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Vol. 4, Nº.

1 - Janeiro/2019

ISSN 2595-7473

Mestre
Moa do
Katendê
“Quem vai quebrar a máquina
do mal?”
Editorial Quem faz?
O papel fundamental da arte é provocar a Conselho Editorial: Jaqueline
reflexão no cenário político -social, promo- Elesbão, Anderson Gavião e Nai
Meneses
vendo revoluções/ evoluções através de ex- Projeto Gráfico e Design Editorial
pressões críticas e analíticas plurais. Mel Campos
Iniciamos o ano de 2019 cheios de motivos Diagramação: Nai Meneses
Revisão de texto: Alana Falcão
para falarmos e fortalecermo-nos no coleti- Colunistas: Alana Falcão, Daniel
vo da diversidade. E numa revista que aco- Arcades e Felipe Ferreira.
lhe vozes tão potentes e cheias de identida- Editor do site Coletivo Ponto Art:
de não poderia ser diferente. George Ian

Nesse cruzamento de espaços de falas laten-


tes lançamos a nossa 10° Edição, atravessan-
do e se deixando atravessar pelas questões
políticas-culturais de Salvador.
Te desejo uma leitura repleta de conexões!
Contato
pontoartelesbao@gmail.com

Produtor e assessor de comunicação


Anderson Gavião
Coletivo Ponto Art
www.coletivopontoart.com.br

Foto: Dandara Daltron


Índice Moara Rocha ( +1 Filmes):
Ela e o cinema baiano
cinema

06

teatro
12
O teatro e seu público: A cena negra
cresce e o público vem junto

teatro

Márcia Limma: Medeia Negra


22

ponto de vista
30
Jaguar Carvalho: Fotografia

Cultura

Mestre Moa do Katendê: Quem


vai quebrar a máquina do mal? 38

literatura
46
O ARTISTA TEM DE IR ONDE O POVO
ESTÁ: Resistência Poética e sua poesia
afrocentrada no buzú
43
6 Moara 7

Rocha
cinema

cinema
+1, Baêa!

Com esse hino clamado exaus-


tivamente pela fanática torci-
da tricolor, soltamos um spoiler
da entrevistada da sessão de
Cinema desta edição da Revis-
ta Digital Ponto Art.

Ela Faz Cinema (Chico cantou


essa bola),mas também atua,
produz, dirige e roteiriza. Moara

foto: Deo-Uelter Ribeiro


Rocha é uma artista de múltiplas
facetas que tem se destacado
na cena audiovisual baiana.
Com uma produção autoral,
independente, pintada sob as
cores de uma baianidade ge-
nuína e bem humorada, ela faz 2. A +1 explodiu na internet Na verdade, em 2015, deci- o humor baiano. Retratar essa
o discurso do cinema feito por através de cenas e esquetes dimos investir em longas-me- verve cômica sem trilhar o ca-
8 elas reverberar com mais força que retratavam situações co- tragens. Realizamos o nosso minho do estereótipo é difícil? 9
e representatividade. tidianas com o humor e o es- primeiro longa de ficção “O Você, os profissionais da pro-
cracho tipicamente baianos. Amor dos Outros” e hoje já dutora e o elenco ao iniciarem
cinema

Oito anos se passaram, a pro- temos 6 longas licenciados e cada projeto têm a preocu-
1. Você é atriz, produtora e pação artística de não endos-
sócia da +1 Filmes (@maisum- sar um imaginário linguístico e
filmes). Numa análise abran- comportamental que as outras
gente de estrutura, produção regiões do país construíram e
e conteúdo, qual balanço cristalizaram do “ser baiano”?
você faz do mercado audio-
visual baiano de 2010 (ano de O humor sempre foi um cami-
nascimento da +1) até os dias nho muito natural pra gente.
de hoje? Ficou mais “fácil” ter Nós costumamos dizer que o
uma ideia na cabeça, colocar que não é natural é mais na-
a câmera na mão e fazer con- tural do que parece, ou seja,
teúdo audiovisual na Bahia? a vida real pode ser mais per-
formática que a ficção. Nossa
Muita coisa mudou no merca- maior preocupação é com a
do nacional de forma geral de história que está sendo conta-
2010 pra cá. O mercado au- da e tudo que pode somar tec-
diovisual baiano cresceu mui- nicamente a ela. Aos que cris-
to em número de produção e talizaram um comportamento
conteúdo, mas o investimento estereotipado do ser baiano
ficou mais escasso. O avanço eu ofereço 400 vídeos de pura
da tecnologia e a democrati- loucura soteropolitana, com
zação de exibição que a inter- dutora ampliou seu leque de rodando festivais pelo Brasil e algumas pitadas de interior da
net promove torna realidade conteúdo e, no lugar dos víde- pelo mundo. Essa transição se Bahia para que passem a ter
o conceito de Glauber Rocha. os semanais, tem apostado na deu de forma muito natural, um novo olhar (risos).
De uma forma mais contem- produção de curtas de ficção, como uma nova fase profissio-
porânea podemos dizer que documentários, clipes musicais nal e também por uma análise 4. Além de tocar os traba-
com um celular na mão e mui- e webséries. Esse reposiciona- mais apurada do mercado da lhos da +1 Filmes, você é uma
tas ideias na cabeça é possível mento da marca no mercado internet. das organizadoras do Lugar de
fazer grandes produções. Mas, independente foi importante Mulher é no Cinema ao lado
infelizmente, o mercado baia- para a continuidade do pro- das cineastas Lilih Curi e Hilda
no não está preparado para jeto? Como se deu essa transi- 3. Mesmo com a mudança Lopes Pontes. A Mostra segue
investir e acabamos não con- ção de conteúdo e o processo de formatos, a +1 não abriu para sua 3ª edição que acon-
seguindo criar um mercado de diversificação de público mão do gênero que caracteri- tecerá de 25 a 31 de Março
audiovisual, de fato. da produtora? za sua identidade audiovisual: de 2019. O evento dá visibilida-
de a curtas dirigidos e/ou pro- juntar em um mesmo lugar as
tagonizados por mulheres num diretoras, produtoras, atrizes e
10 mercado ainda predominan- técnicas da área, além de es- 11
temente masculino e machista tudantes e apaixonadas por ci-
que é o cinema. Criar e manter nema.
De 2017 pra cá muitas coisas
cinema

