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Frédéric Gros

Foucault e o direito dos governados

E mais:
Márcia Arán
O gênero como norma e fonte de subversão >>Heitor Scalambrini Costa:
e resistência Alternativas energéticas e a
crise civilizacional
343
Ano X José Antonio Zamora
Jean- >>Sérgio Mattos:
A diversidade cultural e o
13.09.2010 Biopoder e o instante eterno
ISSN 1981-8469 regionalismo na TV brasileira
O (des) governo biopolítico
da vida humana

Nesta semana realiza-se o XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida huma-
na. A edição desta semana da IHU On-Line discute o tema central do evento. Pesquisadores e pesquisa-
doras de várias áreas do conhecimento contribuem na discussão do mesmo.

O filósofo francês Frédéric Gros (Universidade de Paris XII) assinala que a política não nos defende de
um poder externo e que “cada fase do capitalismo vai desenvolver uma biopolítica particular”. Governar
no Ocidente é exercer o poder como exceção, opina o filósofo argentino Edgardo Castro (Universidade
Nacional de La Plata). A exceção jurídica na biopolítica moderna é o tema discutido pelo filósofo espanhol
Castor Ruiz (Unisinos), apontando as contradições graves que aparecem no estado de exceção. José An-
tonio Zamora, também filósofo espanhol, analisa o nexo entre o biopoder o instante eterno. Segundo ele,
o progresso é um conceito fundamental para a legitimação ideológica da biopolítica. O advogado José
Carlos Moreira Filho (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) examina as políticas de me-
mória como um dever social, enquanto o economista italiano Andrea Fumagalli questiona os impactos da
financeirização sobre o sujeito. O tema gênero, tecnologia e biopolítica é discutido pela psicóloga Márcia
Arán, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Para o cientista político Giuseppe Cocco (Universida-
de Federal do Rio de Janeiro), o devir-Brasil do mundo confirma a abertura do conceito foucaultiano de
biopoder em duas linhas antagônicas.

No mês de agosto faleceu Raimon Panikkar. As Notícias do Dia, publicadas de segunda a domingo, pelo
sítio do IHU, deram um amplo destaque à obra deste importante filósofo e teólogo. Na edição passada da
IHU On-Line publicamos um belo artigo de Faustino Teixeira. Nesta edição, Marcelo Barros, biblista, nos
brinda com um instigante texto intitulado Panikkar e a Teologia da Libertação. Uma entrevista com o te-
ólogo Victorino Pérez Prieto, espanhol, completa a recordação da vida e da obra de Raimon Panikkar.

O artigo A diversidade cultural e o regionalismo na TV brasileira, de Sérgio Mattos, professor da Uni-


versidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e uma entrevista com Heitor Scalambrini Costa, profes-
sor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – discutindo os desafios e a necessidade
de fontes alternativas de energia, completam esta edição.

A todos e todas, chegados de muitas partes do Brasil e do mundo, e que estarão participando do Sim-
pósio desta semana, muito bem-vindos e bem-vindas.

Aos demais um bom evento, uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@
Expediente

unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia
Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão:
Isaque Correa (icorrea@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do
Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de De-
sign Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Greyce Vargas (greyceellen@
unisinos.br), Rafaela Kley e Cássio de Almeida. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no
sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos.
Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof.
Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br). Endereço: Av.
Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: ihuonline@unisinos.br. Fone: 51 3591.1122
– ramal 4128. E-mail do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | José Antonio Zamora: Biopoder e o instante eterno
PÁGINA 11 | Edgardo Castro: Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção
PÁGINA 15 | Andrea Fumagalli: Os impactos da financeirização sobre o sujeito
PÁGINA 19 | Frédéric Gros: Foucault e o direito dos governados
PÁGINA 21 | José Carlos Moreira Filho: Políticas de memória: um dever social
PÁGINA 24 | Giuseppe Cocco: O devir-Brasil do mundo e o biopoder
PÁGINA 28 | Castor Ruiz: A exceção jurídica na biopolítica moderna
PÁGINA 33 | Márcia Arán: O gênero como norma e fonte de subversão e resistência

B. Destaques da semana

» Memória
PÁGINA 36 | Victorino Pérez Prieto: Panikkar e a eterna busca pela harmonia do saber
PÁGINA 39 | Marcelo Barros: Panikkar e a Teologia da Libertação
» Coluna do Cepos
PÁGINA 42 | Sérgio Mattos: A diversidade cultural e o regionalismo na TV brasileira
» Destaques On-Line
PÁGINA 44 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Evento
PÁGINA 46 | Heitor Scalambrini Costa: A crise civilizacional e os desafios das alternativas energéticas
PÁGINA 51 | Walmir Pereira: Os guarani: um povo instituído pela memória mítico-histórica indígena

» IHU Repórter
PÁGINA 54| Alfredo Santiago Culleton

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 


 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343
Biopoder e o instante eterno
Contexto e conteúdo foram eliminados do tempo, que parece sempre faltar e estar mais
acelerado, analisa José Antonio Zamora. Progresso é conceito fundamental para a legiti-
mação ideológica da biopolítica

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

O
s processos de disciplinamento realizados “pelas instituições que caracterizam o governo
anatomopolítico e biopolítico moderno (fábricas, hospitais, escolas, quartéis e prisões) de-
vem, em grande medida, sua eficácia ao estabelecimento de regimes temporais específicos
e estritos”, considera o filósofo espanhol José Antonio Zamora. De acordo com ele, “que
possamos dominar o tempo de outros seres humanos e equiparar o tempo com o dinheiro
só é possível porque se eliminou do tempo o seu contexto e conteúdo, estabelecendo-o como fenômeno
universal, abstrato, vazio e neutro”. E continua: “a sensação da ‘falta’ de tempo ou de que o tempo ‘vai
mais rápido’ parece responder a este regime de encurtamento e densificação da exploração do tempo
e à eliminação do tempo não economizado ou economizável”. Zamora afirma que a ideia de progresso
é um elemento chave de legitimação ideológica da biopolítica, e à modernidade “clássica” se contra-
põe uma modernidade “líquida e reflexiva”. O processo de aceleração, explica, “vem acompanhado de
uma fome quase insaciável de experiência do mundo, de captar o mundo em todas as suas produções,
desentranhá-lo até seus fundamentos, prová-lo todo”. Essas ideias fazem parte da entrevista a seguir,
concedida por e-mail à IHU On-Line. Zamora é conferencista na manhã de 14-09-2010, com o tema
Temporalidade capitalista, exploração da vida humana e tempo messiânico, dentro da programação do
XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana, promovido pelo Instituto
Humanitas Unisinos – IHU. A programação completa está disponível em http://bit.ly/cAXuGq.
Zamora é professor no Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC da
Espanha; é autor de, entre outros, Theodor W. Adorno: pensar contra la barbarie (Madri: Trotta, 2004) e
Ciudadania, multiculturalidad e inmigración (Navarra: Verbo Divino, 2003). Estudou Filosofia, Psicologia e
Teologia na Universidade Pontifícia de Comillas, em Madri. Doutorou-se na Universidade de Münster, na Ale-
manha, com uma tese sobre Theodor Adorno, orientada por Johann Baptitst Metz. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que aspectos a ló- tos, não é a mais convincente, pois
gica temporal do capitalismo reduz 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitem- nela se dilui em grande medida a espe-
po Editorial, 2007); Estâncias – A palavra e o
a vida humana a um mero corpo, a fantasma na cultura ocidental (Belo Horizon- cificidade do contexto capitalista em
uma mera vida? te: Ed. UFMG, 2007); e Profanações (São Pau- favor de uma constituição biopolítica
José Antonio Zamora - A expressão lo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007 de toda a história ocidental. Porém,
o site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
“mera vida” ou “mero corpo” está as- publicou a entrevista Estado de exceção e bio- segundo esta interpretação, o objeti-
sociada com a interpretação do con- política segundo Giorgio Agamben, com o filó- vo de incrementar o valor da vida (re-
ceito de biopolítica que faz Giorgio sofo Jasson da Silva Martins, disponível para gra), que define a política moderna,
download em http://migre.me/uNk1. A edição
Agamben, a qual, em muitos aspec- 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou se encontra inseparavelmente unido
 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É a entrevista “Agamben e Heidegger: o âmbito ao objetivo de aniquilar “a vida caren-
professor da Facolta di Design e arti della IUAV originário de uma nova experiência, ética, po- te de valor” (estado de exceção). O
(Veneza), onde ensina Estética, e do College lítica e direito”, com o filósofo Fabrício Carlos
International de Philosophie de Paris. Sua pro- Zanin. Para conferir o material, acesse http:// estado de exceção coincide com a re-
dução centra-se nas relações entre filosofia, migre.me/uNkY. Confira, também, a entre- dução dos seres humanos a uma “vida
literatura, poesia e fundamentalmente, polí- vista Compreender a atualidade através de nua” ou mero corpo, isto é, a um mero
tica. Entre suas principais obras, estão Homo Agamben, realizada com o filósofo Rossano Pe-
Sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo coraro, disponível para download em http:// material sobre o qual exercer o poder
Horizonte: Ed. UFMG, 2002); A linguagem e a migre.me/uNme. A edição 81 da Revista IHU absoluto, a completa disposição sobre
morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005); In- On-Line, de 27-10-2003, tem como tema de ele, tal como se materializa no campo
fância e história: destruição da experiência e capa O Estado de exceção e a vida nua: A lei
origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, política moderna, disponível em http://migre. me/uNo5. (Nota da IHU On-Line)

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de extermínio. Esta redução extrema terial dominável. Cada vez cai mais na
a puro corpo atua, segundo Agamben, “O objetivo da vista que não se muda a racionalidade
de forma latente nas formas de ana- econômica do crescimento pelo cres-
tomopolítica e biopolítica modernas, multiplicação do dinheiro cimento, pois esse final só se pode al-
formas evidentemente mais suaves de cançar por meio de uma catástrofe hu-
administração e exploração da vida, é um objetivo infinito, mana ou ecológica. Quando os sujeitos
que não pretendem tanto aniquilar são reduzidos a meios de reprodução
e torcer, quanto disciplinar, regular, o que contrasta com a do capital, não só fica arruinada sua
controlar, estimular, etc., em relação autonomia: sua vida inteira depende
a funcionalizações calculadas. finitude dos meios que de dita reprodução que é, ao mesmo
Seja como for, estes processos de tempo, a das relações de dominação
disciplinamento, levadas a cabo pe- definem o horizonte da que a constituem.
las instituições que caracterizam o
governo anatomopolítico e biopolíti- escassez que determina IHU On-Line - Como essa lógica re-
co moderno (fábricas, hospitais, es- sulta em formas de governabilidade
colas, quartéis e prisões) devem, em a atividade econômica” e excepcionalidade política que ex-
grande medida, sua eficácia ao esta- pressa o capitalismo e a exploração?
belecimento de regimes temporais es- consumo, etc.), produzindo-se aquela José Antonio Zamora - O sistema eco-
pecíficos e estritos. Assim, pois, toda equivalência, que Benjamin Franklin nômico capitalista necessita de um au-
forma de poder leva associada uma tornaria famosa, entre tempo e di- mento constante da velocidade de pro-
cronopolítica. Nada novo se descobre nheiro. O objetivo da multiplicação do dução, distribuição e consumo de bens
fazendo referência aos longos e coati- dinheiro é um objetivo infinito, o que e serviços. Esta aceleração necessita,
vos processos de reeducação, no sen- contrasta com a finitude dos meios que por sua vez, de inovações tecnológi-
tido de internalização de novos mode- definem o horizonte da escassez que cas, mas também do aumento da velo-
los temporais, que foram necessários determina a atividade econômica. cidade dos processos de organização,
para transformar a força de trabalho Por essa razão, a contradição entre administração e controle. Isso afeta
excedente do setor primário em mão o objetivo infinito da multiplicação do o funcionamento de administrações
de obra industrial nos começos da in- dinheiro e a finitude dos meios (na- e burocracias, bem como a esfera fi-
dustrialização moderna. Tão pouco turais e humanos) para alcançar este nanceira, logística e de marketing que
sublinhando a relevância da tempora- objetivo se desprega de maneira tem- acompanha a produção e o consumo.
lização acelerada da “revolução digi- poral, como processo de uma perma- Seria preciso tomar em consideração
tal” produzida pelas novas tecnologias nente revolução dos meios. Isto supõe as múltiplas formas de racionalização
da informação e a comunicação, que uma submissão crescente da ação hu- do processo de trabalho, tanto se se
supôs um impulso extraordinário dos mana em cada vez mais âmbitos a esse trata da organização taylorista de dito
ritmos e da velocidade da produção objetivo infinito. Esta submissão é le- processo por meio do scientific mana-
e do consumo, do tempo de trabalho vada a efeito de maneira fundamental gement ou da organização reticular e
e do tempo livre. Tudo isso converteu pela imposição de regime temporal es- externalizada da produção just in time
em obsoletos os ritmos das instituições pecífico. Somente um tempo abstrato, do pós-fordismo. Sempre se trata de
educativas, políticas e jurídicas dos estandardizado e decomposto em fra- maximizar o rendimento por unidade
Estados modernos e está na base do ções iguais pode ser empregado como de tempo. Eliminar o que se considera
desenvolvimento das novas formas de meio nos processos de intercâmbio, tempo morto, tempo não produtivo ou
governabilidade pós-fordista. como parâmetro neutral no cálculo da de consumo. A sensação da “falta” de
eficiência e dos benefícios. tempo ou de que o tempo “vai mais
Cronopolítica e sistema capitalista Que possamos dominar o tempo rápido” parece responder a este regi-
de outros seres humanos e equiparar me de encurtamento e densificação da
Esta cronopolítica, associada à bio- o tempo com o dinheiro só é possível exploração do tempo e à eliminação
política moderna, é exigida pelo novo porque se eliminou do tempo o seu do tempo não economizado ou econo-
regime temporal imposto pelo sistema contexto e conteúdo, estabelecendo- mizável. As formas de governabilidade
capitalista e que vai inseparavelmen- o como fenômeno universal, abstrato, possuem uma dimensão temporal evi-
te unido a um aumento incomparável vazio e neutro. A infinitude da lógica dente, pois elas são as encarregadas
da produção e da produtividade numa de acumulação do capital, da multipli- de estabelecer, consolidar e repro-
espécie de carreira impulsionada pela cação do dinheiro, apoiada nessa for- duzir regimes temporais por meio de
necessária busca de vantagens compa- ma de tempo, não se detém frente a instituições que organizam o tempo de
rativas baseadas em sua eficácia, me- nenhum limite natural ou humano. Só modo estrito e, assim, contribuem ao
dida em tempo. Deste modo, o tempo reconhece como meta o incremento disciplinamento dos corpos e sua pre-
passa a ser um bem escasso e mercanti- de um quantum abstrato. E, para esta disposição para serem submetidos às
lizado (em todas as suas formas: tempo abstração, todas as singularidades não novas formas de produção e consumo
de trabalho, tempo “livre”, tempo do são mais que obstáculos a superar, ma- sob uma aceleração crescente. Isso

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não fica desmentido pela desregula- “A novidade e a mudança mersa, com a destruição da memória
ção espacial do trabalho, pelas novas e da experiência?
formas de flexibilização de seu regime acelerada parecem José Antonio Zamora - A aceleração
temporal e da produção pós-fordista. da qual estamos falando se manifes-
A flexibilização pode dar a impres- confundir-se com um ta como crescimento exponencial das
são superficialmente em algumas de vivências e das ações, não menos do
suas expressões de um retorno a for- eterno retorno do que como exigência de maior rapidez
mas de produção e de vida pré-indus- em sua realização, de eliminar pausas
triais. Ditas formas parecem ser regi- mesmo, ou, para e vazios ou de empregar tecnologias e
das pelas tarefas e pelos objetos e não formas de organizar a vida cotidiana
tanto pelo tempo vazio, linear e abs- empregar uma imagem que conhecemos sob a denominação
trato da época industrial. Porém, na de “multitarefa”. Do ponto de vista
realidade o mundo laboral moderno, usada por Paul Virilio, um dos indivíduos, o incremento vincula-
industrial e capitalista devia ser prote- do ao crescimento e à aceleração su-
gido de toda ingerência existente para redemoinho que não sai põe encontrar-se ante uma abundân-
poder estabelecer seu regime tempo- cia tentadora de possibilidades. Mas,
ral e, assim, possibilitar a aceleração do lugar” na realidade, se produz uma supero-
dentro de seus limites. Hoje, nossas ferta que reproduz a escassez de tem-
concepções de vida boa têm sido de po. Viver com o temor de não poder
tal modo adaptadas a essas exigências produtivos e de consumo que se apóiam aproveitar a maioria dessas possibili-
e interiorizamos dito regime temporal nas novas tecnologias, porém não pare- dades ou, em todo caso, as melhores,
e sua lógica de tal maneira que é pos- cem possuir um horizonte ilimitado de e com a sensação de encontrar-nos
sível realizar a colonização contrária: crescimento. O mesmo podemos dizer numa corrida contra o tempo. O para-
inclusive os potenciais de desacelera- do ritmo de recuperação dos recursos doxo é que o intento de responder ao
ção e seus Oasis na cotidianidade são naturais ou da capacidade do ecossis- aumento de possibilidades que produz
crescentemente erodidos por aquela tema para digerir e processar os resí- a aceleração, apropriando-se das téc-
lógica. Para os trabalhadores as no- duos e os materiais tóxicos. ambém, a nicas e dos truques que oferece dita
vas possibilidades de racionalização e intervenção em processos naturais de aceleração para aumentar o ritmo de
vigilância, oferecidas pela tecnologia maturação e nos ritmos biológicos por vida, termina aumentando o abismo
da informação e comunicação, se tra- meio de técnicas agroquímicas e ge- entre o tempo de vida e as possibili-
duzem fatalmente, por um lado, em néticas que aceleram os processos de dades de mundo. Os mesmos meios
flexibilização, liberalização e desre- crescimento ou tornam independen- que servem ao indivíduo para ampliar
gulação. Isto é, em subproletarização, tes a produção de condições naturais o seu ego, aumentam a quantidade de
de uma parte da mão de obra com uma externas parecem enfrentar-se com possibilidades de mundo de modo ex-
relação intermitente com o mercado limites naturais insuperáveis. Sem dú- ponencial.
de trabalho, precarização do emprego vida, também frente a isto reagem as O processo de aceleração vem
e sinistralidade laboral. E, por outro novas formas de governamentalidade, acompanhado de uma fome, quase
lado, em formas de autoexploração as quais tratam ditas limitações como insaciável, de experiência do mundo,
ou superexaploração com ritmos ex- barreiras provisionais superáveis com de captar o mundo em todas as suas
tremos impostos pelas empresas sob a ajuda das mais recentes tecnologias. produções, desentranhá-lo até seus
ameaça de perda de emprego, com As possibilidades que brindam a enge- fundamentos, prová-lo todo. Sem dú-
os quais vai associado um conjunto de nharia genética e a combinação das vida, esse mesmo processo só permite
patologias reconhecidas (desde o con- tecnologias genéticas com as nanotec- uma relação mediada com o mundo.
sumo de drogas, o estresse cronifica- nologias na hibridação antropotecno- Ganhar tempo supõe renunciar à in-
do, as mais variadas somatizações do lógica e a revolução dos transplantes tensidade da experiência. Para poupar
trabalho excessivo etc.). estariam, ainda, por explorar e, por- tempo e ampliar a estreiteza tempo-
tanto, a criação de ciborgues capazes ral o mundo, deve estar predisposto,
Novas formas de governamentalidade de satisfazer as exigências sistêmicas de modo geral, para ser possuído ra-
de aceleração poderá dar a resposta pidamente. Mas, para despachar-se
Evidentemente, a lógica da econo- aos limites aparentemente insuperá- com rapidez é necessário um mundo
mização e mercantilização do tempo veis da biologia. disposto e cunhado para o consumo.
se defronta com limites físicos, bioló- Os indivíduos não só estão chamados a
gicos e antropológicos. A capacidade IHU On-Line - Por que se pode falar racionalizar e economizar o tempo na
de captação e elaboração cerebral de de uma morte da experiência autên- esfera produtiva, mas também o con-
percepções e estímulos, bem como a tica pelo império da velocidade, do sumo funciona sob as mesmas regras.
capacidade de recuperação e reação instante e do descartável? Quais são O mundo no qual pensava o indivíduo,
podem crescer e têm crescido em in- as relações entre esse instante eter- aceleradamente faminto de experiên-
teração com a aceleração dos ritmos no no qual a modernidade está sub- cia, desaparece sem brilho para deixar

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lugar a um mundo preparado e adapta- “Na modernidade não O caráter fantasmagórico de toda
do aos seus desejos de velocidade. Na a cultura, constatado por Walter Ben-
realidade, não é possível experimentar só a arte se tornou jamin, faz desta uma transfiguração
um mundo preparado para o consumo; enganosa da realidade, imagem de-
só se pode comprar e consumir. Sob o mercadoria, senão que siderativa e ideal. O esplendor, a su-
ditado da aceleração, acaba impondo- perfície dessa realidade adquire po-
se uma unificação de procedimentos, as mercadorias, por sua der estupefaciente: os edifícios, as
uma nivelação das diferenças, ape- passagens comerciais, as galerias, as
sar da variedade de objetos, eventos, vez, se transformaram vitrines e as próprias mercadorias. Na
acontecimentos e opiniões sobre as modernidade não só a arte se tornou
quais se aplicam. Sob o imperativo da em arte, adquiriram mercadoria, senão que as mercado-
aceleração, fica destruída uma verda- rias, por sua vez, se transformaram
deira experiência do diverso e diferen- caráter fantástico em arte, adquiriram caráter fantásti-
te que desaparece após a experiência co e onírico. A crítica tradicional da
de uma imensa diversidade submetida e onírico” forma da mercadoria podia mobilizar
a esquemas de consumo acelerado. o conceito de fetiche para denunciar
Entre os teóricos da cultura midiá- os mecanismos ocultos das relações
tica, parece existir certo consenso em sob o trabalho assalariado, que conver- sociais de produção e as formas de do-
torno do fato de que a digitalização te a força de trabalho em mercadoria minação que lhe são constitutivas no
supôs um corte histórico que introduz e a relação contratual no veículo do sistema capitalista. A nova cultura do
uma nova época, uma profunda trans- domínio do capital – realidade essen- consumo, ao instaurar o império do si-
formação da cultura. As tecnologias cialmente social porém oculta pelo fe- mulacro, parece tornar inviável todo
digitais atuam como nova interface tichismo da mercadoria que apresenta intento de desvelamento, de desocul-
global e uniformizada que aumenta o valor de troca como propriedade da tação de uma suposta realidade exis-
a brecha entre os mediadores e os própria mercadoria -, o caráter fan- tente mais além do simulacro, seja do
cidadãos degradados a “usuários” ou tasmagórico da mercadoria, associado lado dos objetos ou dos sujeitos que
“clientes” de um serviço comercializa- à sua estética, revela outra forma de os produzem e os intercambiam. A re-
do do passado registrado. As tecnolo- dominação, cuja finalidade última é a ferência à práxis social concreta na
gias digitais da memória parecem ofe- apropriação mercantil completa do in- qual surgiram desaparece por trás de
recer uma capacidade extraordinária divíduo: a domesticação de seus anelos um jogo de espelhos. As dificuldades
para dispor do acontecer social, grupal não cumpridos, a reorientação de sua para romper o feitiço da identidade
ou individual, graças à sub-rogação di- atenção, a redefinição de seu corpo, a como mercadoria produzida pelo pró-
gital do patrimônio comum através da percepção de si mesmo e da realida- prio sujeito ou da marca que substitui
mediação do mercado. A indústria do de, a remodelação de sua linguagem, o objeto real parecem tornar-se não
registro parece disposta a parcelar o a reestruturação de sua sensibilidade salváveis. Tudo fica submetido à lógi-
passado e, convertido em mercadoria, e sua valoração. O papel da inovação ca da simulação própria do mercado:
transformá-lo num bem de consumo a estética na regeneração da deman- espaços e tempos, gêneros, classes e
mais. A maior ameaça à memória cul- da converteu-a numa instância quase corpos, objetos e indivíduos.
tural vem nestes momentos da mão de com poder e efeitos antropológicos,
sua comercialização digitalizada. capaz de transformar permanente- Face oculta
mente o espécime ser humano em sua
IHU On-Line - De que modo a aura organização sensitiva e psíquica, isto Mas a cultura do consumo não deixa
alucinatória das mercadorias se tra- é, não só em seu equipamento físico por isso de ter uma face oculta. Trata-se
duz num comportamento acrítico do e sua forma de vida material, senão dessa realidade que não deve aparecer,
sujeito? Quais são as implicações po- também em sua estrutura perceptiva, sobre a qual o olhar socializado no espe-
líticas e existenciais desse agir? afetiva, volitiva, imaginativa, deside- táculo das mercadorias e da publicidade
José Antonio Zamora - Frente à forma rativa, etc. Isto supõe tendencialmen- nunca se detém: a coação ao crescimen-
de dominação denunciada por Marx te uma quebra da imediatez sensível to que impõe violentamente o sistema
e a submissão das técnicas estéticas e econômico capitalista, desatendendo
 Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, da economia libidinosa às funções de
cientista social, economista, historiador e re- todo conhecimento e assunção responsá-
volucionário alemão, um dos pensadores que reprodução do capital. vel dos limites; a desigualdade sangran-
exerceram maior influência sobre o pensamen-
to social e sobre os destinos da humanidade no mundo e sua crise. Uma leitura a partir de te que deixa fora de um festim não uni-
século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estu- Marx, disponível para download em http:// versalizável a maioria empobrecida do
dos Repensando os Clássicos da Economia. A migre.me/s7lF. Leia, igualmente, a entrevista  Walter Benjamin (1892-1940): filósofo ale-
edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de Marx: os homens não são o que pensam e de- mão crítico das técnicas de reprodução em
autoria de Leda Maria Paulani tem como título sejam, mas o que fazem, concedida por Pedro massa da obra de arte. Foi refugiado judeu
A (anti)filosofia de Karl Marx, disponível em de Alcântara Figueira à edição 327 da revista alemão e diante da perspectiva de ser cap-
http://migre.me/s7lq. Também sobre o autor, IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível para turado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um
confira a edição número 278 da IHU On-Line, download em http://migre.me/Dt7Q. (Nota dos principais pensadores da Escola de Frank-
de 20-10-2008, intitulada A financeirização do da IHU On-Line) furt. (Nota da IHU On-Line)

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planeta; o caráter inconsciente do pro- no interesse da acumulação continua- F. Hegel), ideias fundamentais na in-
cesso econômico subtraído à capacidade da do capital e vice-versa. A criação de terpretação da história como progres-
de decisão dos sujeitos que o sofrem; o uma população governável com vistas so. Neste sentido, pode-se dizer que
esvaziamento das identidades converti- a uma otimização dos resultados ge- esta ideia é um elemento constitutivo
das em mero produto do mercado e a rais na criação da riqueza das nações da governamentalidade liberal.
publicidade, a domesticação dos anelos vai de mão dada com a ideia de certa
e buscas de transcendência, juramen- mecânica natural intrínseca aos pro- Lógica sacrificial
tando-a com slogans sem suporte real cessos econômicos, que harmoniza e
ou com os reflexos fugazes de realidades otimiza o conjunto através do conflito Segundo o conceito moderno de pro-
que não podem cumprir o que prome- de interesses e a competitividade de gresso a história transcorre através de
tem. O culto da mercadoria oculta que todos contra todos. As técnicas de go- um tempo abstrato e o presente, em
a nova cultura do consumo no hipercapi- verno hão de garantir o livre funciona- cada caso, não é mais que um ponto
talismo constitui numa exploração sem mento dessa mecânica natural. Como numa linha infinita. Por meio de uma es-
medida, também dos consumidores, não é sabido, esta concepção da governa- pécie de lógica sacrifical tudo é funcio-
se detém tampouco ante suas dimensões bilidade liberal se serve de ideias re- nalizado para a construção de um futuro
espirituais. O marketing e a publicidade guladoras, como a da “mão invisível” supostamente melhor que há de instau-
desencadearam uma estratégia gigan- (Adam Smith), a “insociável sociabi- rar-se mais ou menos infalivelmente. Os
tesca que supõe a utilização total do lidade” e a “intenção da natureza (I. acontecimentos, geradores de sofrimen-
ser humano. É preciso sacrificar tudo ao Kant) ou a “astúcia da razão” (G. W. tos massivos, perdem irremissivelmente
ídolo, também a própria alma. Por isso,  Adam Smith (1723-1790): considerado o fun- significação para um avanço irrefreável
este culto consumista representa uma dador da ciência econômica. A Riqueza das e sem fim de tempo. Porém, este tempo
Nações, sua obra principal, de 1776, lançou
forma de ampliação extraordinária do as bases para um novo entendimento do me- abstrato, constituído em segunda natu-
poder. Se o poder econômico é capaz de canismo econômico da sociedade, quebrando reza, não só encobre o caráter histórico
converter o ser humano em todas as suas paradigmas com a proposição de um sistema de sua gênese, para assim poder perpe-
liberal, ao invés do mercantilismo até então
dimensões numa mercadoria, de deter- vigente. Outra faceta de destaque no pensa- tuar-se melhor, senão que oculta com
minar suas dimensões sociais, identitá- mento de Smith é sua percepção das sofríveis ele o brilho deslumbrante do suposta-
rias e, finalmente, espirituais a partir da condições de trabalho e alienação às quais os mente novo: os sofrimentos e catástro-
trabalhadores encontravam-se submetidos com
lógica da mercadoria, trata-se, então, o advento da Revolução Industrial. O Instituto fes que, em dito processo, afetam tanto
de um poder com pretensões absolutas, Humanitas Unisinos – IHU promoveu em 2005 a natureza como os seres humanos. O
de um poder totalitário. o I Ciclo de Estudos Repensando os Clássi- estabelecido possui o poder de ocultar
cos da Economia. No segundo encontro deste
evento a professora Ana Maria Bianchi, da USP, ao olhar aquilo que foi esmagado e se
IHU On-Line - Neste sentido, como proferiu a conferência A atualidade do pensa- perdeu, para assim configurar a maneira
pode o biopoder ajudar-nos a com- mento de Adam Smith. Sobre o tema, conce- de perceber a história por meio da “evi-
deu uma entrevista à IHU On-Line nº 133, de
preender a elaboração ideológica do 21-03-2005, disponível em http://migre.me/ dência” da marcha vitoriosa do que se
progresso como o mais alto nível da xQmm. Ainda sobre Smith, confira a edição 35 impôs em última instância. À injustiça
civilização ocidental? do Cadernos IHU ideias, de 21-07-2005, in-
titulada Adam Smith: filósofo e economista, ri da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas
José Antonio Zamora - O conceito de escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago categorias do entendimento. A IHU On-Line
biopoder pretende dar conta de uma Loureiro Araújo dos Santos, disponível para número 93, de 22-03-2004, dedicou sua maté-
transformação nas práticas e tecno- download em http://migre.me/xQnc. Smith ria de capa à vida e à obra do pensador com o
foi o tópico número I do Ciclo de Estudos em título Kant: razão, liberdade e ética, disponí-
logias do poder. Caracteriza-se por EAD – Repensando os Clássicos da Economia – vel para download em http://migre.me/uNrH.
bem conformar a vida humana sob a Edição 2009, estudado de 13-04-2009 a 02-05- Também sobre Kant foi publicado este ano o
forma do indivíduo (anatomopolítica) 2009. O Ciclo de Estudos em EAD – Repensan- Cadernos IHU em formação nº 2, intitulado
do os Clássicos da Economia - Edição 2010, Emmanuel Kant - Razão, liberdade, lógica e
ou da população (biopolítica). Seu ob- em seu primeiro módulo, falou sobre Adam ética, que pode ser acessado em http://mi-
jetivo não é inibir, dobrar ou aniquilar Smith: filósofo e economista. Para conferir a gre.me/uNrU. (Nota da IHU On-Line)
as forças vitais, senão aperfeiçoá-las, programação do evento, visite http://migre.  Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo ale-
me/xQsg. (Nota da IHU On-Line) mão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás
enriquecê-las e estimulá-las de modo  Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- de Aquino, tentou desenvolver um sistema fi-
continuado, com vistas à sua otimiza- no, considerado como o último grande filósofo losófico no qual estivessem integradas todas
ção e economização. Não cabe dúvida dos princípios da era moderna, representante as contribuições de seus principais predeces-
do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus sores. Sua primeira obra, A fenomenologia do
de que, independentemente de que a pensadores mais influentes da Filosofia. Kant espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos
formação do dispositivo biopolítico e teve um grande impacto no Romantismo ale- da Europa continental no século XX. Sobre He-
a da economia política capitalista não mão e nas filosofias idealistas do século XIX, gel, confira a edição nº 217 da IHU On-Line,
tendo esta faceta idealista sido um ponto de de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do
tenham entre si uma relação causal, partida para Hegel. Kant estabeleceu uma espírito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel
existe entre ambas uma conexão sis- distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (1807-2007), em comemoração aos 200 anos
temática, com efeitos históricos muito (que chamou noumenon), isto é, entre o que de lançamento dessa obra. O material está
nos aparece e o que existiria em si mesmo. disponível em http://migre.me/zAON. Sobre
poderosos. A otimização e a economi- A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser Hegel, leia, ainda, a edição 261 da IHU On-
zação das forças vitais possuem uma objeto de conhecimento científico, como até Line, de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho
significação decisiva para o aumento então pretendera a metafísica clássica. A ciên- Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, dis-
cia se restringiria, assim, ao mundo dos fenô- ponível em http://migre.me/zAOX. ���������
(Nota da
da produtividade da força de trabalho menos, e seria constituída pelas formas a prio- IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 


