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Foco, luz e objeto: “paralaxe” e o dilema da técnica em Ulysses

João Guilherme L. Viana; RA 102792


LT062A – Grande autor em língua estrangeira
IEL/Unicamp 2017

1. Dificuldades

Não se passam duas páginas do início da leitura de Ulysses até que encontremos seu notório
“Chrysostomos”. É, talvez, por sua posição inicial, o trecho mais usado para exemplificar a
dificuldade do livro, sua ilegibilidade, seu antididatismo, sua desconsideração pelos limites do
leitor, ou descritores semelhantes. Na tradução de Caetano W. Galindo, o trecho diz: “[...]então
suspendeu-se um instante em elevada atenção, regulares dentes brancos brilhando cá e lá em
pontos dourados. Chrysostomos. Dois assovios fortes e estridentes cruzaram a calmaria.”
(JOYCE, 2012, p. 98).

Como se sabe, o pressuposto do texto é que o leitor entenda que “Chrysostomos” (boca de ouro)
se refere aos dentes dourados na boca de Buck Mulligan, conforme vistos por Stephen Dedalus.
Para fazer a associação, ou o leitor deve saber grego, ou conhecer um dos dois personagens
históricos que já receberam o epíteto; isto é, conhecê-los ao menos o bastante para saber o seu
sentido. Ademais, é preciso compreender que a associação acontece dentro da consciência de
Stephen – e para isto, é necessário ou um leitor especialmente estudioso do discurso indireto livre,
ou que o leitor prossiga pelo episódio e encontre mais instâncias da técnica; então, por um esforço
incomum de memória, ele vai inferir quem era o locutor daquela palavra estrangeira. O esforço
deve ser maior ainda, é claro, porque a voz do narrador retorna logo após o ponto final, “cruzando
a calmaria” para distrair a atenção do leitor como absorve a dos personagens, intocada pela
interferência.

O efeito de opacidade do trecho não seria tão grande se não houvesse, mesmo nos poucos
parágrafos anteriores, já algumas armadilhas contra a solução lógica do texto pelo leitor. Este
precisou resolver, na primeira página, que o teatro de Buck Mulligan é uma missa parodiada. Até
aí, tudo tranquilo. Mas Buck também chama um certo “Kinch”, e quem aparece é “Stephen
Dedalus”. Quantas pessoas estão em cena? Até o fim da terceira página isso já estará resolvido
para além de qualquer dúvida (“Ah, o meu nome pra você é que é o melhor: Kinch, o gume da
faca.”, ibid., p. 99), mas isso só acontece depois do “Chrysostomos”. Por fim, há o próprio
vocabulário enciclopédico do narrador deste primeiro episódio, que também não se deve
desprezar, já que, segundo Kenner (1978, p. 73), trata-se de um virtuoso da nomenclatura. É justo
dizer, assim, que muitos leitores não resolvem sozinhos essa alusão na leitura, só a primeira de
uma miríade de efeitos semelhantes.
É pelo menos tão grande quanto o número de leitores de Ulysses a discussão sobre o que deve
levar o leitor a prosseguir (ele deveria mesmo?), mesmo sem superar todas as incompreensões,
ou deixando-as por resolver mais tarde. Talvez seja este o caminho mais fácil para se falar sobre
o livro, ao menos para quem o discute porque o leu inteiro, de “Stately” a “Yes”, pelo menos uma
vez, e deixou estes primeiros desafios para trás. Possivelmente mais curioso seja imaginar alguns
dos motivos que poderiam levar alguém a abandonar a leitura no início do caminho, ou até mesmo
a se recusar a tomar o livro nas mãos.