espaços de troca, criação e re-


presentatividade é importante mudaram sob a perspectiva
para quebrar os obstáculos de da transversalidade do femi-
gênero no audiovisual brasilei- nismo. Não existe apenas um
ro? Como o “Lugar de Mulher” feminismo, são feminismos.
foi idealizado e como a mostra Por isso precisamos pensar em
vem transformando o discurso uma curadoria mais heterogê-
feminista da sua primeira edi- nea. Especificamos e amplia-
ção, em 2017, até os dias atu- mos a cada ano as categorias
ais? da Mostra trazendo filmes para
o cenário baiano de diretoras
Os festivais de caráter feminis- negras, indígenas, lgbts e tam-
tas que acontecem em todo bém fazendo inclusão de mães
Brasil/Mundo são de extrema e crianças, com uma sessão de
importância para o aumento filmes infantis.
da produção feminina, para
que mais mulheres se sintam
representadas nas telas, para
que mais histórias sob o olhar
da mulher sejam contadas e
isso é revolucionário. A história
da mulher no cinema (só para
ser mais específica) foi sistema-
ticamente apagada desde a
criação. E hoje o nosso cinema
é masculino por conta desse
AGORA VOCÊ PODE BAIXAR!
apagamento forçado. Nós pre-
cisamos trazer de volta esse lu- Faça o  download da sua edição favorita
gar que também é da mulher e
fazer a Mostra Lugar de Mulher
é no Cinema (@mostramulher- Acesse o site
nocinema), pra mim, é poder
fazer parte dessa história. A Mos-
tra foi criada dessa urgência de texto: Felipe Ferreira
Escritor, poeta e jornalista
dor das artes cêni- sença dele, o públi- é talvez, o mais im-
cas e dos diálogos co, nas plateias. portante, pois es-
estabelecidos com Existem algumas tamos falando da
12 13
as falas de alguns questões que deve- presença do públi-
representantes des- riam ser analisadas co que deveria ser
ta coluna. É óbvio - como a presença soberano na arte
teatro

que esta constata- já massiva de um soteropolitana.


A CENA NEGRA CRESCE E O PÚBLICO VEM JUNTO ção pode ser ligei- público de classe Listei sete traba-
ramente contesta- média alta nos tea- lhos que se torna-
da, visto que temos tros com as comé- ram exemplos posi-
2018, com certeza, foi um ano controver- tro de Salvador co- sucesso de públi- dias típicas – mes- tivos na produção
so. Ao mesmo tempo em que vimos uma meça a entender co em espetáculos mo que, os artistas teatral da cidade
onda conservadora se alastrando pelo a importância da onde a representa- que realizam este e se enquadram
mundo digital - realizando o desejo de representatividade tividade negra não tipo de trabalho no ‘fator X’ esco-
um mundo real - através da coragem se- negra na cena so- é uma questão, mas também tenham lhido por esta co-
letiva de sujeitos que se sentem à vonta- teropolitana e isso gostaria de me ater relatos de uma que- luna para pensar
de em propagar o ódio pelas diversas mí- tem reverberado a este fator como da de público nas na presença deste
dias sociais, espaços físicos de encontro em uma presença provocação para, casas com tal tra- público.
humano nos mostram que há uma pos- da comunidade principalmente, ce- dição¹ . Há quem
sibilidade de reverter o quadro opressor negra (a maior da lebrar a diversidade afirme que não
que parece se aproximar cada vez mais cidade, diga-se de de projetos cênicos existe essa de tea- ¹ É importante di-
de nós. Exemplo disso é o efeito que o te- passagem) nas pla- com a presença tro negro ou teatro zer que esta colu-
atro de Salvador está tendo nos últimos teias dos espaços negra e seus res- branco nas artes e,
meses. de espetáculo. na também valida a
pectivos sucessos. sim, há a qualidade
Acho que nunca uma coluna entrou É importante lem- Em geral, temos a presença destes es-
do produto; mas
em contradição em tão pouco espaço brar que esta colu- presença de temá- aqui existe a von- petáculos no circui-
de tempo. Nesta mesma seção, na edi- na não se trata de ticas que envolvem tade de posicionar to teatral e entende
ção passada, discutimos a falta de pú- uma matéria base- políticas da subal- a presença destes sua importância. E é
blico no teatro soteropolitano ou a rea- ada em pesquisas ternidade em voga corpos negros, da importante também
lidade de um teatro desenvolvido para científicas, tampou- no teatro e parece temática negra e falar da importância
que poucas pessoas assistissem às suas co fez um estudo que, o que antes da produção ne-
sessões. Ora, parece que o universo quis amiúde de todas as era visto com maus da comédia como
gra. Portanto, par-
que o colunista pagasse a língua rapida- obras cênicas que olhos pelo público timos deste lugar um gênero teatral
mente, e esta eu faço questão de pagar estiveram em car- (muitas vezes cha- para falar de uma que DEVE transitar
com honras e juros. O fato é que esta- taz em Salvador. mado de panfletá- possível retomada pelas diversas ca-
mos tendo a presença massiva de públi- Escrevo aqui a par- rio, pouco artístico de público. É óbvio sas de espetáculos.
co nos diversos espetáculos da cidade e tir da percepção e até pobre) hoje que sabemos que
um fator tem chamado minha atenção e como espectador começa a se con- este é um dos fato-
a dos amigos artistas: parece que o tea- e como um faze- solidar com a pre- res, mas para nós,
foto: Adeloyá Magnoni - Traga-me a cabeça de Lima Barreto
“É um outro
jeito de se ver na cena,
Tragam-me a ca-
14
beça de Lima Bar- estamos agora diante 15