sofrida pelos oprimidos e aniquilados se tata Baudrillard, “a história não chega tempo messiânico, ao menos tal como
une a eliminação dos vestígios que pode- a ocorrer, (…) a história se funde em o define Walter Benjamin, se entende
riam recordá-los. A ideia de progresso é seu efeito imediato, se esgota em seus como uma réplica aos esquemas tem-
um elemento chave de legitimação ide- efeitos especiais, implode em atuali- porais dominantes na cultura ociden-
ológica da biopolítica. dade.” Por isso, do ponto de vista dos tal, o do progresso e do eterno retor-
indivíduos, se impõe uma sensação de no do mesmo ou do fim da história.
IHU On-Line - Qual é a legitimida- paralisação e imobilidade, de destempo- Estes dois esquemas, aparentemente
de em falarmos de pós-humanismo, ralização por acumulação e multiplica- contrapostos, são na realidade as duas
pós-modernidade, pós-político, pós- ção dos acontecimentos, possibilidades, faces da mesma moeda. A concepção
histórico, quando sabemos que essas vivências, ações, etc., todas de caráter do progresso como sequência linear e
condições são o ápice do processo de episódico, fugazes, desconexas, descon- contínua de mudanças de um tempo
aceleração capitalista? textualizadas, que apenas deixam vestí- que transcorre de forma completa-
José Antonio Zamora - Apesar da cres- gio e podem escassamente ser integra- mente homogênea produz paradoxal-
cente aceleração e da persistência dos das numa sequência biográfica capaz de mente a impressão de um completo
mitos modernos do progresso e do avanço dotá-las de sentido. A novidade e a mu- vazio do curso do tempo e não põe
histórico, também nos encontramos com dança acelerada parecem confundir-se o acento na definição qualitativa do
discursos não menos influentes sobre o com um eterno retorno do mesmo, ou, novo, senão que converte o processo
fim da história e, junto com ele, sobre para empregar uma imagem usada por histórico num movimento automático
o fim da razão, do sujeito, da política, Paul Virilio, um redemoinho que não sai que confere ao novo uma significação
das ideologias, etc. Um sentimento mui- do lugar. meramente temporal. Esta desqua-
to estendido de esgotamento de todas as lificação do novo, seu esvaziamento
energias utópicas e uma sensação de que IHU On-Line - De que forma o concei- de conteúdo material e sua redução
nada realmente essencial muda, de que to do tempo messiânico ajuda a com- a um esquema abstrato é registrada
nada verdadeiramente novo pode acon- preender esse cenário e estabelecer e sancionada pela ideia de um eterno
tecer, de que nos encontramos ante um um contraponto? retorno.
horizonte histórico incontornável, pare- José Antonio Zamora - O conceito de Neste sentido, o Reino de Deus
cem servir de pretexto a ditos discursos não é a meta da dinâmica histórica,
� Jean Baudrillard (1929-2007): filósofo e so-
que põem o acento nas cristalizações e ciólogo. Um
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dos importantes pensadores oci- senão seu final. Pensar a história
nas estruturas subjacentes à mudança, dentais da atualidade, é autor de vários livros dirigida pela astúcia darazão em di-
bem como na experiência subjetiva que entre os quais destacamos: A troca impossí- reção a um estado de plenitude ha-
vel (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002);
refletia a metáfora weberiana da “jaula A ilusão vital (Civilização Brasileira, 2001) e via sido a obra da filosofia moderna
de aço”. Frente à modernidade “clássi- A sociedade do consumo (Lisboa: Edições 70, da história, tanto em suas versões
ca” parece emergir uma modernidade 2000). De Baudrillard a IHU On-Line publicou burguesas como socialdemocratas.
o artigo A máscara da guerra, na edição 51,
“líquida”, “reflexiva”, “segunda”, na de 17-03-2003. O Prof. Dr. Juremir Machado Porém esta compreensão, insepará-
qual a aceleração dá um giro em pura da Silva apresentou o IHU Ideias de 11-09- vel de uma teodiceia justificadora
simultaneidade do diverso. O que, à 2003, intitulado 11 de setembro: Ano III. Uma do sofrimento e da injustiça como
reflexão a partir de Jean Baudrillard. Sobre
primeira vista, parece um paradoxo da esse tema, Juremir concedeu uma entrevista preço do avanço em direção à meta,
experiência do tempo na modernidade na 74ª edição da IHU On-Line, de 08-09-2003, representa a visão dos vencedores, à
tardia, tem a ver com os fatores econô- sob o título 11 de setembro segundo Jean qual, segundo o Benjamin das Teses,
Baudrillard. Confira as Notícias do Dia 07-03-
micos, culturais e sociais que determi- 2007: Morre o sociólogo francês Baudrillard, as vítimas hão de opor-se com todas
nam a transformação de suas estruturas crítico feroz da sociedade de consumo e Bau- as suas forças, pois compartilhá-la
temporais e a dialética que lhes é ineren- drillard, disponível em http://bit.ly/9SBaGZ. significa verem-se a si mesmas com
(Nota da IHU On-Line)
te. Por isso, resulta necessário clarificar  Paul Virilio (1932): urbanista e filósofo fran- o olhar de quem os oprime e aniquila
qual ou quais são os fatores determinan- cês. Estuda e critica efeitos perniciosos da ve- e perder quase toda a capacidade de
tes (inovação técnica, lógica econômica, locidade nas relações sociais contemporâneas, combater.
desde os seus reflexos no processo cognitivo
diferenciação social, mudanças cultu- até suas implicações na política. É autor, entre Um traço fundamental da práxis
rais) de dita transformação e as relações outros, de Guerra pura (São Paulo: Brasilien- messiânica, segundo Benjamin, tem
que existem entre eles. se, 1984); O espaço crítico (Rio de Janeiro: a ver com a maneira em que dita
Editora 34, 1993); A máquina de visão (Rio de
A aceleração, à qual estão submeti- Janeiro: José Olympio, 1994); Velocidade e práxis se insere no devir histórico
das todas as mudanças sociais, produz política (São Paulo: Estação Liberdade, 1996); e com a rememoração do passado.
uma sensação de velocidade irrefreável. A bomba informática (São Paulo: Estação Li- A recordação no momento do peri-
berdade, 1999) e Ville panique (Paris: Galilée,
Porém, ao mesmo tempo os aconteci- 2004). Reproduzimos duas entrevistas com Vi- go, enquanto memória de um futuro
mentos e fatos submetidos a essa velo- rilio sobre o seu livro Ville Panique, uma na já pretérito, do futuro não aconte-
cidade carecem de duração e, em certo 108ª edição da IHU On-Line, de 05-07-2004, cido, do subtraído às vítimas, não
disponível em http://bit.ly/chQJ0R, outra na
sentido, de consequências duradouras. 136ª edição, de 11-0-04-2005, disponível em estabelece um contínuo histórico,
Vivemos, pois, com a sensação de que http://bit.ly/auzfww. Dele, também publica- senão que antes faz valer o cará-
nada essencial muda, de que não sucede mos outra entrevista na 95ª edição da IHU On- ter não cerrado nem liquidado do
Line, de 05-04-2004, disponível em http://bit.
nada essencialmente novo. Como cons- ly/cpkXIN. (Nota da IHU On-Line) sofrimento passado e as esperanças
10 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343
“Um traço fundamental
da práxis messiânica,
segundo Benjamin, tem Governar no Ocidente é exercer
a ver com a maneira em
o poder como exceção
que dita práxis se insere
Decretos-lei, leis de necessidade e urgência, poderes especiais
no devir histórico e com delegados ou assumidos pelo executivo são demonstrações de
a rememoração do que a exceção é sinônimo de governo no Ocidente, pontua o
filósofo argentino Edgardo Castro
passado”
Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger
pendentes das vítimas da história.

O
Só a partir deste futuro já pretérito
é possível pensar que o futuro atual s aspectos aproximadores e distanciadores das filosofias de
tenha uma oportunidade de ser algo Agamben e Foucault são o tema da entrevista a seguir, conce-
mais do que o prolongamento da dida por e-mail à IHU On-Line pelo filósofo argentino Edgardo
catástrofe. Para Walter Benjamin, Castro. “As relações entre Agamben e Foucault não são sempre
“não existe instante que não leve
fáceis de discernir. Há entre eles continuidades e rupturas. É o
em si uma oportunidade revolucio-
jogo do pensamento”, assinala. E continua: “Para Agamben, diversamente
nária”. Mas, a materialização desta
oportunidade depende da interrup- de Foucault, a produção da vida nua não é um fenômeno moderno, senão
ção do curso catastrófico da histó- tão velho como a existência do mesmo poder soberano”. Por vida nua po-
ria. O resgate ao qual está chamado demos compreender aquela vida colocada “fora da lei dos deuses e das leis
o ato revolucionário não se produz dos homens”. Para Agamben, os dois polos da máquina política do Ocidente
segundo a lógica das “leis históricas são a produção da vida nua e sua administração, explica Castro. “A ideia de
da evolução”, senão contra elas: Agamben é que, na política ocidental, lei e exceção se sobrepõem. Governar
acendendo-se frente a elas como seu no Ocidente é, por isso, exercer o poder na forma da exceção: os decretos-
contrário, resistindo a elas e nessa lei, as leis de necessidade e urgência, os poderes especiais delegados ou
resistência conformando sua própria assumidos pelo executivo”.
identidade e, portanto, mais que se Edgardo Castro é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg, na
tornando segundo a lógica da evolu-
Suíça. Leciona no departamento de filosofia da Universidade Nacional de La
ção, quebrando seu curso. O kairós
Plata, na Argentina. De seus livros, citamos Pensar a Foucault (Biblos: Buenos
messiânico-revolucionário designa
aquela situação histórica na qual Aires, 1995), Betrachtungen zum Thema Mensch und Wissenschaft (Fribourg:
presente e passado se desvincularam Presse Universitaire de Fribourg, 1996) e El vocabulario de Michel Foucault
do contínuo histórico e formaram (Unqui: Prometeo, 2004). Confira a entrevista.
uma constelação que possibilita uma
nova perceptibilidade e uma nova IHU On-Line - Em nossos dias, como
práxis. Nesta correspondência se é que a vida é transformada em
riando a sua própria opinião de si mesmo,
um pós-moderno. Seus primeiros trabalhos
unem a vontade de uma restituição vida nua? Qual é a imbricação do (História da Loucura, O Nascimento da Clí-
e um saneamento do aniquilado e a poder com essa transformação? nica, As Palavras e as Coisas, A Arqueologia
força para realizá-lo na interrupção Edgardo Castro - Durante a década
do Saber) seguem uma linha estruturalista,
o que não impede que seja considerado ge-
do curso catastrófico da história. de 1970 ou, mais precisamente, en- ralmente como um pós-estruturalista devi-
tre 1974 e 1979, uma parte impor- do a obras posteriores como Vigiar e Punir
e A História da Sexualidade. Foucault trata
tante das investigações de Foucault principalmente do tema do poder, rompendo
 Michel Foucault (1926-1984): filósofo fran- com as concepções clássicas deste termo.
Leia Mais... cês. Suas obras, desde a História da Loucura Para ele, o poder não pode ser localizado em
>> Confira outra entrevista concedida por até a História da sexualidade (a qual não uma instituição ou no Estado, o que tornaria
José Antonio Zamora à IHU On-Line. pôde completar devido a sua morte) situ- impossível a “tomada de poder” proposta
am-se dentro de uma filosofia do conheci- pelos marxistas. O poder não é considerado
* O império do instante e a memória. Notícias mento. Suas teorias sobre o saber, o poder como algo que o indivíduo cede a um sobera-
do Dia 01-11-2009, disponível em http://bit. e o sujeito romperam com as concepções no (concepção contratual jurídico-política),
ly/ce9wfa. modernas destes termos, motivo pelo qual mas sim como uma relação de forças. Ao ser
é considerado por certos autores, contra- relação, o poder está em todas as partes,

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 11


giraram em torno da biopolítica. Nes-
tes anos Foucault ensaiava várias vias
“Homo sacer é um livro nua, vida exposta à morte. O segundo
é o que tem como objetivo adminis-
de acesso a esta problemática: a par-
tir da medicina, do direito, da guerra
de Agamben que tem trá-la. Estes dois conceitos são, para
Agamben, os dois polos da máquina
e da economia. Por isso, não há nele
um único conceito de biopolítica. Em
uma dívida importante política do Ocidente.

todos eles, sem embargo, se trata do


mesmo fenômeno, da maneira em que
com as análises de IHU On-Line - Por que a vida nua é o
fundamento da política ocidental?
a política se encarrega da vida bioló-
gica da população. Foucault não fala,
Foucault, porém Edgardo Castro – Considerando a res-
posta anterior, creio que a vida nua,
neste sentido, de vida nua, senão de
vida biológica da população.
desenvolve um modo finalmente, não é para Agamben o fun-
damento da política ocidental. Este fun-
Giorgio Agamben, ao menos em
Homo Sacer: o poder soberano e a
próprio de enfocar a damento está, antes, no que articula os
dois polos da máquina política, o que
vida nua I (Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2002), modifica esta ideia de biopolí-
problemática biopolítica” constitui, segundo a formulação de O
reino e a glória, o arcanum imperii, o
tica. Na relação que define a biopolí- segredo melhor guardado do poder. Este
tica, a relação entre política e vida, é um fenômeno moderno, senão tão fundamento é, então, a glória em seu
em lugar da política entendida num velho como a existência do mesmo duplo sentido, objetivo e subjetivo, o
sentido amplo (o aparato estatal, mas poder soberano. Os campos de con- glorificado e a glorificação. Este concei-
também as práticas governamentais), centração do século XX, neste senti- to, marcadamente teológico, de glória
vamos encontrar-nos com um conceito do, não trazem mais à luz, com todo o pode ser traduzido, em termos mais mo-
mais restrito, o de soberania ou poder horror que isso traz consigo, esta im- dernos, por consenso. Soberania e go-
soberano. Em lugar da vida biológica plicação constitutiva de poder de vida verno, poder de expor a vida à morte e
da população, também vamos encon- e de morte. poder de administrar a vida se fundem,
trar-nos com um conceito mais restri- então, no consenso. A Agamben, neste
to, o de vida nua. O poder soberano IHU On-Line - A partir deste aspecto, sentido, interessa sublinhar aqui o nexo
produz vida nua. O que é esta vida nua? quais são as possíveis leituras biopo- entre totalitarismo e democracia.
A vida colocada pelo poder fora da lei líticas de Agamben?
dos deuses e das leis dos homens. A Edgardo Castro - Homo sacer I é, sem IHU On-Line - Além dos campos de
vida da qual podemos dispor sem ne- dúvida, um livro que retoma as inves- concentração, quais são os espaços
cessidade de celebrar sacrifícios ou de tigações de Foucault, porém o faz de físicos onde se executou e se execu-
cometer homicídio. Essa vida é a que maneira crítica. O mesmo se poderia tam com mais radicalidade as biopo-
exemplifica, precisamente, a figura do dizer de O reino e a glória (2007), líticas contemporâneas? E em quais
homo sacer, o homem sagrado do di- porém em outro sentido. Este último mecanismos simbólicos opera esse
reito romano. trabalho, escrito um pouco mais de biopoder?
Para Agamben, diversamente de uma década mais tarde, sem deixar de Edgardo Castro - A questão do espaço
Foucault, a produção da vida nua não ser crítico, está mais próximo de Fou- é, sem sombra de dúvida, uma ques-
cault. Aqui Agamben, como Foucault, tão central da política moderna e do
uma pessoa está atravessada por relações de
poder, não pode ser considerada independente enfoca a biopolítica desde a perspec- modo em que a pensamos. Poder-se-
delas. Para Foucault, o poder não somente re- tiva do governo, e não só da sobera- ia dizer, inclusive, que, em relação ao
prime, mas também produz efeitos de verdade nia. E, também como ele, Foucault
e saber, constituindo verdades, práticas e sub- século XIX, os conceitos políticos se
jetividades. Em duas edições a IHU On-Line de Nascimento da biopolítica vincula espacializaram. O problema já não é o
dedicou matéria de capa a Foucault: edição a biopolítica com a questão da econo- porvir, como todo o sentido de utopia
119, de 18-10-2004, disponível para downlo- mia e do liberalismo. Apesar disso, o
ad em http://migre.me/vMiS e a edição 203, que pode ter, senão o modo em que a
de 06-11-2006, disponível em http://migre. modo pelo qual analisa tanto a noção política ou o político se relaciona com
me/vMj7. Além disso, o IHU organizou, du- de economia como a formação do libe- o espaço. O campo de concentração,
rante o ano de 2004, o evento Ciclo de Es- ralismo difere notavelmente do modo
tudos sobre Michel Foucault, que também paradigma da política ocidental para
foi tema da edição número 13 dos Cadernos como o faz Foucault. Agamben, é um conceito espacial, não
IHU em Formação, disponível para download Pois bem, se tomarmos em conta temporal. Globalização também o é.
em http://migre.me/vMjd sob o título Michel este giro que se produz em Agamben,
Foucault. Sua contribuição para a educação, A questão dos espaços biopolíticos
a política e a ética. Confira, também, a en- entre Homo sacer I e O reino e a gló- pode ter ao menos duas grandes res-
trevista com o filósofo José Ternes, concedida ria, creio que podemos distinguir nele postas em Agamben. Em primeiro lu-
à IHU On-Line 325, sob o título Foucault, a dois conceitos de biopolítica. Esque-
sociedade panóptica e o sujeito histórico, dis- gar, em relação com o espaço físico,
ponível em http://migre.me/zASO. De 13 a 16 maticamente, biopolítica-soberana e o território ou os territórios que, por
de setembro de 2010 acontece o XI Simpósio bipolítica-economia-governo. O pri- lei, se encontram fora da lei. Espaços
Internacional IHU: O (des)governo biopolí- meiro é, como dissemos antes, o que
tico da vida humana. Para maiores informa- onde a lei se aplica desaplicando-se,
ções, acesse http://migre.me/JyaH. (Nota da tem como objetivo a produção de vida como os campos de concentração na-
IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


zistas, mas também Guantánamo e os Potência-de-não Agamben, ser equiparadas aos exclu-
lugares de retenção dos aeroportos. ídos, aos desviantes, mencionados
Em segundo lugar, em relação com o A questão da potência em Agamben é por Foucault ao longo de sua obra?
espaço conceitual. A ideia de Agam- uma questão-chave. É onde seu pensa- Por quê?
ben é que, na política ocidental, lei mento alcança sua maior profundidade Edgardo Castro - As relações entre
e exceção se sobrepõem. Governar no filosófica. Ele deve muito a Heidegger Agamben e Foucault não são sem-
Ocidente é, por isso, exercer o poder neste ponto, sobretudo ao Heidegger pre fáceis de discernir. Há entre eles
na forma da exceção: os decretos-lei, que lê e interpreta a Metafísica de continuidades e rupturas. É o jogo
as leis de necessidade e urgência, os Aristóteles. Porém, sua leitura, pelo do pensamento. Às vezes os concei-
poderes especiais delegados ou assu- menos em meu modo de ver, precisa- tos se aproximam, inclusive até so-
midos pelo executivo, etc. Neste sen- mente no tema da potência, termina brepõem-se, porém isso não significa
tido, o espaço da biopolítica coincide diferenciando-se de Heidegger. Se isto que estejam falando da mesma coisa.
com o da política ocidental. é assim, se a potência-de-não, exem- Sem dúvida, o conceito de exceção é,
plificada em Agamben com o perso- em Agamben, seguindo nisto as indi-
IHU On-Line - Se “o que resta de Aus- nagem de Bartleby, de Melville, é cações de Carl Schmitt, um conceito
chwitz” é nosso presente e o biopo- o conceito-chave para pensar o ani- central. A lei se aplica desaplicando-se
der nos (des)governa, qual é o espa- mal humano, então nossos conceitos mediante a exceção. Na política oci-
ço da autonomia e da liberdade? antropológicos e, portanto, também dental, ademais, a exceção é cada vez
Edgardo Castro - O que resta de Aus- nossas práticas, as políticas entre ou- mais a norma. Governar no Ocidente é
chwitz (São Paulo: Boitempo, 2009) é tras, deveriam ser repensadas. Toda fazê-lo, de um modo ou de outro, em
muito mais do que um livro sobre bio- a ênfase na produção, no trabalho ou estado de exceção.
política. Inclusive se poderia dizer que a no êxito e a realização passariam, por Mas, a exceção agambeniana e a
biopolítica nem sequer é o tema central exemplo, a um segundo plano. A forma normalização foucaultiana não são o
deste trabalho. Mais ainda, poder-se-ia da comunidade também teria outra fi- mesmo conceito. Buscam pensar um
dizer que ele trata do que na biopolítica sionomia. mesmo problema, porém não o fazem
não é biopolítica, pelo menos no senti- da mesma forma. Para Agamben, tra-
do negativo do termo. O tema do livro, IHU On-Line - As pessoas que “me- ta-se de mostrar, através da exceção,
como diz o subtítulo, é o arquivo e o tes- ramente existem” poderiam, para como por lei se pode estar fora da lei,
temunho, quer dizer, as formas possíveis  Martin Heidegger (1889-1976): filósofo como a vida se relaciona com o poder
da subjetividade. Agamben encontra que alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo soberano na medida em que está ex-
(1927). A problemática heideggeriana é am-
a estrutura da subjetividade coincide pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas cluída. A normalização foucaultiana,
com a do testemunho, é uma operação sobre o humanismo (1947), Introdução à meta- por sua parte, busca explicar como,
pela qual, ingressando na linguagem, física (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line em nossas sociedades, funciona, ao
publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo
quando diz “eu”, o animal humano se O pensamento jurídico-político de Heidegger mesmo tempo, entrelaçados entre si,
converte em sujeito e, ao mesmo tem- e Carl Schmitt. A fascinação por noções fun- o poder da lei (o Estado e suas institui-
po, se dessubjetiviza. Agamben quer, na dadoras do nazismo, disponível para download ções) e o poder da norma (um poder
em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger,
parte final do livro, transladar esta ideia confira as edições 185, de 19-06-2006, intitu- governamentalizado, isto é, atravessa-
à noção foucaultiana de arquivo. lada O século de Heidegger, disponível para do pelo saber das ciências humanas).
Os temas da autonomia e da liber- download em http://migre.me/uNtv, e 187, de Tendo isto em conta, as pessoas que
3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
dade não desempenham nesta obra um trução da metafísica, que pode ser acessado meramente existem e os desviados
papel importante. E talvez tão pouco em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda, foucaultianos podem ser comparados,
no resto dos trabalhos de Agamben. O o nº 12 do Cadernos IHU em formação, inti- mas, me parece, não identificados.
tulado Martin Heidegger. A desconstrução da
problema para Agamben não é a auto- metafísica, que pode ser acessado em http://
nomia, com toda a herança de Ilumi- migre.me/uNtL. Confira, também, a entrevis- IHU On-Line - O cidadão estrangei-
nismo que este conceito traz consigo. ta concedida por Ernildo Stein à edição 328 da ro, o louco, a prostituta, o idoso, o
revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponí-
E tão pouco a liberdade e, neste caso, vel em http://migre.me/FC8R, intitulada O transsexual e, mais recentemente,
com todo o seu peso humanista; e sim, biologismo radical de Nietzsche não pode ser os gordos, são alguns dos bodes ex-
o conceito de potência. O sujeito se de- minimizado, na qual discute ideias de sua con- piatórios que a modernidade como-
ferência A crítica de Heidegger ao biologismo
fine pela potência. Sem dúvida, não se de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte damente aponta para expiar seus
trata da potência de fazer algo, senão integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da medos e culpas. Como podemos com-
da potência, da capacidade, de poder diferença - Pré-evento do XI Simpósio Inter- preender essa necessidade de rotu-
nacional IHU: O (des)governo biopolítico da
não fazer algo. O que o autor denomi- vida humana. (Nota da IHU On-Line) lação e exclusão?
na a “potência-de-não”. O homem é  Bartleby the Scrivener: A Story of Wall Stre- Edgardo Castro - É curioso, ser gordo
realmente humano na medida em que et:conto de Herman Melville. (Nota da IHU se converteu hoje em insulto. Talvez o
On-Line)
“pode-o-não”, pode não passar ao ato.  Bartle Herman Melville (1819-1891): no- único que nos resta. Creio que poucas
As noções de autonomia e de liberda- velista norte-americano, ensaíta e poeta. Sua coisas podem resultar tão ofensivas,
de deveriam ser, se não abandonadas, obra principal é Moby-Dick. (Nota da IHU On- no âmbito das relações pessoais, como
Line)
reinterpretadas sob este ângulo. dizer na cara de alguém: “gordo”.

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 13


“Na política ocidental, ademais, a exceção é cada
vez mais a norma. Governar no
Ocidente é fazê-lo, de um modo ou de
outro, em estado de exceção”
Sobretudo se se trata de uma pessoa ramente, introduzir algumas distinções
jovem. “Gorda”, no feminino, é ain- e resulta difícil isolar por completo
da mais ofensivo. Pôr nomes e atribuir determinados comportamentos e prá-

Acesse www.ihu.unisinos.br
qualificativos certamente tranquiliza. ticas políticas desse núcleo biopolítico
Isso não explica, sem dúvida, a neces- que define nossa modernidade. Apesar
sidade de exclusão. disso, creio que querer reunir todos os
Em todo o caso, uma coisa é certa: fenômenos de exclusão em termos bio-
nas análises de Agamben e de Foucault, políticos, por um lado, tira capacidade
entre outros, mais além da linguagem de análise à categoria de biopolítica e,
humanista com que fequentemente por outro, deixa especificidade às rea-
tecemos nossos discursos e nossas prá- lidades que se quer compreender. Nem
ticas, nossa identidade ocidental – tal- toda forma de racismo é, para dizê-lo
vez também em outras culturas ou em em poucas palavras, um racismo bio-
todas – se constituiu sempre em torno político, isto é, biológico e do Estado.
de alguma forma de exclusão. Iden-
tidade e exclusão são, neste sentido, IHU On-Line - Homo sacer é o livro que
complementares. Foucault deveria ter escrito? Por quê?
Por isso, o problema não está tanto Edgardo Castro - Pouco antes de mor-
no “por que excluímos”, senão por que rer, em 1983, perguntaram a Foucault
temos tanta necessidade de identida- acerca da possibilidade de escrever
de. Uma ideia percorre grande parte uma genealogia da biopolítica. Sua
do pensamento filosófico contempo- resposta foi que seria necessário que o
râneo — pensar além do identitário: fizesse, mas que não tinha tempo nes-
o homem qualquer de Agamben, a se momento. Quando se observa com
comunidade inoperante de Blanchot atenção a bibliografia de Foucault, a
ou Nancy são alguns exemplos disso. gente se dá conta que seus livros, a
Em todo o caso, a necessidade de pôr partir de 1974, têm seu correlato nos
nome para identificar o outro e tran- cursos no Collège de France. O con-
quilizar-nos, crendo que com isso te- trário, sem dúvida, não é certo, não é
mos o bastante para conhecê-lo, se a todos os cursos ou grupos de cursos
acaba encontrando que, para a experi- que corresponde um livro. E é o que
ência fundamental da política ociden- sucede, precisamente, com os cursos
tal do século XX, que ainda é a nossa, que se ocupam de biopolítica. Dos li-
não temos um nome. “Holocausto” vros publicados em vida por Foucault,
não é, como muitos sublinharam, um somente 14 páginas de História da Se-
nome apropriado. xualidade I: A Vontade de Saber (Rio
de Janeiro: Graal, 1993) se ocupam de
IHU On-Line - De que modo o concei- biopolítica. Pouco, demasiado pouco.
to de biopoder, de Foucault, e o de Se Foucault tivesse escrito uma ge-
vida nua, de Agamben, podem apon- nealogia do biopoder, creio que ela se-
tar para uma compreensão sobre a ria distinta de Homo sacer. E isso por
situação dos migrantes e da vida po- várias razões. Uma delas, importante
lítica segregacionista norte-america- sem dúvida, é que as análises de Fou-
na para os latinos? cault, diversamente de Agamben, nun-
Edgardo Castro - Seria preciso, segu- ca se movem dentro do paradigma da
secularização. Homo sacer é um livro
 Maurice Blanchot (1907-2003): filósofo, ro-
mancista e crítico literário francês, autor de O de Agamben que tem uma dívida im-
espaco literário (Rio de Janeiro: Rocco, 1987), portante com as análises de Foucault,
Pena de morte (Rio de Janeiro: Imago, 1991) porém desenvolve um modo próprio de
e El paso (no) más Allá (Barcelona: Paidós,
1994). (Nota da IHU On-Line) enfocar a problemática biopolítica.

