, pois resulta da dificuldade de síntese de
tantos elementos contraditórios; diante do artista, o próprio Freud “depõe suas armas” (Freud,
1928/1996i). O moralista travou uma batalha entre seus impulsos agressivos e as exigências
da cultura, e, neste ponto, a renúncia deu lugar à veneração ao czar e à religião cristã. E é o
pecador, ou criminoso, que chama a atenção. Os seus ímpetos destrutivos foram estrangulados
e dirigiram-se contra ele próprio, manifestando-se por meio de seu masoquismo e sentimento
de culpa.
Diante desses sentimentos que pesam a consciência, haveria uma busca por atos que
justifiquem esse desconforto. Como evidência desse aspecto, Freud (1928/1996i) observou
que o sentimento de culpa impossibilitava Dostoiévski de cumprir suas tarefas; mas sua
produção artística desenvolvia-se no momento de maior aflição financeira ou quando perdia
tudo no jogo, pois era quando seu sentimento de culpa inconsciente se abrandava pelos
castigos que ele mesmo se submetia. Assim, o caráter tipicamente russo pode ser
caracterizado pela autotortura advinda da necessidade de expiação.
A punição traz o alívio momentâneo da culpa, o que supõe uma extração de satisfação
no sofrimento que vincula o neurótico à sua patologia. Freud (1916/1996d) atribuiu aos
criminosos por sentimento de culpa uma explicação semelhante. Com o delito, esses
infratores poderiam atrelar o sentimento de culpa incompreendido a uma causa real, o que
atenuava a opressão que sentiam. Aqui, o simples ato de ligar um afeto desconcertante a um
fato que o nomeia já amorteceria a carga psíquica que os oprime. A explicação é transposta
também para o comportamento das crianças que agem propositalmente de forma levada, e,
que, após receberem sua punição, ficam satisfeitas e alegres. Isso leva a crer que foi a
12
Freud interpreta as crises epiléticas de Dostoiévski como sintoma de uma histeria grave (sua
homossexualidade latente). Suas crises eram acompanhadas por um sentimento de morte real, como punição
por seu desejo inconsciente de matar o pai. O eu se vê impossibilitado de dar unidade a estes elementos,
deixando o campo livre para uma neurose. A hipótese freudiana das crises convulsivas do autor é a de uma
saída emergencial, ou seja, de dar vazão às grandes excitações com as quais não conseguia lidar psiquicamente
(Freud, 1928/1996i). Não é nosso objetivo analisar a personalidade de Dostoiévski, tal como o texto apresenta,
nem adentrar na discussão da relação escritor-obra para justificar a articulação com a obra literária escolhida.
A dinâmica do processo interessa mais que a interpretação psicanalítica da personalidade do escritor russo.
78

necessidade de punição que induziu à busca pelo castigo para, por retroação, apaziguar seu
sentimento de culpa.
Encontramos nesses criminosos por sentimento de culpa uma das poucas menções que
Freud faz a Nietzsche ao longo de suas obras. Em um dos discursos de Zaratustra, deparamo-
nos com a figura do pálido criminoso, que comete o crime não por um desarranjo da razão,
mas porque lhe pesava a alma, uma “capa de chumbo da sua culpa”: “Ouvi, juízes! Ainda há
outra loucura, e esta é antes da ação. Não penetraste bastante a fundo nessa alma. (...) Mas eu
vos digo: sua alma queria sangue, e não roubo, sua alma tinha sede da volúpia da faca!”
(Nietzsche, 2000, p. 55).
Assim vemos uma culpa que precede o crime, e não, como é costume acreditar, o
contrário, ou seja, após a execução do ato de delito. A alma quer se fazer sangrar. Então os
criminosos por sentimento de culpa não demonstrariam uma contradição com o masoquista
moral?
O que percebemos foi que no masoquismo moral é o sofrimento o motor maior para
que o indivíduo busque e se submeta às situações penosas. Ser expiado pela tirania da
consciência moral subverte a impessoalidade da relação Eu-Supereu e a ressexualiza, fazendo
do sofrer o motivo que leva à transgressão.
Kehl (2007) aponta que no masoquismo moral o sentimento de culpa vem após a
subjugação do Supereu, trazendo à cena, como a autora afirma, a articulação entre moral e
gozo. Acrescenta ainda que é porque o indivíduo gosta de ser castigado por sua consciência
moral que ele necessita da punição, e não porque ele se sente culpado.