reto, da Cia dos


Comuns; Quasei-
do protagonismo”
teatro

lhas, da Plataforma
Araká; Na rédea
curta, de Sulivã Bis-
po e Thiago Almasy;
Madame Satã, do
Teatro da Queda;
Medeia Negra, do
grupo Vilavox; a
Oficina de Perfo-
mance negra, do
Bando de Teatro
Olodum; e o Festi-
val de Dramaturgia
de Melanina Acen-
tuada, da Melanina
Acentuada Produ-
ções artísticas. Cin-
co obras teatrais,
um evento forma-
tivo e um festival
com programação
diversificada. A par-
tir de agora apenas rodando o Brasil e
Traga-me a cabe- na e o espetáculo preender a geniali- Afirma Onisajé. A
falaremos sobre es- por onde passa, é
ça de Lima Barreto acabou de realizar dade, a relevância peça nos mostra o
tas obras para que sucesso de públi-
é um solo do ator sua terceira tempo- e a força de Lima famoso autor Lima
possamos nos reco- co e crítica. Onisa-
Hilton Cobra, escri- rada de sucesso em Barreto na história Barreto (1881-1922)
nhecer enquanto jé enfatiza: “É um
to por Luiz Marfuz e Salvador. Recebeu faz com que a pla- tendo de enfrentar
potência criativa, outro jeito de se
dirigido por Onisajé. três indicações ao teia possa se refe- uma conferência
diversidade de tra- ver na cena, esta-
Apesar de ser uma prêmio Braskem de rendar. A força que de eugenistas que
balhos e, principal- mos agora diante
realização da Cia Teatro: melhor ator, as montagens vêm não entendem a in-
mente, capacida- do protagonismo.
dos Comuns, gru- melhor espetácu- colocando na histó- teligência presente
de de relação e Existe também uma
po criado pelo ator lo e melhor texto, ria negra tem feito no cérebro de um
recepção do públi- modificação na lin-
no Rio de Janeiro, a sendo vencedora a plateia ir ao tea- negro como Lima.
co. guagem. Estamos
equipe toda é baia- esta última. “Com- tro se reconhecer.” O espetáculo está
encontrando o nos- das em teatros que fizeram duas ses-
so jeito de fazer.” não tinham como sões devido à fila
16 “Descortinar costume a presen- quilométrica que 17
ça da população se formou na frente
Famosos na inter- preconceitos é negra em sua pla- do teatro. “Descor-
net, os artistas Su-
teatro

livã Bispo e Thiago muito importante. teia. E acreditem, tinar preconceitos


a população negra é muito importante.
Almasy, tomam as São espaços estava lá presente, São espaços majo-
rédeas do seu pro-