14 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


Os impactos da financeirização sobre o sujeito
A financeirização é uma forma de biopoder, teoriza o economista Andrea Fumagalli. A au-
tonomia pessoal é hoje muito mais limitada do que há três décadas, e a individualidade
foi suplantada pelo individualismo: a alienação física tende a converter-se em cerebral

Por Márcia Junges | Tradução Anete Amorim Pezzini

“N
o paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o
local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia”, reflete o eco-
nomista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para ele, a crise financeira é, também, uma crise de desenvolvimento capitalista, e a
crise da governança não é apenas técnica, mas também política.
Outro nexo entre a financeirização como forma de biopoder é a crescente privatização dos serviços de
saúde, que “aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto
do ponto de vista físico quanto do mental”. Segundo Fumagalli, em nossos dias a “alienação do corpo tende
a tornar-se cerebral”. O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de
chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de
trabalho cada vez mais individualizado e precário. Paradoxalmente, continua, a autonomia pessoal é muito
mais limitada hoje do que há 30 anos: “A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho
poderia ser traduzida também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o
horário de trabalho, a disciplina do trabalho acabava em favor de outras estruturas disciplinares”. Resulta
que atualmente a autonomia individual é limitada e reprimida, em plena “era da ideologia do indivíduo
livre”. Em lugar da individualidade, reifica-se o individualismo.
Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política
e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Dentre seus
vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006) e
Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Verona: Ombre corte,
2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que considera a zação da esfera reprodutiva da vida. Os mercados financeiros — por meio
financeirização como uma forma de Exercitam, portanto, o biopoder. Os dos índices de mercado — represen-
biopoder? mercados financeiros, assim, assumem tam, em resumo, um tipo de multipli-
Andrea Fumagalli - No paradigma atu- o lugar do antigo estado de bem-estar cador real da economia, e neles con-
al do capitalismo cognitivo, os merca- keynesiano e levam a cabo as formas densam-se todas as expectativas dos
dos financeiros, longe de serem o local indiretas de redistribuição do capital grandes operadores econômicos. Não é
de rendimento parasitário improduti- para o trabalho, gerenciando de modo por acaso que, na década passada, os
vo, são o motor da economia. Eles re- direto e distorcido as quotas crescen- bancos centrais fizeram depender as
presentam o lugar onde valoriza-se, ao tes de rendimento do trabalho que ali escolhas de política monetária (taxas
mesmo tempo, a produtividade intan- são canalizadas de forma mais ou me- de juro e a oferta de moeda corrente),
gível e cognitiva e executa-se a priva- nos forçada. Enquanto isso, as grandes em função do objetivo de estabilizar
tização dos serviços sociais. Canalizan- instituições financeiras multinacionais a dinâmica dos mercados financeiros,
do de modo forçado parte crescente da são hoje organizações que valorizam com a esperança — totalmente ilusória
renda do trabalho (pensões e indeni- “indiretamente” a acumulação da — de limitar as oscilações e a volatili-
zações, além de renda que, por inter- produção mundial, assim como no pa- dade. Além disso, com o advento do
médio do estado social, traduzem-se radigma fordista os lucros das grandes capitalismo cognitivo, o processo de
nas instituições de proteção da saúde multinacionais manufatureiras foram exploração perde a unidade de me-
e da educação pública), substituíram o espelho das relações de força entre dida quantitativa ligada à produção
o Estado como segurador social. Desse o capital industrial e o trabalho assa- industrial. Tal medida foi, de alguma
ponto de vista, representam a privati- lariado. forma, definida pelo conteúdo do tra-
SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 15
balho necessário para a produção de “Falar sobre a mento da relação entre débito e crédito
mercadorias, medida pela tangibilida- ou por meio do aumento do número de
de da produção própria e pelo tempo especulação excessiva pessoas endividadas (grau de extensão
necessário para a produção. dos mercados financeiros) ou por meio
Com o advento do capitalismo cog- para a ganância dos da construção de novos instrumentos fi-
nitivo, a valorização tende a engajar-se nanceiros que se alimentam do comércio
nas várias formas de trabalho, que tra- gestores ou dos bancos financeiro já existente (o grau de inten-
gam as horas de trabalho efetivamente sidade mercados financeiros). Os produ-
autorizadas para coincidir sempre mais não tem tos derivados são um exemplo clássico
com o tempo de vida. Hoje, o valor do dessa segunda modalidade de expan-
trabalho na base da acumulação capita- absolutamente nenhum são dos mesmos mercados financeiros.
lista é também o valor do conhecimen- Sejam quais forem os fatores conside-
to, dos afetos e dos relacionamentos, do sentido e só pode servir rados, a expansão dos mercados finan-
imaginário e do simbólico. O êxito dessas ceiros é acompanhada necessariamente
transformações biopolíticas é a crise da somente para desviar a ou pelo aumento do endividamento ou
medida tradicional do valor-trabalho e, pelo aumento da atividade especulativa
com ela, a crise da forma-lucro. Uma atenção das verdadeiras e dos riscos envolvidos. Trata-se de uma
possível solução “capitalista” era me- dinâmica intrínseca ao papel dos merca-
dir a exploração da cooperação social causas estruturais dos financeiros como a pedra angular do
e do intelecto geral por intermédio da capitalismo cognitivo.
dinâmica dos valores de mercado. O lu- dessa crise” Falar sobre a especulação excessi-
cro transforma-se assim em renda, e os va para a ganância dos gestores ou dos
mercados financeiros tornam-se o lugar bancos não tem absolutamente nenhum
— isso leva a uma redistribuição destor-
da determinação do valor-trabalho, o sentido e só pode servir somente para
cida de renda. Para que tal multiplica-
que se transforma em valor-finança que desviar a atenção das verdadeiras cau-
dor seja operativo (> 1), é necessário
não é outro senão a expressão subjetiva sas estruturais dessa crise. O resultado
que a base financeira (ou seja, a exten-
da expectativa dos lucros futuros reali- final é, necessariamente, a insusten-
são dos mercados financeiros) esteja
zados pelos mercados financeiros que tabilidade de um endividamento cres-
constantemente aumentando e que os
acumulam, desse modo, um rendimen- cente, especialmente quando começa
ganhos de capital acumulados sejam,
to. É esse o biopoder das finanças con- a ficar endividada parte da população
em média, superiores à perda do salá-
temporâneas. com maior risco de insolvência: exa-
rio mediano (que, a partir de 1975 em
tamente aqueles estratos sociais que,
diante, foi de aproximadamente vinte
IHU On-Line - Em que sentido a crise devido à precariedade dos processos
por cento). Por outro lado, a polari-
das finanças é crise de governança de trabalho, não estão em condições
zação das rendas aumenta o risco de
financeira do biopoder atual? de desfrutar daquele “efeito riqueza”
insolvência das dívidas que estão na
Andrea Fumagalli - A crise de gover- que a participação nos ganhos do mer-
base do crescimento da mesma base fi-
nança socioeconômica com base no pa- cado de ações permitia aos estratos
nanceira e reduz o salário médio. Aqui,
pel dos mercados financeiros tem duas sociais mais abastados.
então, abre-se a primeira contradição
origens. A primeira diz respeito ao fato
que faz com que a governança socio-
de que a atual crise financeira marca Nó contraditório
econômica dos mercados financeiros,
o fim da ilusão de que o financiamento
por intermédio da distribuição dos ga-
pode constituir uma medida de traba- A crise de inadimplência no crédito
nhos de capital, possa ser sustentada
lho, pelo menos no contexto atual de imobiliário tem, assim, a sua origem em
ao longo do tempo.
fracasso da governança cognitiva do uma das contradições do capitalismo
capitalismo contemporâneo. Assim, a cognitivo contemporâneo: a natureza
Endividamento crescente
crise financeira é também uma crise irreconciliável de uma distribuição desi-
do desenvolvimento capitalista. gual de renda com a necessidade de alar-
A crise da governança não é apenas
A segunda está na instabilidade es- gar-se a base financeira para continuar a
uma crise “técnica”, mas é também, e
trutural do capitalismo atual, o que desenvolver o processo de acumulação.
sobretudo, uma crise “política”. A con-
não pode ser sanado com ações correti- Esse nó contraditório não é outro senão
dição para que os mercados financeiros
vas de natureza reformista. Na presen- o vir à luz de uma irredutibilidade (su-
possam apoiar as fases de expansão e de
ça de ganhos de capital, os mercados perávit) da vida de boa parte dos atores
crescimento real seria o aumento cons-
financeiros desempenham no sistema sociais para subsunção (eles são frag-
tante da base financeira. Em outras pala-
econômico o mesmo papel que, no con- mentados em singularidade ou definíveis
vras, é necessário que a quota de rique-
texto fordista, desempenhava o multi- nos segmentos de classe). Um superávit
za mundial canalizada para os mesmos
plicador keynesiano (ativado por gastos que hoje se expressa em uma multipli-
mercados financeiros cresça constan-
deficitários). No entanto — ao contrário cidade de comportamentos: das formas
temente. Isso implica um contínuo au-
do multiplicador keynesiano tradicional de infidelidade às hierarquias corpora-
16 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343
tivas, à presença de comunidades que “Hoje, a negação da anomalia que tinha caracterizado a pri-
se opõem à governança territorial, ao meira fase da expansão do capitalismo
êxodo individual e grupal dos ditames de individualidade (e da cognitivo: o deslocamento da centrali-
vida impostos pelas convenções sociais dade tecnológica e do trabalho cognitivo
vigentes, até ao desenvolvimento de sua autonomia) é para Índia e para a China, na presença
formas de auto-organização no mundo da manutenção da hegemonia financeira
do trabalho e da revolta aberta contra expressa exatamente no Ocidente. Quando o desenvolvimento
novos e velhas formas de exploração nas dos países orientais (China e Índia), do
favelas das megalópolis do Sul do mun- com a exaltação do Brasil e África do Sul era ainda impul-
do, nas metrópoles ocidentais, nas áreas sionado pelos processos de terceirização
de maior industrialização recente no su- individualismo” e subcontratação laboral no estrangeiro
deste da Ásia como na América do Sul. ditadas pelas grandes corporações oci-
Um excedente que pode ser encontrado, mais que o excesso de despesas públi- dentais, não era possível identificar uma
declarando em uníssono, nos quatro can- cas, a principal causa do déficit/PIB. Em distonia espacial entre as duas principais
tos do planeta, que não está disponível um cenário similar, estão os países mais variáveis de controle do capitalismo cog-
para pagar por essa crise. A instabilidade dependentes da dinâmica econômica in- nitivo: o controle da moeda-finança, por
incurável do capitalismo contemporâneo ternacional a serem os mais penalizados, um lado, e o controle da tecnologia de
é também o resultado desse excedente. ou seja, os países que desempenham o outro. A atual crise financeira pôs fim à
papel de subfornecedores, sem pode- tal distonia espacial.
IHU On-Line - Quais são os efeitos rem influenciar a trajetória tecnológica O primado tecnológico e o financeiro
dessa crise em termos econômicos e dominante. A área do Mediterrâneo está tendem desde então a se articular tam-
subjetivos? entre eles. bém em nível geoeconômico. Resulta
Andrea Fumagalli - Os efeitos da cri- A especulação financeira pretende, que o capitalismo cognitivo, como um
se podem ser analisados em diferentes assim, desenvolver uma nova conven- paradigma de acúmulo bioeconômico,
níveis: o macroeconômico e o macror- ção, que podemos definir como “Acordo torna-se hegemônico até na China, na
regional, ou seja, do ponto de vista dos do bem-estar”, em que o objeto dessa Índia e no Sul do mundo. Isso não sig-
efeitos sobre as hierarquias econômi- mesma especulação é diretamente a nifica, seja dito claramente, que eles
cas mundiais e o nível mais microeco- prosperidade (o bios) dos indivíduos. Dos tenham deixado de ter importantes di-
nômico e subjetivo relativo aos efeitos acordos de tipo setorial à alta intensi- ferenças também radicais entre as di-
sobre a vida dos seres humanos. dade cognitiva (economia de internet), ferentes áreas e os diferentes tempos
passando pelas convenções relacionadas por meio dos quais se distendem os pro-
Nível macroeconômico ao desenvolvimento de áreas territoriais cessos capitalistas de valorização e por
globais, chega-se, assim, a acordos que meio dos quais se rearticula continua-
A capacidade dos mercados financei- têm como objeto as condições de vida e mente a composição de trabalho con-
ros para criar “valor” está relacionada de trabalho dos seres humanos. O bio- trolado e explorado pelo capital.Tam-
ao desenvolvimento de “convenções” poder das finanças confirma-se pene- bém não é possível, então, estabelecer
(bolhas especulativas), capazes de criar trante e cada vez mais direta. A crise uma série de conceitos passepartout
expectativas tendencialmente homogê- europeia e as dificuldades dos EUA e do que são igualmente aplicáveis em Nai-
neas que empurram os principais ope- Japão evidenciam a capacidade de ma- róbi, em Nova Iorque e em Xangai. O
radores financeiros a apoiarem deter- nutenção econômica demonstrada pelos ponto é, especialmente, que o próprio
minados tipos de atividade financeira. países do Leste da Ásia e da América La- sentido das diferenças radicais entre as
Na década de 1990, era a Economia da tina (e, em primeiro lugar, do Brasil). A localidades, as regiões e os continentes
Internet; nos anos 2000, a atração veio crise atual, portanto, põe em discussão deve ser recomprimido dentro da rede
do desenvolvimento de mercados asiáti- a questão da hegemonia financeira dos heterogênea de sistemas de produção,
cos (com a China entrando na OMC em EUA e a centralidade dos mercados de de temporalidade e experiências sub-
dezembro de 2001) e da propriedade ações anglo-saxões no processo de finan- jetivas do trabalho, que constituem o
imobiliária. Os efeitos devastadores do ciamento. A saída dessa crise, necessa- capitalismo cognitivo.
colapso da bolha imobiliária, em 2008, riamente, marcará um deslocamento do
exigiam uma forte intervenção do es- centro de gravidade financeiro para o Nível subjetivo e microeconômico
tado para tapar as lacunas da balança Leste e em parte para o Sul (América).
abertas nas grandes instituições bancá- Já, em nível produtivo e de controle dos Os principais efeitos microeconômi-
rias, de seguros e financeiras. O Estado escambos comerciais, ou seja, em nível cos preocupam-se com a dinâmica do
desenvolveu assim o papel de empresta- real, os processos de globalização cada mercado de trabalho. As crises econô-
dor de última instância, e, consequente- vez mais evidenciaram uma mudança do micas raramente produzem processos
mente, a fundo perdido e sem qualquer centro produtivo para o leste e para o sul de transformações sociais, especial-
estímulo ao pedido. É a recessão atual e do mundo. Desse ponto de vista, a atu- mente rebeliões. E frequentemente são
a forte introdução de liquidez pública, al crise financeira pôs fim a um tipo de utilizadas como uma gazua para iniciar

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 17


o processo de reestruturação, também respeita à subsunção das atividades cul- em um contexto de trabalho cada vez
nos contextos em que não seriam justi- turais, criativas e ambientais. O processo mais individualizado e precário (tam-
ficadas. O resultado final, na verdade, de “remodelação” interessou às estrutu- bém do ponto de vista existencial), o
é um aumento da insegurança, habitu- ras espaço-urbanísticas das grandes ci- consenso do imaginário estereotipado
almente justificada pela necessidade de dades, modificando de modo estrutural veiculado pelo sistema de informação e
combater o desemprego crescente. Se, a relação centro/periferia. A atividade de comunicação simbólico (considera-
depois de tudo isso, vêm unidas a políti- cultural que é relacional; tornou-se uma se o papel dos meios de comunicação
cas econômicas fiscais recessivas (como fonte de valorização. A condição femi- como o Facebook e a internet, bem
está acontecendo na Europa), ao agra- nina e a atividade de reprodução torna- como o processo de atribuição de mar-
vamento das condições de trabalho e ram-se paradigmas da condição econô- ca do consumo). A autonomia pessoal é
renda, também se adicionam o desman- mica e precária da pós-modernidade. Tal hoje, de longe, muito mais limitada do
telamento dos serviços sociais e a priva- processo teve repercussões graves para que há trinta anos, nos dias de traba-
tização da vida. Aqui estão as principais a saúde do gênero humano. lho na fábrica. A divisão entre o tempo
tendências: A crescente privatização dos serviços de trabalho e o tempo de não trabalho
• Uma vez terminada a fase decaden- de saúde aumentou a governança biopo- poderia ser traduzida (não automati-
te e recessiva do PIB, na atual fase de lítica das instituições econômicas sobre camente) também na separação entre
estagnação, o mercado de trabalho o corpo humano, tanto do ponto de vista coerção e liberdade potencial. Uma
torna-se ainda mais flexível. físico quanto do mental. Em termos de vez terminado o horário de trabalho, a
• Nesse contexto, a crise evidencia o corpo físico, está se ampliando no mun- disciplina do trabalho (principalmente
grau e a intensidade da insegurança. do uma divisão social e geográfica entre no corpo físico) acabava em favor de
• Favorece-se relativamente a inser- os que têm acesso à medicação e ao outras estruturas disciplinares (famí-
ção de trabalhadores jovens (que são tratamento, e os que não o têm. A insti- lia, gênero, escolaridade, raça etc.),
mais baratos e mais fáceis de serem tuição pública não é mais uma garantia embora menos difundidas sobre a
demitidos) para substituir os de mais da saúde pública, assim como tinha evo- mente humana a respeito das formas
de quarenta anos com contratos de luído na Europa tecnocrática do século de controle e condicionamento social
trabalho estáveis. Aumenta-se assim o passado no sentido foucaltiano. Da mes- que hoje parecem prevalecer, quando
problema dos acima de quarenta sem ma forma, o desenvolvimento da divisão as faculdades cognitivas são os princi-
trabalho. cognitiva do trabalho, graças aos proces- pais fatores produtivos.
• Acentua-se o processo de terceiriza- sos de desmantelamento da educação A autonomia individual resulta muito
ção, o que facilita ainda mais o pro- e da sua privatização, determina novas limitada e reprimida. È paradoxal que,
cesso de insegurança. Além disso, a segmentações sociais com base na possi- na era da ideologia do indivíduo livre, o
quota de contratos atípicos aumenta bilidade de acesso aos diferentes níveis que vem reprimido é a individualidade
também na indústria. A precariedade de ensino, muitas vezes em detrimento em favor do individualismo. E sabemos
é condição comum, mesmo que preva- do desenvolvimento de uma abordagem bem que, entre a individualidade enten-
leça no setor de serviços. cultural crítica e sistêmica. dida como expressão potencial dos seus
• É penalizado o emprego das mulheres Hoje, a alienação do corpo tende próprios talentos criativos e humanos e
e interrompe-se o processo de femini- a tornar-se cerebral. Reduziu-se a se- o individualismo como comportamento
zação do trabalho. paração entre as atividades manuais oportunista e egoísta, há uma grande
• Não admira que o trabalho migrante ve- (o braço) e a atividade intelectual (o diferença. Hoje, a negação da individu-
nha ulteriormente penalizado, por meio cérebro), entre o processo de trabalho alidade (e da sua autonomia) é expressa
da expulsão do mercado de trabalho. e o produto do trabalho, mas cada vez exatamente com a exaltação do indivi-
• Em conclusão, o trabalhador mais, uma vez que o cérebro se tornou dualismo.
e a trabalhadora migrantes são dire- máquina, desenvolveu-se uma aliena-
tamente dispensados; o trabalhador ção cerebral, totalmente interna ao
e a trabalhadora indígenas, primeiro, próprio processo de trabalho e à vida
são tornados inseguros e só sucessiva e humana. A alienação cerebral produ- Leia Mais...
eventualmente demitidos. zida de maneira sofisticada por causa >> Confira outras entrevistas concedidas
do controle social é o instrumento de por Andrea Fumagalli à IHU On-Line.
IHU On-Line - Como podemos com- domínio do biopoder atual.
* As finanças no comando bioeconômico do traba-
preender a alienação e as doenças lho vivo. Edição nº 327, Revista IHU On-Line, de
enquanto efeitos dessa financeiriza- IHU On-Line - Como esse biopoder e 03-05-2010, disponível em http://bit.ly/c68dqC
ção e biopoder? financeirização impactam na consti- * “Os mercados financeiros são o coração pul-
sante do capitalismo cognitivo”. Edição nº 302,
Andrea Fumagalli - Nos últimos vinte tuição do sujeito e sua autonomia? Revista IHU On-Line, de 03-08-2009, disponível
anos, o processo de mercantilização da Andrea Fumagalli - O impacto da fi- em http://bit.ly/brJzel
vida (da bios) deu passos gigantescos nanceirização sobre o sujeito é, ao * O capitalismo cognitivo e a financeirização da
economia. Crise e horizontes. Edição nº 301, Re-
não só do ponto de vista tecnológico (por mesmo tempo, um impacto de chanta- vista IHU On-Line, de 20-07-2009, disponível em
exemplo, o desenvolvimento da genética gem e medo, mas também de um con- http://bit.ly/98Ds3S
e da biotecnologia), mas também no que senso: chantagem de uma necessidade
18 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343
Foucault e o direito dos governados
A política não nos defende de um poder externo, acentua o filósofo francês Frédéric
Gros. Segundo ele, “cada fase do capitalismo vai desenvolver uma biopolítica particular”

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

“F
alar do direito dos governados é levar em conta o fato de que a política não é a
defesa de nossos direitos contra um poder externo, e sim as lutas travadas dentro
de um jogo de poder. Somos ‘governados’, isto é, aquilo que nos é imposto nos dá o
direito de não aceitá-lo”. A reflexão é do filósofo francês Frédéric Gros, professor da
Universidade de Paris XII, na França. De acordo com ele, a “noção de direito dos go-
vernados está, portanto, ligada à ideia de liberdade, mas no sentido das liberdades práticas, no sentido
dos processos de libertação”. Gros recupera aspectos do curso de Foucault intitulado O nascimento da
biopolítica, e mostra como o “capitalismo gestor da Escola de Chicago faz um apelo a todos para que se
tornem empreendedores de si mesmos, para construírem suas vidas como um empreendimento”. Dessa
forma, prossegue, “o neoliberalismo não tem somente efeitos políticos ou éticos. Cada qual é convidado
a construir uma relação consigo mesmo de acordo com a modalidade capitalística dominante (o empre-
endimento), o que significa que, em suas relações sociais e em seu lazer, o sujeito deverá perguntar-se
sempre: será que estou fazendo o investimento certo?” As reflexões fazem parte da entrevista a seguir,
concedida por e-mail à IHU On-Line, antecipando aspectos que serão aprofundados na conferência O
direito dos governados, na noite de 13-09-2010, dentro da programação do XI Simpósio Internacional
IHU : o (des)governo biopolítico da vida humana. A programação completa do evento está disponível
em http://bit.ly/cAXuGq.
Frédéric Gros é editor dos últimos cursos de Michel Foucault no Collège de France. Publicou livros sobre a
história da psiquiatria e filosofia penal. Estabeleceu com Arnold Davidson uma antologia de textos de Foucault
e États de violence – Essai sur la fin de la guerre (Paris: Editions Gallimard, 2006). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que contexto se in- biopolíticas, posto que o poder toma e o desenvolvimento do capitalismo
sere o surgimento do biopoder den- como objeto o corpo ou a espécie bio- financeiro. Para isso, é preciso estudar
tro dos moldes atuais? lógica. O poder não se dirige mais a os conceitos de “circulação dos fluxos”
Frédréric Gros - O biopoder tem uma um sujeito de direito ou a um cida- e “virtual”.
longa história de vários séculos. Ini- dão, mas a um dado biológico. Existe
cialmente, foi um conceito forjado por um segundo sentido do biopoder que IHU On-Line - O que significa o fato
Michel Foucault, em meados dos anos Foucault desenvolve no final dos anos de falarmos a respeito do direito dos
1970, para descrever as grandes trans- 1970, quando estuda o liberalismo. O governados na pós-modernidade?
formações das sociedades ocidentais biopoder também está ligado ao capi- Frédréric Gros - O direito dos governa-
a partir do século XVII e o desenvolvi- talismo: neste caso, trata-se de com- dos é uma expressão encontrada tam-
mento de duas novas formas de poder preender como o aumento e o confisco bém nos textos de Michel Foucault. A
que concerniam tanto aos indivíduos das riquezas supõem o desenvolvimen- filosofia dos direitos humanos supõe
quanto às coletividades: uma disci- to de poderes que capturam as forças uma definição abstrata da humanidade:
plina dos corpos que permitia obter vitais para fazer com que participem definem-se os direitos essenciais a par-
comportamentos julgados “normais” e do processo de criação de riquezas. tir de uma antropologia fundamental, e
uma regulação das populações que se Cada fase do capitalismo vai desenvol- pede-se que os Estados respeitem esses
traduzia em leis públicas que visavam ver uma biopolítica particular. O pro- direitos. Falar do direito dos governados
alcançar índices médios de natalidade blema estaria em compreender qual é outra coisa: é levar em conta o fato de
ou de mortalidade. Podemos falar de biopolítica supuseram a globalização que a política não é a defesa de nossos

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 19


direitos contra um poder externo, e sim “Podemos falar de sistência e criação ao mesmo tempo.
as lutas travadas dentro de um jogo de
poder. Somos “governados”, isto é, aqui- biopolíticas, posto que IHU On-Line - Em que medida pode-
lo que nos é imposto nos dá o direito de mos falar de “autogoverno” e auto-
não aceitá-lo. O direito dos governados é o poder toma como nomia numa sociedade onde o biopo-
uma noção mais dinâmica do que aquela der é tão preponderante?
de direitos do homem. Esta noção não objeto o corpo ou a Frédréric Gros - Em nossas socieda-
supõe uma metafísica, nem do homem des, o biopoder, como domínio exer-
em essência, nem dos valores eternos. espécie biológica” cido sobre a vida dos indivíduos, é, de
Ela significa um jogo de lutas, resistên- fato, muito importante. Quero dizer
cias e contrapoderes. Implica também a forças vitais dos indivíduos são dirigi- com isso que são inúmeras as formas
dupla responsabilidade dos governantes das e orientadas, ora as capacidades de invasão de nossas vidas por solici-
e dos governados. A pós-modernidade de revolta perante essas formas que tações e pressões que têm por função
dessa noção encontra-se, pois, nessa re- pertencem também à vida e à sua re- fortalecer as grandes forças econômi-
lação com o tempo: o direito dos gover- cusa de ser limitada. cas e políticas. Por exemplo, em seu
nados não supõe uma filosofia eterna do curso intitulado Nascimento da bio-
homem, mas capacidades históricas de IHU On-Line - Quais são os principais política, Foucault mostra como o ca-
indignação e denúncia. mecanismos do biopoder que se ex- pitalismo gestor da Escola de Chicago
pressam no direito dos governados? faz um apelo a todos para que se tor-
IHU On-Line - Como podemos enten- Frédréric Gros - Como acabamos de nem empreendedores de si mesmos,
der o paradoxo entre a existência do ver, o biopoder é duplo: ele está pre- para construírem suas vidas como um
direito dos governados e os limites sente nas formas de dominação, mas empreendimento. Observa-se, assim,
que lhes são impostos pelo biopoder? também na resistência. Assim, en- que o neoliberalismo não tem somen-
Frédréric Gros - Este paradoxo se tende-se bem que, no direito dos go- te efeitos políticos ou éticos. Cada
deve ao fato de que, justamente, es- vernados, o que vai expressar-se é o qual é convidado a construir uma re-
ses direitos não são exercidos fora do direito no sentido de Espinosa: uma lação consigo mesmo de acordo com
poder. Não se trata de lembrar aos energia vital. A vida, de fato, embora a modalidade capitalística dominante
Estados verdades eternas. Trata-se de seja explorável, como vimos, é tam- (o empreendimento), o que significa
dizer que, em política, nunca existe bém resistência e criação de formas. O que, em suas relações sociais e em
pura coerção, pura exploração. Que- biopoder que o direito dos governados seu lazer, o sujeito deverá perguntar-
ro dizer que os limites nunca podem expressa é, portanto, duplo: de um se sempre: será que estou fazendo o
sufocar totalmente as liberdades. A lado, trata-se de se revoltar contra as investimento certo? Neste modelo,
noção de direito dos governados está, opressões, de denunciar o intolerável, considera-se a si mesmo como um ca-
portanto, ligada à ideia de liberdade, de condenar aquilo que violenta a vida pital a ser valorizado. Entende-se que
mas no sentido das liberdades práti- e sua realização; de outro, trata-se a força desse modelo está no fato de
cas, no sentido dos processos de liber- também de inventar novas formas de que ele supõe justamente a liberdade
tação. Os direitos humanos afirmam vida, de criar estilizações inéditas da e a autonomia do sujeito. Mas a esta
de forma abstrata que o homem deve existência. A vida, então, é sempre re- autonomia o neoliberalismo confere
ser livre. Falar do direito dos governa- uma forma determinada: a do empre-
dos é indagar: do quê o homem precisa  Baruch de Espinosa (1632-1677): filósofo endimento. Portanto, trata-se menos
se libertar? É assim que a biopolítica holandês, pertencente a uma família judia ori- de autogovernar-se do que de desgo-
ginária de Portugal. Publicou o Tractus Teholo-
pode significar, em última instância, gico-Politicus, e a Ética e deixou várias obras
vernar, ou seja, aprender a libertar-se
duas coisas opostas: ora as formas de inéditas, que foram publicadas em 1677 com das formas de autogoverno que o po-
dominação e coerção pelas quais as o título de Opera Posthuma. (Nota da IHU On- der pode nos levar a adotar.
Line)

XII Simpósio Internacional IHU – A


25 a 28 de outubro de 2010 Experiência Missioneira: território,
cultura e identidade

Local: Unisinos • Anfiteatro Pe. Werner


Data de início: 25 2010
de outubro de
www.ihu.unisinos.br
Av. Unisinos, 950 • São Leopoldo • RS

informações em
Informações e inscrições:
www.ihu.unisinos.br ou (51) 3591 1122
3URPRomR $SRLR

20 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


O devir-Brasil do mundo e o biopoder
Para Giuseppe Cocco, o devir-Brasil do mundo confirma a abertura do conceito foucaultiano
de biopoder em duas linhas antagônicas: “por um lado, no processo de brasilianização, encon-
tramos as dinâmicas do biopoder como poder sobre a vida, como regulação dos pobres; pelo
outro, temos a potência dos pobres, ou seja, a biopolítica como potência da vida”

Por Márcia Junges e Patricia Fachin

“A
crise da modernidade industrial e a formação de um capitalismo globalizado, financeiro e cuja
acumulação tem características cognitivas, fez entrar em colapso as significações (implícitas e
explícitas) dessa perspectiva: não é mais o Brasil que se torna futuro, mas é o futuro que virou
Brasil e, dessa maneira, o futuro do Brasil passa a ser o próprio Brasil!”. A ideia é defendida
por Giuseppe Cocco. Em entrevista à IHU On-Line, por email, o pesquisador explica que essa
inversão paradoxal tem um nome: “Se chama ‘brasilianização do mundo’”. A partir desse novo paradigma, o país
pode repensar sua relação para com o mundo ou, “a relação do Brasil com o mundo pode ser atravessada por uma
alternativa radical”. Segundo ele, “o agenciamento do Brasil e do mundo acontece (pode acontecer e ser visto)
num plano radicalmente outro e põe, positivamente, o Brasil no cerne dos movimentos de construção de uma outra
métrica, de um outro padrão de valor. É nesses termos que podemos apreender o destaque impressionante que o
Brasil tem no mundo hoje, um destaque ainda mais forte depois da crise dos subprimes”. Cocco menciona ainda
que a partir do devir-Brasil do mundo é possível operar uma troca radical de pontos de vista, deixando de assumir
um ponto de vista do Sul antiimperialista, e dando espaço ao “devir-Sul do mundo, para além do Norte e do Sul, em
direção à construção de novos valores”.
Giuseppe Cocco possui graduação em Ciências Políticas pela Universidade de Paris VIII e pela Università degli
Studi di Padova. É mestre em Ciências Tecnológicas e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e
em História Social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em História Social pela Université de Paris I
(Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Publicou com
Antonio Negri o livro Global: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Ed. Record, 2005). No XI Simpósio
Internacional IHU – O (des)governo biopolítico da vida humana, Cocco ministrará o minicurso Pensar a crise do capi-
talismo Global na perspectiva do devir-Brasil do Mundo, às 14h30min, do dia 15-9-2010. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medida é pos- o trem que levava para o “primeiro mun- versão paradoxal tem um nome preciso,
sível pensar a importância do devir- do”: era o trem do desenvolvimento na- se chama “brasilianização” do mundo. O
Brasil do mundo na perspectiva da cional, seu motor se chamava “nacional capitalismo global e financeiro, por um
crise do capitalismo global? desenvolvimentismo” e a gasolina era a lado, substitui a empregabilidade ao em-
Giuseppe Cocco - A relação “moderna” “industrialização”. prego e precariza o trabalho, pelo outro
do Brasil ao mundo sempre foi marcada Embora hoje haja uma corrente de privatiza os serviços e desmonta os siste-
pela ideia de futuro: dizia-se que o Brasil pensamento neodesenvolvimentista, mas de proteção social. Informalidade,
era o “país do futuro”. O futuro sendo muito forte no governo Lula, a crise da precariedade, desemprego, subempre-
o progresso que o processo de desen- modernidade industrial e a formação de go, fraca (ou nula) proteção social não
volvimento nacional ia trazer por meio um capitalismo globalizado, financeiro são mais o fruto de níveis insuficientes
da industrialização e do pleno emprego. e cuja acumulação tem características de modernização, mas são promovi-
Indo em direção ao futuro, o Brasil de- cognitivas, fez entrar em colapso as sig- dos por essa: suas sinistras palavras de
via dessa maneira ir da periferia para o nificações (implícitas e explícitas) dessa ordem são outsourcing e downsizing,
centro, do subdesenvolvimento para o perspectiva: não é mais o Brasil que se terceirização das empresas e terciariza-
desenvolvimento. Quando a economia torna futuro, mas é o futuro que virou ção da economia. Centro e periferia se
não crescia, falava-se (e ainda fala-se) Brasil e, dessa maneira, o futuro do Bra- misturam! De repente, a luta contra a
de décadas “perdidas”. Tinha-se perdido sil passa a ser o próprio Brasil! Essa in- desigualdade e contra a exclusão no Bra-