A culpa, com todo seu infindável elenco de argumentos morais, viria depois da submissão masoquista,
para justificar o gozo. A submissão ao supereu presente no masoquismo moral, e o gozo que ela
proporciona, cobram do sujeito o preço da culpabilidade. É porque o sujeito goza com o excesso de
rigor moral do supereu que ele se sente culpado, e não o contrário. (Kehl, 2007, p. 61)

Assim, haveria uma diferença para os infratores que buscam o delito para ter na pena
um apaziguamento do sentimento de culpa? O circuito do masoquismo moral poderia ser
descrito da seguinte forma: há uma necessidade de punição (buscando o prazer que já
afirmamos encontrado na submissão ao Supereu tirânico), que impele a agir de forma
condenável; a condenação – e sua satisfação correlata – são encontradas, a culpa aparece. Se
pudermos considerar como um circuito, a culpa poderá ser também o motor da transgressão, e
lançar o indivíduo novamente a buscar o ato infrator na tentativa de encontrar algum
79

apaziguamento, ou satisfação. Nesse sentido, o masoquismo do Eu e o sadismo do Supereu se


uniram para alcançarem seus objetivos.
O indivíduo preso nos labirintos da necessidade de punição sente-se impelido a
comportar-se de forma que sua consciência possa acusá-lo, e a hipótese é que o ressentimento
atue como uma forma manifesta dessa necessidade. Agora episódios como o encontrão com o
oficial ou o desastroso jantar com seus colegas ganham uma nova tonalidade. O apego a suas
ofensas indica que não só não pode esquecê-las, como também não quer abandoná-las, às
quais inclusive acrescentará outras tantas com o único intuito de torturar-se.

Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores,
ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente de si mesmo e irritando-se com sua própria
imaginação. Ele próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo
examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto de que também estes
poderiam ter acontecido, e nada perdoará. (Dostoiévski, 2009, p. 23)

O que o camundongo mostrou também foi uma inabilidade de exercer-se no mundo e


responder às afrontas que lhe são dirigidas. Na impossibilidade de escoar seus impulsos
agressivos – ou sádicos –, estes encontram uma via substitutiva no interior do próprio
indivíduo; é o Supereu quem irá acolher esse sadismo e aplicá-lo ao Eu.
Assim, a forma com que o ressentido se coloca diante do outro poderia expressar uma
busca por situações que exponham sua degradação e o fazem alimentar o desejo de torturar-
se. O constante diálogo interior e acusações que faz a si mesmo podem expressar a
manifestação desse mecanismo que busca na autoexpiação uma forma de prazer; “podemos
finalizar afirmando que, mesmo no processo de auto-destruição do sujeito, não poderá faltar
uma satisfação libidinal” (Freud, 1924/2007b, p. 115).
80

CONCLUSÃO

Como vencer o dilema de arrancar-se do abismo puxando-se


pelos próprios cabelos?
Giacóia Jr.

Como vimos, ressentimento não foi trabalhado por Freud, mas sim por Nietzsche.
Assoun (1992) afirmou que não é indicado tomar Nietzsche como simples precursor de Freud,
pois dessa forma estaríamos determinando o peso de Nietzsche a partir de Freud. Do mesmo
modo, colocar o peso no lado contrário significaria avaliar a psicanálise a partir das premissas
nietzschianas. É preciso, pois, criar esse espaço de diálogo entre eles.
Vislumbramos a possibilidade de Nietzsche ter se apropriado do homem do subsolo de
Dostoiévski para caracterizar o ressentimento. E, do mesmo modo, tomamos a liberdade de
empreender uma manobra semelhante, ou seja, tomar como inspiração tanto as formulações
filosóficas do ressentimento, como aquilo que o subsolo poderia ensinar à psicanálise.
O ressentimento não se reduz a um conceito da psicanálise, ou seja, não foi possível
fazer uma relação de correspondência completamente satisfatória entre o tipo ressentido e um
único postulado freudiano. A irredutibilidade do fenômeno impôs que diferentes aspectos
fossem abordados no campo psicanalítico; não havia como transcrever o conceito de
Nietzsche e fazer uma relação de pura equivalência. O objetivo foi servir-nos das suas
formulações como ponto de partida, de onde retiramos os questionamentos do lugar que o
ressentimento poderia ocupar junto à psicanálise.
Se o que Nietzsche operou na Genealogia da moral foi o estabelecimento de um
quadro clínico a respeito daquilo que percebia como o elemento mórbido da moralidade, foi
devido à percepção de quão perniciosos os valores morais podem ser para a saúde do homem.
Ficamos tentados a escrever aqui saúde psíquica, mas o que vemos na filosofia nietzschiana é
um corpo que não pode ser dissociado do psíquico; o que indica que processos somáticos
estão intrinsecamente atrelados aos efeitos da moral no psiquismo. (Assoun, 1992).
Há, desse modo, uma diferença que demarca o tratamento dedicado à doença na
perspectiva de Nietzsche e Freud; para o primeiro, a morbidade psíquica – o ressentimento,
por exemplo – escancara a dimensão valorativa das escolhas morais e denuncia sua falácia, ao
passo que em Freud a patologia é utilizada como base explicativa. É a partir dos exageros das
81