foto: Divulgação - Quaseilhas


duto e desdobram majoritariamente sentada em cadei- ritariamente bran-
o sucesso da web ras de um teatro de cos, frequentado
brancos, um shopping cen- por brancos e feito
para o teatro. Mais
voltado para o en- frequentado por ter a rir e se deli- para eles. E quando
tretenimento, o es- ciar com Mainha e a gente chega nes-
petáculo Na rédea
brancos e feito para seu filho. Recente- ses espaços, parece
curta virou uma fe- eles.” mente, o trabalho que a gente invade
bre na Bahia e os participou de um esses lugares.” Res-
projeto de demo- salta Sulivã Bispo. exemplo, é um tapa nacional graças à
causos entre um fi-
cratização de aces- Além disso, a dupla na cara do racismo. sua ousadia estéti-
lho da periferia de passam. Com talen-
so às artes no Teatro tem circulado muito A gente sabe colo- ca, política e artísti-
Salvador e uma típi- to para o mainstre-
Castro Alves e, com no interior da Bahia car uma coroa na ca. A obra de Diego
ca mãe baiana são am, a obra fez duas
ingressos a um real, e feito muita publi- cabeça e retomar Pinheiro é uma ópe-
sucesso por onde temporadas lota-
cidade do Estado. nossos postos de reis ra toda escrita em
“Nossa equipe é e rainhas.” Afirma o yorubá onde se ho-
majoritariamente ator de 25 anos. menageia a ances-
negra e tudo que tralidade presente
a gente pensou foi Com uma propos- no bairro de Alaga-
para o nosso públi- ta contemporânea, dos, onde o artista
co. A importância a plataforma Àràká nasceu. O espetá-
de estarmos nestes de criação artís- culo nem um ano
lugares reafirman- tica construiu no completou e já par-
do o tempo todo é Forte do Barbalho ticipou de impor-
um trabalho árduo, uma enorme pala- tantes festivais na-
mas necessário. fita para fazer uma cionais como o FIT,
de Belo Horizonte,
foto: Divulgação - Na Rédea Curta

Quando a gente linda homenagem


mete o pé na porta operística ao bairro além de realizar um
e diz que estes es- de Alagados. Qua- intercâmbio na Fló-
paços também são seilhas estreou no rida. Viagem e esta-
nossos, com muita mês de maio e já é dia foram possíveis
elegância, como uma obra de reco- graças ao financia-
faz o bloco afro, por nhecimento inter- mento coletivo em
da para ver Sulivã finais de semana do desenvolveu a pes-
Bispo, famoso pela espetáculo tiveram quisa e seguiu em
personagem Mai- seus ingressos esgo- cartaz até o final do
18
nha em Na rédea tados antes dos dias ano em Salvador. 19
curta, na pele do das apresentações Segundo Márcia
negro homossexu- e têm arrancado Limma, esse “fenô-
al mais famoso da o fôlego de quem meno se dá porque
teatro

Lapa, junto a mais vê a fúria de Már- não se trata de um


14 artistas em cena cia ao interpretar processo solitário.
em uma montagem uma Medeia cons- Os movimentos en-
de pré-formatura truída a partir de tenderam que se
da Escola de Teatro sua pesquisa com existem obras artísti-
foto: Diney Araujo - Madame Satã

da UFBA. as mulheres negras cas com temáticas


encarceradas de que defendem a
Por fim, o grupo Vi- Salvador. O projeto sua pauta, eles tam-
lavox estreou agora já foi apresentado bém precisam estar
em setembro o tra- em cinco cidades presentes, valorizar,
balho solo de Már- do interior da Bahia, chamar gente e
cia Limma, Medeia na própria peniten- fortalecer o traba-
Negra. Os primeiros ciária onde a atriz lho.” Ela percebe a

plataformas digitais (o que aqui vos es-


e, durante três se- creve), e produção
manas, os oito artis- do Teatro da Que-
tas puderam disse- da teve uma primei-
minar seu processo ra temporada com
criativo no Atlantic ingressos disputa- “fenômeno se dá porque não se
Center for the Arts dos pelo público
(ACA). baiano. Madame
trata de um processo solitário.
Satã revisita a histó- Os movimentos entenderam que
A vida do boêmio ria do lendário per-
carioca Madame sonagem através se existem obras artísticas
da estética do tea-
Satã também fez
tro musical e de re-
com temáticas que defendem a
foto: Divulgação - Medeia Negra

muito sucesso nos


palcos baianos. O vista, percebendo sua pauta, eles também preci-
musical Madame as amarras sociais
Satã montado sem e raciais que tanto sam estar presentes”valori-
violentaram o pro-
patrocínio, com di-
tagonista. A mon- zar, chamar gente e fortale-
reção de Thiago Ro-
mero, dramaturgia tagem levou uma
de Daniel Arcades diversa plateia ávi-
ampliação do tea- uma demanda de edição e comprova
tro negro como um público na cidade, que atividades con-
20 crescimento propo- mas também exis- tinuadas consoli- 21
sital a partir do mo- te uma demanda dam a presença do
vimento dos pró- de formação em público e têm efeito
teatro

prios artistas para artes para artistas positivo na arte lo-


fortalecer o discur- que vivem distante cal.
so. “Medeia [ne- do centro. Existem Esses são apenas
gra, o projeto solo] milhares de grupos alguns exemplos
se envolveu com o de teatro atuantes para percebemos
movimento social, na periferia de Sal- o quanto, apesar
com grupo de pes- vador e que devem de tudo de sombrio
quisa, com a univer- ser a pauta daqui que nos ronda, es-
sidade, com grupos qualquer dia des- curecemos a cena
de teatro, com a ses. O bando, feliz- e fomos ouvidos
penitenciária, com mente, reconhece pela parcela que
o empoderamento a necessidade des- queria ouvir e se ver
individual. Com to- te trânsito para a nos diversos palcos
das essas relações, construção de re- da cidade. E ain-
o trabalho sai forta- presentatividade e da falta tanto, mas
lecido.” Afirma Már- de visibilidade da tanto...
cia. arte negra.