Podemos imaginar um leitor que se considera inferior ao livro, que vê cada vez mais perguntas
sem resposta se acumulando e diz a si mesmo: “este livro não é para mim; não estou capacitado
a entendê-lo, pelo menos por enquanto”. Aqui, o problema é a falta de repertório. No limite, este
primeiro desistente projeta uma imagem de alguém com conhecimento suficiente para saber todas
as informações pressupostas pelo texto, uma pessoa como o Don Gifford do Ulysses Annotated,
e percebe que, evidentemente, está muito longe de se tornar essa pessoa. Assim a obra acaba
inacessível para ele.

Outro desertor seria aquele que se põe acima do livro, de modo que este só é viável se se der a
entender por si só a quem o tome nas mãos. O problema, então, é a obrigatoriedade do repertório:
a necessidade de existência de um extenso aparato interpretativo prévio, de uma bagagem de
esclarecimentos ou discussões anteriores que façam com que a leitura tenha uma orientação
mínima. Este leitor não necessariamente procura a experiência “pura” da obra, sem mediação, o
que seria impossível, mas considera que o tipo de exigência que o livro demanda passou de um
limite aceitável, e, por isso, sua leitura não compensa essas exigências.

Poderíamos imaginar, então, que o caminho seria o leitor se colocar no mesmo nível do livro, e
diligentemente recorrer ao repertório ao longo de toda a leitura, mas apenas quando necessário
para prosseguir com ela. Mas esse método também vai criar seus problemas. Pois as boas
armadilhas não se anunciam nitidamente ao leitor, e o próprio leitor cria suas armadilhas
idiossincráticas a que não encontrará respostas nas tradições críticas. Ademais, este leitor logo
perceberá que o limite de informações necessárias para uma apreciação total do texto está muito
além da capacidade de apreensão simultânea de qualquer mente – e tende a aumentar a todo
momento, pois as questões interpretativas que qualquer texto (que dirá o Ulysses!) levanta são
potencialmente infinitas. Saturado, o leitor põe o livro de lado e gravita em direção a um dos dois
polos anteriores.

O que pretendo a seguir é demonstrar que estas três posições, tomadas como exemplos meramente
hipotéticos da rejeição ao Ulysses, não diferem do dilema que parece atravessar as questões em
torno da interpretação do livro por seus efetivos leitores: a tensão entre a técnica e o humano. Em
outras palavras, a tensão entre a sua caracterização como “técnica pura” e a substância do
sofrimento humano que sua narrativa representa. Longe de querer resolver este impasse, que, a
meu ver, parece fundamental ao menos para uma primeira experiência do texto, pretendo
desenvolver uma proposta de apreciação do romance de Joyce por meio de uma expansão do tema
da paralaxe, recorrente no livro, elaborando-a a partir de uma linha de raciocínio do crítico Hugh
Kenner.

2. Substância

Qual seria, idealmente, o modo de fazer nossos leitores hipotéticos lerem o livro que rejeitam? A
solução mais fácil de se encontrar seria a do leitor de baixa autoestima, que se considera incapaz
de ler o livro. Seu caminho já está posto: ele precisa se transformar no autor do Ulysses Annotated.
Tal leitor, com uma boa memória, seria capaz de limpar todas as alusões do caminho, podendo
partir daí diretamente para a interpretação do texto. O absurdo da situação, claro, é que não há
motivo para existir alguém como Gifford a não ser a leitura do Ulysses. Mais tecnicamente, a
pessoa hipotética que sabe um número suficiente de informações para não tropeçar na leitura do
livro é uma projeção do próprio livro (o leitor-modelo de Eco, digamos), desenvolvida em
concurso com a leitura, o número de variáveis grande demais para que exista previamente a ela.

O segundo leitor, o autossuficiente, que acha que a obra deve se dar a entender, precisaria de um
livro diferente de todo do Ulysses. Seu livro ideal seria algo como o Sim, eu digo Sim, de Galindo,
ou alguma página como a do SparkNotes sobre o livro; basicamente, uma retomada do enredo
paralela a uma explicação dos estilos. Outra possível solução seria um volume de notas tão ubíquo
que a leitura se converteria em estudo puro do texto, uma quase-filologia, o que de fato não é
muito distante do modo como alguns primeiros leitores lidam com o Ulysses. Novamente, o
problema é a ultrapassagem de um limite aceitável de interrupções e tropeços do texto, limite que
só pode ser subjetivo e variável, mas que no presente caso teria sido expandido ad absurdum,
transformando a leitura em pura interrupção.