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 21


sil deve enfrentar, ao mesmo tempo, as ção que alimenta o catastrofismo conser- Norte e do Sul, em direção à construção
heranças do passado e as consequências vador de Mike Davis acabam por abrir-se de novos valores.
da inserção na globalização. a uma alternativa radical de tipo novo. A
Ao mesmo tempo, também esse ca- crise, evidentemente, amplifica os efei- IHU On-Line - Como esse devir-Brasil
pitalismo global, esse “futuro que virou tos de crise social (exclusão) e crise civil do mundo se relaciona com o concei-
Brasil”, entrou numa crise profunda. (violência) desse processo. Ao mesmo to de biopoder de Foucault?
Aquela que estourou com o desmorona- tempo, ela aparece claramente como Giuseppe Cocco - O devir-Brasil do
mento do crédito imobiliário nos Estados uma crise de valor, do próprio conceito mundo confirma a abertura do conceito
Unidos (os subprimes). Com as finanças, de desenvolvimento e, pois, como crise foucaultiano de biopoder em duas linhas
entrou em crise a ilusão de poder gover- da ideia de futuro, da própria noção de antagônicas, assim como vários autores
nar a contradição que esse deslocamento tempo. (Michael Hardt, Judith Revel, Mauri-
do trabalho para fora da relação salarial zio Lazzarato, Simone Sampaio, Peter
implica: por um lado, o trabalho se se- A relação do Brasil no mundo Pál Pelbart) têm proposto e assim como
para do emprego e se torna empregabi- fizemos Negri e eu, em nosso livro so-
lidade, pelo outro o trabalhador precisa De repente, o Brasil pode repensar  Michael Hardt (1960): téorico literário ame-
ricano e filósofo político radicado na Universi-
continuamente investir no que a retórica sua relação para com o mundo ou, dito dade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os
neoliberal chama de capital humano e de outra maneira, a relação do Brasil livros internacionalmente famosos Império (5ª
capital social. O poder de compra, a se- com o mundo pode ser atravessada por ed. Rio de Janeiro: Record, 2003) e Multidão.
Guerra e democracia na era do império (Rio
gurança e proteção do trabalhador dimi- uma alternativa radical, de novo tipo: de Janeiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da
nuíram proporcionalmente à sua trans- por um lado, como dissemos, a brasilia- IHU On-Line)
formação em genérico “empregável”. nização do mundo, ou seja, a dimensão  Marie Judith Revel (1966): filósofa france-
sa. É professora da Universidade de Roma - La
Ao mesmo tempo, esse poder de compra pejorativa do futuro (o progresso) que Sapienza e colaboradora no Departamento de
continua sendo importante – mas de ma- nunca chegava e agora – pelo mesmo Sociologia e Ciência Política da Universiade de
neira menos decisiva, na medida em que mecanismo - se torna regresso; pelo Consenza e do Centro Michel Foucault (Paris).
Suas pesquisas abordam o pensamento francês
a integração produtiva de zonas de bai- outro, um devir-Brasil do mundo que é contemporâneo, particularmente a obra de
xíssimos salários e a própria globalização necessariamente um devir-mundo do Michel Foucault. Foi diretora da edição italia-
dos mercados já relativizaram esse me- Brasil. O agenciamento do Brasil e do na dos Ditos e Escritos de Foucault (Feltrinelli,
1996-1998). Confira a entrevista concedida por
canismo fordista-keynesiano que ligava mundo acontece (pode acontecer e ser Revel às Notícias do Dia do site do IHU, em 10-
a produção em massa ao consumo em visto) num plano radicalmente outro e 02-2009, A passagem do capitalismo material
massa por meio dos salários operários põe, positivamente, o Brasil no cerne dos ao imaterial cognitivo e a crise da represen-
tação política, disponível em http://migre.
– para manter os níveis de crescimento, movimentos de construção de uma outra me/BjnQ. (Nota da IHU On-Line)
mas, sobretudo, ele é decisivo para que métrica, de um outro padrão de valor.  Maurizio Lazzarato: é sociólogo indepen-
o trabalhador realize os gastos, que são É nesses termos que podemos apreender dente e filósofo italiano que vive e trabalha em
Paris onde realiza pesquisas sobre a temática
investimentos, em sua própria empre- o destaque impressionante que o Brasil do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho,
gabilidade. O capitalismo cognitivo (sob tem no mundo hoje, um destaque ainda o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-
hegemonia neoliberal), para explorar as mais forte depois da crise dos subpri- socialistas. Escreve também sobre cinema,
vídeo e as novas tecnologias de produção de
redes de empregabilidade, passou a pri- mes. Apesar da dramaticidade da “bra- imagem. Junto com o Grupo Knowbotic Rese-
vatizar os serviços e reduziu a renda de silianização”, o devir-Brasil do mundo se arch, elaborou o projeto IO_dencies/travail
um trabalho que cada vez mais necessita define pelo plano de construção de uma immatériel para a Bienal de Veneza. Além
disso, participa de ações e reflexões sobre os
de boa educação, saúde, infraestrutura, política dos pobres, quer dizer da dife- “intermitentes do espetáculo” no âmbito da
transportes e moradia “conectada” às rença e da paz. No devir-Brasil do mun- CIP-idf (Coordination des intermittents et pré-
redes. Tudo isso, como dissemos, para do temos, pois, a possibilidade de operar caires d’Île-de-France), onde coordena uma
importante “pesquisa-ação” sobre o estatuto
continuar a ser empregável: algo que ele uma troca radical de pontos de vista, as- dos trabalhadores e profissionais do espetácu-
passou a fazer graça ao crescente recur- sumindo o ponto de vista não mais do Sul lo e do mundo das artes, além de outros tra-
so ao crédito: crédito ao consumo, para antiimperialista (a identidade subalterna balhadores precários. É um dos fundadores da
revista Multitudes. (Nota da IHU On-Line)
a saúde, para a educação, para a mora- contra aquela da dominação, o terceiro-  Antonio Negri (1933): filósofo político e mo-
dia: um débito que se tornou impagável! mundo que quer ser primeiro-mundo, ral italiano. Durante a adolescência foi mili-
Assim, a brasilianização da qual falaram como se diz nas reuniões da elite), mas tante da Juventude Italiana de Ação Católica,
como Umberto Eco e outros intelectuais italia-
Michael Lindt e Ulrich Beck e a faveliza- do devir-Sul do mundo, para além do nos. Em 2000 publica o livro-manifesto Impé-
 Ulrich Beck: sociólogo alemão da Universi- line/uploads/edicoes/1158345309.26pdf.pdf. rio (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com
dade de Munique. Autor de A sociedade do ris- (Nota da IHU On-Line) Michael Hardt. Atualmente, após a suspensão
co. Argumenta que a sociedade industrial criou  Mike Davis: intelectual de origem operária, de todas as acusações contra ele, definitiva-
muitos novos perigos de risco desconhecidos chofer de caminhão, é professor de urbanismo mente liberado, ele vive entre Paris e Veneza,
em épocas anteriores. Os riscos associados ao no Southern California Institut of Architecture escreve para revistas e jornais do mundo intei-
aquecimento global são um exemplo. Confira e articulista da imprensa americana é autor ro e publicou Multidão. Guerra e democracia
na edição 181 da revista IHU On-Line, de 22- dos livros Cidade de Quartzo. Escavando o fu- na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo:
05-2006, intitulada Sociedade do risco. O medo turo de Los Angeles (São Paulo: Scritta. 1990) Record, 2005), também com Michael Hardt.
na contemporaneidade, a entrevista Incerte- e Ecologia do Medo. Los Angeles e a fabrica- Sobre essa obra, publicamos um artigo de Mar-
zas fabricadas, concedida por Beck com exclu- ção de um desastre (Rio de Janeiro: Record, co Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de
sividade a nós. O material está disponível para 2001). (Nota da IHU On-Line) 29-11-2004. O livro é uma espécie de continui-
download em http://www.unisinos.br/ihuon- dade da obra anterior da dupla, Império. Ele

22 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


bre o Brasil e a América Latina (Global: “O poder de compra, a os índios (que deveriam ser o que há de
Biopoder e lutas em uma América Latina mais “raiz”) enxergam o Brasil como um
globalizada): por um lado, no processo segurança e proteção do problema ao passo que os defensores do
de brasilianização, encontramos as dinâ- “projeto nacional” ficam incomodados
micas do biopoder como poder sobre a trabalhador diminuíram com os estes que querem continuar a se-
vida (para usar os termos de Peter Pál rem índios e não se deixam homologar no
Pelbart), como regulação dos pobres proporcionalmente à sua processo de desenvolvimento nacional.
(que, aliás, mistura as políticas de segu- Não é por acaso que, entre os grandes
rança – de fazer viver e deixar morrer transformação em opositores à demarcação contínua das
- com aquelas mais arcaicas do poder so- reservas indígenas, não temos apenas
berano – de fazer morrer e deixar viver); genérico ‘empregável’” os representantes das elites neoescra-
pelo outro, temos a potência dos pobres, vagistas (os ruralistas, as grandes mídias
ou seja, a biopolítica como potência da monopolistas), mas também os repre-
vida. Tudo isso se concretiza na ques- uma luta biopolítica, a potência dos po- sentantes do neodesenvolvimentismo. A
tão das favelas: nelas temos, ao mesmo bres. Aqueles que fizeram a revolta con- comunidade de pontos de vista entre o
tempo, o biopoder como nova tecnologia tra o higienismo (e não contra a vacina!) passado (escravocrata) e o futuro (indus-
de dominação e a biopolítica como plano e agora lutam contra as remoções – por trial) não é mera coincidência, mas nos
de consistência da luta e da resistência exemplo, no Rio de Janeiro –, que a es- mostra que o futuro é uma armadilha:
dos pobres. peculação imobiliária ligada aos megae- uma armadilha que se torna bem eviden-
Sabemos que a favelização foi e é ventos está querendo impor em nome do te e grosseira nesse caso, quando os po-
um processo contraditório. Com efeito, controle do “risco”. bres aparecem como diferença radical,
a chegada dos pobres nas cidades teve como não-Brasil, como devir-Brasil: mas
(pelo menos) dois grandes determinan- IHU On-Line - Em que sentido é pre- devir antropofágico.
tes: o primeiro determinante é a per- ciso desinventar o Brasil? O devir-Brasil do mundo é também
sistência do latifúndio (inclusive graças Giuseppe Cocco - Essa é uma expressão um devir-índio do Brasil. Desinventar o
à ditadura que reprimiu os movimentos que retomo do antropólogo Eduardo Vi- Brasil significa apontar para essas tro-
camponeses e continua encontrando veiros de Castro, para afirmar, com ele, cas de perspectivas.
amplo apoio naquela mídia que lhe deve que a passagem da brasilianização para
concessões estatais e proteção econômi- o devir-Brasil implica justamente na IHU On-Line - Quais são os limites e
ca), que expulsou a população rural do ruptura com o projeto identitário (nacio- possibilidades de se “fazer multidão”
campo (do mesmo jeito que a abolição nalista) do Brasil “potência” soberana e numa sociedade na qual o biopoder
tardia da escravidão acabou empurrando independente. Isso aparece claramente atua cada vez mais?
os escravos libertos para a formação das na política externa: o que o Brasil está Giuseppe Cocco - A noção de biopoder
primeiras favelas): a regulação das popu- fazendo com o governo Lula não é uma diz respeito a uma tecnologia de poder
lações pobres urbanizadas passou pelas política soberana de desconexão da glo- que investe diretamente a vida na sua
favelas, pelos dispositivos de biopoder balização. Pelo contrário, ele está traba- articulação entre segurança (sécurité),
exercido sobre essa pressão demográfi- lhando de maneira autônoma (ou seja, território e população. O regime de acu-
ca. Não por acaso, um dos primeiros mo- em rede) e numa perspectiva pós-sobe- mulação que está em sua base (e que não
mentos foi a introdução do higienismo, rana, em direção ao governo da interde- por acaso, em seus cursos de 1977-78 e
com a vacina contra a febre amarela; o pendência. No plano da política interna 1978-79, Foucault atribuiu ao neolibe-
segundo determinante da favelização, isso aparece claramente na questão indí- ralismo) implica, pois, a integração das
porém, é o movimento de resistência gena, assim como vimos no embate para redes produtivas diretamente nos terri-
que atravessou o país com o êxodo rural demarcação contínua da Reserva Raposa tórios, misturando tempo de vida e tem-
rumo a melhores condições de vida e de Serra do Sol (Roraima). Fica evidente que po de trabalho, produção e reprodução:
trabalho, dentro do processo de urbani-  Eduardo Viveiros de Castro: antropólogo é o que encontramos nas redes locais e
brasileiro, professor do Museu Nacional do Rio
zação e para além de sua capacidade de de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de globais de terceirização (outsourcing) e
absorção industrial (do mesmo jeito que Janeiro (UFRJ). Concedeu uma entrevista à nas bacias metropolitanas de serviços
os quilombos, as favelas foram também revista IHU On-Line nº 161,  24-10-2005, que (terciarização). A produção se torna bio-
tem como tema de capa As obras coletivas e
zonas de autoconstrução de espaços ur- seus impactos no mundo do trabalho. O título política, o trabalho se separa do empre-
banos de resistência, persistência dos da entrevista de Eduardo Viveiros de Castro é go e coincide diretamente com a vida
pobres a viver, desejar, dançar, criar). “O conceito vira grife, e o pensador vira pro- como um todo: o resultado disso é a sua
prietário de grife”, disponível em http://mi-
Temos aqui, nas favelas e pelos pobres, gre.me/s9Y9. Entre outros, escreveu Arawete: crescente fragmentação em um sem-nú-
O Povo do Ipixuna (São Paulo: CEDI, 1992), A mero de estilhaços. O capitalismo con-
foi apresentado na primeira edição do evento inconstância da alma selvagem (e outros en- temporâneo explora os pobres enquan-
Abrindo o Livro, promovido pelo IHU, em abril saios de antropologia). (São Paulo: Cosac &
de 2003. Em 2003 esteve na América do Sul Naify, 2002) e Métaphysiques cannibales. Lig- to pobres, sem previamente incluí-los
(Brasil e Argentina) em sua primeira viagem nes d’anthropologie post-structurale (Paris: e homogeneizá-los na relação salarial.
internacional após décadas entre o cárcere e o Presses Universitaires de France, 2009). (Nota Para fazer isso, passa-se a explorar di-
exílio. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)
retamente as redes de cooperação (por
SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 23
meio das privatizações dos serviços – des-
de a telefonia até a água e do controle
do direito autoral, do copyright e, enfim,
da responsabilidade social). A exploração
se torna cada vez mais parasitária, quer
dizer rentista: o lucro funciona como um Políticas de memória: um dever social
imposto e por isso tem características de
dominação política (como no caso das O exercício de memória atinge o status de um dever, defende
milícias que substituem o narcotráfico José Carlos Moreira Filho, professor da Pontifícia Universidade
em alguns territórios do Rio de Janeiro e
passam a controlar as redes de serviços).
Católica – PUCRS
Ao mesmo tempo, se o trabalho não pre-
cisa mais passar pela relação salarial para Por Márcia Junges e Patricia Fachin
ser produtivo, ele pode passar a lutar e

“R
se organizar enquanto tal, enquanto uma
multidão de singularidades que coope- ealizar políticas de memória sobre períodos tão som-
ram entre si e que se mantêm tais, sem brios como os relativos a ditaduras e regimes totalitários
fusionar. Essa passagem, do sem-número é um dever não só para impedir que eles se repitam,
de fragmentos modulados politicamente mas também, e fundamentalmente, para que se possa
pelo mercado (na sociedade de controle)
fazer justiça às vítimas, rostos sem voz perdidos na po-
para a multiplicidade produtiva (e livre)
eira do tempo e ocultados pela, cada vez mais veloz, marcha do progresso”.
das singularidades encontra, por um lado,
os limites da crise das antigas formas de A opinião é de José Carlos Moreira Filho e foi expressa na entrevista a seguir,
representação (sindicatos, partidos, coo- concedida por e-mail à IHU On-Line.
perativas, Estado) e, pelo outro, as pos- Para o pesquisador, a maior dívida que uma sociedade possui “é para com
sibilidades de um novo tipo de práticas: as vítimas que caíram ao longo dos processos políticos e sociais de transforma-
de produção e de luta. O desafio da luta ções violentas e autoritárias”. Entretanto, a dívida dos brasileiros não se resu-
política e de classe no capitalismo con- me apenas a perseguidos políticos, mas ela diz respeito também “aos indíge-
temporâneo é duplo: em primeiro lugar, nas massacrados, aos africanos e descendentes escravizados e aos imigrantes
trata-se de levar em conta o fato que a europeus pobres que vieram ao Brasil após a abolição da escravatura”.
passagem da fragmentação para a multi- Nesse sentido, Moreira Filho menciona ainda que a Justiça de Transição “é
dão (dos fragmentos para as singularida- fundamental para fortalecer e afirmar os valores democráticos e o respeito aos
des) não é automaticamente determina-
direitos humanos”.
da pelas novas tecnologias das redes; em
José Carlos Moreira da Silva Filho participará do XI Simpósio Internacional
segundo lugar – e por consequência -, se
trata de pensar e praticar uma política IHU – O (des)governo biopolítico da vida humana, com o minicurso Dever
da multiplicidade, quer dizer imanente à de memória e violência do esquecimento: anistia e transição democrática no
produção de diferença (onde as diferen- Brasil. O evento ocorre no dia 15-9-2010, às 14h30min.
ças nada têm a ver com a diversidade e José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito
com o multiculturalismo). pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, doutor em Direito das
Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é
professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul – PUCRS, Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da
Leia Mais...
Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do
>> Giuseppe Cocco já concedeu outras Direito e Justiça de Transição – IDEJUST. Confira a entrevista.
entrevistas à IHU On-Line. O material está dis-
ponível na página eletrônica do IHU (www.ihu.
unisinos.br).
• “MundoBraz’’: a brasilianização do mundo. En- IHU On-Line - Por que manter a me- violências e injustiças.
trevista especial com Giuseppe Cocco, publicada mória é um dever? O imperativo da não repetição,
nas Notícias do Dia, em 21-1-2010. Acesse no link
José Carlos Moreira Filho - Há inú- assinalado de modo emblemático por
http://bit.ly/7wWPht;
• O Império e a Multidão no contexto da crise meras situações em que todas as pes- Adorno, surge especialmente após
atual. Entrevista especial com Giuseppe Cocco, soas necessitam realizar um exercício
publicada nas Notícias do Dia de 18-5-2009.  Theodor Wiesengrund Adorno (1903-
de memória, para se lembrarem onde 1969): sociólogo, filósofo, musicólogo e
Disponível no endereço eletrônico http://bit.
ly/cHmraS; colocaram um objeto, por exemplo. compositor, definiu o perfil do pensamento
• Uma renda universal. Trabalho e vida tendem a O exercício de memória atinge o sta- alemão das últimas décadas. Adorno ficou
coincidir. Entrevista especial com Giuseppe Coc- conhecido no mundo intelectual, em todos
tus de um dever, e aqui trato sem os países, em especial pelo seu clássico Dia-
co, publicada em 10-1-2007, nas Notícias do Dia
e disponível no link http://bit.ly/bNzmgu. dúvida do âmbito coletivo, quando lética do Iluminismo, escrito junto com Max
nos defrontamos com um passado de Horkheimer, primeiro diretor do Instituto de
Pesquisa Social, que deu origem ao movi-

24 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


a Segunda Guerra Mundial, quando a humanidade. No Brasil, por exemplo, sendo em relação à numerosa massa
humanidade foi confrontada com um como não construímos até hoje um de presidiários, submetidos constan-
nível de barbárie e desconsideração claro juízo público de reprovabilidade temente a condições desumanas nas
da pessoa humana em patamares que da prática disseminada e institucio- masmorras brasileiras, e aos grupos
ainda não haviam sido atingidos, co- nalizada da tortura, capilarizada pela de pessoas pobres que cotidianamen-
locando em funcionamento o aparato ditadura civil-militar, muitos agentes te são projetadas para as margens da
bélico e tecnológico de uma verdadei- públicos de segurança não só não se cidadania, bem como com relação às
ra indústria de eliminação física, mo- sentem inibidos na prática da tortura vítimas de execuções sumárias e gru-
ral e existencial de milhões de seres e da violência contra suspeitos e pri- pos de extermínio.
humanos. Morte industriosa e apoiada sioneiros, como até acham que isto é
na frieza de uma razão instrumental, correto e recomendável. A ausência de IHU On-Line - Nessa lógica, em que
que é prima irmã da mesma raciona- qualquer investigação e construção de medida o esquecimento é uma vio-
lidade que em nossos dias condena uma verdade judicial sobre os crimes lência?
milhões de pessoas à pobreza mais de lesa-humanidade cometidos duran- José Carlos Moreira Filho - É impor-
absoluta. Um Estado orientado para te a ditadura civil-militar brasileira é tante entender que o esquecimento
a implementação de uma política de- um penoso obstáculo para a diminui- não é um mal em si. Nietzsche, em
linquente que, com cada vez maior ção dos alarmantes índices de violên- pularmente). Sobre Getúlio o IHU promoveu o
frequência ao longo do século XX e no cia policial no Brasil. Nesse sentido, a Seminário Nacional A Era Vargas em Questão
– 1954-2004, realizado de 23 a 25 de agosto
presente século, volta-se, com todo Lei de Anistia de 1979 nos impôs um de 2004. Paralela ao evento aconteceu a Expo-
o peso das suas instituições jurídicas, verdadeiro exercício de esquecimento, sição Eu Getúlio, Ele Getúlio, Nós Getúlios, no
políticas e econômicas, à perseguição ratificado de modo deplorável, tanto Espaço Cultural do IHU. A revista IHU On-Line
publicou os seguintes materiais referentes a
e eliminação de uma parcela dos seus pelo resultado quanto pelos argumen- Vargas: edição 111, de 16-08-2004, intitulada
próprios cidadãos. Em linhas gerais, tos utilizados, no julgamento sobre a A Era Vargas em Questão – 1954-2004, disponí-
é esta situação que tipifica os Crimes interpretação desta lei que teve lugar vel em http://migre.me/QYAi, e a edição 112,
de 23-08-2004, chamada Getúlio, disponível
Contra a Humanidade, conceito sur- na Suprema Corte do país nos dias 28 e em http://migre.me/QYBn. Na edição 114,
gido no Acordo de Londres de 1945 e 29 de abril de 2010. de 06-09- 2004, em http://migre.me/QYCb,
que é a própria base da fundação da Realizar políticas de memória sobre Daniel Aarão Reis Filho concedeu a entrevista
O desafio da esquerda: articular os valores de-
Organização das Nações Unidas e das períodos tão sombrios como os relati- mocráticos com a tradição estatista-desenvol-
Constituições democráticas contem- vos a ditaduras e regimes totalitários vimentista, que também abordou aspectos do
porâneas, voltadas para a proteção e é um dever não só para impedir que político gaúcho. Em 26-08-2004 o Prof. Dr. Ju-
remir Machado da Silva, da PUCRS, apresentou
promoção de uma série de direitos e eles se repitam, mas também, e fun- o IHU ideias Getúlio, 50 anos depois. O evento
garantias fundamentais, exatamente damentalmente, para que se possa fa- gerou a publicação do número 30 dos Cader-
porque eles foram tão fortemente ig- zer justiça às vítimas, rostos sem voz nos IHU ideias, chamado Getúlio, romance ou
biografia?, também de autoria de Juremir, dis-
norados ao longo da Guerra. perdidos na poeira do tempo e ocul- ponível em http://migre.me/QYDR. Vale des-
Em seu livro A História, a Memó- tados pela, cada vez mais veloz, mar- tacar o Caderno IHU em formação número 1,
ria e o Esquecimento (Campinas: Uni- cha do progresso. A maior dívida moral publicado pelo IHU em 2004, intitulado Popu-
lismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Bri-
camp, 2007), Paul Ricoeur afirma que que uma sociedade possui é para com zola, disponível em http://migre.me/QYEE.
uma sociedade que não faz o luto das aquelas vítimas que caíram ao longo (Nota da IHU On-Line)
suas perdas e traumas está condenada dos processos políticos e sociais de  Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo
alemão, conhecido por seus conceitos além-
a repetir a violência que as gerou. Sem transformações violentas e autoritá- do-homem, transvaloração dos valores, niilis-
uma clara e simbólica determinação rias. A dívida que nós brasileiros, hoje, mo, vontade de poder e eterno retorno. Entre
no espaço público do reconhecimento temos não é só com os perseguidos suas obras figuram como as mais importantes
Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janei-
das violências e injustiças cometidas políticos na ditadura civil-militar, ela ro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo
e, consequentemente, da sua reprova- é também em relação aos indígenas (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da
bilidade, é muito difícil, senão inviá- massacrados, aos africanos e descen- moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Es-
creveu até 1888, quando foi acometido por um
vel, a construção de uma cultura e de dentes escravizados e aos imigrantes colapso nervoso que nunca o abandonou, até
uma prática de respeito aos direitos europeus pobres que vieram ao Brasil o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado
humanos, diametralmente oposta a após a abolição da escravatura. Ela o tema de capa da edição número 127 da IHU
On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche:
sociedades e governos autoritários que também é em relação às vítimas da filósofo do martelo e do crepúsculo, disponí-
aceitem diretrizes políticas que levam ditadura de Getúlio Vargas e continua vel para download em http://migre.me/s7BB.
ao cometimento de crimes contra a  Sobre o tema, confira a edição 269, de 18-8- Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a en-
2008, intitulada Tortura, crime contra huma- trevista exclusiva realizada pela IHU On-Line
mento de ideias em filosofia e sociologia que nidade. Um debate urgente e necessário. Dis- edição 175, de 10-04-2006, com o jesuíta
conhecemos hoje como Escola de Frankfurt. ponível no link http://bit.ly/9GqeFM. (Nota cubano Emilio Brito, docente na Universidade
(Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche e
 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo e pensa-  Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954): po- Paulo, disponível para download em http://
dos europeu do período pós-guerra. Estabe- lítico gaúcho, nascido em São Borja. Foi pre- migre.me/s7BH. A edição 15 dos Cadernos
leceu uma ligação entre a fenomenologia e a sidente República nos seguintes períodos: IHU em formação é intitulada O pensamento
análise contemporânea da linguagem através 1930-1934 (Governo Provisório), 1934-1937 de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada
da teoria da metáfora, do mito e do modelo (Governo Constitucional), 1937-1945 (Regime em http://migre.me/s7BU. Confira, também,
científico. (Nota da IHU On-Line) de Exceção), 1951-1954 (Governo eleito po- a entrevista concedida por Ernildo Stein à

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 25


sua Segunda Consideração Intempes-
tiva, nos mostra isto de modo genial,
“O esquecimento só torturas, como as sofridas por milha-
res de perseguidos políticos, censura,
prescrevendo os benefícios do esque-
cimento e alertando para o excesso
pode aparecer como um como aquela exercida sobre qualquer
publicação, aula ou discussão que
de história, especialmente daquela
história fria, racionalizada, total e he-
fruto possível da desagradasse ao governo, cassações
de mandatos políticos, como aquelas
gemônica, distante do pertencimento
afetivo e tradicional, e da multiplici-
superação dos traumas sofridas por inúmeros parlamentares
do Movimento Democrático Brasileiro
dade de vivas narrativas que, como as-
sinalou Walter Benjamin, são como es-
e do fim do luto, do – MDB, partido de oposição consenti-
da, expulsão de alunos e professores
cadas que vão para todas as direções.
Quando nos referimos àqueles tipos
arrependimento das universidades brasileiras, entre
outros atos autoritários e castradores
de acontecimentos que nos deman-
dam um dever de memória, tal como
simbolizado no de direitos fundamentais.
O que é difícil compreender é
expus na resposta anterior, o esque-
cimento só pode aparecer como um
plano público” como, mais de trinta anos depois, a
Suprema Corte brasileira, cuja missão
fruto possível da superação dos trau- deveria ser a de zelar pelos valores e
mas e do fim do luto, do arrependi- verdadeira política de esquecimen- princípios da nossa Constituição demo-
mento simbolizado no plano público. to, na medida em que tem impedido crática, continua insistindo no mesmo
Neste caso, podemos nos deparar com a construção de uma verdade judicial entendimento adotado pelos ditado-
o que Ricoeur chamou de uma “dívida sobre os crimes contra a humanidade res e seus subordinados. O desvirtua-
sem culpa”. Contudo, o esquecimento praticados sistematicamente pelo Es- mento dos fatos históricos, hoje mais
exercido para que o reconhecimento tado ditatorial brasileiro. detalhadamente conhecidos pelos
da violência e sua reprovabilidade não É possível compreender que ainda inúmeros estudos que já foram produ-
aconteçam, o esquecimento que pro- durante a vigência da ditadura, quan- zidos sobre o período e, em especial,
cura sufocar certas narrativas e impe- do surgiu a Lei de Anistia, era inviável sobre o contexto de surgimento da Lei
dir que documentos públicos possam a investigação e a responsabilização de Anistia (e aqui não posso deixar de
se tornar acessíveis, este sim é uma pelos crimes cometidos pelo Estado re- citar a magnífica tese de doutorado
violência, na mesma medida em que pressor. Entre 1975, quando começa o defendida pela historiadora Heloísa
permite que ela continue se reprodu- forte movimento popular pela Anistia, Greco), foi escancarado na decisão
zindo, sem uma clara ruptura com as deflagrado pela liderança de Terezinha do STF. E dou dois exemplos disto. Em
práticas autoritárias do passado. Zerbini e de outras bravas mulheres primeiro lugar, a perversão da bandei-
brasileiras, e 1979, quando sai a Lei de ra da Anistia. O lema “Anistia ampla,
IHU On-Line - Quais são os maiores Anistia, continuavam a ocorrer desapa- geral e irrestrita” quando empunhado
exemplos de violência do esqueci- recimentos forçados, como o de David pelos movimentos populares, pelos
mento na transição democrática do Capistrano (dirigente do PCB), assas- Comitês Brasileiros de Anistia e por
Brasil? Dentro de contexto, qual é a sinatos, como o de Vladimir Herzog, órgãos apoiadores da causa como a
importância da Justiça de Transição?  Terezinha Godoy Zerbini: advogada brasi- OAB, a CNBB e a Associação Brasileira
José Carlos Moreira Filho - Tratando leira, fundadora do Movimento Feminino pela de Imprensa – ABI, jamais esteve vol-
Anistia em 1974. (Nota da IHU On-Line)
especificamente do processo de tran-  David Capistrano (1913-1974): dirigente do tado para a anistia de torturadores e
sição política da ditadura civil-militar, Partido Comunista Brasileiro (PCB). Participou assassinos de Estado. No entanto, so-
ocorrida de 1964 a 1985, para a or- do Levante de 1935, como sargento da Aero- mos hoje obrigados a ouvir estarreci-
náutica, sendo expulso das Forças Armadas e
dem democrática instituída a partir da condenado pelo Estado Novo, à revelia, a 19 dos, no voto do ministro relator Eros
Constituição Federal de 1988, podemos anos de prisão. Participou da Guerra Civil Es- Grau10, que questionar a anistia aos
afirmar, sem sombra de dúvida, que a panhola como combatente das Brigadas Inter- torturadores seria “romper com a boa-
nacionais e da Resistência Francesa, durante a
lei 6683/79 tem dado ensejo a uma ocupação nazista. Preso em um campo de con- fé dos atores sociais e os anseios das
edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05- centração alemão, foi libertado e regressou ao diversas classes e instituições políticas
2010, disponível em http://migre.me/FC8R, Brasil em 1941. Com o golpe militar, entrou do final dos anos 1970, que em con-
intitulada O biologismo radical de Nietzsche na clandestinidade e asilou-se na Checoslová-
não pode ser minimizado, na qual discute quia, em 1971. Retornou ao Brasil em 1974, junto pugnaram (...) por uma lei de
ideias de sua conferência A crítica de Heideg- atravessando a fronteira em Uruguaiana, Rio sileiro. Sua morte causou impacto na ditadu-
ger ao biologismo de Nietzsche e a questão da Grande do Sul. (Nota da IHU On-Line) ra militar brasileira e na sociedade da época,
biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estu-  Vlado Herzog (1937-1975) jornalista, pro- marcando o início de um processo pela demo-
dos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI fessor e dramaturgo nascido na Croácia, mas cratização do país. (Nota da IHU On-Line)
Simpósio Internacional IHU: O (des)governo naturalizado brasileiro. Passou a assinar “Vla-  Heloísa Greco: historiadora brasileira, dou-
biopolítico da vida humana. Na edição 330 dimir” por considerar seu nome muito exótico tora pela Universidade Federal de Minas Gerais
da revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia nos trópicos. Tornou-se famoso pelas conse- (UFMG) com a tese Dimensões Fundacionais da
a entrevista Nietzsche, o pensamento trági- quências que teve de assumir devido suas co- Luta pela Anistia, defendida em 2003. (Nota
co e a afirmação da totalidade da existência, nexões com a luta comunista contra a ditadura da IHU On-Line)
concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e militar, autodenominada movimento de resis- 10 Eros Grau: jurista brasileiro, ministro apo-
disponível para download em http://migre. tência contra o regime do Brasil, e também sentado do Supremo Tribunal Federal. (Nota
me/Jzvg. (Nota da IHU On-Line) pela sua ligação com o Partido Comunista Bra- da IHU On-Line)