psicopatologias que encontramos em psicanálise a explicação do funcionamento do seu


sistema (Assoun, 1992). Assim, vemos a respeito da doença em Nietzsche e Freud,
respectivamente:

(...) discurso axiológico de um lado, discurso explicativo de outro: mas esta oposição banal não impede,
de modo algum, uma surpreendente convergência da abordagem psicopatológica, como se todo discurso
sobre o normal e o patológico deparasse com a questão do valor e da norma, e aquela, correlata, da
interpretação. (Assoun, 1992, pp. 228-229)

Em Freud, portanto, vemos uma perspectiva que visa à aplicabilidade do discurso


explicativo, que busca a causalidade dos processos, ao mesmo tempo que aplica sobre eles
uma interpretação. Freud expõe o processo e acaba denunciando alguma forma valorativa
deste. Nietzsche, por sua vez, ao denunciar o mecanismo valorativo, acaba expondo também o
processo (Assoun, 1992).
Isso quer dizer que, para psicanálise, um determinado sintoma é destrinchado de forma
que podemos estabelecer relações de causa e efeito entre os processos desencadeadores, ao
mesmo tempo que se interpreta o fenômeno. Apesar de as patologias serem compreendidas
mais em função do exagero que podem alcançar do que em função de juízos de valor ou de
uma normatividade, esse mecanismo acaba por expor que um parâmetro existe. De fato,
quando o estudo do narcisismo, por exemplo, toma a perversão como base explicativa e
estende para o psiquismo em geral, não deixa de aparecer o aspecto da norma sob a qual se
baseia.
Em contrapartida, as formulações essencias de Nietzsche acerca do ressentimento
desnudam o mecanismo valorativo intrínseco ao estabelecimento da diferenciação dos
próprios valores. Ao denunciar uma fundamentação moral em toda afirmação de conceitos e
verdades, o que acaba por expor é o processo. Assim, temos, por exemplo, que demarcar a
transposição dos valores fortes e nobres em fracos e vulgares, o que se revela é um
mecanismo que atinge o interior do próprio indivíduo.
É o que podemos perceber quando analisamos as categorias de ativo e reativo,
presentes na base da sua oposição dos valores bom e mau, bem e mal. O ressentimento seria
consequência da inversão dos valores que definiu que o bom era o fraco, aquele que não agia
e não exercitava sua agressividade no mundo. Ao estabelecer uma conotação valorativa para
essa manobra, ficou selado que não agir era mais nobre.
Diante da sua impotência para a ação, ele acusa o outro de mau e, por oposição,
designar-se-á como bom. A força do outro ganha interpretação moral, e este passa a ser
percebido como possuidor de uma maldade. É, pois, a partir de uma negação do outro, da
82

alteridade, que o ressentido irá se constituir. Além disso, diante da impossibilidade de