O Bando de Tea- O Festival de Dra-


tro Olodum, um dos maturgia de Me-
grupos mais impor- lanina Acentuada
tantes de artistas acontece durante
negros do país, nes- o mês de setembro
te ano resolveu in- na cidade com es-
vestir em formação petáculos, ativida-
na periferia de Sal- des de formação,
vador. A oficina de entrevistas públicas,
performance negra leituras dramáticas,
aconteceu nos bair- além do lançamen-
ros de Plataforma e to de uma plata-
Alagados e resultou forma com perfis e
numa mostra cê- obras de dramatur-
nica no Teatro Vila gos negros de todo
Velha, mostrando o país. O Festival já texto: Daniel Arcades
não só como existe está na sua quinta Ator
“Chega o momento em que você começa a se sentir um bicho, chega o momen-
to em que você não consegue falar mais. Você é capaz de cometer um crime
porque você não consegue ser enxergado, porque você se sente invisibilizado,
22 se sente incapaz [...] o que fazer com essa necessidade de matar? [...] Eu consigo 23
transformar essa dor, esse conjunto de violências históricas, esse monte de violên-
cias cotidianas e esse cansaço imenso. Eu tenho a possibilidade de criar coisas
com toda essa dor. Eu posso fazer isso porque sou artista, porque eu tenho a arte.
teatro

i a
Outras mulheres não conseguem.”

r c
Márcia Limma em “Voz sem medo”, do Coletivo Ponto Art, episódio 10

á
M Lim m a
DEI A NEG R A
ME

foto: Adeloyá Magnoni


O mote “o que fa- vel a demanda por Penal Feminina. Os
24 zer com essa von- representatividade encontros semanais 25
tade de matar?” e a urgência em “sempre às quin-
da fala de apenas reposicionar narra- tas, independente
tivas. Saí do teatro
teatro

oito minutos da atriz de Medeia”, conta


Márcia Limma na abordando pessoas Márcia, são ativida-
websérie “Voz sem e colhendo impres- de do Corpos Indó-
Medo” foi um dos sões e, ao menos no ceis, Mentes Livres,
socos de palavras dia em que assisti ao projeto de exten-
mais bem dados monólogo musical - são coordenado há
que eu já vi. Desde chamemos assim - mais de sete anos
ali, aquela presen- a plateia era ampla pela professora Dra.
ça continha algo maioria feminina e Denise Carrascoza
de diferente para maioria esmagado- (UFBA) com mulhe-
mim, um negócio ra negra. Das cinco res em situação de
não-decorativo, o pessoas com quem encarceramento.
mundo que roda conversei, quatro Durante as oficinas
depois que a gen- estavam repetindo de contação de
te toma um chaco- a dose. história no presídio,
alhão nos ombros. A obra, assinada já no processo de
Ou o zumbido que por Márcia Limma concepção, ambos
repercute nas ideias junto ao Vilavox, os textos, o mito e
depois de um grito sob a direção de o material de Már-
no pé do ouvido. E Tânia Farias, com cio Marciano foram
voltei a sentir o gos- direção musical de discutidos com as
to de soco ao fim Roberto Brito, dra- internas e fomenta-
do espetáculo na maturgia de Márcio ram debates, con-
noite de sábado do Marciano e Daniel fissões, levantamen-
dia dez de novem- Arcades, atualiza to de memórias e
bro, penúltimo dia o texto clássico do desejos. Em seguida
da temporada de grego Eurípides. O essas mulheres fo-
Medéia Negra na espetáculo solo é ram motivadas a es-
nova Sala do Coro o objeto de pes- crever cartas para
do TCA. O público quisa do mestrado Medeia e, por fim,

foto: Adeloyá Magnoni


respondeu à mon- da atriz e tem rela- receberam uma
tagem lotando as ção com a vivência carta resposta da
sessões, esgotando das oficinas de lite- Medeia-Márcia
os ingressos: inegá- ratura na Colônia como retorno, que
é também uma jun- lido como pré-femi- cal ao vivo, vemos mens, ora como ad-
ção de toda a vi- nista por apresen- a performer ape- vogada de si e de
vência comum, do tar a negação da nas em corpo e voz sua condição, ora
laço forjado dentro maternidade como blueseira se insurgir como alguém que
26 a maior vingança contra algo muito 27
das experiências da pede “bença” à
oficina no comple- contra as desvanta- maior que um único ancestralidade (no
xo penitenciário. O gens de ser mulher Jasão. Para tanto, dia que a assisti, em
teatro

material foi fundido num mundo do- divide a platéia en- momento oportuno,
com texto original minado pelos ho- tre homens e mulhe- Medeia imergia no
dos dramaturgos, mens. Através de público e deitava a
além de outras in- Márcia, a fúria fe- cabeça no colo da
tervenções de Tâ- minina, o desejo de senhorinha negra
morte, vingança e
nia Farias e da pró-
pria Márcia Limma. transfiguração atra- a criatividade mais idosa de toda
a audiência. Certa-