Por fim, para o leitor que enxerga o texto à altura de seus próprios olhos, há duas soluções: o
primeiro é que Ulysses seja uma carta pessoal dirigida a ele; isto é, que ele seja o destinatário
secreto do romance. Assim, ele encontrará um sentido perfeitamente utilitário em cada explicação
de alusão a que tiver de recorrer; ou, por outro lado, terá de recorrer a uma explicação sempre
que, mas apenas quando, houver algo relevante a ser descoberto no texto. Obviamente, é
impossível determinar de maneira unívoca o que é irrelevante em Ulysses, algo a que Stephen
Dedalus se refere durante sua discussão sobre Hamlet, no célebre trecho dos “portals of
discovery” (op. cit., p. 344). Assim, a outra solução é que ele seja James Joyce e tenha escrito o
Ulysses. Mas Joyce, como qualquer autor, não tem controle sequer sobre como os editores lidam
com seus “erros” e “acertos” tipográficos (ATTRIDGE, 2000, p. 98 e ss.), quanto mais sobre o
jogo entre sentido e falta de sentido do texto.

O que podemos enxergar de comum nas expectativas destes leitores é o desejo de um atalho para
a substância do livro – desviar da laboriosa e arriscada luta com a superficialidade da técnica para
chegar logo ao momento de compreensão, o instante em que atravessamos a escrita entorpecente
de um Eumeu e percebemos o cuidado paternal de Bloom por Stephen; ou em que, já acostumados
ao falso teatro de Circe o bastante para não nos deixarmos deter por ele, podemos diretamente
ouvir o chamado inaudível de Bloom a Rudy, que fita, sem ver, o seu pai (op. cit., p. 863); ou
aquele Sim final, desfecho com sabor de retorno às origens, ambíguo porque doloroso porque
ambíguo porque doce. Mas o momento de compreensão não é garantido em Ulysses – e o caráter
ilusório da transparência da escrita é a própria história que seu estilo conta.

Pois o estilo de Eumeu é também imitação da escrita de Bloom (KENNER, 1978, p. 35),
comicamente excessiva, e é rindo com desprezo, ou só com desprezo, dessa linguagem (portanto,
de Bloom) que experimentamos seu momento de expressão afetiva. E a visão de Bloom em Circe,
como qualquer cena de impacto no episódio, pode ser só mais uma alucinação infeliz provocada
pela bebida. E quanto ao “Sim” de Penélope, será que está capitalizado por conta de sua
importância capital ou só porque é pastiche da escrita de Molly, redatora despreocupada de
bilhetes e cartas? (ATTRIDGE, op. cit., pp. 102-105.)

3. Vozes

Hugh Kenner, que já mencionamos acima, dedicou um livro à explicação dos motivos pelos quais
tal cisão (entre técnica e substância) não é plausível. Trata-se de Joyce’s Voices, obra crítica que
surge em resposta a uma pergunta (KENNER, 1978, p. ix): por que Joyce entendeu melhor que
ninguém que o naturalismo (id., ibid.), ou a objetividade (ibid., pp. 1-14), “coisas-em-número-
quase-igual-ao-de-palavras” (p. 71), só podem acabar na sua própria paródia?