efetivar-se no mundo, o ressentido não vê outra forma de ação que não seja psíquica, via
vingança imaginária. Esse desejo de vingança perturba e remorde a consciência
incessantemente, transformando-se enfim em sede de vingança, como vimos em Scheler
(1998).
Nietzsche demonstrou que a forma típica de o ressentido instituir o valor próprio é por
oposição, que visa ao aniquilamento da diferença. Com a parábola da ovelha e da ave de
rapina isso fica claro, pois as ovelhinhas designam a si mesmas como boas em contraposição
à ave de rapina (que nada tem contra elas), ao mesmo tempo que criminaliza aquilo que sua
inimiga simplesmente é. É como se as ovelhas não suportassem perceber a diferença entre
elas e a ave de rapina, pois sabem-se mais fracas, e empreendem uma forma de valoração que,
ao mesmo tempo que neutraliza a diferença, as coloca como vítimas da força da ave. Mas não
vítimas quaisquer, e sim detentoras de nobreza e bondade.
A leitura que fizemos desse mecanismo na psicanálise ramificou-se em diferentes
aspectos. O primeiro diz respeito à acusação do outro como mau, que em contrapartida pode
garantir a si mesmo como bom, ou seja, detentor de atributos narcisicamente gratificantes.
Essa manobra engana de alguma forma o eu, que se vê salvo da constatação da sua
dependência do outro.
Para Jordão (2011), deparar-se com a insuficiência constitutiva do próprio narcisismo
é fator de extremo desgosto. Com intuito de evitar essa ameaça, ou seja, confirmar o valor
narcísico, é preciso aniquilar o outro e sua diferença, já que é ele quem denuncia a fragilidade
do Eu.
Se o valor atribuído a si mesmo no ressentimento passa necessariamente pelo outro – é
uma constituição parasitária, como já afirmamos –, então a agressividade deve ser dirigida a
esse outro, pois é ele que deve ser destituído do seu posto de superioridade em relação ao
indivíduo, ou seja, contra quem é preciso vingar-se. Nesse sentido, retomamos também o
desejo de castigar o outro.
O que Nietzsche apresenta como a forma característica de agir no ressentimento é a
reação, pois, paralisado diante da impotência para a ação, apenas encontra satisfação na
vingança imaginária. Esse manter os objetos presentes fantasisticamente também encontrou
um lugar na psicanálise.
Com o conceito de narcisismo, vimos que a via de acesso aos objetos do mundo se dá
a partir da fantasia. Inclusive foi a manutenção do investimento libidinal na fantasia nos
neuróticos que os diferenciou dos psicóticos. Com o desenvolvimento de uma unidade do Eu,
83

este pode lançar seus investimentos libidinais nos objetos do mundo externo. Diante da
frustração da realidade, que impôs que esse investimento não poderia ter seguimento, a libido
teve que ser abrigada novamente no Eu. No entanto, o investimento objetal não se dá
totalmente por encerrado, ele permanece na fantasia.
A maneira como trata o objeto, que se mantém via investimento na fantasia
vingativa, também assume um caráter especial. O desejo retaliativo, que nunca se consome
de fato – pois a característica fundamental do ressentido é sua inabilidade ativa –, acaba por
manter esse objeto em suspenso no psiquismo, para o qual é direcionada a agressividade.
E podemos apresentar, como propôs Kancyper (1994), a peculiar forma com que o
objeto é tratado no ressentimento resumida da seguinte maneira: imobilizado, maltratado e
preservado. Assim, não é possível esquecer uma ofensa sofrida, pois o objeto se mantém
presente, e é para ele que o ódio se dirige; mas como é ele quem também encarna a promessa
da dívida a saldar, ele precisa ter seu lugar preservado.
Desse modo, o ressentimento, ao manter constantemente o objeto presente, mesmo que
o atormentando, afasta a possibilidade de que o objeto seja introjetado e o Eu se identifique
com ele, tal como ocorre na melancolia. Assim, podemos demarcar a diferença entre essa
patologia e o ressentimento com mais clareza.
Com a melancolia é possível perceber a ameaça que significa o empobrecimento do
Eu. O melancólico, diante da perda do objeto o recolhe para si, a partir da regressão da
escolha de objeto narcísica para a identificação. Como o objeto abandonado encontrou seu
lugar junto ao Eu, é para ele que o ódio será direcionado. Desse modo, se objeto e Eu se
encontram fundidos, uma parte do Eu pode desdobrar-se e tratar a outra como trata o objeto
(perdido e odiado).
Ao estabelecer o ressentimento como mecanismo de defesa, é possível tanto garantir
uma distância do empobrecimento do sentimento de si, quanto garantir a presença do objeto
externo, mesmo investido pela vingança imaginária. Este último mecanismo apresenta uma
dupla função: interpõe-se como alvo da agressividade, evitando que o Eu encarne esse posto
por completo; e como manutenção do investimento na fantasia, mantendo o funcionamento
psíquico dentro dos limites de uma neurose.
Em contrapartida, a manutenção constante da figura contra quem a vingança deve ser
desferida indica também um apego a ela, denominada viscosidade da libido. A dinâmica dos
investimentos libidinais esclarece melhor como o processo se dá no ressentimento. Haveria
uma economia libidinal que se efetivaria da seguinte forma: quanto mais libido no objeto,
menos libido estaria disponível no Eu. Diante da libido doada ao objeto externo, o Eu se
84