<< ESCUTE AQUI,


vessam 2500 anos
da tragédia grega tem de surgir mente ultrapassava
a casa dos 80 anos.
JASÃO. SE PREPARE
PARA O QUE VIRÁ>>
e adquire um alvo
tão imenso quan- do simples, Abordei-a na saída,
ela estava emocio-
to o patriarcado, o
racismo, o machis- pelo menos nada, altiva e elo-
giou muito o espe-
O feminino terrível
e furioso presente
mo, o classismo, o
abandono de Es- é no que eu táculo).
em Medéia, porque
traído e desampa-
tado, as estruturas
sociais inflexíveis,
acredito BEBENDO DO UNI-
VERSO DO BLUES E
rado, cria um de- o espólio escravo-
sejo por sangue no DO RAP
crata e a solidão
escrito original de da mulher negra. É
Eurípides. Neste, a uma versão explici- res e usa o cansaço Roberto Brito, autor
vingança contra tamente feminista histórico que sente e executor da trilha
o marido Jasão é da diáspora negra a seu favor. Sevícia, ao vivo na cena,
materializada por para repensar e Violência, Estupro e conta um pouco do
ela na forma do cri- atualizar as qualida- Morte é o hino som- processo de pes-
me mais horrendo des daquela primei- brio que a vemos quisa musical e de
e inadmissível: o as- ra Medeia, a um só repetir. sonorização: “Már-
sassinato premedi- tempo abandona- Qual o crime come- cia tinha o interes-
tado dos dois filhos da e furiosa, expa- tido, afinal? Quem se no texto musica-
do casal. Embora triada e perseguida cometeu? Contra do, como o Blues, e
tal enredo já tenha criar a partir disso.
foto: Adeloyá Magnoni

como estrangeira, quem? A performer


sido interpretado encurralada e ain- se dirige, então, a A música para Már-
como uma expres- da assim, vingada. cada setor do pú- cia deveria passar
são de atitudes mi- Com o auxílio da luz blico, ora como por esse universo,
sóginas, também foi e execução musi- acusadora dos ho- por isso também o
foto: Adeloyá Magnoni

28 29
teatro

piano [...] tinha uma cana, o rap... Ella tinha grana, então
voz que arranhava Fitzgerald, Nina Si- a criatividade tem
dentro do texto, co- mone, Billie Holliday de surgir do simples,
meçamos a utilizar eram referências pelo menos é no
isso, a pensar como fortes, mas também que eu acredito.”
a voz poderia indi- Kendrick Lamar e
car algo que inco- Childish Gambino. TEMPO E TEMPORADAS

foto: Adeloyá Magnoni


moda. A gente co- [...] Tivemos muito
meçou a pesquisar tempo para pes- Além das tempo-
e trabalhar conso- quisar, isso foi muito radas locais, o mo-
antes, investigamos importante. Foi mui- nólogo Medeia
no cajón também, ta pesquisa, criativi- Negra esteve pre-
partindo da idéia dade e intuição. Os sente na Alemanha
de ranhuras presen- instrumentos usados para participar da
tes não só no blues, eram o que havia à Frankfurt. O festival afora. Ela soa como ainda sob efeito da
II edição do Inter-
mas da própria mú- mão. O espetácu- internacional de atemporal, embora voz de Márcia. Ain-
nationales Frauen
sica negra ameri- lo a princípio não mulheres no teatro acumule temporali- do ouço um sonoro
theatherfestival em
é um evento que dades diversas até e duradouro fogo
encoraja mulheres o ponto de sentir- crepitando. Deixa
a compartilhar seu mos que carrega queimar.
foto: Adeloyá Magnoni

papel no teatro do todo o Tempo his-


futuro, por meio de tórico consigo. Me-
apresentações e deia queima a Histó-
trocas de trabalhos. ria em nossa frente,
Que Medeia Negra sob o teto imenso
ecoe como essa do tempo, prestes
voz coletiva, visce- a despencar sob
ral, mitológica e se nossas cabeças.
faça ouvir por mui- Saio do espetáculo texto: Alana Falcão
tos espaços mundo com o meu ouvido bailarina, professora de dança
e dramaturgista
Jaguar
30 31
ponto de vista

Carvalho
Fotografia é essa troca de beleza, de olha-
res, de amor, uma interação, uma cumpli-
cidade que só a arte nos abre para tanto.
Sempre digo que a fotografia é feita à dois
ou mais, e nunca sozinha.
Ela é comunista em todos os sentidos.

Instagram: @jaguarsc
foto: Divulgação
32
33
ponto de vista

“Bié de Igatu e
sua bela galeria”

Igatu-Bahia
34
35
ponto de vista

“Limão”

Feira de São Joaquim


36
ponto de vista

“Firmeza Na Certeza “

Modelo : Taiguara
Carvalho, meu filho
38
Mestre 39

Moa do
CULTURA

Katendê
“Quem vai quebrar a máquina do mal?”

