Você está na página 1de 4

O caruru de Cosme e Damião (Edison Carneiro)

Cosme e Damião — os Ibêji nagôs — são objeto de grande culto essencialmente


doméstico, familiar, na Bahia.
Muitas famílias têm duas pequenas velas sempre acesas diante da imagem dos
"meninos": os gêmeos são casamenteiros, ajudam a encontrar objetos perdidos,
protegem contra doenças, "abrem os caminhos", isto é, mudam, para melhor, a sorte dos
devotos. Diante desta imagem, nos dias de quarta-feira e de sábado, põem-se
pequeninos pratos de barro com caruru e quartinhas de água nova, da torneira. Esta
água, ao ser mudada, não será jogada fora, pelo menos em lugar onde possa ser pisada:
servirá para molhar plantas ou para beber, pois se acredita que a água das quartinhas dos
santos comunique saúde.
Oficialmente os gêmeos têm a sua festa a 27 de setembro, dia que bate o recorde
de casamentos entre as classes pobres. Mas cada família pode festejá-lo,
arbitrariamente, em qualquer dia, desde que cumpra com certas obrigações estabelecidas
pela tradição. Esta festa se chama "o caruru dos meninos".
Três vezes, em dias diversos, antes do sábado ou domingo geralmente escolhidos
para a festa, saem os santos, dentro de uma caixa de papelão cheia de pétalas de rosa, a
pedir esmolas, conduzidos por algumas crianças. Quase sempre pede-se esmola
publicamente, de porta em porta:
— Missa pedida para São Cosme!
Este processo só é usado pelos devotos muito pobres, mas em qualquer caso os
santos devem sair pelo menos até à casa dos amigos, a pedir esmola, desde um tostão, à
vontade.
O dinheiro das esmolas deve ser todo gasto com os "meninos": seria um pecado
imperdoável empregá-lo noutras coisas.
No dia da festa, a família, amigos e aderentes assistem uma missa para os
"meninos", contratada de antemão numa igreja qualquer. Uma criança — em geral do
sexo feminino — leva a imagem particular da família e a deposita no altar, para receber
a bênção do padre. Esta missa deve ser mandada celebrar todos os anos, sob pena de
"atrasar" o devoto.
Em casa, desde a véspera, os fogões disponíveis estão ocupados no cozimento
dos petiscos que constituem "o caruru dos meninos" — caruru, feijão fradinho, abará,
acarajé, galinha de xinxim, acaçá, banana da terra em azeite de dendê, milho branco,
inhame, farofa de azeite de dendê com camarão, pipocas. De faca em punho, mulheres
cortam roletes de cana, pedaços de coco. Outras fazem aluá, uma garapa de cascas de
abacaxi e rapadura. Mas, de tudo isto, só é indispensável o caruru.
De todas estas comidas se deve pôr um pouco aos pés dos santos, antes de que
alguém se tenha servido delas, e, mais, os pés e a cabeça da galinha.
A família terá convidado especialmente todas as crianças da redondeza, pois,
quanto maior for o número de crianças, melhor. Os adultos podem comparecer também,
mas só as crianças são convidadas para a festa.
À tarde, tem lugar a comezaina, que se inicia com o banquete, em comum, da
meninada, em meio a cânticos especiais. Estes cânticos fazem parte de um verdadeiro
ritual, que acompanha, passo a passo, os incidentes da comida dos santos.
Sobre o chão da sala de jantar estende-se uma esteira. onde se sentarão as
crianças, e sobre a esteira, põe-se uma bacia de tamanho regular, onde haverá comida
suficiente para todas.
Canta-se para chamar as crianças:
Venha cá
Venha cá, Dois-Dois
As crianças se arrumam, como podem, em torno da bacia. Todas devem comer
"de mão", sem garfos nem facas, e, em certos lugares, devem estar também descalças. A
meninada vai comendo quanto, como e o que lhe apetece, sem nenhuma cerimônia,
enquanto os adultos, em volta, cantam os três cânticos seguintes:
1
Eu te dou que comê, Dois-Dois
Eu te dou que bebê, Dois-Dois

2
Eu tenho papai
Que me dá de comê
Eu tenho mamãe
Que me dá de bebê

3
Quem me dá de comê
Também come
Quem me dá de bebê
Também bebe

Este último cântico se refere aos "meninos", diante de cujo altar se realiza o
banquete infantil.
Se, por acaso, a comida acaba, antes que as crianças se saciem, surgem mulheres
trazendo novos pratos e cantando:
Ainda tem mais, Dois-Dois.

Nunca, ou quase nunca, se verificam brigas entre crianças reunidas em torno da


grande bacia. Todas comem caladas, ouvindo os cânticos, sujando a roupa e o rosto,
interessadas apenas em comer. Mesmo depois de se saciarem, conservam-se sentadas, a
mão suja dentro da bacia.
Então, ouve-se o cântico especial para "levantar" a mesa:
Já comeu?
— Já!
Já bebeu?
— Já!
Graças a Deus!

Este "já" é a resposta, em coro, das crianças.


Logo depois, vêm os cânticos de agradecimento, cantados pelos adultos:
1
Louvado seja, ô meu Deus
(o) que Cosme e Damião comeu!

2
Jambururu
aérê-ê-ê
o makundê que São Cosme recebeu!

3
Sumbo no Cacunda
Angola
caruru milongá
ai-ai
Levanta por Nossa Senhora
Levanta por Ziniapombo
cacurucá-ê

Aqui termina a festa das crianças, seguindo-se então a dos adultos. A excitação
provocada pelos cânticos possibilita a sua continuação pelo resto da tarde — as
mulheres batendo palmas, os homens arranhando a faca no prato, todos cantando, entre
outras, as seguintes quadras:

Eu vi São Cosme
Na beira d'água
Comendo arroz
E bebendo água

Cosme e Damião
Menino vadio
Vai jogar espada
Na beira do rio

Cosme e Damião
Sua casa cheira
A cravos e rosa
E a flor de laranjeira

Esgotado o repertório de cânticos para os "meninos", os adultos começam a


cantar sambas e, à noite, para coroar a festa, rapazes e moças, ao som de uma orquestra
improvisada, transformam a casa em sala-de-dança.

(Carneiro, Edison. "O caruru de Cosme e Damião". Província de São Pedro; revista de
difusão literária e cultural. Porto Alegre, Livraria do Globo, nº 5, junho de 1946, p.79-
81)

Você também pode gostar