empobreceria, mas a satisfação poderia ser reencontrada caso a qualidade da relação objetal
oferecesse algum ressarcimento.
No ressentimento, a relação objetal ocorre de maneira peculiar, e nosso ratinho nos
ensinou bastante a esse respeito. Ele demonstrou ser detentor de uma vaidade sem limites, que
se conservava mesmo diante da realidade que, por vezes, provava o contrário, ou seja, quando
não há retorno libidinal da relação empreendida. Admitimos, então, que, no âmbito da sua
libido narcísica, seu Eu se encontrava engrandecido, cheio de orgulho e arrogância, ao passo
que, no âmbito da sua libido objetal, haveria também um superinvestimento, demonstrando
um objeto engrandecido e idealizado. Como isso é possível?
Só podemos supor que o Eu não se dá conta desse empobrecimento, ou melhor, ele
pode até se dar conta inconscientemente, e empreender um trabalho sobre-humano de
tamponar esse empobrecimento, com intuito de garantir sua integridade narcísica. É por isso,
talvez, que Girard (2011) afirma que “o orgulho encontra-se na origem da grandeza
imaginária e da baixeza efetiva do herói do subsolo” (p. 75)
Escutamos do camundongo que era impossível aceitar, por exemplo, o fracasso da sua
vingança malsucedida. Em contrapartida, ele inflava-se novamente, nos seus devaneios de
superioridade. “E podia eu acaso conformar-me com uma devassidãozinha simples, vulgar,
direta, de amanuense, e carregar sobre mim toda esta imundice?! (...) Não, eu tinha saída
nobre para tudo...” (Dostoiévski, 2009, p. 71).
Assim, manter o Eu engrandecido, contra o sentimento de empobrecimento pelo qual
pode ser tomado, demarca um mecanismo de defesa, e nesse sentido entendemos que o
ressentimento pode ser entendido como tal. A forma com que o camundongo se coloca pode
indicar que, mesmo nos momentos em que percebia sua baixeza, havia uma forma de se
consolar. Não agir, ou reagir, é evitar por à prova, no mundo fora do subterrâneo, a verdadeira
grandeza ou pequeneza de si.
O ressentido se coloca numa posição de vítima detentora de direitos e razões diante de
um outro mau e usurpador, posição subjetiva que encarna uma defesa contra a constatação de
que a falta é dele mesmo. E mais, independentemente dos resultados da ação que empreende
no mundo, seu narcisismo sempre estará isento de ser responsabilizado por algum fracasso,
como se encarrega de assegurar sua posição de vítima.
Outra questão igualmente importante se apresenta no horizonte do narcisismo. Vimos
que é o eu, como unidade representacional, que se interpõe e possibilita a passagem do
autoerotismo para o narcisismo primário e possibilita que o investimento libidinal encontre os
objetos do mundo externo.
85