O livro principia na análise de uma série de autores considerados exemplares da “Objetividade”


(grafada assim, em letra maiúscula, no original): em especial Swift e Flaubert. Ele exemplifica
Objetividade, “the outer world conceived as a sequence of reports to someone’s senses, and a
sequence occurring in irreversible time” (p. 4), como a linguagem empregada por Gulliver no seu
relatório da experiência de ser amarrado pelos Liliputianos. Logo se nota, porém, que o propósito
de Swift é a paródia do empirismo (palavra de sentido pejorativo para o autor) de seu personagem,
que demora a perceber que foi capturado e não aprende nada com a experiência. É a linguagem
de Gulliver, não um cânone da narrativa (p. 5). O mesmo vale para Charles Bovary, cuja
“objetividade” de relator reflete sua fascinação estupidificada por Emma (p. 10). Joyce estava
consciente dessa hipocrisia da Objetividade, diz Kenner, e demonstrou essa consciência no conto
“Grace”, onde “dois cavalheiros no toalete” deixa de ser descrição objetiva para se provar
oximoro, dado que, como se descobre, dois honrosos cavalheiros não teriam o que fazer no
banheiro do bar a certa hora do dia (p. 12).

Kenner prossegue, então, para a descrição de um método que Joyce desenvolve para lidar com o
problema da Objetividade: o Uncle Charles Principle. Exemplificado mais claramente na narração
pertinente aos personagens do conto “The Dead” (como Lily e Uncle Charles), ele o define da
seguinte maneira: “o registro idiomático da narração não precisa ser o do narrador” (...), mas
“reflete as prioridades do personagem”. Tal princípio está fortemente presente em Ulysses, tanto
na primeira metade do livro, ainda regido pelo triunfo representacional do monólogo interior,
como em momentos da segunda metade, mais notadamente no primeiro segmento de Nausicaa,
narrado em estilo romântico-sentimental para refletir as prioridades de Gerty MacDowell (p. 17-
20). Kenner conclui:

“Writing fiction, he [Joyce] played parts, and referred stylistic decisions to the taste of the person
he was playing. The Uncle Charles Principle entails writing about someone much as that someone
would choose to be written about.” (p. 21)

Este é um princípio conhecido da narração joyceana e pode nos ajudar a ordenar alguns dos jogos
estilísticos aparentemente superficiais do Ulysses inicial. Mas é bom lembrar que os caprichos
estilísticos vão crescendo em direção ao final do livro: o Uncle Charles Principle não parece dar
conta de tudo. O crítico vai além e diz que o uso desse princípio em Ulysses nos leva a entender
que a voz do narrador, a palavra supostamente definidora, vai perdendo economia conforme a
narrativa avança, e assim, por contraste, o monólogo interior de Bloom parece cada vez mais
objetivo (p. 34). O ápice do Uncle Charles Principle, porém, será o Eumeu (p. 35), narrado na
linguagem de Bloom, como dito anteriormente. Não há nada de econômico no episódio. Ele basta
como homenagem ao herói do romance (p. 37). Voltamos ao problema da objetividade.

Em seu terceiro capítulo, por isso, Kenner volta um pouco atrás para descrever como foi que
aconteceu de a arbitrariedade do estilo crescer à medida que o livro progride. Joyce achava, ele
diz, que narraria o Ulysses como mais um conto de Dubliners, através das ferramentas do Uncle
Charles Principle e de seu novo amigo, o monólogo interior. Mas algo aconteceu no episódio das
sereias (p. 41). No momento em que a traição ocorre, um dos eventos centrais do livro, Bloom
está distante, tentando se livrar do pensamento desconfortável através da música, e se pergunta
até mesmo, ao vê-lo pela janela, se Boylan esqueceu o encontro (JOYCE, op. cit., p. 443-444).
As coisas, isto é, estão acontecendo separadamente do ponto de vista de onde são narradas: assim
também na biblioteca, quando o pensamento de Stephen não está em seu argumento mas sim em
como persuadir seus espectadores. A linguagem e o evento na narração não coincidem. No Gado
do Sol chega ao ápice a sensação de que a linguagem é um obstáculo à compreensão do que está
acontecendo. (KENNER, op. cit., pp. 48-49) E em Cíclope, parece que, para a mentalidade
irlandesa, como para a filosofia do Pirronismo, destruir o oponente com graça verbal é mais
importante do que provar a veracidade de um fato (ibid., pp. 53-55). O livro nos diz:, palavras,
palavras, tudo são palavras (p. 49).