26 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


anistia ampla, geral e irrestrita, o que era o presidente da Comissão, Teotô- cas”, em especial dos órgãos ligados à
significa também prejudicar o acesso à nio Vilela, que por isto não votava. justiça e à segurança pública (que, no
verdade histórica”. O resultado é que todas as propostas Brasil, continuam intocadas, pois ain-
Eu pergunto: Ministro, de que de mudanças apresentadas pelo MDB da temos a Justiça Militar, a mesma
verdade histórica estamos tratando? eram rejeitadas pelo placar estático estrutura das polícias repressivas ins-
Como é possível chamar de acordo, de 13 a 8. No Congresso, a votação tituídas na ditadura, e vários juízes
como o fizeram os cinco ministros e não foi nominal, foi em bloco, e caso que pensam como o ministro Marco
ministras que indeferiram a ação da acontecesse a improvável rejeição do Aurélio, que disse semanas antes do
OAB, a imposição de um projeto de lei projeto do governo na Câmara, das julgamento da Arguição de descum-
a um Congresso Nacional que estava duas uma: ou a tropa de choque de primento de preceito fundamental
dobrado de joelhos por medidas de senadores biônicos barraria o eventu- (ADPF) 153, em entrevista em rede
força? O Congresso Nacional que ana- al substitutivo, ou o ditador Figueire- nacional, que “a ditadura foi um mal
lisou e votou o projeto de lei enviado do, como declarou inclusive, iria sim- necessário”).
por João Baptista Figueiredo11, para plesmente vetar toda a lei. Este foi o O campo de estudos da Justiça de
cuja redação concorreu, nada mais “acordo”. Transição tem crescido bastante no
nada menos, que Golbery do Couto e É inadmissível que hoje, passados mundo todo e tem tido um impulso
Silva12, o cérebro da Doutrina de Segu- mais de 20 anos da promulgação da expressivo no Brasil. Eu, por exem-
rança Nacional, havia sido desfigurado Constituição Federal, o judiciário plo, invisto nesta linha de estudos no
pelo Pacote de Abril de 1977, imposto brasileiro continue de costas para Programa de Pós-Graduação em Ciên-
pelo ditador Ernesto Geisel13. Diante as normas de Direito Internacional cias Criminais da PUCRS, onde coor-
da iminência de uma vitória maciça Humanitário e para os valores demo- deno um Grupo de Estudos e um Gru-
do MDB nas eleições diretas para go- cráticos de proteção à dignidade da po de Pesquisa sobre o tema. Também
vernadores, programadas para 1978, pessoa humana insculpidos no próprio faço parte de um maravilhoso grupo
Geisel tirou o AI-5 do bolso e simples- texto constitucional. É vergonhoso de intelectuais e estudantes do Brasil
mente fechou o Congresso Nacional que o Supremo Tribunal Federal chan- inteiro, com sede no Instituto de Re-
em 01 de abril de 1977. Antes de “re- cele a auto-anistia entre nós, veda- lações Internacionais da USP, o Grupo
abri-lo” no dia 15 do mesmo mês, ele da na legislação e na jurisprudência de Estudos sobre Internacionaliza-
mudou todas as regras de composição internacional humanitária. Não se vê ção do Direito e Justiça de Transição
do Congresso: instituiu os senadores tanta má vontade com as normas in- – IDEJUST, que se dedica a pesquisar
biônicos, a maioria simples, o critério ternacionais quando o assunto é ga- e a trocar informações e produções
para o cálculo da representação e cas- rantir os contratos internacionais e acadêmicas sobre o tema. Para quem
sou parlamentares, tudo para impedir a livre ação da lex mercatoria. Que quiser conhecer um pouco mais sobre
que qualquer proposta contrária aos democracia é esta que não repudia o grupo e participar dos seus encon-
interesses do governo pudesse passar. publicamente a tortura e a persegui- tros, convido a visitar o sítio : http://
Foi exatamente o que aconteceu com ção sistemática de parte da popula- idejust.wordpress.com/.
a Lei de Anistia. Na Comissão Mista, ção nacional pelo próprio Estado? Que
formada para apreciar o projeto de não responsabiliza e nem identifica os
Figueiredo, a ARENA, partido de apoio agentes públicos que protagonizaram
à ditadura, tinha 13 representantes tal perseguição? Qual a coragem que Leia Mais...
e o MDB, nove, sendo que um destes nos falta para passar a nossa história
a limpo? >> José Carlos Moreira Filho já concedeu
11 João Batista de Oliveira Figueiredo (1918- outras entrevistas à IHU On-Line. O material
1999): político e ditador militar brasileiro, o A Justiça de Transição é algo fun- está disponível no sítio do IHU (www.ihu.unisi-
30º presidente do Brasil, de 1979 a 1985. (Nota damental para que possamos fortale- nos.br).
da IHU On-Line) cer e afirmar os valores democráticos • “É imoral igualar o terrorismo do Estado bra-
12 Golbery do Couto e Silva (1911-1987): mili- sileiro à luta que se empreendeu contra ele”.
tar e geopolítico brasileiro. Destacou-se como e o respeito aos direitos humanos. Entrevista especial com José Carlos Moreira da
teórico do movimento político-militar de 1964. Ela se espalha em quatro grandes te- Silva Filho, concedida em 12-1-2010 e publicada
(Nota da IHU On-Line) mas: o “Direito à memória e à ver- nas Notícias do Dia. Acesse no link http://bit.
13 Ernesto Geisel (1908-1996): militar e po- ly/dbicyn;
lítico brasileiro. Foi adido militar no Uruguai, dade (abertura dos arquivos e reco- • Lembranças vivas, feridas abertas: a punição
comandante da XI Região Militar em Brasília, nhecimento das violências praticadas aos torturadores da ditadura no Brasil. Entre-
chefe do gabinete militar da presidência da pelo Estado), a “Justiça” (a respon- vista especial com José Carlos Moreira da Silva
República no governo Castelo Branco, minis- Filho, concedida em 22-8-2009, para as Notí-
tro do Superior Tribunal Militar e presidente sabilização dos agentes públicos que cias do Dia. Disponível no endereço eletrônico
da Petrobras (1969-1973). Eleito presidente da cometeram Crimes Contra a Humani- http://bit.ly/arTUIz;
República por um Colégio Eleitoral (1973), in- dade), a “Reparação” (econômica e, • A afirmação positiva da diferença. Entrevista
dicado pelos militares, tomou posse em 15 de publicada na IHU On-Line número 266, de 28-07-
março de 1974, como penúltimo ditador mili- sobretudo, moral, ao reconhecer o 2008. Acesse no link http://bit.ly/9Zk7gx;
tar depois do golpe de 1964. Buscou em seu papel de resistência que os persegui- • Um direito mais amplo e interdisciplinar. En-
governo uma gradual saída do regime militar. dos tiveram, e as punições e prejuízos trevista publicada na IHU On-Line número 305,
Deixou a presidência em 1979, quando assumiu de 24-08-2009. Disponível no link http://bit.ly/
o último ditador do regime autoritário instau- que sofreram), e, por fim, o “Forta- dw9VXn.
rado em 1964.(Nota da IHU On-Line) lecimento das instituições democráti-
SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 27
A exceção jurídica na biopolítica moderna
Contradições graves aparecem no estado de exceção: a primeira delas é negar a ordem
para defendê-la, assinala Castor Ruiz. Para os excluídos, a exceção é seu modo de vida
cotidiano

Por Márcia Junges

“A
exceção é a figura jurídico-política que defende a ordem suspendendo-a; defende a
vida (de alguns) ameaçando a vida (de outros)”. A afirmação é do filósofo espanhol,
radicado no Brasil, Castor Ruiz, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-
Line, adiantando aspectos que irá abordar em seu minicurso A exceção jurídica na
biopolítica moderna, em 16 de setembro, dentro da programação do XI Simpósio
Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, promovido pelo Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, que está disponível em http://bit.ly/cAXuGq. De acordo com ele, “no estado de exceção
aparecem algumas contradições graves que devem ser analisadas criticamente. A primeira é que para
defender a ordem tem que, primeiramente, negá-la”. E continua: “ao suspender a ordem e o direito,
em seu lugar se coloca a arbitrariedade da vontade daquele que a suspende”. Ruiz aponta o paradoxo da
existência do estado de direito concomitante à escravidão moderna, e pontua que, ao decretar o estado
de exceção, “o objetivo é oferecer poderes plenos, ou absolutos, a alguém que possa controlar de forma
eficiente a vida daqueles considerados perigosos para o status quo”. No caso dos excluídos, a exceção se
constitui em sua forma normal de vida. No Brasil, afirma, as condições das prisões “beiram, quando não
já ultrapassaram, o limite de qualquer forma de exceção”.
Castor é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espa-
nha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Professor nos cursos de graduação e
pós-graduação em Filosofia da Unisinos, escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: As encruzilhadas do
humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); Propiedad
o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006); Os Labirintos do Poder.
O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e Os Paradoxos do imaginário
(São Leopoldo: Unisinos, 2003). Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a exceção jurí- tado de direito para defender o direito cabe perguntar quem é que decide
dica e o estado de exceção? de quaisquer ameaças grave que pu- quando há ou não uma condição gra-
Castor Ruiz – Podemos definir a exce- desse subverter a ordem. ve para decretar a suspensão da lei?
ção jurídica como a suspensão da lei No estado de exceção aparecem al- Quem tem o poder de decidir é, uma
em casos excepcionais. A exceção é a gumas contradições graves que devem vez mais, uma vontade soberana que
figura jurídico-política que defende a ser analisadas criticamente. A primei- está acima da lei e fora da ordem.
ordem suspendendo-a; defende a vida ra é que, para defender a ordem, tem O estado de exceção não existia como
(de alguns) ameaçando a vida (de ou- que, primeiramente, negá-la. A seguir, figura jurídica ou política na ordem pré-
tros). Esta técnica política do direito aquele que tem o poder de decretar o moderna porque o poder absoluto do
adquire uma especial relevância quan- estado de exceção tem que estar fora soberano identificava sua vontade com
do aplicada ao próprio estado de di- da ordem, ou seja fora da lei. Em ter- a lei, tendo o direito arbitrário de po-
reito, ou seja, à suspensão, total ou ceiro lugar, se alguém tem o poder de der suspender a lei como parte de sua
parcial, da ordem vigente por motivos se posicionar com legitimidade fora da vontade soberana. O paradoxal é que o
considerados graves. Neste caso se ordem e acima da lei para suspender estado de direito foi instituído para ne-
origina o chamado estado de exceção. a ordem e a lei, seja quem for, atua gar qualquer vontade soberana acima da
O estado de exceção foi criação do es- como um soberano. Em quarto lugar, lei. Contudo, o próprio estado de direito

28 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


criou a figura política da exceção jurí- humanos, dentro do Estado de direito.
dica para defender a ordem instituída “A exceção que Os indígenas que sobreviveram ao ge-
contra quaisquer ameaças graves que nocídio dos colonizadores foram cata-
venham a pretender transformá-la radi- suspende a ordem, de logados pelos muitos dos estados mo-
calmente. Isso significa que o estado de dernos como fora da cidadania, como
direito mantém na sua sombra a figura forma total ou parcial, foi o caso da constituição dos EUA.
política do soberano que aparecerá de Sobre os indígenas e escravos vigo-
forma implacável quando alguém com torna a vida humana de rava um estado de exceção em que a
poder considere que há motivo grave e lei do estado de direito, e a cidadania
decida suspender a ordem. O soberano todos aqueles que caem por ele reconhecida, era suspensa e só
não foi abolido pelo estado de direito, eram reconhecidos como mera vida na-
senão que está recolhido na sombra para sob a exceção objeto da tural. Eles viviam no campo. O campo é
defender a ordem em caso de necessi- a figura jurídica que não foi inventada
dade. vontade soberana” pelos nazistas, mas pelo estado moder-
no. No campo, o estado de exceção é a
IHU On-Line – Qual é a sua relação humana, que só existe enquanto mera norma. A vida dos escravos e indígenas
com a biopolítica moderna? vida biológica e não se a reconhece era uma vida “matável” e não imputá-
Castor Ruiz – Cabe enfatizar que, ao nenhuma dignidade ou direito. vel. Qualquer um que agredisse, violasse
suspender a ordem e o direito, em A exceção jurídica se constitui ou matasse um escravo ou indígena es-
seu lugar se coloca a arbitrariedade numa tecnologia biopolítica de con- tava isento de imputabilidade. Salvo se
da vontade daquele que a suspende. trole social muito eficiente, quando ao agredir ou matar um escravo violasse
Na exceção a arbitrariedade é a nor- consegue ser aplicada com abrangên- a propriedade de outro cidadão, neste
ma e a normalidade é constituída pela cia. A biopolítica se caracteriza pelo caso sua imputabilidade era por ter des-
vontade soberana daquele que tem o governo da vida humana como um re- truído a propriedade alheia, e não a vida
poder de suspender o direito. O poder curso útil. No caso da exceção jurídi- humana.
soberano que impõe a exceção põe no ca, se aplica como técnica biopolítica
lugar do direito sua vontade, no espa- para poder controlar a vida daquelas Razão instrumental e barbárie
ço vazio do direito vigora a arbitra- pessoas consideras perigosas para a
riedade do soberano. A exceção que ordem social. Ao decretar o estado de É importante sermos conscientes
suspende a ordem, de forma total ou exceção, o objetivo é oferecer pode- de que a barbárie da escravidão, o en-
parcial, torna a vida humana de todos res plenos, ou absolutos, a alguém que curralamento em reservas e o paulati-
aqueles que caem sob a exceção obje- possa controlar de forma eficiente a no extermínio dos povos indígenas não
to da vontade soberana. A vida humana vida daqueles considerados perigosos foi obra de irracionalidade, mas da ra-
no estado de exceção é uma vida que para o status quo. zão instrumental. Não foi um feito de
lhe foi retirado o direito, é uma vida sádicos e tiranos, senão que foi uma
exposta ao arbítrio do poder soberano. IHU On-Line – Como podemos com- operação política legal, em muitos ca-
A exceção jurídica é uma figura políti- preender eticamente o paradoxo de sos dentro do Estado e operada pelo
ca que tem como alvo principal o con- que o estado de exceção cumpre um próprio Estado como forma de expan-
trole da vida humana. código positivo mas viola um código dir seu território para as populações
Ao decretar o estado de exceção, a moral? que ele protegia.
vida das pessoas que caem no campo Castor Ruiz – As graves contradições A pertinência desta análise é mais
da excepcionalidade se torna vulnerá- do estado de exceção apareceram grave quando percebermos que a utili-
vel ao extremo. É uma vida que, priva- desde os primórdios do próprio Estado zação da exceção, pelo Estado, como
da do direito, é reduzida a mera vida moderno. O mesmo estado que criou a forma política de controle de popula-
biológica ou vida natural (o que Agam- isonomia das leis para os seus cidadãos ções indesejadas ou perigosas, conti-
ben denominou de vida nua). Objeti- criou a exceção para poder implemen- nua sendo uma sombra que nos ameaça
vada como mera vida biológica, fica tar a escravidão como um negócio e e que pode se tornar realidade quando
exposta a quaisquer violações como o genocídio indígena como um direito as condições vierem a ser propícias.
parte da normalidade de sua condição de expansão. A escravidão moderna é As barbáries das ditaduras latino-
de vida excepcional. Dependendo do concomitante ao estado de direito. O americanas foram impostas por decre-
grau de excepcionalidade decretada, a mesmo estado que cria a cidadania, tos jurídicos e atos políticos de suspen-
vida humana pode regredir ao extremo decreta a exceção da lei sobre os afro- são da ordem sob o argumento de que
de ser equiparada a mera vida animal, descendentes capturados e comercia- havia uma ameaça subversiva contra
biológica. Neste ponto a vida humana lizados como mercadorias. De forma a própria ordem. As ditaduras latino-
se torna uma vida “matável” sem que paradoxal (tragicômica se não fossem americanas se instituem como formas
sua morte seja imputável. Qualquer seres humanos os atingidos) elabora-se de exceção política para preservar a
um poderia agredir, violentar e até um código de leis específicas sobre a ordem ameaçada. O paradoxo, uma
matar sem imputabilidade a uma vida propriedade, compra e venda de seres vez mais, é que para defender a ordem

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 29


de uma suposta ameaça tem que se “A exceção jurídica é dição de exclusão perene. Emigrar é
negar a mesma ordem que se pretende resistir a permanecer na vida indigna.
defender. Uma vez decretada a exce- uma figura política que A maioria dos migrantes é obrigada a
ção, outorgam-se poderes soberanos a deixar sua terra, povo e cultura. Eles
quem tem poder de defender a ordem. tem como alvo principal são bem recebidos quando se neces-
Neste ponto sua vontade é a norma. sita de mão de obra barata para au-
O estado de exceção possibilitou a ar- o controle da vida mentar os benefícios do capital. Neste
bitrariedade da vontade soberana de caso, o Estado incentiva a emigração.
militares que decretaram a tortura, humana” Porém os próprios Estados querem
perseguição, desaparecimento e mor- ter o controle das populações de mi-
te de centenas de milhares de pessoas grantes, colocando quotas, impedindo
em toda América Latina dentro da lei rantidos pela Constituição. O irônico entradas, expulsando quando não são
do estado de exceção em que a norma desse paradoxo é que a exceção ope- mais necessários, etc. O capitalismo
se assimila à vontade do soberano. ra sobre eles como um fato sem que é um sistema que planeja de forma
exista um ato de direito que a decre- estratégica a produção, o benefício e
IHU On-Line – Em que aspectos para te. Nessa condição, os oprimidos não a exclusão. Os excluídos são parte da
os oprimidos o estado de exceção podem se insurgir contra uma vontade engenharia do mercado.
continua sendo a norma? soberana que os submete a tal con-
Castor Ruiz – Walter Benjamin em sua dição. Para o direito, eles têm todas Vidas frágeis
tese VIII, Sobre o conceito de história, as garantias legais, não existem como
diz que para os oprimidos o estado de excluídos de direito. Sua exceção foge A migração é uma forma de resistir
exceção é a norma. Esta sentença cap- ao ato político da vontade soberana à negação dos direitos básicos da vida
ta com perfeição um outro desdobra- para diluir-se na trama da estruturas digna a que estão submetidos os exclu-
mento das consequências da exceção do mercado que decreta sua condição ídos nos seus respectivos países. Para
como forma de controle biopolítico. de vida excluída. A condição da vida controlar estas populações considera-
Os oprimidos vivem tal condição como excluída sofre outro desdobramento das perigosas, criou-se uma rede de
parte de seu modo de vida. Esta rea- da retirada dos direitos fundamentais, armadilhas legais, sistemas policiais
lidade pode ser constatada em nossas da exceção, em que o soberano se e centros administrativos de retenção
sociedades latino-americanas em que oculta no anonimato dos dispositivos que, em seu conjunto, configuram, a
a exclusão e os privilégios se perpetu- de poder para deliberar como maior depender de cada país, um modelo de
am geração após geração numa espé- eficiência e menor imputabilidade. aplicabilidade da exceção dos direitos
cie de fatalidade naturalista sobre as de cidadania aos estrangeiros quando
mesmas pessoas e seus descendentes. IHU On-Line – Poderia traçar um para- eles não são úteis. Despojados dos di-
Para os excluídos a exceção é seu lelo entre as formas antigas e atuais reitos da cidadania plena, perambu-
modo normal de viver. A exceção se de se aplicar o estado de exceção? lam num estado laxo de exceção em
aplica quando se suspendem, de forma Castor Ruiz – Como indicava anterior- que lhes são reconhecidos alguns di-
total o parcial, os direitos fundamen- mente, a importância de manter uma reitos básicos de respeito à sua digni-
tais da vida digna. Para os excluídos, expectativa crítica sobre o estado de dade, embora lhes sejam negados os
por exemplo, viver e morrer por fal- exceção deriva de sua potencial apli- direitos necessários para consegui-la.
ta de atendimento de saúde se tornou cabilidade a cada momento dependen- Em muitos casos permanecem retidos
uma norma entre nós. Que milhares do das circunstâncias. Ele constitui-se durante meses sem cargos, sem sen-
de pessoas sofram, sobrevivam indig- uma técnica biopolítica muito eficien- tença, sem acusação, esperando uma
namente ou morram permanentemen- te para o controle de populações con- deportação a um lugar que também
te nas filas dos hospitais por falta de sideradas perigosas ou indesejadas. não é definido. Os centros adminis-
atendimento médico, é a norma, é o Dada a versatilidade possível desta fi- trativos de retençãose constituem
normal entre nós. A falta de uma ali- gura jurídico-política, provavelmente em novas figuras jurídico-políticas de
mentação digna e suficiente é normal estaremos constantemente expostos a campos, onde a vontade arbitrária dos
para milhões de excluídos. Morar em enfrentar ou sofrer novas versões da administradores governa a vida dos
condições infra-humanas, não ter uma mesma técnica, a exceção. que ali residem, isso ainda dentro do
educação básica digna, etc., é a nor- Um exemplo da versatilidade da Estado de direito. A vida dos migran-
ma para muitos. formas de exceção como controle bio- tes retidos ou sem papeis é uma vida
Para os excluídos, viver em estado político de populações indesejadas o que perambula no espaço da exceção
de exceção é a norma. Contudo, ne- encontramos nas técnicas jurídico-po- jurídica. É uma vida frágil, exposta à
les impera uma exceção duplamente líticas aplicadas sobre as massas de vulnerabilidade, muitos poderão dela
paradoxal. Sua vida é privada dos di- migrantes ao longo de todo o mundo. se aproveitar e até abusar sem maio-
reitos básicos, porém não há um ato É sabido que a migração se tornou um res consequências.
de direito que decrete tal suspensão, caminho alternativo dos excluídos do Outro exemplo muito próximo de
pelo contrário: os seus direitos são ga- mundo para tentar sair de sua con- exceção jurídica encontramos nas con-

30 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


dições de vida dos campos de refugia- “É importante sermos Penso que o sentido da exceção pode
dos. O refugiado é alguém que teve que ampliar-se para entender a condição
abandonar seu país ou região à força. conscientes de que a da vida excluída como uma forma pa-
Retidos em campos, os refugiados se radoxal de negação do direito em que
expandem ao longo do planeta, viven- barbárie da escravidão, a vontade soberana se esconde no
do uma condição de exceção, pois, no anonimato dos dispositivos de poder
país onde habitam, não são reconhe- o encurralamento em do Estado e do mercado. Sem dúvida,
cidos como cidadãos de pleno direito, toda forma de exceção tem um efeito
ao seu não podem retornar e também reservas e o paulatino de poder sobre a subjetividade dos in-
não lhes reconhece os direitos de ci- divíduos que a sofrem.
dadania. Refugiados em campos, eles extermínio dos povos Não seria apropriado denominar
estão expostos permanentemente ao “formas de exceção” ou assimilar aos
abuso e à violência. Um estado de ex- indígenas, não foi obra estados de exceção os dispositivos
ceção permanente se abate sobre suas biopolíticos de produção e controle
vidas. Lembremos os acampamentos de irracionalidade, mas de subjetividades. A subjetividade tor-
de refugiados palestinos, saharauis, nou-se hoje um bem material muito
Chad, Sudão, Iraque, Afeganistão, Pa- da razão instrumental” apreciado pelo mercado e pelo Estado.
quistão, Birmânia, Filipinas, etc. Uma Conseguir produzir subjetividades fle-
condição similar aos refugiados aco- xibilizadas acordes com as demandas
de suspeitos de terrorismo na Europa,
mete aos “desplaçados” por conflitos do mercado é um objetivo estratégico
no Iraque e até em barcos em águas
dentro da Colômbia. Cabe também dos dispositivos de poder. Conseguir
internacionais.
uma menção especial à situação da administrar a vontade dos sujeitos, de
Nos últimos tempos tivemos conhe-
população palestina de Gaza, cercada modo que eles venham a desejar aquilo
cimento de que métodos truculentos
por terra, mar e ar, submetida a todos que é conveniente para o mercado e o
de perseguição, tortura e extermínio
os controles possíveis até deixar viver Estado, é o ideal de governo moderno.
de civis ou suspeitos colaboradores do
no limite do minimamente digno; eis O governo biopolítico coexiste no seio
inimigo, continuam se utilizando de
um caso paradigmático de controle do Estado de direito e até o legitima,
forma sistemática no Afeganistão e no
biopolítico pela imposição da exceção porém seu objetivo é aprender a go-
Paquistão pelos exércitos dos EUA e da
e seu cercamento num campo. vernar a vontade dos outros, governar
Organização do Tratado do Atlântico
sua natureza, governar seus desejos
Norte – OTAN, como parte da estraté-
Exceção como norma de modo que, bem dirigidos, possam
gica do Estado de direito para se pro-
ser úteis e produtivos. Neste modelo
teger contra os que o ameaçam desde
Ainda outro exemplo contemporâ- biopolítico o indivíduo não é sujeito de
aquelas latitudes.
neo de estado de exceção jurídica o governo, mas objeto a ser governado.
Se olharmos nossa realidade bra-
encontramos no Ato Patriótico decre- Insisto que a forma de governo biopo-
sileira, poderemos perceber que as
tado pelo presidente Bush quando dos lítico é produtiva e não necessita da
condições de vida das prisões beiram,
atentados do 11 de setembro. Nele se exceção para governar a vontade dos
quando não já ultrapassaram, o limite
suspendiam uma parte importante dos outros. Ela interfere de modo ativo no
de qualquer forma de exceção. De ou-
direitos da cidadania (privacidade, cor- desejo dos sujeitos.
tro lado, bairros e favelas inteiras de
respondência, etc.) para que os servi- O uso da exceção como forma de
algumas de nossas cidades vivem sob
ços de inteligência do Estado tivessem controle biopolítico ocorrerá nos casos
o arbítrio dos traficantes, e a exceção
mais poder e em contrapartida ofere- extremos em que determinados indi-
vigora de outra forma. São territórios
cer mais segurança. Decretou-se que víduos, grupos ou populações fujam
onde a vida humana se encontra ex-
quaisquer estrangeiros suspeitos de ao controle de modo que coloquem
posta à violência porque dela foi sus-
terrorismo poderiam ser detidos sem em risco a ordem social. Neste caso,
penso o direito para viver numa forma
provas, sem acusação, até decisão em a biopolítica se utilizará da exceção
de exceção.
contrário. Esta é a versão mais nítida como controle da vida que ameaça
em que a exceção se tornou o contro- para assegurar a vida dos ameaçados.
IHU On-Line – Pode-se falar num refi-
le biopolítico dos suspeitos. A vontade
namento da forma de aplicar o esta-
soberana toma o lugar do direito, e o IHU On-Line – Em que sentido o con-
do de exceção, atingindo hoje muito
arbítrio dos serviços de inteligência, trole sanitário originou o controle
mais a subjetividade dos sujeitos?
dos militares ou dos políticos se torna biopolítico? Poderia recuperar essa
Castor Ruiz – Temos que ter certo cui-
lei soberana. Guantánamo é, até hoje, história?
dado em não extrapolar o sentido da
o triste exemplo do campo onde a ex- Castor Ruiz – A genealogia da biopolí-
exceção jurídica ou do estado de exce-
ceção é a norma, o arbítrio do sobera- tica é complexa e nela confluem várias
ção para não descaracterizá-lo. A ex-
no que governa o campo substitui o di- práticas e discursos oriundos de vá-
ceção é uma técnica jurídico-política
reito. Também se teve conhecimento rias áreas. Uma delas é, sem dúvida,
de controle bipolítico de populações.
de campos secretos de internamento o discurso da saúde. De forma breve,

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 31


podemos localizar uma prática de con- “Conseguir produzir nas moradores das reservas não eram
trole biopolítico na forma como ainda reconhecidos como cidadãos. Se eles
nos séculos XVI-XVII se organizaram o subjetividades saíssem eram imediatamente de-
controle das pestes e dos pesteados. clarados criminosos, se um cidadão
Quando declarada a peste, imediata- flexibilizadas acordes americano os agredisse ou matasse
mente as autoridades decretavam um não cometia delito, mas se fosse ao
cerco geográfico com proibição termi- com as demandas do contrário, o indígena era imediata-
nante de que ninguém poderia entrar mente acusado de crime e penaliza-
nem sair. Nesse campo se designavam mercado é um objetivo do. A reserva cumpriu perfeitamente
funcionários com a lista dos nomes de o objetivo biopolítico de controle e
cada habitante para controlar cada estratégico dos extermínio da vida indesejada.
bairro, se indicava um responsável por Há muitas e tristes experiências
cada rua. As pessoas, obrigadas a fica- dispositivos de poder” de confinamentos em campos. Todas
rem dentro de casa, eram chamadas elas foram criações jurídicas do es-
pelo nome. Quando não se apresenta- tado de direito para controlar a pes-
cial não afete à potência do Estado,
vam na janela, normalmente presas a soas ou populações consideradas por
esse grupo será facilmente esqueci-
ela, um outro funcionário entrava na ele perigosas. Os nazistas levaram
do e abandonado à sua sorte. Este é
casa para ver se havia morrido. Neste ao clímax da barbárie uma técnica
o paradoxo do biopoder!
caso, recolhia o cadáver para ser en- que herdaram. O processo de colo-
terrado. Desta forma se tinha o con- nização do século XIX, feito pelos
IHU On-Line – Por que o modelo do
trole diário e detalhado da vida da ci- estados de direito europeus, utiliza-
campo é o paradigma do governo bio-
dade, do bairro, de cada rua, de cada ram longamente o confinamento de
político?
habitante. populações das colônias em campos,
Castor Ruiz – Esta é a tese de Giorgio
Quando as pestes passaram, os go- para melhor controlar e em muitos
Agamben, que tem um grande funda-
vernantes perceberam que esta técni- casos exterminar.
mento histórico e filosófico.  Quan-
ca de controle de população era muito Hoje em dia, o campo não é uma
do se impõe a exceção jurídica, é
eficiente para outros fins, entre eles a figura superada. Pelo contrário, como
necessário demarcar geográfica e
arrecadação de impostos, evitar sedi- já enumerei anteriormente, quando
demograficamente a população so-
ções políticas, controlar roubos, pla- há uma população considerada pe-
bre a que se suspende o direito. His-
nejamentos urbanos, etc. É assim que rigosa por algum motivo, imediata-
toricamente tem prevalecido a de-
a técnica biopolítica da peste migrou mente acerca-se em um campo para
marcação geográfica, de modo que
para uma técnica administrativa do impor nele a exceção. Guantánamo,
as populações que caíram sob o esta-
Estado. as cadeias secretas para suspeitos de
do de exceção ficavam cercadas em
Uma outra prática de saúde, ine- terrorismo, os campos de refugiados,
um determinado confim geográfico,
rente ao modelo de governo biopo- os centros de detenção para imigran-
o campo.
lítico, é o surgimento da chamada tes ilegais, o cercamento de popula-
O campo é o espaço geográfico e
saúde coletiva. Quando o Estado ções inteiras (como o caso da faixa de
demográfico em que vigora o estado
percebe que a vida humana é um Gaza) para melhor controlá-las, são
de exceção como norma. No campo,
bem produtivo que deve cuidar por- exemplos atuais de que o campo con-
a exceção é a norma. O campo não
que dele depende a riqueza, apa- tinua a ser o modelo jurídico sobre o
foi inventado pelos nazistas para
recem os discursos e as práticas de qual se aplica a exceção como norma
exterminar os judeus, comunistas
saúde coletiva. Enquanto a vida hu- de vida. A vida no campo é reduzida à
e ciganos. O campo é uma herança
mana foi percebida sem valor para mera vida natural, a uma vida bioló-
que receberam do Estado de direito.
os governantes, ela ficou de respon- gica; o ser humano se torna um mero
As origens jurídico-políticas e histó-
sabilidade particular dos indivíduos. ser vivente exposto à vontade dos que
ricas do campo podemos encontrá-
Quando o Estado compreendeu que controlam o campo.
las nas reservas criadas por decreto
seu poder era dependente da qua-
pelo estado democrático de direito
lidade de vida dos cidadãos e que a
dos Estados Unidos da América para
vida humana é a potência que traz ri-
confinar os grupos indígenas, aos
queza para o Estado, nesse momento
quais não se lhes reconhecia o direi-
começaram a surgir novas formas de
to de cidadania e se lhes preservava Leia Mais...
administrar a vida humana de forma
como meros seres viventes que ha-
produtiva, entre elas os discursos e >> Confira outras entrevistas concedidas
bitavam aquelas paragens. Nas re-
as práticas da saúde coletiva. Cuidar por Castor Ruiz à IHU On-Line.
servas, vigorava a exceção plena. A
da saúde da população virou sinôni-
reserva é uma figura jurídica criada * Alteridade, dimensão primeira do sujeito. Edi-
mo de cuidar da riqueza do Estado e ção número 334, Revista IHU On-Line, de 21-06-
expressamente para manter um es-
da sociedade. E vice-versa, quando a 2010, disponível em http://bit.ly/ce9wfa.
tado de exceção interno. Os indíge-
saúde de um determinado grupo so-

32 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


O gênero como norma e fonte de subversão e resistência
Márcia Arán defende que ainda tem sentido falar de sexo masculino e feminino porque
são normas de gênero fortemente incorporadas

Por Márcia Junges e Graziela Wolfart

P
ara a psicóloga Márcia Arán, “existe a possibilidade de uma diversidade de formas de constru-
ção de gênero, de identidades e de subjetivações que ultrapassam o binarismo masculino/fe-
minino”. Na entrevista que aceitou conceder por e-mail à IHU On-Line ela aponta como um
grande desafio a despatologização da transexualidade. “O fato de se definir uma política de
saúde integral tendo como referência os princípios do SUS permite uma ampliação da noção
de saúde, a qual não deve ficar restrita à ausência de doença. Desta forma, podemos considerar a noção
de sofrimento psíquico e corporal como critério de acesso à saúde sem que, necessariamente, este so-
frimento tenha que ser patologizado”.
Márcia Arán apresentaria o minicurso Gênero, Tecnologia e Biopolítica: sobre as modificações corporais
do sexo na transexualidade, na tarde do dia 16 de setembro, durante o XI Simpósio Internacional IHU: O
(des)governo biopolítico da vida humana, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e que está
disponível em http://bit.ly/cAXuGq. No entanto, não comparecerá ao evento por motivos de saúde.
Márcia Arán, psicóloga e psicanalista, é professora do Instituto de Medicina Social da UERJ e coordenadora
da linha de pesquisa Gênero, Subjetividade e Biopolítica. É bacharel em Psicologia pela Universidade de Caxias
do Sul - UCS, e mestre e doutora em Saúde Coletiva pela UERJ. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o sentido em se escritas” sobre o corpo que estão se IHU On-Line - O que essa necessidade
falar de sexo feminino e masculino configurando na contemporaneidade de transformação dos corpos aponta
quando já se fala no transgênero? a partir da revolução transgênero? sobre a sexualidade e a subjetivida-
Márcia Arán - Transgênero é uma expres- Márcia Arán - Desde a revolução femi- de dos sujeitos do século XXI?
são muito utilizada nos Estados Unidos e nista estão acontecendo deslocamentos Márcia Arán - Esta é uma questão co-
em parte da Europa. Aqui no Brasil, as importantes na sociedade, principal- locada para toda a sociedade e não
experiências trans, em geral, são defi- mente devido ao declínio das bases eco- apenas para transgêneros. Todos nós
nidas como transexualidades, travesti- nômicas, sociais e políticas do modo fa- utilizamos tecnologia para a transfor-
lidades, crosdressing e uma minoria se miliar de produção e reprodução social. mação dos corpos, seja a nível hormo-
define como transgênero. De qualquer Soma-se a isto a escolarização e a profis- nal ou cirúrgico. A questão que impor-
forma, acho que ainda tem sentido falar sionalização das mulheres e a “revolução ta pensar é quem tem acesso a estas
de sexo masculino e feminino porque são dos costumes”, que inaugurou questões tecnologias, em que circunstâncias e
normas de gênero fortemente incorpora- como contracepção, aborto e divórcio. por quê. Neste sentido, uma reflexão
das. Porém, o que as experiências trans Em seguida o movimento de gays e lés- no campo da bioética pode ajudar a
vêm demonstrar é que estas identidades bicas problematizou a normatividade do pensar como regulamentar as modifi-
não são fixas, ou seja, não são nem uma casamento, da parentalidade e da filia- cações corporais. No campo das novas
substância no sentido biológico do ter- ção e, mais recentemente, o movimento tecnologias, nós temos que refletir
mo, nem mesmo posições sexuadas per- trans colocou na ordem do dia a questão quando uma cirurgia pode ser conside-
manentes. Existe a possibilidade de uma do trânsito entre os gêneros e as práticas rada estética e/ou reparadora. Quan-
diversidade de formas de construção de de modificação corporal. A partir destes do a regulamentação de uma interven-
gênero, de identidades e de subjetiva- deslocamentos ocorridos nos últimos 50 ção somática exige uma tutela médica
ções que ultrapassam o binarismo mas- anos as normas de gênero estão mais ou psi e quando pode ser realizada a
culino/feminino. fluidas e permitem escritas sobre o cor- partir da noção de autonomia e de au-
po que comportam novas identificações todeterminação.
IHU On-Line - Quais são as “novas e novos devires.