O narcisismo primário caracteriza-se pela sensação de plenitude experimentada a


partir da constatação de que se é seu ideal. Diante das admoestações da realidade, a criança é
obrigada a abandonar seu Eu ideal e tenta recuperar a satisfação vivenciada nessa fase criando
para si um ideal de Eu, inicialmente com base nas regras dos pais e que se estende para a
influência da sociedade e da educação. É para esse ideal que se dirige o amor do narcisismo
infantil perdido. Esse ideal assume o parâmetro de exigência sobre o Eu, sobre a qual ele se
mede. A partir da consciência moral, uma vigilância se instaura com intuito de assegurar
alguma satisfação narcísica, cada vez que esse ideal é atendido.
Diante da certeza de que era o seu próprio ideal, o indivíduo se recusaria a abandonar a
ilusão que lhe foi oferecida, e ressente-se por perceber que foi enganado. Kehl (2007) também
apresentou esse aspecto, afirmando que, diante da decepção constatada pela defasagem entre
aquilo que se é e aquilo que os pais fizeram acreditar, o ressentido não acredita que se
equivocou, mas sim que o outro o enganou.
Vislumbramos a possibilidade de que o ressentimento viesse não da tentativa de
retomar um estado de perfeição que vivenciou na infância, mas sim da impossibilidade de
aceitar, a partir do seu orgulho e vaidade, que para ele também essa perfeição foi negada.
Diante dessa constatação, se ressente e se enraivece por acreditar que merecia esse lugar, sem,
contudo, lutar por ele.
Kancyper (1994) propõe que a recusa da realidade, como um mecanismo que indica a
constatação da falta e um poderoso trabalho oposto de negá-la, está intrínseca ao ressentido.
Com isso, encontramos duas percepções contrárias – aceitação e negação da castração – e
suas correspondentes atitudes: hostilidade e ternura (Freud, 1927/2007c).
Com um narcisismo precariamente constituído, sua consistência e estabilidade euoica
se daria a partir da homenagem que faz ao outro. Diante da constatação da sua insuficiência e
da impossibilidade de ser o objeto de amor dos pais, um trabalho constante é empreendido nas
relações com o objeto, visando buscar esse ideal do Eu externamente.
Assim, manter-se engrandecido e arrogante diante do mundo e das pessoas a sua volta
constituiu a solução encontrada pelo nosso ratinho para manter-se de pé, mesmo que no
subsolo. Haveria uma constante oscilação entre o perceber-se faltoso e o esforço para
tamponar essa falta, que se turva momentaneamente. Detentor de uma agudez psicológica que
examina a si mesmo profundamente, quando se dá conta de que não basta para si, compensa
sua vaidade assegurando-se de que é mais inteligente que os outros. Diante do irremediável da
falta, questiona-se se o melhor é a ilusão da perfeição ou a crueza da realidade: “E realmente
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desta vez proponho já da minha parte uma pergunta ociosa: o que é melhor, uma felicidade
barata ou um sofrimento elevado? Vamos, o que é melhor?” (Dostoiévski, 2009, p. 145).
O episódio entre o ratinho e o oficial consegue condensar boa parte do que consiste o
ressentimento. A figura forte e robusta desse outro que age à sua revelia – a ação autêntica de
que falou Nietzsche, que não necessita se amparar em motivos exteriores que não a afirmação
de si – o exaspera de tal modo que ele não admite não ser enxergado. Aqui o personagem se
mostra novamente vaidoso e inferiorizado. Responsabiliza o outro por sua incapacidade para a
ação e expurga de si a constatação de que a fraqueza é sua.
Como não conseguiu reagir no momento, e aqui nos referimos à verdadeira reação
nietzschiana, a ação apenas encontra na vingança imaginária um meio de desafogar sua
agressividade. Sentia-se esmagado diante da figura do oficial, mas cultivava a imagem do
rival com uma hostil adoração: aqui encontramos duas atitudes opostas dirigidas ao mesmo
objeto.
Para Kehl (2007), o ressentimento seria uma solução de compromisso entre o
narcisismo e o outro, entendidos aqui como dois campos psíquicos, e sua superação reside
justamente em ultrapassar a conflituosa constatação que diz que Eu sou o outro, e ao mesmo
tempo quero expulsá-lo de mim. Acrescenta, ainda, que “A relação com o semelhante na
diferença é essencial para fornecer a medida, ao mesmo tempo, da grandeza e da
insignificância de cada um” (Kehl, 2007, p. 51). E parece que a medida não está facilmente ao
alcance do rato do subsolo, que só encontra seu lugar na extrema grandeza ou na extrema
insignificância.

Não podia compreender sequer secundário e justamente por isso desempenhava bem tranquilamente, na
realidade, o último dos papéis. Herói ou imundice, não havia meio-termo. Foi exatamente isto que me
perdeu, porque na imundice eu me consolava com o fato de ser herói em outra hora, e o herói disfarçava
consigo a imundice, como se dissesse: “ao homem comum é vergonhoso chafurdar na imundice, mas
um herói paira demasiado alto para ficar completamente sujo; por conseguinte, lhe é permitida a
imundice. (Dostoiévski, 2009, p. 71)

Do mesmo modo, o outro aparece nesses mesmos polos, mas sempre pendendo para o
engrandecimento. O ressentido recusa sua imperfeição, mas ao mesmo tempo exalta aquilo
que o outro tem de bom.
A vingança imaginária é o correlato da impossibilidade de descarga dos afetos
agressivos que acomete o tipo ressentido, mas, como aponta Nietzsche, essa frustração acaba
por atingir o interior do indivíduo. Aqueles impulsos que são impedidos de se efetivarem no
mundo exterior retornam para trás e encontram no interior um meio e alvo de escoamento.
87