Por outro lado, permanece o título, Ulysses, sugerindo um mito ordenador alheio às consciências
dos personagens. O abandono do sentido, a aleatoriedade do estilo estão, assim, disputando com
a ordenação sugerida pela própria voz autoral externa à narração, a voz do título, a voz de Joyce.
O schema é outro exemplo: a tabela de episódios secretamente distribuída por Joyce que hoje se
confunde com a própria obra. Kenner compara esse esquema ao do próprio Dédalo mitológico
(pp. 62-63), tentando escapar da ilha de Creta por ter criado uma prisão da qual é impossível
escapar, “um artifício para negar os efeitos colaterais de um artifício bem sucedido demais” (p.
63). Eis o dilema da técnica.

O que não é duvidoso, porém, é a existência de múltiplas vozes narrativas, que Kenner já consegue
distinguir no primeiro episódio de Ulysses. Essa multiplicidade atualiza a invocação da musa no
início da Odisseia; esta, por sua vez, estratégia de duplicação de perspectivas que evita o
voyeurismo de um narrador que enxerga todos os acontecimentos a partir de um único foco,
falseando sua própria perspectiva para os ouvintes (pp. 66-74). Isso dura até o Éolo, quando, desde
a estrutura espelhada do primeiro parágrafo até os títulos que pontuam o episódio, o narrador fará
sentir sua presença, e mostrará que não está apenas servindo às necessidades da narrativa, mas
também a lendo (pp. 74-75).

O princípio permanece mesmo assim: similarmente, o que acontece a partir do Éolo é que o
pastiche de outros estilos atribui a perspectiva narrativa a outras pessoas; mais uma vez,
multiplicidade de perspectivas. Todas, aliás, falsas (pp. 81-84). Poderíamos pensar que há uma
verdade a ser descoberta pela somatória de todas as perspectivas. Não há: e as visões de Bloom
em Circe, de coisas que não experimentou durante o dia, exemplificam isso (pp. 86-92). O que
quer que se diga, todavia, diz-se a respeito de algo; assim, reafirma-se a autoridade da Musa sobre
os fatos, em especial no episódio do monólogo de Molly, em que as coisas e pessoas se agrupam
num “eponymous ‘him’” (p. 99).

Deve estar claro, neste ponto, que o problema com nossos três leitores hipotéticos é o fato de se
colocarem numa posição única em relação ao livro. Enxergá-lo de apenas uma das posições, como
cíclope através de seu único olho, é se contentar com apenas uma imagem distorcida da obra. Não
que se possa esperar uma imagem não distorcida: a ênfase tonal do enunciado anterior está em
“apenas uma” e não em “distorcida”. Por que nos fiarmos apenas nos erros de uma única voz
quando podemos desfiar a teia dos erros de muitas, até mesmo das vozes narrativas supostas mais
confiáveis?

4. Paralaxe

Em Ulysses, como é de se esperar, Joyce alude a esse princípio interpretativo diretamente ao


trazer à tona o termo recorrente da paralaxe, que ocorre sete vezes no livro, em seis momentos
diferentes.1

Na principal das ocorrências, no episódio dos Lestrigões, como já demonstrado por Kenner (1980,
p. 73-75), há ironia no fato de que Bloom se pergunta sobre o significado de “paralaxe” no exato
instante em que se dá conta de um problema devido à paralaxe: o relógio do porto informa dois
horários, o de Dunsink (observatório próximo a Dublin) e o de Greenwich, pois a distância angular
entre os dois pontos e o eixo de rotação da Terra significa que o sol bate alguns minutos depois
em Dunsink. O dilema da técnica nos leva à pergunta: será este um toque de realismo, em que
Bloom recupera uma memória incompleta do sentido prático de “paralaxe”, já que guardava um
livro sobre o assunto em casa2, mas não conseguiu associar conscientemente o termo ao conceito?
Ou será que é tudo brincadeira irônica da voz narrativa organizadora (Kenner elabora o conceito
do “Arranger” neste mesmo livro, um capítulo antes) com Bloom e o leitor?