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 33


IHU On-Line - Como a saúde brasileira podemos considerar a noção de sofri-
trabalha com a questão de troca de “A partir destes mento psíquico e corporal como crité-
sexos? Ainda há muita discriminação rio de acesso à saúde sem que necessa-
na busca de atendimento médico de deslocamentos ocorridos riamente este sofrimento tenha que ser
quem quer transformar seu corpo? patologizado.
Márcia Arán - O Ministério da Saúde nos últimos 50 anos as
através da Portaria nº 1.707/2008 ins- IHU On-Line - Qual é a contribuição
tituiu no Sistema Único de Saúde - SUS normas de gênero estão de Foucault para pensarmos a temá-
o Processo Transexualizador, através da tica da biopolítica relacionada com a
constituição de serviços de referência mais fluidas e permitem transexualidade?
que estejam habilitados a prestar aten- Márcia Arán - A contribuição de Fou-
ção integral e humanizada a transexu- escritas sobre o corpo cault é decisiva. Interessa-me, particu-
ais. Esta iniciativa foi importante por- larmente, no debate sobre a biopolítica
que o Ministério passou a reconhecer que comportam novas contemporânea, a utilização que Judith
que questões relacionadas à identida- Butler faz do conceito de norma. Para
de de gênero e práticas sexuais fazem identificações e novos a autora, as normas que governam a
parte da saúde e devem ser acolhidas identidade inteligível são estruturadas
e tratadas pelo SUS. Vários atores so- devires” a partir de uma matriz que estabelece
ciais contribuíram para a promoção do a um só tempo uma hierarquia entre
debate sobre transexualidade e saúde, esta iniciativa. No entanto, os desa- masculino e feminino e uma heterosse-
dando visibilidade para a vulnerabilida- fios para a institucionalização destas xualidade compulsória. Neste sentido,
de da população trans no país. Desta- práticas são muitos. É de fundamental o gênero não seria nem a expressão de
ca-se a contribuição dos coordenadores importância investir na formação de uma essência interna, nem mesmo um
dos programas assistenciais que cons- profissionais capacitados para atender simples artefato de uma construção
truíram um espaço de atenção a essa a esta clientela; a promoção de uma social, mas sim o resultado de repeti-
clientela, muitas vezes enfrentando política de atenção básica (nós já te- ções constitutivas que impõem efeitos
enorme resistência institucional devido mos alguns ambulatórios que têm sido substancializantes, ou seja, o gênero é
ao preconceito, à homofobia e à discri- uma experiência muito importante); a ele próprio uma norma. Uma identida-
minação incutidas em algumas práticas imediata discussão sobre a especifici- de atenuamente construída através do
de saúde. Além disso, foi importante a dade da assistência a homens transe- tempo por meio de uma repetição in-
ação do Ministério Público Federal para xuais que ficaram excluídos da portaria corporada através de gestos, movimen-
a inclusão da cirurgia de transgenitali- e das travestis; a construção de uma tos e estilos. Porém, partindo da teoria
zação na tabela de procedimentos do rede com sistema jurídico para a mu- de biopoder de Foucault, Butler argu-
SUS em 2001. A instituição do Comitê dança do nome civil, entre outras. No menta que é, justamente pelo fato de
Técnico Saúde da População LGBTT entanto, o grande desafio na regulação a instabilidade das normas de gênero
(lésbicas, gays, bissexuais, travestis e desta prática consiste na despatologi- estarem abertas à necessidade de re-
transexuais) em 2004, a participação zação da transexualidade. O fato de se petição do mesmo, que a lei reguladora
dos movimentos sociais e as contri- definir uma política de saúde integral, pode ser reaproveitada numa repetição
buição de pesquisadores acadêmicos tendo como referência os princípios do diferencial. Assim, se o gênero é uma
também possibilitaram o estabeleci- SUS, permite uma ampliação da noção norma, ele também pode ser fonte de
mento de pactuações sobre propostas de saúde, a qual não deve ficar restri- subversão e resistência.
de saúde integral que fundamentaram ta à ausência de doença. Desta forma,


A próxima edição da IHU On-Line
dará sequência ao debate do XI ������������
Simpósio
XI SIMPÓSIO INTERNACIONAL IHU: Internacional IHU: O (des)governo
O (DES)GOVERNO BIOPOLÍTICO
DA VIDA HUMANA biopolítico da vida humana.
Confira novas entrevistas no dia 21-09-2010
13 a 16 de setembro de 2010
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34 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 35
Memória
Raimon Panikkar (1918-2010).

Panikkar e a eterna busca pela harmonia do saber


Para Victorino Pérez Prieto, Raimon Panikkar foi um dos grandes pensadores da nossa
época, que insistia na busca da harmonia da realidade

Por Graziela Wolfart

“R
aimon Panikkar preferia falar de diálogo ‘intrarreligioso’ ao invés de diálogo inter-
religioso. Um diálogo que começa no interior de nós, descobrindo a relatividade
das nossas crenças (relatividade, não relativismo) e aceitando o desafio de uma
mudança, de uma conversão; uma conversão que começa renunciando à pretensão
de possuir toda a verdade; renunciar a uma ideia de verdade que se diz exclusiva,
porque a verdade está acima de nós e da nossa religião. O seu projeto era alcançar um ecumenismo
ecumênico, além do cristianismo, a busca da harmonia das religiões, além de um sincretismo e uma
‘teoria universal das religiões’, que vinha a ser uma espécie de absurdo ‘esperanto religioso’”. A defini-
ção é do teólogo Victorino Pérez Prieto. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line ele fala
sobre o legado de Raimon Panikkar, recentemente falecido. Para Victorino, Panikkar “era um homem de
uma qualidade intelectual e humana excepcional; um filósofo e um teólogo, um sábio e um místico, um
profeta do nosso tempo que rompeu as fronteiras estreitas do cristianismo e do ocidente para se abrir a
todas as religiões e culturas”.
Victorino Pérez Prieto é teólogo e escritor. Atualmente dá aulas na Universidade de Santiago de Com-
postela. Estudou Filosofia e Teologia e doutorou-se em Teologia pela Universidade Pontifícia de Salamanca.
É membro da Asociación de Teólogos Juan XXIII, da Asociación de Escritores en Lingua Galega, do Centro
Interculturale Raimon Panikkar, da Argentina, e de outras associações. Ensaísta e publicista, publicou mais
de uma dúzia de livros em galego e castelhano, entre os quais citamos Más allá de la fragmentación de la
teologia, el saber y la vida: Raimon Panikkar (Valência: Tirant lo Blanch, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quem foi Raimon Pan- turas. Teve uma vida longa e riquíssima; o risco de uma conversão sem loucura,
ikkar? realmente excepcional pelas múltiplas uma assunção sem repúdio, uma síntese
Victorino Pérez Prieto - Raimon Panikkar realidades que nele convergiam: pela e simbiose sem cair em um sincretismo
foi um dos grandes pensadores da nossa múltipla origem hindu-cristã, pelos seus ou ecletismo”. Como se escreveu sobre
época. Nestes dias depois de sua morte, estudos interdisciplinares (doutorados ele, é um místico portador de uma men-
temos lido que ele foi o maior na sua Ca- em Filosofia, Ciências e Teologia), pela sagem que apresenta um problema sem
talunha natal depois do grande pensador sua interculturalidade e inter-religio- nunca se limitar ao todo constituído de
medieval Raimon Llull. Era um homem sidade. Ele mesmo reconhecia o “risco uma instituição. Tivemos uma longa e
de uma qualidade intelectual e humana existencial” como uma característica da intensa relação, intelectual e amistosa,
excepcional; um filósofo e um teólogo, sua própria existência, por estar enrai- alimentada, sobretudo, pelos nossos en-
um sábio e um místico, um profeta do zado em mais de uma cultura e religião; contros na sua casa em Tavertet (Espa-
nosso tempo que rompeu as fronteiras conforme consta no seu relato autobio- nha). Ele foi um mestre e amigo; por isso
estreitas do cristianismo e do ocidente gráfico (Autobiografía intelectual. La me escrevia com frequência: “Lembro
para se abrir a todas as religiões e cul- filosofía como estilo de vida. Barcelo- de ti e muito. Não deixes de me visitar
 Ramon Llull (1232-1315): escritor e fi- na: Anthropos, 1985): “minhas circuns- em Tavertet. A uma certa idade, é pre-
lósofo. Escreveu o maior trabalho da lite- tâncias pessoais me permitiram aceitar ciso superar a tentação de se fazer de
ratura catalã. (Nota da IHU On-Line)
36 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343
difícil”, me escrevia. “A amizade, que é sabedoria de Ocidente e Oriente, e in-
uma forma de amar, é uma virtude hu-
“Panikkar insistia na ter-religiosamente, pondo em relação o
mana e, portanto, cristã”. cristianismo, o hinduísmo e o budismo.
busca da harmonia da Para ele era importante o pensamento e
IHU On-Line - Quais os principais pas- a filosofia, mas não menos importante a
sos de sua trajetória?
realidade, que contemplação e a mística. E isto atinge
Victorino Pérez Prieto – Panikkar nas- toda a sua obra, que é a expressão da
ceu em Sarriá-Barcelona (Espanha) em
expressa com seu necessidade de integração do conjunto
1918, numa família católica, mas com de toda a realidade em todas as suas di-
uma circunstância excepcional: seu pai
conceito da ‘perspectiva mensões. Além disso, Panikkar não só foi
era indiano e de religião hindu, aristo- um criador de conceitos, como também
crático de Kerala, no sul da Índia, e sua
cosmoteândrica’” de neologismos, palavras da sua autoria
mãe era catalã, burguesa e profunda- com as quais expressava esses conceitos
mente católica. Ele assumiu esta dupla catedrático de Filosofia Comparada da novos: filosofia dialógica ou imperati-
origem fazendo-a mais ainda sua: “Não Religião e História das Religiões. Ali se va, ecosofia, tecnocronia, microdogia,
me considero meio espanhol e meio casou, mas sem abandonar o sacerdócio katacronismo, pisteuma, equivalentes
indiano, meio católico e meio hindu, católico. Chegada a sua jubilação em homeomórficos, ontonomia, diferen-
mas totalmente ocidental e totalmen- 1987, Panikkar volta às suas raízes cata- ça simbólica, hermenêutica diatópica,
te oriental”. Educou-se com os jesuítas lãs, instalando-se em Tavertet, onde vi- tempiternidade, intuição cosmoteândri-
de Barcelona, e em seguida realizou os veu como um monge, com sua mulher e ca, etc.
seus estudos universitários em Ciências participando ativamente na vida cultural
e Letras entre as universidades de Bar- e religiosa catalã. Podemos falar de eta- IHU On-Line - Como o senhor enten-
celona, Bonn e Madrid; posteriormente pas na sua vida, as quais tenho recolhido de os conflitos que Panikkar tinha
cursou Teologia em Roma. É doutor nas no meu livro Más allá de la fragmenta- com a Igreja?
três disciplinas com magníficas teses pu- ción de la teología, el saber y la vida: Victorino Pérez Prieto - Os conflitos de
blicadas (Filosofía: El Concepto de la na- Raimon Panikkar (Prólogo de Raimon Pa- Panikkar com a Igreja católica nascem,
turaleza. ��������������������������������
Análisis histórico y metafísico nikkar, Valência 2008): em primeiro lugar, pelo fato de o seu
de un concepto. Madrid 1972; Ciencias: pensamento ser livre; fixado na tradição
Ontonomía de la ciencia. Sobre el sen- 1. Etapa de estudos e atividade em católica, mas aberto a outras tradições,
tido de la ciencia y sus relaciones con Barcelona, Madri, Salamanca, Roma e que buscou harmonizar com esta, mas
la filosofia. �������������
Madri, 1961; Teología: The outras cidades europeias (1918-1954). sem cair num sincretismo, coisa que não
Unknown Christ of Hinduism. Londres, 2. Etapa da Índia. Simbiose cristã-hin- foi bem entendida por alguns, mergulha-
1964). Ordenou-se sacerdote em 1946, du (1955-1966). dos em uma interpretação tradicional-
em Madri. E em 1953 fez sua “viagem 3. Etapa docente norte-americana conservadora-reacionária da fé católi-
romana”, para ir no ano seguinte à Índia, (1966-1987). ca. Além disso, os conflitos vêm do fato
a Varanasi. A permanência ali mudou a 4. Volta às suas raízes catalãs, para de ter casado apesar de ser sacerdote,
sua vida. No encontro com a religião completar o ciclo vital (1987-2010). rompendo, portanto, a norma do celiba-
e a cultura daquele país descobriu um to, que considerava injusta e caduca, e
modo diferente de pensar e ver a reli- IHU On-Line - Qual a principal contri- por reivindicar o seu direito a continuar
gião, Deus, o ser humano e o cosmos. O buição de seu pensamento e de suas exercendo esse sacerdócio, que não era
terceiro grande encontro depois do cris- obras? nem sequer exclusivamente cristão, su-
tianismo e do hinduísmo foi com o bu- Victorino Pérez Prieto – Como expressei jeito ao direito canônico, mas que per-
dismo, mas este triplo encontro não lhe no meu livro citado anteriormente e, so- tencia “à ordem de Melquisedec” (que
fez abandonar nenhuma das identidades bretudo, em outro mais centrado no seu não era nem sequer judeu).
anteriormente conquistadas. Na Índia pensamento (Dios, Hombre, Mundo: La
trabalhou como pesquisador nas univer- trinidad en Raimon Panikkar. Prólogo de IHU On-Line - Qual sua análise da fra-
sidades de Vanarasi e Mysore, aprofun- Xabier Pikaza, Barcelona, 2008), Raimon se de Panikkar “parti cristão, desco-
dando-se nas raízes do hinduísmo e do Panikkar sempre buscou a harmonia do bri-me hindu e retornei budista, sem
budismo. Voltou várias vezes à Europa e saber, a harmonia entre a Filosofia, as ter jamais cessado de ser cristão”?
viajou por todo o mundo, dando cursos e Ciências e a Teologia. Insistia na busca Victorino Pérez Prieto - Esta frase ex-
conferências. da harmonia da realidade, que expressa pressa três das identidades que Raimon
com seu conceito da “perspectiva cos- Panikkar reconhece como próprias: cris-
Vida nos Estados Unidos moteândrica”: a realidade é trinitária, tianismo, hinduísmo e budismo. A estas
a comunhão perfeita, sem divisão nem três eu somaria a identidade de secular,
Em 1971, instalou-se nos Estados Uni- confusão, entre Deus — a Divindade, o das suas raízes no pensamento ocidental
dos, primeiro em Harvard e depois, de ser Humano — a Consciência e o Cosmos moderno, tal como escrevi no meu tra-
maneira quase permanente, na Universi- — a Matéria. Elaborou este pensamen- balho Raimon Panikkar: 90 anos e qua-
dade da Califórnia, Santa Bárbara, como to interculturalmente, relacionando a tro identidades (Dialogal, 2008). As duas

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 37


“O seu projeto era jeito especialmente relevante. Todas se
complementam.
alcançar um
ecumenismo ecumênico, Leia Mais...

Informações em www.ihu.unisinos.br
>> Sobre Raimon Panikkar leia também:
além do cristianismo,
• Raimon Panikkar, buscador do Mistério. Entre-

a busca da harmonia vista com Faustino Teixeira, publicada na IHU


On-Line número 341, de 30-08-2010, disponível

Participe dos eventos do IHU.


em http://bit.ly/9UaUxJ.
das religiões” • Panikkar, um filósofo para três religiões. Ma-
téria publicada no sítio do IHU em 31-08-2010 e
disponível em http://bit.ly/a0s6yt
primeiras fazem parte das suas raízes e • Panikkar: o “monge’’ cujo verbo foi o diálogo
entre as religiões. Matéria publicada no sítio do
a terceira, um descobrimento posterior
IHU em 31-08-2010 e disponível em http://bit.
que faz na Índia. Ele comentou que foi ly/bT74A4
à Índia como missionário para converter • O adeus a Panikkar, teólogo do diálogo igual
entre as fés. Matéria publicada no sítio do IHU em
os hindus; mas que foram os hindus que
31-08-2010 e disponível em http://bit.ly/ckiq7p
o converteram; não tanto ao hinduísmo, • Panikkar, ponte entre dois mundos. Matéria
mas a uma verdade mais profunda, que publicada no sítio do IHU em 30-08-2010 e dispo-
nível em http://bit.ly/9JMIFQ
ele mesmo chamava de “mais católica”.
• O diálogo entre religiões e culturas perde
Raimon Panikkar. Matéria publicada no sítio do
IHU On-Line - Como a figura e o exem- IHU em 30-08-2010 e disponível em http://bit.
ly/agL8FA
plo de Panikkar elucidam o debate • Ícone da Unidade, Raimon Panikkar. Matéria
atual sobre o pluralismo religioso e o publicada no sítio do IHU em 28-08-2010 e dispo-
diálogo inter-religioso? nível em http://bit.ly/bLwKj0
• Raimon Panikkar, teólogo da dissidência. Ma-
Victorino Pérez Prieto - Raimon Panikkar téria publicada no sítio do IHU em 28-08-2010 e
preferia falar de diálogo “intrarreligioso” disponível em http://bit.ly/dtBaVI
ao invés de diálogo inter-religioso. Um • Panikkar, uma visão oriental do catolicismo.
Matéria publicada no sítio do IHU em 14-06-2010
diálogo que começa no interior de nós, e disponível em http://bit.ly/cQdIAn
descobrindo a relatividade das nossas • Raimond Panikkar: felicidade no momento pre-
crenças (relatividade, não relativismo) e sente. Matéria publicada no sítio do IHU em 20-
05-2010 e disponível em http://bit.ly/bITdXL
aceitando o desafio de uma mudança, de • Crer com o corpo: a lição de Raimon Panikkar.
uma conversão; uma conversão que co- Matéria publicada no sítio do IHU em 13-04-2010
meça renunciando à pretensão de possuir e disponível em http://bit.ly/aPUYGG
• O tempo do perdão e a lógica do inimigo. Ma-
toda a verdade; renunciar a uma ideia de téria publicada no sítio do IHU em 25-10-2007 e
verdade que se diz exclusiva, porque a disponível em http://bit.ly/9vFVgq
verdade está acima de nós e da nossa • “O grande desafio do terceiro milênio para o
cristianismo é tornar-se realmente católico”. En-
religião. O seu projeto era alcançar um trevista com Raimon Panikkar publicada no sítio
ecumenismo ecumênico, além do cristia- do IHU em 04-01-2007 e disponível em http://
nismo, a busca da harmonia das religiões, bit.ly/cZbHZl
• Por uma teologia pós-religião: sem dogmas
além de um sincretismo e uma “teoria nem doutrinas. Matéria publicada no sítio do
universal das religiões”, que vinha a ser IHU em 18-03-2010 e disponível em http://bit.
uma espécie de absurdo “esperanto re- ly/bBTAnu
• “Deus está além das religiões’’. Matéria publi-
ligioso”. Panikkar expressava isso com cada no sítio do IHU em 29-08-2010 e disponível
o conceito hindu dharma-samanvaya: em http://bit.ly/agwV4u
“harmonização (convergência) de todos • Pannikar, pensador único e irrepetível. Matéria
publicada no sítio do IHU em 29-08-2010 e dispo-
os dharmas ou religiões. Samanvaya não nível em http://bit.ly/cYiKXn
quer dizer necessariamente igualdade, • Raimon Panikkar: diálogo e interculturalidade.
mas comporta a esperança de que a ca- Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010
e disponível em http://bit.ly/a5sc5N
cofonia atual podia se converter numa • Unir céu e terra serve para restituir um sentido
sinfonia futura” (A nova inocência). De- ao mundo. Matéria publicada no sítio do IHU em
vemos aspirar à harmonia da vida e das 29-08-2010 e disponível em http://bit.ly/dutFqn
• O adeus a Panikkar, teólogo da cosmoteandria.
religiões, não a uma uniformidade. Este Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010
é seu grande aporte ao diálogo religioso: e disponível em http://bit.ly/aBSJYc
todas as religiões são uma busca legítima • Superar a cristologia tribal, o desafio proposto
por Raimon Panikkar. Matéria publicada no sítio
de Deus, cada uma a sua maneira, ainda do IHU em 02-09-2010 e disponível em http://
que as grandes religiões o façam de um bit.ly/brL2kf

38 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


Panikkar e a Teologia da Libertação
Por Marcelo Barros

R
ecebemos e publicamos a seguir o testemunho de Marcelo Barros, enviado à IHU On-Line,
sobre Raimon Panikkar. Marcelo Barros é monge beneditino e biblista. Membro da Associação
Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), é autor de 32 livros, entre os quais O
Amor fecunda o Universo – Ecologia e espiritualidade (Editora Agir, 2009), em co-autoria com
Frei Betto. Confira o artigo.

Raimon Panikkar se foi deste mun- sentido de que estava ligado à nossa mente na figura histórica de Jesus de
do no mesmo dia 27 de agosto, em que busca de ligar profundamente a fé Nazaré. Panikkar ressaltava a distin-
lembramos a partida de Dom Hélder com a defesa da vida e a causa da jus- ção não tanto entre o Jesus histórico
Câmara. Foi através deste bispo pro- tiça para toda a humanidade. Poste- e o Cristo da Fé, como fazia a teologia
feta que conheci Panikkar no final dos riormente, só o encontrei novamente, ocidental dos anos 60, mas distinguia a
anos 60, quando este passava pelo Re- há poucos anos, em Barcelona. Entre figura histórica de Jesus e a dimensão
cife em uma viagem pelo Brasil. Dom aquele encontro dos anos 60 e este de misteriosa do Cristo, bem mais ampla
Hélder Câmara o apresentou como um 2002, conheci várias de suas obras. e cósmica. Era a sua forma de contem-
dos “nossos” teólogos na Europa. Na- Embora ele nunca tenha assumido ex- plar o sentido salvífico das religiões
quela época não havia ainda surgido o plicitamente a Teologia da Libertação, orientais, sem cair no tal inclusivismo
conceito de “Teologia da Libertação”. todas as pessoas que, no mundo e nas ocidental. Esta visão de Panikkar nos
Compreendi que Panikkar era nosso no Igrejas, trabalham pela justiça podem ajudava a aprofundar a presença do
 Dom Hélder Câmara (1909-1999): arcebispo considerá-lo “irmão e companheiro na Cristo nas culturas e religiões popu-
lembrado na história da Igreja Católica no Bra- tribulação e no testemunho do reino” lares. Nos anos 90, ao preparar o 9º
sil e no mundo como um grande defensor da (Ap 1, 9). Para nós, latino-americanos, Encontro intereclesial de CEBs em São
paz e da justiça. Foi ordenado sacerdote aos
22 anos de idade, em 1931. Aos 55 anos, foi no- isso se torna mais claro, principalmen- Luiz (MA), Carlos Mesters escreveu:
meado arcebispo de Olinda e Recife. Assumiu te, quando, a partir da preparação da “Jesus Cristo está presente no Can-
a Arquidiocese em 12-03-1964, permanecendo 4ª Conferência do episcopado latino- domblé. Isso lhe valeu um violento
neste cargo durante 20 anos. Na época em que
tomou posse como arcebispo em Pernambuco, americano, em Santo Domingos (1992), protesto da coordenação do Movimen-
o Brasil encontrava-se em pleno domínio da di- o diálogo das culturas e tradições es- to de Renovação Carismática Católica
tadura militar. Paralelamente às atividades re- pirituais se tornou questão central da em uma carta aberta aos bispos bra-
ligiosas, criou projetos e organizações pasto-
rais, destinadas a atender às comunidades do vida e da Teologia da Libertação. sileiros.
Nordeste, que viviam em situação de miséria. Com sua proposta de uma visão
Dedicamos a editoria Memória da IHU On-Line Os diversos rostos do Cristo cosmoteândrica, Panikkar se colocou
número 125, de 29-11-2005, a Dom Hélder Câ-
mara, publicando o artigo Hélder Câmara: car-  Sobre Jesus de Nazaré leia a IHU On-Line nú-
tas do Concílio. Na edição 157, de 26-09-2005, Em 1978, no documento de Con- mero 336, de 06-07-2010, intitulada Jesus de
publicamos a entrevista O Concílio, Dom Hel- clusões da Conferência de Puebla já Nazaré. Humanamente divino e divinamente
der e a Igreja no Brasil, realizada com Ernanne humano, disponível em http://bit.ly/aB4gaM
Pinheiro, que pode ser lida em http://migre. aparece o tema do “rosto de Cristo (Nota da IHU On-Line)
me/KtGO. Confira, ainda, a editoria Filme da no negro, no índio e nos diversos tipos  - Por exemplo: L.BOFF, Jesus Cristo Liberta-
Semana da edição 227 da IHU On-Line, 09-06- de empobrecidos” (n. 31- 40). Nesta dor (Vozes: Petrópolis, 1973); J.SOBRIÑO, Cris-
2007, que comenta o documentário Dom Hél- tologia a partir da América Latina (São Paulo:
der Câmara – o santo rebelde. O material pode época, Panikkar já havia escrito: “Il m italiano JON SOBRINO, Gesù
Loyola, 1977). E������������������������
ser acessado em http://migre.me/KtIb. (Nota Cristo sconosciuto del induísmo”. A Cristo Liberatore (Assisi: Cittadella, 1993).
da IHU On-Line) abordagem deste livro nos ajudou a (Nota do autor)
 Teologia da Libertação: escola importante  Carlos Mesters: frei carmelita, holandês, ra-
na teologia da Igreja Católica, desenvolvida relativizar nosso “cristocentrismo”, dicado no Brasil, biblista, fundador do Centro
depois do Concílio Vaticano II. Surge na Améri- aprofundado a partir do catolicismo de Estudos Bíblicos (CEBI). Foi protagonista,
ca Latina, a partir da opção pelos pobres, e se popular. Naquela época, os teólogos no Brasil, da leitura popular da Bíblia. É autor
espalha por todo o mundo. O teólogo peruano de inúmeros comentários dos livros da Escritu-
Gustavo Gutiérrez é um dos primeiros que pro- latino-americanos insistiam exata- ra Judaica e Cristã. (Nota da IHU On-Line)
põe esta teologia. A teologia da libertação tem  - Cf. FREI CARLOS MESTERS, Jesus e o Povo,
um impacto decisivo em muitos países do mun-  - R. PANIKKAR, Il Cristo sconosciutto del in- in CEBs, Vida e Esperança nas Massas, Texto-
do. Sobre o tema confira a edição 214 da IHU duísmo, Milano, Vita e Pensiero, 1975 (poste- base (São Paulo: Ed. Salesiana
���������������������
Dom Bosco,
On-Line, de 02-04-2007, intitulada Teologia riormente este livro foi traduzido para o es- 1996, pp. 128- 129). (Nota do autor)
da libertação, disponível para download em panhol e outras de nossas línguas). (Nota do ��������������������������������������������
- Cf. R. PANIKKAR, Las tres dimensiones de
http://bit.ly/bsMG96. (Nota da IHU On-Line) autor) la realidad, La experiencia cosmoteándrica,

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 39


muito próximo da Teologia Pluralista “Acreditamos ser formação do mundo e de cada pessoa.
da Libertação, insistindo na centrali- Embora isso se realize a partir da prá-
dade do Espírito e do reino. (eu teria possível retomar o sopro tica, sem dúvida, uma reflexão como a
preferido que ele usasse o termo an- de Panikkar, em seu livro “El espíritu
tropos no lugar de andros para evitar profético de um novo de la Política – Homo Políticus14 pro-
um enfoque especificamente masculi- picia um aprofundamento da questão.
no e centrar a questão no humano que mundo e uma nova Ali, diferentemente de nossas aborda-
é masculino e feminino). gens marcadas pela urgência do aqui e
espiritualidade possível” agora, ele toca na profundidade da na-
Sincretismo, diálogo intra-religioso tureza humana e vocação universal e
e interculturalidade. comunitária do ser humano. Este livro
Por isso, além de qualquer argumento é um bom instrumento para a elabo-
No caminho de inserção no Catoli- religioso, era e é importante defender ração de uma Teologia mundial da Li-
cismo popular e religiões ancestrais de o direito das pessoas viverem essa in- bertação, desenvolvida nos três fóruns
nossos povos, um elemento central a tegração como diálogo intra-religioso de Teologia e Libertação, ocorridos no
ser compreendido é o que geralmente a serviço da libertação e da vida. contexto do Fórum Social Mundial e
se chama de sincretismo. Em 1983, no Uma vez, nos anos 80, vi um sacer- cuja quarta sessão se está preparando
livro “Igreja, Carisma e Poder”, Le- dote tentar convencer um índio xavan- para Dakar (janeiro de 2011).
onardo Boff dedicou um capítulo ao te de que ele não precisaria batizar Atualmente, um desafio da Teologia
Sincretismo. Em 1978, Panikkar pu- seu filho. O índio respondeu: “O ba- da Libertação será a volta às bases.
blicara a primeira versão do seu “di- tismo é o único instrumento que o tor- Além disso, de todos os cantos, vem o
álogo intra-religioso”10. Trata-se de na humano igual aos outros. Meu filho apelo por um maior aprofundamento
não só dialogar com alguém exterior, não tem o mesmo direito dos filhos dos de uma espiritualidade popular, laica,
mas carregar dentro de si mesmo as brancos?”. Enquanto não conseguimos pluralista e libertadora. Na América
interrogações surgidas das diferentes a transformação radical da sociedade Latina, chamamos isso de “espiritu-
tradições espirituais. É preciso expres- e a convivência igualitária de todos alidade macro-ecumênica”. Panikkar
sar a fé não de modo relativista, mas em uma real interculturalidade, temos afirma: “a experiência religiosa ou
relacional. “A finalidade do diálogo in- de garantir o profundo respeito e diá- mística, da qual somos conscientes,
tra-religioso é a compreensão. Não se logo com a sensibilidade das pessoas através da sensibilidade, da inteli-
trata de ganhar o outro (em outro es- envolvidas, no caso, as mais pobres e gência e do espírito, é o resultado de
crito ele chama isso de “diálogo dialé- que lutam pelo reconhecimento de sua muitos fatores: experiência pessoal,
tico”), nem chegar a um acordo total, dignidade humana e cultural. linguagem, memória, interpretação,
ou a uma religião universal. O ideal é A reflexão de Panikkar sobre inter- recepção e atualização. É a mais pro-
a comunicação (diálogo dialogal), vi- culturalidade12, mesmo sendo “uma funda experiência humana em sua ple-
sando preencher o fosso de ignorância reflexão filosófica”, é um trabalho nitude irredutível”15.
entre as diferentes culturas do mun- de teologia da libertação. Ali, ele de- Nos anos 80, o livro de Panikkar
do, deixando-as falar e expor aberta- nuncia a falácia do que, em geral, se “L´Éloge du Simple” (Aubier, 1985) me
mente suas intuições próprias em suas chama de multiculturalismo e legitima marcou profundamente, certamen-
próprias linguagens”11. a colonização13. Além de denunciar a te porque sou monge e, desde minha
Para uma Teologia da Libertação, opressão como faria um bom teólogo juventude, acredito no que, na Idade
empenhada em servir à vida e à li- da libertação, ele trabalha a questão Média, dizia o abade Santo Estêvão de
bertação dos pobres, a questão do da interculturalidade para aprofun- Muret: “toda pessoa que busca a uni-
sincretismo aparece, em primeiro dar o caminho da paz, no sentido de dade interior é monge ou monja”. E
lugar, como elemento de resistência aliança de justiça, comunhão humana justamente nos anos 80, eu procura-
cultural. Durante séculos e até poucos e com todos os seres vivos. Ele faz isso va organizar um mosteiro beneditino
anos, ser cristão era a única forma de a partir de sua cultura que liga Oci- aberto a leigos e leigas, ecumênico e
negros e índios se sentirem “incluídos” dente e Oriente. A conclusão do livro no qual a vida monástica fosse uma
na sociedade hegemônica. Ao mesmo é o capítulo no qual ele descreve nove forma de viver a vocação humana na-
tempo, ser do Candomblé ou de uma sutras sobre a paz. quilo que ela tem de transcendente
religião índia era uma forma de resis- e de amorosidade. Em seu livro, Pa-
tir e manter sua identidade cultural. Para continuar o caminho. nikkar insiste nesta dimensão univer-
Madrid, Trotta, 1999. ���������������
(Nota do autor) sal da monasticidade como busca de
 - Cf. L. BOFF, Igreja, Carisma e Poder, Petró- A intuição fundamental da Teologia unidade presente no coração de toda
polis, Vozes, 1983, pp. 45 ss. (Nota do autor)
10 - R.PANIKKAR, The Interreligious dialog,
da Libertação é ligar a fé e a espiritu- 14 - A edição espanhola é de Barcelona (Ed.
New York, Paulist, 1978; (trad francesa: Pa- alidade com o compromisso de trans- Península, 1999), a edição italiana é de Bolog-
ris, Aubier, 1985; na Itália, Assisi, Cittadella, na (EDB, 1995). ���������������
(Nota do autor)
1988). (Nota do autor) 12 - Ver, por exemplo, em italiano R. PANI- - PANIKKAR, R., De la Mistica – Experiencia
������������������
�����������������������������������������������
- PANIKKAR, R., The Intrareligious Dialogue, KKAR, Pace e Interculturalità (Milano: Jaca plena de la Vida (Barcelona: Herder, 2005, p.
New York, Orbis, 1978, p. 27. ������������
(Nota do au- Book, 2002). (Nota do autor) 131.) (Nota do autor)
tor) 13 - idem, pp. 27 ss. (Nota do autor)

40 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


pessoa. A relação disso com a Teolo-
gia e a Espiritualidade da Libertação é
que ele mostra como esta construção
interior e íntima se realiza sempre no
compromisso com os outros e em um
contexto de algum modo comunitário. Confira as publicações do
Atribui-se a Eduardo de Filipo a
afirmação: “O homem nasce velho e
morre criança”. Este processo se dá
Instituto Humanitas Unisinos - IHU
pelo amadurecimento de uma espiri-
tualidade que poderíamos chamar de
humana e crística. Quem conheceu de
perto Hélder Câmara e Raimon Pani-
kkar pode testemunhar que ambos,
apesar de aspectos frágeis e mesmo de
suas contradições humanas, viveram
isso profundamente. Neste sentido
percorreram o caminho da libertação
interior e das instituições mundanas e
eclesiásticas, como processo de sim-
plificação e mesmo de infância espi-
ritual.
Acreditamos ser possível retomar
o sopro profético de um novo mundo
e uma nova espiritualidade possível.
Fortalecidos pela herança espiritual
de homens como Hélder Câmara e de
Raimon Panikkar poderemos reinven-
tar o caminho. Em uma conferência
em Madrid, Panikkar contava: “Um
pai da Igreja, um dos Gregórios, põe
na boca de Abraão a seguinte reflexão:
“Com minha família e os rebanhos,
deixei Ur, na Caldéia, abandonei casa
e tudo o mais, mas eu tinha dúvidas.
Agora estou seguro de que a voz que
me chamou era mesmo a voz do Senhor
e tenho certeza disso porque não sei
aonde vou”. Panikkar prossegue: “Se
sabemos onde vamos, ao céu, ao infer-
no, a Deus ou ao Nada, ao Nirvana, não
podemos ter uma espiritualidade real-
mente nova. Quem não recria a cada
instante a sua vida, não refaz a cada
momento a sua espiritualidade, quem
não se deixa absorver pela realidade e
não a recria com os meios que ela lhe
oferece para ser realmente livre, de
que espiritualidade está falando? O Es-
pírito faz novas todas as coisas e sopra
onde, quando e como quer” 16.