Não me recordo exatamente onde e


quando conheci o Mestre Moa. Creio
que na Associação Brasileira de Capoei-
ra Angola, da qual foi diretor, onde gra-
vou CD e criou o bloco Gunga, o primei-
ro bloco de capoeira da Bahia, em 2003.
Posteriormente ele se afastou da ABCA,
mas comecei a frequentar as famosas
rodas do Dique, que ele realizava em
parceria com o Mestre Valdec. Ali fiz al-
guns registros fotográficos e participei de
bons papos em um boteco na entrada
do Dique Pequeno, onde acontecia o
social pós-roda. Estimulado por leituras e
conversas prévias, cutucava pra ver sair
o ouro, histórias do Mestre Bobó e do Afo-
xé Badauê.
No dia 26 de agosto, conduziu, como um
bom maestro, sua últi- 08/10, recebemos no
ma Roda do Dique. peito uma bomba: o
40 Vários mestres e ami- assassinato do Mes- 41
gos se fizeram presen- tre Moa do Katendê,
tes, como que a adivi- com 12 facadas, por
nhar uma despedida. um eleitor de Bosto-
CULTURA

Mestres Valdec, Plí- nazi. Imediatamente


nio, Ratinho, Olhos de articulamos o Conse-
Anjo, Saúva, China, lho Gestor da Salva-
Iran, diversos contra- guarda da Capoeira
mestres, professores, na Bahia, produzimos
capoeiristas. Seu filho, nota denunciando o
Raniere, não partici- caráter político do cri-
pou da roda, de luto me, acompanhamos
pela morte recente a família no IML e no
da mãe, cinco dias DHPP. Fiz então um
antes. Depois de ba- convite ao cineasta
ter o ponto no boteco Carlos Pronzato, do-
do Dique Pequeno, cumentarista expe-
subimos as escadas riente nas lutas e mo-
até sua casa pra co- vimentos sociais, com
mer uma feijoada e cerca de 80 filmes
pudemos ver os ma- produzidos de forma
teriais comprados independente entre
para a construção do Brasil, Argentina, Chi-
centro cultural, que le, Bolívia, Uruguai e
pretendia inaugurar Paraguai. No enterro,
neste verão. Nos ani- gente de terreiro, ca-
mamos coletivamen- poeira, samba, afoxé,
te com a realização bloco afro, grandes
do Mestre e com o personalidades da
potencial deste novo cultura afro-baiana.
espaço de cultura. Em meio ao cortejo
As eleições foram du- de berimbaus, toma-
ras e todos saímos do dos pela emoção,
primeiro turno apre- o famoso corrido de
ensivos com o assus- capoeira “olha lá o
tador crescimento do nêgo” ganhou uma
fascismo. Ao acordar nova versão: “mata-
na segunda-feira, dia ram o nêgo - eu não
personagem repre- que ajudou a formar do caxixi, ampliando
sentado por Samuel Letieres Leite e toda significativamente a
L. Jackson no filme uma geração de base sonora do blo-
Django Livre. músicos baianos. Em co. Em outra ocasião,
42 Romualdo Rosário 1977 venceu o Festi- saíram todos com xe- 43
da Costa foi iniciado val da Canção do Ilê querê, criando uma
cedo na cultura, atra- Aiyê, com a música imensa e impactante
CULTURA

vés da convivência Badauê ou Bloco be- massa percussiva. O


com sua avó, a Ialo- leza. No ano seguinte Badauê foi campeão
rixá Omin Bain, com do carnaval, Caeta-
quem se cuidava es- no Veloso gravou sua
piritualmente. Ainda música mais conheci-
na infância começou da (Misteriosamente,
a praticar capoeira Que sirva como um o Badauê surgiu…) e
angola com o Mestre muitos compositores
Bobó, exímio sambis- grande alerta para os fizeram canções se
ta, da época em que referindo ao bloco,
os carnavais da Bahia perigosos rumos que como Baby Consue-
contavam com forte nosso país vem toman- lo, Carlinhos Brown,
presença das escolas Clara Nunes, Caeta-
de samba, antes da do com o aumento do no Veloso, Gilberto
era dos blocos afro. Gil, Moraes Moreira,
Mestre Bobó e seus
racismo Pepeu Gomes, Rus-
alunos saíam nos Di- so Passapusso e Saulo
plomatas de Amara- Fernandes. Na déca-
lina. Muitas pessoas da de 80 o Badauê
acreditam que Moa fundou com amigos o deixaria de desfilar
vou me calar”! Na registrando as mani- da violência fascista era filho de Katen- afoxé Badauê, na La- pelas ruas de Salva-
quarta-feira, dia 10, festações e entrevis- no Brasil. Uma grande dê, mas ele era um deira de Nanã, Enge- dor, e na década de
o ato no Largo do tando pessoas para decepção, no meio homem de Xangô. nho Velho de Brotas. 90 Mestre Moa criou
Pelourinho, que teve o documentário. Não do processo, foi cons- O apelido veio após O Badauê foi uma em São Paulo o afo-
início com um corte- tínhamos a pretensão tatar que havia capo- participação no gru- grande renovação xé Amigos de Katen-
jo de berimbaus sain- de tratar de sua vida eiristas relativizando o po folclórico Katen- no carnaval baiano, dê, com posteriores
do da ABCA, tomou e obra, sabendo que crime pra defender o dê, organizado pela com composições núcleos em Porto
grandes proporções, para isso seria neces- “lá ele não”. A mim, professora Lucia dos próprias para além Alegre, Florianópolis e
e na outra terça, dia sária uma pesquisa pareciam um perso- Santos no ICEIA. Entre das cantigas de can- Belo Horizonte, dentre
16, ficou gigantesco, mais longa e apro- nagem de 1984 pra- 1976 e 1977 foi do gru- domblé entoadas outros lugares.
com a participação fundada, mas sim de ticando o “duplipen- po Viva Bahia, com nos afoxés tradicio- Uma perda irrepa-
massiva de afoxés e denunciar seu assas- samento”, embora Emília Biancardi, e da nais. Em determinado rável para a cultura
blocos afro. Já está- sinato político como alguns se pareçam Orquestra Afro-Bra- ano, os participantes baiana, seu assassina-
vamos em atividade um fruto da escalada mais com Stephen, o sileira de Percussão, saíram todos tocan- to não pode ter sido
44
em vão. Que sirva como um gran- 45
de alerta para os perigosos rumos
que nosso país vem tomando com
o aumento do racismo, do ódio, da
CULTURA