Mera coincidência é que não é. Kenner não comenta, mas, nos parágrafos imediatamente
anteriores àquele em que Bloom percebe que havia ouvido o horário de Greenwich e não o de
Dunsink, Bloom passa por uma loja de lentes. É a deixa para que comece uma sequência de
experimentos ópticos.

“Tem um reloginho lá no teto do banco para testar esses [da loja] binóculos.

“Suas pálpebras desceram às bordas mais baixas da íris. Não dá pra enxergar. Se você imagina que
ele está lá você quase enxerga. Não dá pra enxergar.” (JOYCE, op. cit., p. 312)

A visão humana, estereoscópica, isto é, com dois olhos que complementam a imagem um do
outro, é o que nos permite ter a noção da distância e da posição exata dos objetos, dado o problema
da paralaxe – um mesmo objeto visto a partir de duas lentes diferentes aparecerá de maneiras
diferentes para cada lente. Por outro lado, podemos reduzir ao mínimo a abertura pela qual a luz

1
Na Wikipédia: “Parallax is a displacement or difference in the apparent position of an object viewed
along two different lines of sight(…).” Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Parallax. Acesso em
08-07-2017.
2
(cf, no mesmo episódio, p. 294, a menção ao livro de Robert Ball, que depois é catalogado em Ítaca (p.
999).
atravessa nossas pupilas para garantir um foco mais preciso na retina: por isso apertamos os olhos
para focalizar objetos distantes, como Bloom faz aqui, ainda que sem sucesso.

“Deu meiavolta e, parado entre os toldos, estendeu a mão direita com o braço esticado sobre o sol.
Sempre quis tentar isso. É: completamente. A ponta de seu dedo mínimo apagava o disco solar.
Deve ser o foco onde os raios se cruzam. Se eu tivesse óculos escuros. Interessante. Andavam
falando muito daquelas manchas solares quando a gente estava na Lombard Street West. Umas
explosões tremendas. Vai ter um eclipse total este ano: no outono em alguma época.” (id., ibid.)

“Deve ser o foco onde os raios se cruzam”: Bloom se refere às linhas que vão das extremidades
do disco solar até cada um de seus olhos, tornando possível a constituição do objeto. Para além
da ênfase no tema da paralaxe, o trecho suscita novamente o problema da objetividade. Há um
limite espacial além do qual não podemos mais reconstituir um objeto com nossa visão. Mesmo
que imaginemos que ele está ali, afinal devemos reconhecer: “não dá pra enxergar”. Muito mais
fácil é apagar o objeto de todo: um dedo mínimo estrategicamente posicionado basta. Mas também
aí há risco, e Bloom toma o cuidado de não queimar suas retinas: o objeto parece resistir,
impondo-se por força. O trecho se encerra com a previsão do eclipse que ocorreria em 9 de
setembro daquele ano: quase no outono mesmo, embora tecnicamente ainda no verão. Virtuose
da voz narrativa, impondo sua consciência minuciosa do cenário sobre a imprecisão do
personagem humano, ou representação bona fide da qualidade curiosa, pseudocientífica de
Bloom? De qualquer forma, o eclipse em questão pode ser visto dos Estados Unidos mas não da
Irlanda. (GIFFORD, 1988, p. 174). Ou seja, a previsão de Bloom pressupõe multiplicidade de
perspectivas.