Elas estão disponíveis na página eletrônica


- R. PANIKKAR, Movimientos Orientales de
����������������� www.ihu.unisinos.br
Espiritualidad, in XXIV Congreso de Teología,
(Espiritualidad para un mundo nuevo) (Madrid:
Cientro Evangelio y Liberación, 2004, pp. 87-
88). ����������������
(Nota do autor)

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 41


A diversidade cultural
e o regionalismo na TV brasileira
Por Sérgio Mattos*

O multiculturalismo no Brasil, cuja inviabilizar a divulgação da produção


principal característica é a miscige- regional.
nação dos credos e culturas, ocorre Num país cheio de diferenças cul-
desde a época da colonização. Esta turais como o Brasil, a pluralidade de
mestiçagem cultural, no entanto, não produção e distribuição de conteúdo
é devidamente considerada pelos gru- tem que existir, mas a produção te-
pos de produção de conteúdos midi- levisiva continua centralizada no eixo
áticos que acabam tendendo para o Rio-São Paulo, tendo como o maior
estereótipo, contribuindo para a dis- produtor a Rede Globo, que tem di-
seminação de preconceitos. fundido por todo o país o que Leo-
Sabe-se que o que diferencia as nardo Brant classificou como sendo o
culturas são os valores, as identida- “carioca way of life”. Tal padrão se
des e os símbolos. No caso da tele- viabiliza a partir da implantação da
visão, as culturas regionais brasileiras TV Globo, que trouxe ao país o vi-
são estereotipadas, a partir dos sota- deoteipe, permitindo a gravação e a
ques regionais, das danças típicas, da exibição de um mesmo programa em
culinária e das músicas regionais, tais várias regiões do país.
como o axé-music (ritmo baiano), do Diante disso, há um consenso de
frevo (ritmo pernambucano) o forró que a única maneira de se mostrar
(ritmo nordestino), ou pela culinária: uma maior diversidade do ponto de
a moqueca baiana, o churrasco gaú- vista geográfico é a descentralização
cho, o pão de queijo mineiro, o baião- da produção. No entanto, os progra-
de-dois cearense e outros. madores entendem “produção regio-
Diferenças culturais regionais pas- nal” como sendo aquela programação
saram a ser reveladas pela TV, que se produzida e gerada por uma emissora
transformou na maior mediadora cul- afiliada dentro da grade nacional diri-
tural do país. Mas, ao transmitir uma gida a um público específico em horá-
programação baseada em informações rio nobre.
fornecidas por agências noticiosas e Nos últimos cinco anos, com o ob-
produções internacionais, a televisão jetivo de atender as demandas regio-
passou a ser responsável pelo proces- nais, a Globo passou a reservar um
so de mundialização de um padrão do espaço em sua programação total,
que seja cultura, contribuindo para uma média de 12 a 14 horas semanais,

* Sérgio Mattos é mestre e doutor em Comunicação pela Universidade do Texas, Austin, Estados
Unidos. É professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB e autor de livros como
História da Televisão Brasileira: uma visão econômica, social e política (Vozes, 2009, 4ª edição);
Mídia controlada: história da Censura no Brasil e no mundo (Paulus, 2005); e O contexto midiático
(IGHB, 2009) entre outros. Participa e contribui regularmente das atividades do Grupo Cepos.

42 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


para a transmissão das produções re- “Num país cheio de maior percentual de programação re-
gionais, acompanhando a tendência gional foi a Rede Pública, com 25,55%,
de suas concorrentes. A partir daí foi diferenças culturais enquanto dentre as comerciais a que ob-
identificado que, se o horário nobre teve melhor índice foi a Rede TV!, com
nacional se estende das 18h:00min como o Brasil, a 12,2%, seguida da Record, com 11,2%.
às 23h:00min horas, o horário nobre A Rede CNT obteve média de 9,12%; a
regional está concentrado no período pluralidade de produção SBT ficou com 8,6%; a Rede Bandeirantes
das 12h:00min às 14h:00min horas, de com 8,56%; e a Rede Globo, em último
segunda a sexta-feira. e distribuição de lugar, com média de 7% de programa-
Um levantamento feito pela revista ção regionalizada. Dentre os conteúdos
Veja (edição de 05-08-2009), em ca- conteúdo tem que analisados, o que apresentou maior pre-
pitais como Fortaleza, Macapá, Porto sença foi o gênero jornalístico. Quanto
Alegre, Teresina, Recife, Salvador, Te- existir, mas a produção à produção e veiculação de programas
resina, o percentual de televisores liga- locais por regiões, o estudo constatou
dos durante esse horário nobre regional televisiva continua que a região com melhor média de pro-
fica em torno dos 60% - um índice tão duções locais foi o Sul, com 13,92%. A re-
elevado quanto o noturno. Integram centralizada no eixo Rio- gião Centro-Oeste, com 11,66% aparece
esse horário o telejornalismo e a pro- em segundo lugar. A região Norte ficou
gramação esportiva. O sensacionalismo São Paulo, tendo como com 9,1%; a região Nordeste com 9,8%;
ocupa a maior parte do noticiário do e o Sudeste com 9,19%.
horário nas emissoras do norte e nor- o maior produtor a Rede Para aumentar a quantidade de
deste do país. Em Pernambuco, o “Sem horas e de programas regionais nas
Meias Palavras”, da TV Jornal, atinge Globo” emissoras de TV, garantindo a diver-
altos índices de audiência apresentan- sidade cultural regional e asseguran-
do entrevistas de porta de delegacia. do espaços para a transmissão das
Na Bahia, o programa “Se liga Bocão”, O debate sobre a regionalização da produções independentes nas grades
da TV Itapoan, parceira da Record no produção mereceu a atenção do Obser- das emissoras, é de fundamental im-
estado, aumenta sua audiência trans- vatório do Direito à Comunicação – OCB, portância a regulamentação do Artigo
mitindo imagens chocantes, captadas que, em 2009, promoveu um estudo in- 221 da Constituição brasileira. Só com
pelos celulares dos espectadores. En- titulado “Produção Local na TV Aberta um novo marco regulatório poderemos
tretanto, as produções regionais não Brasileira”, com o objetivo de medir a garantir a presença da produção au-
vivem apenas do sensacionalismo, presença de conteúdos regionais na TV diovisual independente nas grades das
pois, como exemplo, tanto a gaúcha aberta. O estudo envolveu 58 emissoras emissoras abertas e fechadas; estimu-
RBS quanto a pernambucana TV Jornal em 11 capitais das cinco regiões brasilei- lar a produção independente de filmes
produzem especiais de teledramatur- ras e chegou à conclusão de que apenas e de programas de TV; ter um maior
gia. A TV Diário, de Fortaleza, produz o 10,83% do tempo veiculado é ocupado espaço para a programação regional
humorístico “Nas Garras da Patrulha”, com conteúdo de origem local. na grade das emissoras; e estimular a
que também tem feito sucesso no You- O estudo do OCB constatou que den- produção local pelas próprias emisso-
Tube, e o “Forrobodó”. tre as redes nacionais, a que obteve o ras e por produtores independentes.

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 43


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis resíduos sólidos. Nesta entrevista, Jacques Saldanha ex-
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) de plica a Lei Política Nacional de Resíduos Sólidos.
07-09-2010 a 10-09-2010.
A presença dos espíritos no imaginário da sociedade
Online ou offline? Usos e apropriações das novas brasileira
tecnologias Entrevista especial com Faustino Teixeira, teólogo
Entrevista especial com Adriana Amaral, professora Confira nas Notícias do Dia de 09-09-2010
da Unisinos Disponível no link http://bit.ly/c4EN6S
Confira nas Notícias do Dia de 07-09-2010 “A forma de viver a religiosidade no Brasil é bem mais
Disponível no link http://bit.ly/cy75mv alargada do que aquela declarada no Censo”, constata
A professora Adriana Amaral comenta como as novas ferra- o teólogo.
mentas digitais estão fazendo parte da vida das pessoas e
como elas estão se apropriando desses dispositivos. “O solo é o grande reservatório de carbono orgânico
terrestre”
“Não existe lixo. Tudo é nutriente” Entrevista especial com Carlos Schaefer, agrônomo
Entrevista especial com Jacques Saldanha, engenhei- Confira nas Notícias do Dia 10-09-2010
ro agrônomo Disponível no link http://bit.ly/aopOJM
Confira nas Notícias do Dia de 08-09-2010 O aquecimento global vai tornar o clima “cada vez mais
Disponível no link http://bit.ly/d8IBQw errático, mais cheio de altos e baixos e imprevisível”,
O país passa a ter um marco regulatório na área de constata o pesquisador.

Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História


e Histórias dos Guarani. Pré - evento do XII
Simpósio Internacional IHU: A Experiência
Missioneira: território, cultura e identidade

Informações www.ihu.unisinos.br

44 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 45
XI SIMPÓSIO INTERNACIONAL I
O (DES)GOVERN
DA VIDA HUMAN
13 a 16 de setembro de 2010
Informações e inscrições: www.ihu.unisinos.br
ou Central de Relacionamento Unisinos - (51) 3591 1122
Local: Unisinos • Anfiteatro Pe. Werner • Av. Unisinos, 950 • São Leopoldo • RS

46 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


IHU:
NO BIOPOLÍTICO
NA
Apoio: Promoção:

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 47


Confira outras edições
da IHU On-Line

Elas estão disponíveis na página eletrônica


www.ihu.unisinos.br

48 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


Eventos
A crise civilizacional e os desafios
das alternativas energéticas
Para Heitor Scalambrini Costa, a mudança do atual modelo de produção e consumo passa
pela “completa revisão do conceito de crescimento econômico adotado pela humanidade
como verdade divina”

Por Patricia Fachin

“D
evemos visualizar e apontar para um mundo sem combustíveis fósseis, com ma-
trizes energéticas que utilizam recursos energéticos locais, geridas e produzidas
localmente de maneira descentralizada, evitando as perdas por transmissão e dis-
tribuição”. A ideia é defendida pelo físico Heitor Scalambrini Costa, professor da
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Segundo ele, ao associar energia e
desenvolvimento local com o conceito de cultura sustentável, “estaremos apontando para uma reconci-
liação entre a democracia política e a democracia econômica”.
Além de pensar alternativas para a atual geração de energia fóssil, o pesquisador aponta a “racio-
nalização no uso da energia” como “ponto fundamental” para resolver os problemas energéticos da
atualidade. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Costa também destaca o poten-
cial da energia das ondas em eletricidade. “As fontes de energia provenientes dos oceanos e dos mares
possuem um enorme potencial energético disponível em uma área de 360,6 milhões de km2 (70,7% da
superfície do planeta Terra)”. De acordo com o professor, em conjunto, “o gradiente térmico, as ondas,
as correntes marítimas, o gradiente salino e as marés, poderiam proporcionar muito mais energia do que
a humanidade seria capaz de consumir, hoje ou no futuro, mesmo considerando que o consumo global
tem dobrado de dez em dez anos”.
O Ciclo de Estudos em EAD: Sociedade Sustentável, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, discute a questão energética e as perspectivas de emergência de uma sociedade sustentável. Até o
dia 18-9-2010, ocorre o segundo módulo, que discute a questão energética no mundo contemporâneo.
Heitor Scalambrini Costa é graduado em Física pelo Instituto de Física Gleb Wattaghin da Universidade
Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Energia Solar, pelo Departamento de Energia Nuclear da Uni-
versidade Federal de Pernambuco – UFPE- e doutor em Energética, pela Commissariat à I’Energie Atomique
- CEA, Centre d’Estudes de Cadarache et Laboratorie de Photoelectricité Faculte Saint- Jerôme/Aix-Mar-
seille III, França. Atualmente, coordena os projetos da ONG Centro de Estudos e Projetos Naper Solar, o
Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis – Naper, e o Sendes - Soluções em Energia e Design da
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Será necessário e pos- riscos causados pelos combustíveis fós- é outro ponto fundamental. A União
sível, no futuro, criar matrizes ener- seis. Devemos visualizar e apontar para Europeia, por exemplo, estaria con-
géticas descentralizadas? Como isso um mundo sem combustíveis fósseis, sumindo 50% mais energia se não ti-
é viável? com matrizes energéticas que utilizam vesse adotada sérias medidas de con-
Heitor Scalambrini Costa - A diversi- recursos energéticos locais, geridas e servação energética. Sendo algumas
ficação da matriz energética mundial, produzidas localmente de maneira des- delas como o uso de geladeiras mais
baseada hoje principalmente no petró- centralizada, evitando as perdas por eficientes, automóveis com maior qui-
leo e seus derivados, é uma necessidade transmissão e distribuição. lometragem por litro de combustível e
imposta pelos problemas, incertezas e A racionalização no uso da energia muitas outras, relativamente simples,

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 49


que são bem conhecidas e testadas na “Sou contrário ao mos de suporte ao mercado, baseado
prática. Nesta mesma linha, graças a a promoção das tecnologias em subsí-
programas de eficiência, lembremos projeto atual que tem dios prêmios e linhas especiais de cré-
também que o consumo de energia nos dito medidas de apoio campanhas pú-
EUA, entre 1973 e 1988, não aumentou concentrado todos os blicas, educação ambiental incentivos
em um só kilowatt-hora, e nem assim fiscais, e obrigação legal de instalação
prejudicou o crescimento do PIB, que esforços em apoiar e ou preparação da instalação.
foi de quase 40% nesse período. Há uma completa omissão do gover-
incentivar a indústria do no federal sobre a tecnologia solar. O
Produção de energia local aproveitamento é irrisório, tanto para
petróleo e do gás aquecimento de água quanto para ge-
O envolvimento da comunidade na ração elétrica. No Brasil, um dos em-
discussão, no planejamento e na ges- natural, a instalação de pecilhos para o desenvolvimento das
tão democrática dos recursos energé- energias renováveis é a inexistência
ticos é chave para a sua soberania e usinas nucleares e de uma legislação federal que incenti-
para a sustentabilidade, e uma opção ve políticas públicas nesta área.
de resistência aos modelos centraliza- a construção de mega- Um alento foi o relatório sobre o
dores de recursos e poder que impõe Projeto de Lei 630/2003, que conso-
aos povos altos custos econômicos, hidrelétricas no norte lidou outros 18 projetos de lei que tra-
ambientais e sociais em troca do aces- ta dos incentivos ao desenvolvimento
so a este bem de interesse comum que do país” das fontes renováveis de energia. Este
é a energia e que, portanto, deveria PL trata da comercialização de ener-
ser um direito de todo o cidadão, as- as pessoas têm sobre ela um controle gias renováveis, e a conexão delas à
sim como direito a uma vida digna num maior, resgatando assim o controle so- rede; o estabelecimento de contratos
ambiente saudável. bre as suas próprias vidas. Uma econo- de longo prazo entre os geradores e as
No Brasil, fontes energéticas, como mia movida a fontes renováveis passa distribuidoras de energia, o que dá um
a biomassa a partir de resíduos agríco- a pertencer ao cidadão, abre mais es- mínimo de segurança aos investimen-
las (bagaço da cana, cascas de arroz, paço para uma política que pertença tos em usinas de geração renovável; a
serragem), óleos vegetais (de soja, o ao cidadão. criação de programas para a geração
dendê, mamona, etc.), florestas ener- de energia renovável em sistemas iso-
géticas, a energia solar (térmica e fo- IHU On-Line - Que aspectos dificul- lados; institui a renúncia fiscal para a
tovoltaica), a energia eólica, a energia tam o desenvolvimento do mercado importação de equipamentos para a
produzida por micro e pequenas cen- nacional de energias renováveis? geração a partir de fontes renováveis;
trais hidrelétricas e a energia das on- Heitor Scalambrini Costa - Se há um restringe a participação de termelétri-
das, constituem em um potencial enor- país no mundo que goza das melhores cas fósseis nos leilões de energia; prevê
me para o suprimento de energia. Como oportunidades ecológicas e geopolíti- a criação de um fundo para a pesquisa
vantagens, podem ser aproveitadas de cas para ajudar formular a possibili- e desenvolvimento de energias reno-
forma descentralizada, conforme as dade de uma matriz energética menos váveis. Fundos como estes são impor-
potencialidades e particularidades de agressiva ao meio ambiente – à base tantes para a capacitação tecnológica
cada região e de acordo com as neces- da água, do vento, do sol, das ondas e técnica do país, sem as quais seria
sidades e capacidades dos territórios. do mar e da biomassa -, este país é o impossível o desenvolvimento interno
Ou seja, a necessidade de regionaliza- nosso. Ele é a potência das águas, pos- de pesquisas e equipamentos.
ção da matriz energética. sui a maior biodiversidade do planeta, Até hoje não foi votado por falta de
Assim, ao associarmos energia local, as maiores florestas tropicais. Entre- vontade política. Portanto, sem dúvida
desenvolvimento local com o conceito tanto, ainda não acordou para isso. alguma, o que dificulta uma maior dis-
de cultura do desenvolvimento sus- Infelizmente, temos avançado para seminação das tecnologias energéticas
tentável, estaremos apontando para um modelo de desenvolvimento eco- renováveis em nosso país é a falta de
uma reconciliação entre a democracia nômico e social que privilegia o uso in- uma definição política.
política e a democracia econômica. O tensivo de recursos naturais, e o apoio
possível outro mundo vai exigir uma governamental a grandes empresas IHU On-Line - Considerando a atual
ciência econômica mais aberta, que que são historicamente contrárias a conjuntura nacional, que projeto
incorpore estas dimensões. ter limites no uso dos recursos. O que energético seria adequado para o
Na minha visão, resgatar o poten- é contrário aos interesses de um de- país?
cial econômico da gestão local com senvolvimento sustentável. Heitor Scalambrini Costa – Sou con-
energia local não envolve apenas efici- Internacionalmente, o uso da ener- trário ao projeto atual que tem con-
ência de gestão empresarial e pública; gia solar térmica/fotovoltaica e ener- centrado todos os esforços em apoiar
ela envolve também colocar uma par- gia eólica tem  crescido rapidamente, e incentivar a indústria do petróleo e
te maior da economia na escala onde impulsionado por diferentes mecanis- do gás natural, a instalação de usinas

50 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


nucleares e a construção de mega-hi-
drelétricas no norte do país.
“A energia das ondas tem Para se chegar à sustentabilidade, é
indispensável que se criem e apliquem
Senão, vejamos:
O Programa de Aceleração do
sido considerada uma das mecanismos pelos quais a expansão
dos sistemas e a escolha das fontes de
Crescimento - PAC (22-01-2007) des-
tinou investimentos em combustíveis
mais promissoras fontes energia independa das atuais estrutu-
ras de custos e passem a ser regidas
fósseis (petróleo e gás) da ordem de
R$ 179 bilhões. Com o setor elétrico
de energia renovável” por critérios ligados aos impactos pro-
vocados sobre o meio ambiente, pela
abocanhando R$ 65,9 bilhões para a e minérios radioativos. produção e consumo de energia.
geração de energia (grandes usinas, Existem trabalhos que demonstram
termoelétricas e usinas nucleares) e não ser necessário construir mais usi- IHU On-Line - Qual é o potencial
R$ 12,5 bilhões para a transmissão e nas para aumentar a oferta de energia energético dos mares? O país tem ca-
distribuição. Enquanto que, para as no país. Basta racionalizar o uso, tor- pacidade para ter tecnologia própria
fontes renováveis de energia, foram nar a produção mais eficiente, e apos- nesta área?
destinados R$ 17,4 bilhões para a pro- tar no potencial de fontes renováveis Heitor Scalambrini Costa - A energia
dução do etanol e do biodiesel. que dispõe um país solar como o Bra- das ondas tem sido considerada uma
No Plano Nacional de Energia sil. Para isso é necessário uma decisão das mais promissoras fontes de ener-
2030, os cenários traçados pelo go- política que conduza o país para um gia renovável. As fontes de energia
verno para geração de energia elétri- futuro limpo, sem corrupção. provenientes dos oceanos e dos mares
ca nos próximos anos prevêem, além possuem um enorme potencial energé-
do aumento de usinas termelétricas, IHU On-Line – Qual o potencial das tico disponível em uma área de 360,6
principalmente a combustíveis fósseis, energias renováveis no combate ao milhões de km2 (70,7% da superfície
a construção de usinas hidrelétricas na aquecimento global e às mudanças do planeta Terra), coberta por massas
região Amazônica, e a reativação do climáticas? de água. Essas gigantescas massas de
polêmico plano de construção de no- Heitor Scalambrini Costa - No que água que cobrem dois terços do planeta
vas usinas nucleares no país, inclusive chamamos de desenvolvimento sus- constituem o maior coletor de energia
duas delas no Nordeste brasileiro. tentável, a energia como “mola pro- solar imaginável. Sabemos que a ener-
A proposta energética governamen- pulsora” da economia tem um papel gia de origem solar não incide de igual
tal apoiada por setores empresariais, fundamental no combate ao aqueci- modo sobre a Terra, sendo que a maior
juntamente com interesses localiza- mento global e às mudanças climáticas parte desta radiação atinge uma faixa,
dos na academia pelo programa nucle- recorrentes. E aí recai a importância a volta do Equador terrestre, entre 34º
ar, e pelos militares que sonham com das escolhas energéticas, que devem N e 34º S. Nesta região, se concentra
a bomba nuclear, se baseia em um mo- priorizar a redução das emissões de grande potencial energético que pode
delo “ofertista” cujo suprimento será gases de efeito estufa (GEEs) e, assim, ser extraído dos oceanos.
a partir de recursos fósseis, mega-hi- mitigar os impactos do aquecimento As ondas se formam pela ação do
droelétricas e de usinas nucleares. global. Tarefa urgente para ser cum- vento sobre a superfície da água, que
Portanto, para concretizar em nosso prida, pois as evidências confirmadas cria forças de pressão e fricção que per-
país uma estratégia em bases sustentá- cientificamente pelos relatórios do turbam o equilíbrio da superfície dos
veis, é necessário modificar profunda- Painel Intergovernamental sobre Mu- oceanos. O vento transfere parte da sua
mente as atuais políticas energéticas. dança Climática - IPCC, da ONU, mos- energia para a água através da fricção
Elas precisam e devem ser substituídas tra o papel do homem na degradação entre o vento e a água. Quanto maior a
por um projeto diferente, contemporâ- ambiental, principalmente devido ao força do vento, duração e comprimen-
neo dos desafios e possibilidades do sé- uso e à produção de energia. to sobre o qual ele atua na superfície,
culo XXI, para que tenhamos seguran- Logo, trazer toda a humanidade a maior será a altura das ondas. Essas on-
ça energética a curto e a longo prazo, um padrão de vida digno, com aces- das formadas viajam grandes distâncias
com a regionalização, diversificação e so à alimentação adequada, à saúde, até atingir a costa. Podemos ter vento
a complementaridade da matriz ener- à educação e a oportunidades de tra- forte no meio do oceano, a cerca de 2
gética nacional. balho é uma questão que passa pela mil quilômetros do litoral, que as ondas
A transição da matriz insustentável mudança de paradigma, e constitui geradas naquele local pelos ventos for-
para uma sustentável implicará uma em um grande desafio. Visto que, para tes vão até a costa. Existe uma grande
crescente racionalização do consumo continuar o crescimento da produção variedade de tecnologias para o aprovei-
e eficientização na produção, parale- e do consumo atuais, como é proposto tamento da energia das ondas. A potên-
lamente ao emprego de energias re- pelo modelo vigente, precisaríamos de cia extraível das ondas é proporcional ao
nováveis (eólica, solar térmica e foto- mais de um planeta Terra para atender quadrado da amplitude, podendo variar
voltaica, ondas, biomassa e Pequenas a estas necessidades, pois hoje já são entre 20 a 70 km/m.
Centrais Hidrelétricas (PCHs) e à re- consumidos recursos naturais a uma A maioria dos projetos de utilização
dução do emprego de fontes não reno- taxa 30% maior do que a Terra tem desta forma de energia usa o mesmo
váveis, como o petróleo, o gás natural condições de repor. princípio, onde a onda pressiona um

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 51


corpo oco, comprimindo o ar ou um No entanto, a captação desse tipo de
líquido, ou seja, a energia cinética do
“O desafio que se energia é restrita a poucas localidades
movimento ondular move uma turbina no mundo, pois o desnível das marés
ligada a um gerador. A energia mecâni-
coloca neste início do deve ser superior a sete metros. No
ca da turbina é transformada em ener- Brasil, os locais favoráveis à constru-
gia elétrica através do gerador. Quan-
século XXI é nada menos ção de estações para o aproveitamento
do a onda se desfaz e a água recua, dessa forma de energia são o estuário
o ar desloca-se em sentido contrário
do que mudar o curso do rio Bacanga, em São Luís-MA, com
passando novamente pela turbina, en- marés de até sete metros, e, princi-
trando na câmara por comportas espe-
da civilização. É preciso palmente, a ilha de Macapá-AP, com
ciais normalmente fechadas. marés de 11 metros.
De acordo com estudos já realiza-
construir uma nova Com 8,5 mil quilômetros de costa e
dos, a exemplo de alguns disponibili- cerca de 70% da população ocupando re-
zados pela Agência Internacional de
ordem internacional, que giões litorâneas, o Brasil apresenta con-
Energia, uma onda de três metros dições mais do que propícias para obter
de altura pode conter pelo menos 25
respeite a soberania dos vantagens com esta fonte de energia
kW de energia por metro de frente. O abundante, renovável e não poluente.
problema ainda não resolvido tecno-
povos e das nações. Nos últimos anos da década de
logicamente é como transformar toda 1990, ficou claro que a conversão da
essa energia em eletricidade de ma-
Deslocar, num curto energia das ondas em eletricidade é
neira eficiente, sem perdas e garantin- uma possibilidade real. O Reino Uni-
do alto rendimento.
espaço de tempo, o eixo do instalou seu primeiro dispositivo
Em conjunto, o gradiente térmico, interligado ao sistema elétrico no ano
as ondas, as correntes marítimas, o
da lógica ‘viver é 2000. Atualmente só no Reino Unido
gradiente salino e as marés, poderiam existem sete projetos, dois em opera-
proporcionar muito mais energia do
produzir sem fim e ção e cinco em estágio avançado de
que a humanidade seria capaz de con- desenvolvimento.
sumir, hoje ou no futuro, mesmo con-
consumir o mais Atualmente, tem ocorrido um gran-
siderando que o consumo global tem de avanço na implantação de usinas de
dobrado de dez em dez anos.
que pode’” energia das ondas em vários países da
Os mares e oceanos representam Europa, principalmente no Reino Uni-
quase 98% da água encontrada na Ter- do, Espanha, Austrália e Japão.
dos na entrada e saída de baías. O fluxo
ra. As grandes energias utilizáveis do Logo, nosso país apresenta um po-
e o refluxo das águas moviam as pedras
oceano podem ser classificadas, pelo tencial significativo que não está sen-
de moer. A energia que pode ser capta-
seu potencial, do seguinte modo: do aproveitado, estimado em vários
da a partir das marés se faz de modo
a) a exploração do gradiente tér- estudos em:
semelhante ao aproveitamento hidroe-
mico entre a superfície e o fundo: 40 a) 143.000 MW para a energia eó-
létrico, que consiste de: um reservató-
bilhões de MW; lica;
rio junto ao mar, através da construção
b) a exploração dos gradientes de b) 10.000 MW para PCHs;
de uma barragem, e uma casa de força
salinidade, por exemplo, na foz dos c) 4.000 MW para o bagaço da cana-
(turbina + gerador). O aproveitamen-
rios: 1,4  bilhões de MW; de-açúcar;
to é feito nos dois sentidos: na maré
c) a exploração das correntes mari- d) 1.300 MW com ouso da casca de ar-
alta a água enche o reservatório, pas-
nhas: 5 milhões de MW; roz e papel/celulose em termoelétricas;
sando através da turbina, e produzindo
d) a exploração das marés: 2,7 mi- e) além do aquecimento solar de água
energia elétrica, na maré baixa a água
lhões de MW; que poderia substituir o chuveiro elétri-
esvazia o reservatório, passando nova-
e) a exploração das ondas: 2,5 mi- co, e assim economizar em torno de 10%
mente através da turbina, agora em
lhões de MW. da energia elétrica consumida no país.
sentido contrário ao do enchimento, e
Especificamente, as marés são as Para a instalação de usinas mare-
produzindo energia elétrica.
alterações do nível das águas do mar motrizes são necessários altos inves-
Em 1967, os franceses construí-
causadas pela interferência gravita- timentos, sendo sua eficiência baixa
ram a primeira central maremotriz,
cional da Lua e do Sol (com menor in- (aproximadamente 20%). Com relação
ligada à rede nacional de transmissão.
tensidade, devido à distância) sobre o aos impactos ambientais, os mais co-
Uma barragem de 710 m de compri-
campo gravitacional da Terra. muns estão relacionados à flora e fau-
mento, equipada com 24 turbinas,
A ideia de extrair energia acumula- na. Porém, esses impactos são bem
fechando a foz do rio Rance, na Bre-
da nos oceanos, utilizando a diferença inferiores se comparados aos causados
tanha, aproveitando uma diferen-
da maré baixa e da maré alta, não é por hidroelétricas instaladas em rios.
ça de marés de 13,5 m, produzin-
nova. Já no século XII havia na Europa Outro agravante é a possibilidade do
do assim uma potência de 240 MW.
moinhos submarinos que eram instala- rompimento das estruturas por fura-

52 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


cões, terremotos ou qualquer razão Se o atual modelo de produção e
que leva a uma inundação da região consumo, que tem sua base nos com-
costeira. Os riscos ocupacionais tam- bustíveis fósseis, não for profundamen-
bém são elevados durante a constru- te alterado, todos serão atingidos, ri-
ção da estrutura da usina, que requer cos e pobres. Essa transformação passa
operações abaixo do nível d’água. pela completa revisão do conceito de
crescimento econômico adotado pela
IHU On-Line – Discute-se no país a humanidade como verdade divina. Está
questão da energia nuclear. Qual sua provado que a ideia segundo a qual a
opinião sobre esse modelo energético? humanidade pode crescer indefinida-
Heitor Scalambrini Costa - Que no mente a partir da “transformação da
caso específico da energia nuclear para natureza” vai nos levar ao suicídio glo-
geração de eletricidade, nosso país, e bal. É preciso interromper o quanto
em particular a região Nordeste, não antes essa corrida ao abismo.
precisa desta fonte energética. Foi um Os bens da natureza são para susten-

Twitter
grande equivoco a tomada de decisão tar a vida humana e não para satisfazer

http://twitter.com/_ihu
em reativar o programa nuclear brasi- os cofres das companhias multinacionais
leiro com a instalação de novas usinas ou nacionais que, aliás, nem sempre
nucleares no país, além de Angra 3, a lembram que o fim último das atividades
construção de mais quatro usinas, sen- é manter a vida sobre a Terra e não des-
do 2 na região Nordeste. truí-la para o benefício limitado de umas
As energias renováveis abundan- poucas pessoas ou entidades.
tes em nosso país são suficientes para Portanto, o desafio que se coloca
atender a oferta de energia de que ele neste início do século XXI é nada menos
necessita em uma perspectiva de de- do que mudar o curso da civilização. É
senvolvimento sustentável. Gostaria preciso construir uma nova ordem inter-

no
de tornar público e denunciar que o nacional, que respeite a soberania dos
governo estuda abrir à iniciativa priva- povos e das nações. Deslocar, num curto
da a construção e operação de usinas espaço de tempo, o eixo da lógica “viver
nucleares, o que é constitucionalmente é produzir sem fim e consumir o mais que

IHU
monopólio do Estado. O governo não pode” que leva a acumulação, para uma
possui fôlego para construir sozinho as lógica em função do bem estar social, do
quatro plantas nucleares previstas no exercício da liberdade e da cooperação
Plano Decenal de Energia, estimada entre os povos.
em R$ 50 bilhões, e assim espera obter Para ser alcançado, o desenvolvi-
estes recursos quebrando o monopólio. mento sustentável depende de plane-
jamento e do reconhecimento de que
o
IHU On-Line - Em que medida repen- os recursos naturais são finitos. Esse
sar a questão energética no mundo conceito representa uma nova forma
Siga
contemporâneo requer pensar um de desenvolvimento econômico, que
novo paradigma civilizacional? leva em conta o meio ambiente.
Heitor Scalambrini Costa - Decorren-
te das políticas econômicas contempo-
Leia Mais...
râneas o mundo só conseguiu produzir
menores taxas de crescimento, maior >> Heitor Costa já concedeu outras entre-
vistas à IHU On-Line. O material está disponível
desigualdade social e crises recorren- no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).
tes, que culminaram com os graves • Uma matriz energética sustentável só será pos-
problemas enfrentados na atualidade: sível a partir da mudança dos modos de produção
e de consumo da sociedade. Entrevista especial
a recessão-depressão econômica, a com Heitor Scalambrini Costa, publicada nas No-
insegurança energética e alimentar e tícias do Dia 17-09-2007. Acesse no link http://
o aquecimento global. E, agora, uma bit.ly/bHEA9j;
• Plantar para quê e para quem? Entrevista publi-
conjuntura de desemprego e amplia- cada na revista IHU On-Line 258, de 19-05-2008.
ção da miséria. A crise atual, portanto, Disponível no link http://bit.ly/cDuC1J;
não é apenas financeira; trata-se de • Mudança na matriz energética requer transfor-
mações nos padrões atuais de produção e consu-
uma crise profunda que põe em che- mo. Entrevista publicada na revista IHU On-Line
que a forma de produzir, comercializar 236, de 17-09-2007. Acesse no link http://bit.
e consumir. O modo de ser humano. ly/9dpU30.
Uma crise de valores.