A exigência da vida em sociedade obrigou que a agressividade fosse sufocada; que o


homem, levando uma vida errante, se tornasse um ser confiável, de quem a palavra pode ser
assegurada diante de outro homem. A natureza impulsiva foi sufocada pela imposição social
e, internalizada, criou a interioridade. Os impulsos interiorizados envenenaram o indivíduo,
que se tornou doente de si mesmo.
Esse processo, denominado Moralidade dos Costumes, estabeleceu que o homem
poderia responder por si, o que significou também a ilusão de poder dominar a si. O caminho
de hominização foi doloroso, pois, para prometer, era preciso lembrar, e a dor foi o
mecanismo encontrado para deixar sua marca e criar a memória.
Na passagem do homem animal para o social, Nietzsche encontrou nas relações entre
credor e devedor a gênese da necessidade de criar uma memória e tornar o homem constante,
pois era preciso que os contratos e dívidas fossem honrados. Nessa relação contratual,
residiria a gênese da culpa, como consequência da moralização da responsabilidade de honrar
o contrato.
Poder responder por si poderia oferecer a liberdade de quem sabe que pode fazer
promessas e as cumpre, e essa responsabilidade Nietzsche chama de consciência moral. Mas o
que ocorreu foi uma corrupção dessa faculdade que, com o encontro da reatividade do
ressentimento que estabelece valores, foi revertida em consciência da culpa ou má
consciência.
Chama a atenção a presença da consciência moral em Nietzsche e Freud. Giacóia Jr.

(2006) apresenta que esse termo, “consciência moral”, versão luso-brasileira da expressão
Gewissen, vem do grego syneidésis, apoiado pelo termo latino conscientia. Trata-se do
fenômeno psíquico da consciência religioso-moral, e enfatiza a relação de testemunha que
existe entre o sujeito e seu interior (com-scientia interior). “Nessa acepção, a consciência
moral está relacionada ao senso moral das próprias ações, ao sentimento provido de uma
faculdade de autojulgamento, à consciência de incondicional conformidade ao dever”
(Giacóia J., 2006, p. 104).
A investigação genealógica e a metapsicológica reestabelecem as condições históricas
de surgimento, transformação e desenvolvimento das formações culturais e sua aplicação na
interioridade humana (Giacóia J., 2006). Em Freud e Nietzsche, a consciência moral surge da
interiorização da agressividade. Na psicanálise, há uma internalização da influência parental e
da sociedade que se prolonga internamente no Supereu; que se encontra repousada, em última
instância, na gênese da formação da cultura.
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Em Freud e Nietzsche, há esse sentido de uma vigilância interior e uma aplicação


interpretativa que considera a historicidade do conceito, também influenciado pela dinâmica
das forças internas. Para o filósofo, essa consciência pode adoecer e se tornar uma má
consciência ou consciência da culpa. Para o psicanalista, a própria consciência moral pode ser
severa, má, e atormentar o indivíduo.
Diante do sofrimento causado pela camisa de força social, usando uma expressão
nietzschiana, o homem se vê perdido por não achar um culpado por seu desconforto. Uma
manobra empreendida pelo sacerdote reverteu o caminho do ressentimento para o próprio
homem, permitindo que se identificasse como culpado do seu sofrimento. A partir de então,
ele busca na autotortura um meio de expiação; busca a dor pela dor.
A impossibilidade da descarga adoece a plasticidade da memória, que não consegue
dar vazão aos eventos que lhe acometem. Era preciso então narcotizar a consciência,
encontrar um afeto poderoso o bastante que a sedasse. Nietzsche denominou esse processo de
narcotização (Betäubung) da consciência, quando a intensidade da agressividade encontra na
via subterrânea um meio de efetivar-se. Mais do que visar à própria descarga, agora o
sofrimento pode ser buscado.
Em Freud, encontramos no masoquismo moral esse imperativo por autoexpiação, mas
a ênfase recai na satisfação aí encontrada. Ao decompor esse mecanismo de forma minuciosa,
o que aparece é que, por trás de uma superfície moral rígida, encontra-se subvertida uma
relação edipiana, que se ressexualiza pela relação masoquista do Eu diante do Supereu sádico.
O indivíduo poderá se lançar numa busca por situações penosas sem fim, visto que
todas elas servirão como forma de satisfazer o desejo masoquista de se submeter ao jugo cruel
do Supereu, instância que encarna os poderes parentais. Diante da satisfação aí encontrada, a
culpa se instala. Por uma dinâmica que podemos imaginar circular, essa culpa pode também
servir como motor para submeter-se a situações de delito, e então torturar-se novamente,
encontrando um apaziguamento (Befriedigung) do peso da consciência.
Parece tentador articular esse mecanismo ao masoquismo moral em Freud, quando
percebemos que ambos – narcotização e masoquismo moral – rendem um sofrimento por
outro. Nesses dois mecanismos, o interior do indivíduo é tomado como meio substitutivo de
descarga da agressividade que foi tolhida em sua satisfação, ou seja, um retorno do sadismo,
nos termos freudianos; assim como ambos exprimem uma busca por sofrimento.