Coerentemente ao princípio da paralaxe, o tema será revisitado mais algumas vezes ao longo do
livro, nem todas elas com uma ligação clara à ocorrência inicial. Torna-se mais uma constelação
no céu de fixações de Ulysses: o sabonete, o jornal, a carta, Boylan (este está mais para uma
galáxia), carne enlatada, entre centenas de outras. Na sua ocorrência no episódio do Gado ao Sol,
a palavra “parallax” substitui, no original, “God”, na paródia de verso da peça “The Countess
Cathleen”, de Yeats (ibidem, p. 433). Em Circe, depois de Bloom demonstrar mais uma vez
ignorar o sentido da palavra (JOYCE, op. cit., p. 731), vemos que a palavra torce o cérebro do
próprio Virag (ibid., p. 757), e pensamos se seu “requintes meretrísticos para enganar o olho”
poucas linhas antes implica alguma associação coerente com o tema ou é só coincidência.

A última estrela da constelação está em Ítaca (p. 986). Stephen e Bloom acabaram de sair para
urinar e observam o céu. A voz interrogatória deste segmento pergunta: “Com que meditações
Bloom acompanhou sua demonstração a seu companheiro das várias constelações?” E ali no meio
da lista típica de dados inverossímeis pela sua precisão: “sobre a paralaxe ou deriva paraláctica
das estrelas fixas, na verdade errantes sempremóveis desde éons incomensuravelmente remotos
até futuros infinitamente remotos em comparação com os quais os anos, setenta, da vida que se
concede aos humanos formavam um parêntese de brevidade infinitesimal.” (P. 987). A voz
objetiva do narrador do episódio resume as reflexões de Bloom numa palavra que ele não poderia
conhecer. Em mais uma demonstração da violência da técnica sobre o humano, Joyce aqui expõe
mais uma vez, o que faz desde “The Dead”, como se viu, a hipocrisia da palavra objetiva, já que
na verdade a palavra aqui é incompatível com o objeto. Fecha-se a subtrama da palavra “paralaxe”
em Ulysses.

Se vale uma síntese dessa trama, acho que podemos encontrá-la num lugar inesperado.
Estranhamente, a tecnologia dos óculos 3D, moda atual no cinema de massa de alto orçamento,
talvez nos forneça aqui uma metáfora interpretativa adequada. Como se sabe, sua ilusão depende
da separação dos focos de cada olho, pela qual os óculos criam um falso objeto, localizado mais
próximo do observador. É, no plano físico, a paralaxe domada pela técnica para a projeção de um
objeto ilusório (e usualmente bem pouco criativo).

Similarmente, em Ulysses, o domínio técnico sobre um meio, a linguagem verbal representada


pela escrita, expõe o funcionamento interno desse meio e acaba por impor um novo pacto entre
observador e objeto sobre o seu caráter ilusório. A diferença – onde a analogia se rompe – é a
presença de uma voz autoral que coloca esse objeto ilusório em diálogo com tradições; as
tradições da ilusão e do meio cujos objetos, apesar delas mesmas, parecem resistir e, por um seu
incontornável impulso, como o brilho da coroa solar, manifestar-se.

Bibliografia:

ATTRIDGE, D. Molly’s flow: the writing of ‘Penelope’ and the question of women’s
language. In: Joyce Effects on Language, Theory and History. Cambridge University
Press, 2000.

GALINDO, C. Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. São
Paulo: Companhia das Letras, 2016.

GIFFORD, D. “Ulysses” Annotated. Berkeley; Los Angeles: University of California


Press, 1988.
JOYCE, J. Ulysses. Tradução e Introdução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin-
Companhia, 2012.

_________. Ulysses. Texto do Project Gutenberg. Disponível em:


http://www.gutenberg.org/files/4300/4300-h/4300-h.htm. Acesso em 08-07-2017.

KENNER, H. Joyce’s Voices. Berkeley; Los Angeles: University of California Press,


1978.
__________. Ulysses. Londres: George Allen & Unwin, 1980.

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