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 53


Os guarani: um povo instituído pela memória
mítico-histórica indígena
De acordo com o sociólogo Walmir Pereira, “a verdadeira natureza do homem guarani,
sua humanidade, provém de um caráter divinal que remonta às origens do cosmos, sendo
que esta experiência aparece como fundamento do ser no universo”

Por Patricia Fachin

“P
ortadores de uma identidade étnica e cultural específica, os guarani contemporâneos
desenvolvem uma incessante luta pelo reconhecimento de seus direitos originários
aos espaços habitados desde os tempos imemoriais nas terras baixas da América do
Sul”, menciona Walmir Pereira, na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line
por e-mail.
Segundo o pesquisador, as coletividades indígenas que migraram para as cidades nos últimos anos do
século XX e primeiros anos do século XXI, não perderam traços diacríticos identitários, ao contrário, real-
çaram “as diferenças entre os modelos de perceber e experienciar a vida social permitindo, assim, que a
etnicidade indígena apareça com força político-cultural renovada”. Nesse sentido, citando Boaventura de
Souza Santos, Pereira enfatiza que “os povos e coletividades indígenas no Rio Grande do Sul devem ter o
direito de invocar sua diferença toda vez que a igualdade lhes discriminar e reivindicar a igualdade toda
vez que a diferença lhes desqualifique”.
Os guarani contemporâneos é o tema da palestra que Walmir Pereira ministrará na sala Ignacio Ellacuría
e Companheiros – IHU, no dia 16-09-2010, às 19h:30min. O evento faz parte do Ciclo de Palestra Jogue
Roayvu: História e Histórias dos guarani. Pré - evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência
Missioneira: território, cultura e identidade.
Walmir Pereira é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFR-
GS, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutor em
História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente é docente nesta universidade.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor des- Contemporaneamente entre os gua- uma certeza que cada pessoa carrega
creve a identidade dos guarani con- rani, a verdadeira natureza do homem consigo em particular, assim como a
temporâneos? Quais suas caracterís- guarani, sua humanidade, provém de própria sociedade guarani em sua to-
ticas? um caráter divino que remonta às ori- talidade. O diálogo com os espíritos,
Walmir Pereira – Portadores de uma gens do cosmos, sendo que esta ex- pautado pela constância diária, levado
identidade étnica e cultural especí- periência aparece como fundamento a efeito no templo-opy pela atuação
fica, os guarani contemporâneos de- do ser no universo. A sociocosmologia xamânica dos líderes espirituais me-
senvolvem uma incessante luta pelo guarani conduz a uma profunda inte- diadores das relações entre os mundos
reconhecimento de seus direitos origi- ração entre concreto e abstrato, na- natural, social e o sobrenatural, cons-
nários aos espaços habitados desde os tureza e cultura, humanidade e divin- titui um valioso legado da tradição
tempos imemoriais nas terras baixas da dade, entre heróis mitológicos, deuses cultural mbya à humanidade. Os gua-
América do Sul. Concomitante a este e humanos. Os guarani desenvolveram rani contemporâneos, em especial os
movimento de caráter etnopolítico, historicamente um tipo ideal de com- mbya, têm plena confiança que seus
mantém-se falantes da língua guarani, portamento esperado por sua tradição ancestrais, ocupantes originários da
ativistas de práticas espirituais e zelo- cultural, melhor dizer instituído pela primeira terra (yvy tenonde), foram
sos da persistência de vários aspectos memória mítico-histórica indígena, criados por e na palavra. Como desi-
da cultura material tradicional. visão que é projetada e vivida como derato desta crença, à palavra é con-

54 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


ferido o poder de instaurar a comuni- “A sociocosmologia novas situações de risco e problemas
cação perfeita, dialógica e harmônica de marginalização e preconceito aber-
entre os mundos socioterrenal, o mun- guarani conduz a uma to, também detectáveis nos processos
do dos espíritos e seres da natureza e de urbanização dos coletivos indíge-
o mundo dos entes sobre-humanos, as profunda interação nas, a tônica que tem preponderado é
divindades. a de reforço dos laços de solidarieda-
entre concreto e de e vínculos coletivos que podem ser
IHU On-Line - Como o senhor descre- expressos na máxima segundo a qual
ve a cultura milenar guarani? Com o abstrato, natureza e na cidade os indígenas são (tornam-se)
processo de urbanização dos indíge- mais indígenas ainda, quando compa-
nas, que aspectos culturais ainda são cultura, humanidade e rados com os processos de fricção in-
preservados? terétnica experimentados nos espaços
Walmir Pereira – O povo ou sociedade divindade, entre heróis confinados das terras e reservas indí-
guarani existe espacial e temporalmen- genas que concentram-se em espaços
te, conforme atestam investigações e mitológicos, deuses e territoriais ruralizados.
estudos arqueológicos, linguísticos e
etnoarqueológicos, provavelmente há humanos” IHU On-Line - Como, ao longo da
5.000 anos antes dos acontecimentos história desse povo, foram incorpo-
históricos que culminaram com o even- rados novos valores e interesses?
to-invasão de população não-indígena Grosso modo, esses indígenas vêm Walmir Pereira – Naturalmente, con-
no espaço socioambiental e territorial reproduzindo, milenarmente, caracte- siderando o axioma de que a cultura é
do Novo Mundo. Destarte, as parciali- rísticas distintivas de seu modus viven- dotada de dinamismo e que encontra-
dades constitutivas do povo guarani e di, marcas identitárias e de pertenci- se em constante transformação, era
sua milenar tradição linguístico-cultu- mento - assentadas particularmente na previsível, do ponto de vista das ciên-
ral e sociocosmológica estão presentes organização social do parentesco, es- cias antropológicas, que os guarani e
no continente, reproduzindo seu mo- piritualidade e domínio socioambien- sua cultura milenar, assim como todas
dus vivendi tradicional e imemorial, tal do espaço -, que conformam uma as demais culturas humanas, também
muito antes da América ser moldada cultura prático-simbólica e cosmologia experimentassem mudanças em sua
geográfica e politicamente pelos mo- singular. Em boa medida corroboro, trajetória histórica. Um bom exemplo
dernos Estados Nacionais latino-ameri- também, as assertivas de especialistas de incorporação de novos valores é a
canos, emergentes das ações sociopo- em antropologia guarani que atestam, figura do cacique líder político, fe-
líticas de independência continental em estudos das últimas três décadas, nômeno que apareceu com ênfase no
frente aos reinos Ibéricos. que os guarani inseriram e continuam Novo Mundo, sendo, virtualmente, uma
Os guarani têm seu centro de ori- a inserir ao longo de sua longa história (re)elaboração do universo colonial es-
gem e processo dispersivo na região tênues modificações, ressignificações panhol, ainda que o mesmo já existisse
amazônica, locus a partir de onde pos- e ressemantizações em sua cultura, entre os guarani pré-colombianos. Até
sivelmente teriam partido e, a partir propiciadas, sobretudo, pela experi- então, ele não tinha experimentado a
de então, consolidado um movimento ência drástica da situação de contato importância e a força política que lhe
de expansão e ocupação de espaços vivenciada a partir do processo de in- foi atribuída no espaço reducional das
territoriais no continente americano. vasão espanhola e portuguesa em seus Missões, local em que tal personagem
Nessa empreitada, conquistadora e espaços tradicionais de domínio. emergiu como um poder nativo impor-
colonizadora em direção ao território É interessante perceber que, es- tante cujo poder se contrapunha a um
meridional da América do Sul, os gru- pecificamente no que tange aos casos “outro” poder indígena arraigado que
pos e parcialidades guarani percorre- brasileiro e gaúcho em particular, a se pretendia proscrever, o dos xamãs.
ram distâncias imensas em um período presença de indígenas guarani - assim Esses ofereciam resistência à conver-
epocal de longa duração. Em termos como de outros grupos étnicos e cole- são e aos valores ocidentais, além de
linguísticos, a língua guarani falada tividades indígenas que migraram para incitarem os guarani a se engajarem
pelos grupos étnicos kaiová, mbya e as cidades nos últimos anos do século em inúmeras rebeliões contra a pre-
ñandeva ou xiripa, tradicionais habi- XX e nos primeiros anos do século XXI, sença de espanhóis e religiosos em
tantes das Terras Baixas sul-america- ao invés de ter levado à invisibilização seus espaços territoriais e imemoriais
nas, enquadra-se na família linguística ou acarretar a perda de traços dia- na região Platina da América do Sul.
Tupi-guarani, pertencente ao tronco críticos identitários - têm produzido
Macro Tupi. A referida família encon- o efeito contrário de realçar as dife- IHU On-Line - Quais os desafios das
tra-se presentemente subdividida em renças entre os modelos de perceber e políticas públicas no sentido de ga-
três ramos dialetais: o kaiová, o mbya experienciar a vida social permitindo, rantir o respeito e reconhecimento
e o nhandeva, os quais compõem uma assim, que a etnicidade indígena apa- das alteridades e coletividades in-
unidade linguística e sociocultural re- reça com força político-cultural reno- dígenas guarani, especificamente os
lativamente homogênea. vada. Em que pese o aparecimento de que ocupam o território gaúcho?

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 55


Walmir Pereira – Acredito que seja Walmir Pereira – Atualmente no esta- responsabilidade da Fundação Nacio-
uma legítima tarefa de Sísifo o enfren- do vivem indígenas representantes de nal de Saúde, embora exista decisão
tamento efetivo e a resolução da pro- quatro povos e coletividades indígenas: federal que prevê a criação de uma
blemática indígena no espaço social e charrua, guarani, kaingang e xokleng. secretaria especial para tratar desta
territorial gaúcho. Em termos da cons- Essas alteridades indígenas originá- temática e da materialização de po-
tituição de políticas públicas, respon- rias e suas coletividades desenvolvem líticas públicas para o setor. Nesse ín-
sáveis e socialmente justas, creio que processos identitários em constante terim, o atendimento vem ocorrendo
podemos elencar: a) estabelecimento relação com os direitos coletivos, em majoritariamente nas próprias aldeias
de um diálogo intercultural em que a especial nas modalidades territoriais por meio de equipes de saúde vincu-
escuta das alteridades charrua, guara- e socioculturais, e os dispositivos ju- ladas aos Distritos Sanitários Especiais
ni, kaingang e xokleng seja o ponto de rídicos e políticos vigentes em escalas Indígenas – DSEIs, sendo que o traba-
partida para toda e qualquer interven- internacionais, nacional e locais. A to- lho nos postos de saúde circunscritos
ção no campo das ações, programas e talidade das coletividades e famílias aos Distritos Sanitários é desenvolvido
projetos que visem minorar a difícil e indígenas ocupantes de espaços terri- pelos agentes indígenas de saúde e de
injusta situação dos indígenas nos cam- toriais no Rio Grande do Sul subsiste saneamento. Os casos de maior com-
pos da subsistência, saúde, educação, presentemente em terras indígenas, plexidade estão sendo encaminhados
acesso às terras, produção e reprodu- aldeias, acampamentos e cidades es- para hospitais regionais e para as
ção biológica e cultural; b) o trabalho palhados em varias regiões do estado. unidades de referência denominadas
diligente de técnicos do poder público, A subsistência desses nossos contem- Casa de Saúde do Índio. No caso par-
acadêmicos e representantes de ONGs, porâneos indígenas e de seus coletivos ticular dos guarani, mister o registro
no sentido de, reconhecendo as assi- está ancorada predominantemente em de que este povo, suas coletividades e
metrias de poder existentes, trabalhar atividades de produção agrícola fami- grupos familiares, possui concepções,
para desconstruir a visão dominante liar e na confecção e comercialização valores e formas próprias de vivenciar
que desqualifica os indígenas como su- de artesanato. o processo saúde-doença. Neste sen-
jeitos de direitos específicos e dignos tido, as ações de prevenção, promo-
de exercerem a condição de cidadania IHU On-Line - Como é tratada, no ção e proteção da saúde advindas da
plena; c) diante deste contexto mar- Brasil, a questão da saúde e do sane- biomedicina devem reconhecer esses
cadamente desfavorável, entendo que amento básico para povos indígenas, aspectos como centrais no diálogo en-
o processo de superação das iniquida- em especial para os guarani? Quais tre profissionais e gestores do campo
des existentes, e das formas conexas os desafios para garantir a atenção à da saúde com os usuários indígenas,
de intolerância e não reconhecimento, saúde e ao saneamento básico para observando os contextos e o impacto
repousa no imperativo de modificação esses povos? histórico da relação de contato inte-
das estruturas e mecanismos políticos, Walmir Pereira - No plano normativo, rétnico secularmente vivenciada pe-
econômicos e socioculturais que tem os povos e coletividades indígenas que los entes nativos.
permitido a reprodução da discrimina- ocupam espaços territoriais no Brasil, Contudo, persiste uma gama sen-
ção e dos efeitos de exclusão e margi- em especial os guarani, têm direi- sível de desafios. Em que pese a con-
nalidade em todos os âmbitos da vida tos ao pleno exercício das medicinas formação nos últimos anos de uma
dos povos e coletividades indígenas tradicionais próprias e a manter suas Política Nacional de Atenção à Saú-
que ocupam espaços territoriais no Rio práticas de saúde, aí incluindo a con- de Indígena, emanada das diretrizes
Grande do Sul. servação de seus acervos de plantas e princípios norteadores do Sistema
Por fim, acredito producente erigir domesticadas e minerais de interesse Único de Saúde - SUS, e a melhora
como princípio ético-político legíti- vital, sob o ponto de vista curativo e relativa dos padrões gerais sanitários
mo a ser instituído entre nós a pro- do bem estar social e espiritual. As e de qualidade de vida do conjunto
posição assinalada por Boaventura de pessoas indígenas também têm direi- da população indígena os macrode-
Souza Santos, a respeito da relação to constitucional assegurado ao aces- terminantes das condições de vida e
igualdade/diferença na modernidade so, sem discriminação alguma, a todos perfis epidemiológicos de saúde dos
contemporânea, ou seja, no caso em os serviços sociais e de saúde pública indígenas no Brasil ainda carecem de
questão, o reconhecimento de que os existentes no país. O governo federal avanços significativos. Ademais, per-
povos e coletividades indígenas no Rio e os entes federados devem providen- siste a falta de (re)conhecimento das
Grande do Sul devem ter o direito de ciar as medidas que sejam necessárias diferenças sensíveis existentes entre
invocar sua diferença toda vez que a a fim de que se efetive progressiva- os sistemas indígenas de saúde e o sis-
igualdade lhes discriminar e reivindi- mente a plena realização deste direi- tema biomédico ocidental de saúde.
car a igualdade toda vez que a dife- to. Já no plano empírico, a realidade Entre os aspectos relevantes desta
rença lhes desqualifique. prática apresenta contextos de saúde diferenciação está o fato de que os
e sanitário problemáticos para os indí- sistemas indígenas de saúde, isto é,
IHU On-Line - Como vivem as atuais genas. O atendimento básico de saúde os saberes que estruturam a medicina
comunidades indígenas no Rio Gran- e as ações sanitárias junto aos cole- indígena, são de ordem predominan-
de do Sul? tivos e indivíduos indígenas estão sob temente holista.

56 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


IHU Repórter
Alfredo Santiago Culleton
Por Graziela Wolfart | Fotos Arquivo Pessoal

U
ma pessoa disciplinada, que sabe estabelecer metas, e dotado de uma sen-
sibilidade rara nos dias de hoje. Este é o professor Alfredo Culleton, que
atua no PPG em Filosofia e no PPG em Direito da Unisinos. Na entrevista
que segue ele conta um pouco da sua história de vida, falando sobre os
fatos mais marcantes e que contribuíram para a formação do ser humano
que hoje ele é. Saiba mais sobre este argentino de família irlandesa que aprendeu sa-
biamente a viver cada dia de uma vez. Confira.

Origens – Nasci em Buenos Aires, em zando, uma festa. Filosofia na Unijuí, anos mais tarde.
uma família de irlandeses. Somos entre
três irmãos homens, sendo que eu sou o Massacre e marco na vida – Em 1976 Experiências únicas – Vivi no seminá-
mais velho. Meu pai tinha campo e minha aconteceu um massacre na Argentina, rio durante cinco anos. Foi uma experi-
mãe era professora. Vivemos no campo quando são mortas pelos militares cerca ência ótima de convívio, espiritualidade,
até quando eu tinha uns dez anos. De- de 30 mil pessoas, entre elas uma comu- formação, amizade e de inserção popu-
pois fomos para a cidade e moramos em nidade inteira de irlandeses, de padres lar. Participei nos primeiros assentamen-
Buenos Aires até eu ter uns 20 anos. Per- e seminaristas. Mataram cinco deles em tos de trabalhadores rurais sem terra, na
tencíamos a uma comunidade de irlan- uma noite. E eles eram muito próximos Fazenda Annoni e Tupanciretã. Lembro
deses, que são comunidades católicas, de nós. Isso foi um fato marcante. Minha do convívio com Adão Pretto, da forma-
casam entre si, têm colégios, clubes e vida se divide em antes e depois disso, em ção e da fundação do Partido dos Traba-
padres irlandeses. Na Argentina tem função dos parentes e amigos envolvidos.  Fazenda Annoni: terra localizada no norte
uma comunidade grande de imigrantes Muitos jovens tiveram que sair do país. do Rio Grande do Sul, que foi a primeira área
irlandeses. Eles se instalaram em regiões Um grupo deles entrou na comunidade ocupada pelo recém-criado Movimento do Tra-
balhadores Rurais Sem Terra – MST, em 1985. O
onde pudessem criar ovelhas, plantar dos palotinos, que era a ordem a qual per- local, para onde migraram 1,5 mil famílias de
batatas e brigar um pouco. tencia esses religiosos mortos, e foi para o agricultores pobres, é o berço do movimento e
seminário. Eu estava neste grupo. Saímos tornou-se símbolo da batalha pela terra. Sobre
a origem do MST leia a entrevista com Antonio
Infância – Minha mãe era uma gran- do país porque já não se podia estudar lá. Cechin, publicada nas Notícias do Dia do sítio
de leitora. Então, tínhamos muitos livros Então, para preservar a vida dos estudan- do IHU em 05-08-2008 e disponível em http://
à disposição em casa. Como não tinha tes fomos para Santa Maria, uma cidade bit.ly/8YloKR (Nota da IHU On-Line)
 Adão Pretto: agricultor e parlamentar gaú-
energia elétrica, se lia muito. Nós tam- no interior do Rio Grande do Sul. Era uma cho falecido em 2009. Natural da cidade de
bém brincávamos andando a cavalo e cidade universitária, de médio porte, su- Coronel Bicaco, no Noroeste gaúcho, ele ini-
com as ovelhas. Eram tempos difíceis ficientemente próxima da Argentina e su- ciou sua participação política nas Comunida-
des Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católi-
na Argentina. Em junho de 1955, por ficientemente longe no sentido de estar ca, passando pela Comissão Pastoral da Terra
exemplo, o governo peronista promo- protegida pela fronteira. e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
veu um ataque contra a Igreja católica Miraguaí. Ajudou a criar a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) na região Celeiro e o MST.
como símbolo do antiperonismo e quei- Formação inicial – Minha formação Ingressou no Partido dos Trabalhadores em
mou uma infinidade de templos em todo inicial foi feita em colégios católicos 1985, depois de passar pelo PDT de Brizola.
o país, inclusive a Catedral de Buenos irlandeses. Na época havia escolas de Desde então, foi uma vez deputado estadual
e estava no quinto mandato consecutivo como
Aires promovendo saques e seqüestros. homens e mulheres. No segundo grau deputado federal. Na Câmara, Adão Pretto era
A minha família participou da defesa já havia escolas mistas. No seminá- defensor da reforma agrária e da pequena agri-
armada da Igreja San Patrício de Merce- rio estudei Filosofia e Teologia, mas cultura e opositor à bancada ruralista. Leia no
sítio do IHU uma entrevista com Sérgio Görgen
des, que foi preservada. Foi um sucesso. os cursos não foram validados. Então sobre Adão Pretto, disponível em http://bit.
Os homens guerreando e as mulheres re- concluí e validei minha graduação em ly/aqBeOj (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343 57


lhadores e da composição dessa frente experiência riquíssima
ampla que abrangia desde o sindicalis- e belíssima. Depois fui
mo até a Igreja filha do Vaticano II, de para Lima, no Peru, tra-
Puebla e Medellín. Lembro do Partido balhar na casa Bartolo-
Revolucionário Comunista, o PRC, do meu Las Casas, com Gus-
qual vêm Tarso Genro, Marcos Rolim, tavo Gutiérrez. E então
José Fortunati e José Genoino. Em San- fui trabalhar na periferia
ta Maria tínhamos Dom Ivo Lorscheiter, de Buenos Aires, em uma Medieval Institute da Universidade de
que era presidente da CNBB na época, diocese que se chamava Quilmes, com Notre Dame, nos Estados Unidos.
que me lembra da Campanha da Frater- ocupações urbanas.
nidade e de uma Igreja que tinha muita Família – Sou casado com a Odete,
vitalidade, com trabalho em comunida- Mudança de perfil - Em 1990 saí que é engenheira, e que conheci no
des de base e na universidade. Foi uma novamente da Argentina e vim para movimento estudantil, na militância
 Tarso Genro (1947): advogado e político Porto Alegre, onde fiz mestrado em Fi- política e nos movimentos de Igreja.
brasileiro, prefeito de Porto Alegre por duas
vezes e, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, losofia Moral e Política na Universidade Temos dois filhos, o Tomás, de 16 anos,
ministro da Educação, das Relações Institucio- Federal do Rio Grande do Sul e cons- e o Mateus, de 13. Ser pai é ótimo,
nais e da Justiça, pasta que ocupou até 10 de truí um novo perfil para minha vida. muito bom. Me divirto muito com eles.
fevereiro de 2010, saindo do governo para ser
candidato ao governo do estado gaúcho. (Nota Passei a me dedicar à docência. Come- Não deixei de fazer nada do que já
da IHU On-Line) cei dando aulas na Ulbra, em Torres, fazia. Gosto de brincar “de casinha”
 Marcos Rolim: jornalista, sociólogo, profes- depois fui para o La Salle, em Canoas, e de família. Minha esposa trabalha
sor no Centro Universitário Metodista (IPA) e
consultor em segurança pública. (Nota da IHU e em seguida para a Unisinos, onde dez horas por dia fora de casa, então
On-Line) estou desde 1996. Em 2003 concluí o sempre fui mais caseiro e cuidei de
 José Fortunati (1955): político brasileiro e doutorado em Filosofia pela Pontifícia gerenciar a administração doméstica.
atual prefeito da cidade de Porto Alegre. É
formado em Matemática, Administração Públi- Universidade Católica do Rio Grande Como muito prazer organizo as lidas
ca e de Empresas, e Direito pela Universidade do Sul e depois fiz o pós-doutorado no domésticas. Ensino a meus filhos a ter
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). (Nota  Gustavo Gutiérrez (1928): padre e teólogo amigos, a ser querido com os outros,
da IHU On-Line) peruano, um dos pais da Teologia da Liberta-
 Ivo Lorscheiter (1927-2007): ex-bispo emé- ção. Gutiérrez publicou, depois de sua partici-
a se surpreender com a vida. E, cla-
rito de Santa Maria. Foi o último bispo bra- pação na Conferência Episcopal de Medellín de ro, a importância da leitura. Leio para
sileiro nomeado pelo papa Paulo VI, durante 1968, Teologia da Libertação (Petrópolis: Vo- eles desde que tinham três meses de
no decorrer do Concílio Vaticano II, em 1965. zes, 1975), traduzida para mais de uma deze-
Dom Ivo presidiu a CNBB durante o Regime Mi- na de idiomas, e que o converteu num teólogo
idade. Não interessa se entendem ou
litar Brasileiro. Nessa época, abrigou na Igreja polêmico. Uma década mais tarde participou não. Entender é apenas uma parte da
brasileira vários defensores da Teologia da Li- da Conferência Episcopal de Puebla (México, leitura. Ler é uma coisa e entender é
bertação. Dom Ivo Lorscheiter ficou conhecido 1978), que selou seu compromisso com os des-
por ter tentado aproximar a Igreja do povo. No favorecidos e serviu de motor de mudança na
outra. E não precisa necessariamente
sítio do IHU pode ser acessada a entrevista A Igreja, especialmente latino-americana. Al- entender o que se lê. A leitura é um
igreja e os meios de comunicação social, com guns dos últimos livros de Gustavo Gutiérrez alimento de afeto e de ideias que vai
Dom Ivo, publicada no dia 09-12-2005, repu- são: Em busca dos pobres de Jesus Cristo. O
blicada em 05-03-2007 e disponível em http:// pensamento de Bartolomeu de Las Casas (São
circulando entre as pessoas.
bit.ly/aGoqWf. No sítio também podem ser Paulo: Paulus, 1992) e Onde dormirão os po-
conferidas notícias sobre Dom Ivo Lorscheiter. bres? (São Paulo: Paulus, 2003). (Nota da IHU Amigos – Quem encontra um amigo
(Nota da IHU On-Line) On-Line)

58 SÃO LEOPOLDO, 13 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 343


encontra um tesouro, diz o livro da parâmetros da tradição católica proposta de ser sempre um pouco
Sabedoria. É o mistério que salva. e cristã, da partilha do pão, da mais amoroso, mais atento e mais
A filosofia é amizade. Jesus gos- casa aberta, da acolhida a quem sensível aos sentimentos dos ou-
tava de ser chamado amigo e não precisa. O fato de eu ser estran- tros.
mestre. A alma só descansa na pre- geiro também me deixa com uma
sença do amigo. Amigos são tudo. sensibilidade maior para quem é Unisinos – Uma instituição que
peregrino. soube se adequar às exigências
Autor – Homero. dos tempos, que deixou de exer-
Política no Brasil – Tem alguns cer o papel de dar suporte pro-
Livro – A Bíblia. mecanismos que estão viciados. O fissional ao Vale dos Sinos para
sistema de representação está vi- se tornar um centro de produção
Filme – Morte e vida severina, ciado e exige uma reforma política do conhecimento, uma verdadei-
de Zelito Viana. que fuja do aspecto individual. Se ra universidade de pesquisa, que
faz necessária uma discussão in- pensa os grandes temas que afe-
Hobby – Jogo golfe duas ou terna nos partidos, com propostas tam a sociedade e que compete à
três vezes por semana. Gosto e programas. Temos hoje campa- altura com as melhores universi-
disso porque posso jogar com os nhas bilionárias, caríssimas e indi- dades do país.
outros ou sozinho e se caminha viduais, sem programas políticos.
muito, além de que o ambiente O partido não é mais o espaço da IHU – O Instituto faz o papel de
de campo aberto é algo que me discussão e da formulação de pro- integrar uma espiritualidade que
faz bem. Também gosto muito de gramas, mas acaba sendo o espa- não pode ser vivida nos diferentes
acampar, navegar e de fazer lon- ço da legitimação do poder, onde departamentos e programas de
gas caminhadas. Por algum tem- as pessoas conseguem se eleger. pós-graduação da universidade,
po tive barco no Rio Guaíba, uma mas que falta, todo mundo neces-
delícia. Um sonho – Aprendi a viver sita e que o IHU tem. Ás vezes as
um dia de cada vez. Cada dia pessoas se apropriam mais disso,
Religião – Sou católico e ten- tem seus desafios. Já não busco outras vezes menos, mas sabem
to ensinar isso a meus filhos. Vivo grandes sonhos. Meu cotidiano é que o IHU é este espaço de refle-
tanto quanto possível dentro dos digno se estiver à altura da minha xão mais humana e integrada.
Destaques
Observasinos – Observatório da realidade e
das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos
É um projeto do Instituto Humanitas Unisinos - IHU que tem como propósito analisar, sistematizar e
publicizar os indicadores socioeconômicos da região, assim como promover o debate sobre a realidade,
em vista de contribuir na implementação, qualificação e controle das políticas públicas afirmadoras de
uma sociedade includente e sustentável. A região que se constitui como campo de análise do Observatório
é delimitada conforme o Conselho Regional de Desenvolvimento - Corede Vale dos Sinos –, formado por
14 municípios: Araricá, Campo Bom, Canoas, Dois irmãos, Estância Velha, Esteio, Ivoti, Nova Hartz, Nova
Santa Rita, Novo Hamburgo, Portão, São Leopoldo, Sapiranga e Sapucaia do Sul.

A análise e intervenção na realidade regional


exigem aproximações com os cenários nacional,
estadual e local. Essa aproximação e con-
frontação é feita a partir de diferentes bases
de dados e pesquisas nas áreas do trabalho,
saúde, educação, ambiente, segurança, pro-
teção social e outros.

A partir da publicização dos indicadores, as análises são ampliadas com o debate pelos cidadãos e agentes que
atuam junto às diferentes políticas públicas nos municípios. A perspectiva é que a atuação do Observasinos con-
tribua efetivamente para que os cidadãos e organizações conheçam a realidade da região e, ao mesmo tempo,
contribuam efetivamente para a sua qualificação numa perspectiva ética da inclusão e sustentabilidade. Entre
as ações realizadas está a publicação semanal de uma análise temática “De olho no Vale dos Sinos”, que é dis-
ponibilizada sempre aos sábados nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

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