No processo que vai da atividade ao ressentimento, e deste à má consciência, é como se houvesse visto
seu aprofundamento em espiral. Na “interiorização” vimos consumar-se a mudança de direção, meta e
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objeto. A partir desse momento, a tonalidade sadomasoquista da má consciência assume todo o seu
significado pulsional. (Assoun, 1992, 233)

Em Nietzsche, o termo narcotização assume um caráter pejorativo, enquanto em Freud


o apaziguamento denuncia que algum prazer é extraído desse mecanismo. Óbvio que soaria
extremamente anacrônico afirmar que Nietzsche não percebeu que o ressentido extrai dessa
posição alguma satisfação, mas ainda assim é uma diferença que deve ser marcada.
Em Freud e Nietzsche, a renúncia à expressão da força ocorre antes da submissão à
moral, não sendo a moral, portanto, uma característica inerente do ser humano. Freud também
enxergou que a Moralidade causou um efeito pernicioso nas pulsões agressivas do homem.
Em ambos, portanto, haveria um retorno da agressividade do mundo externo sobre o Eu.
Freud, entretanto, decompõe o funcionamento e demonstra haver um masoquismo
originário. Isso implica uma primazia do masoquismo sobre o sadismo; este seria direcionado
ao mundo externo com a ajuda da libido, mas, impedido de escoamento, retorna ao interior e
encontra no masoquismo originário um reforço do seu poder destrutivo. O mecanismo indica
que há uma força destrutiva endógena primária. Aqui reside outra diferença com Nietzsche,
para quem o sofrimento do homem pelo homem é sempre um retorno da violência externa que
se aloja internamente.
O que possibilitou o diálogo entre o ressentimento e o masoquismo moral foi pensar
que, no primeiro, encontramos uma reatividade que impossibilita o esquecimento, que se
torna um ativo morder na consciência, alçando um caráter de não querer mais esquecer o
agravo sofrido. O ressentido mantém a ofensa em suspenso no psiquismo e é incapaz de
digeri-la; esta passa a atormentá-lo, e ele fica relembrando e ressentindo incessantemente.
A partir do que nosso camundongo nos apresentou, percebemos que ele mesmo
buscava e se colocava em situações penosas que depois o exasperariam, atormentando sua
consciência, que ficava amarrada à lembrança de ofensas. Essas ofensas, como ele diz, o
afundavam em um molho lamacento; “O molho, no caso, consistia em contradições,
sofrimentos e torturante análise interior. E todas essas torturas e torturazinhas acrescentavam
um sabor picante e até um sentido à minha devassidãozinha” (Dostoiévski, 2009, p. 71).
Entendemos então com o masoquismo moral que o indivíduo pode se colocar em
momentos de grande aflição e se torturar mentalmente, pois sente prazer nesse lugar. O
ressentimento poderia ser uma forma manifesta desse prazer, pois, como já vimos, há um
grande apego e uma recusa em esquecer o elemento de expiação.
Assim, podemos concluir que tarefa difícil é arrancar-se do abismo puxando-se pelos
próprios cabelos, pois o abismo, ou o subsolo, é um artifício poderoso para garantir segurança
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e satisfação narcísica. Kancyper (2010) afirma, inclusive, que é como defesa que o
ressentimento pode se tornar interminável. Mais difícil ainda se torna a tarefa quando abrimos
a possibilidade de que esse lugar é também uma posição de extração de prazer.
É fato que ganhamos em abrangência ao analisarmos o ressentimento em diferentes
vertentes conceituais da psicanálise, mas também corremos o risco de que alguns pontos
perdessem em profundidade. Assumimos esse risco, na expectativa de tê-lo sanado dentro dos
limites do possível, e também na certeza de que mais trabalho se impõe à frente.
91

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