intolerância e da violência. Como


faremos para esquivar dessa onda
fascista e dar uma volta ao mun-
do para reiniciar o jogo democráti-
co em melhores condições? Evoco
aqui as palavras do saudoso Mes-
tre Moa do Katendê, imortalizadas
na canção Humanidade cruel: “Só
um milagre humano anulará tantos
projetos medonhos que matam e
escravizam a sociedade e apagam
nossos sonhos. Quem vai quebrar a
máquina do mal?”

Paulo Magalhães foi o produtor


do documentário “Mestre Moa
do Katendê - A primeira vítima”.
É jornalista, doutorando pelo
Pós-Cultura – UFBA, autor do li-
vro “Jogo de discursos: a disputa
por hegemonia na tradição da
capoeira angola baiana”. Con-
tramestre de capoeira angola,
membro da Associação Capoei-
ra Angola e do Conselho Gestor
da Salvaguarda da Capoeira na Texto: Paulo Magalhães
Bahia. Fotos realizadas durante uma roda de
capoeira angola pelo Coletivo Ginga de
Angola no Sarau da Mata
46
O ARTISTA TEM DE IR ONDE O POVO ESTÁ “Já passamos dessa fase de ‘grupo
de poesia’. Somos uma organização
cultural pan-africanista artística, não
47

nos comportamos apenas como um


literatura

Resistência Poética e sua poesia afrocentrada no buzú grupo de poesia. A gente visa, tan-
to quanto poeta, quanto ser políti-
co, uma perspectiva afrocentrada
de posicionamentos [...] Mas para
além disso, também somos uma fa-
mília” e foi assim que Rilton Junior
(22) e Negreiros Souza (28) definiram
o Resistência Poética em um provo-
cante bate bapo com a galera da
Ponto Art num fim de tarde na pra-
ça Pedro Arcanjo. A rede de assun-
tos foi extensa: da descoberta da
potência da poesia e da amizade
para criar um dos coletivos mais ins-
tigantes de Salvador, passando por
situações curiosas ou emocionan-
tes que vivenciaram nesses anos de
buzú; falaram de arte, de negritude,
de racismo, feminismo negro (atua-
lizado em mulherismo africana) e re-
volução. Confira!

SOBRE O INÍCIO E OUTROS VOOS

O Resistência Poética está cami-


nhando para os cinco anos de fun-
dação; surgiu oficialmente em 30
de junho de 2014, idealizado por
Dricca Silva e Fabiana Lima , pelo
desejo de fazer um slam, um sarau
resistência. Dricca tinha idéia de fa-

Foto: Divulgação
zer um grupo de poesia, “aí já uniu
uma coisa com a outra”, conta Ril-
ton. Entre saídas e adesões, tudo de-
mocraticamente construído – por-
Foto: Divulgação
que desistências e peso porque era literatura marginal,
48
cobranças tam- produzida num re- preta e periférica 49

bém fazem parte corte racial, de gê- dentro dos coleti-


da construção- o RP nero e de classe. vos. Por ser preta já
literatura

fechou com cinco No início do projeto, é marginal, de de-


pessoas: três mulhe- em 2014, a grande núncia. Com isso,
res (Negreiros Souza, massa de poetas não estamos dizen-
Dricca Silva, Fabia- que estavam nos do que não existia
na Lima) e dois ho- coletivos era, nas literatura periférica
mens (Rilton Junior palavras de Rilton Jr, em Salvador antes
e Lucas Silva), cada “poetas burgueses, do RP. Existia. Mas eu
um de uma periferia poetas brancos que creio que a gente
diferente de Salva- iam recitar Drum- trouxe essa vertente
dor. O grupo surgiu mond, Castro Alves, de enfrentamento
na perspectiva não qualquer coisa fora direto ao racismo,
só de ter um meio da nossa realidade, sacou? De denun-
de “fazer uma mo- sacou? Nada con- ciar mesmo, de não
eda”, mas principal- tra, mas a gente en- abaixar a cabeça
mente enxergando xerga também que e para além de fa-
que a poesia deles o Resistência foi um zer poesia, se em-
nos ônibus tinha um dos precursores da basar...”. Os dois
nos contam como o que pudessem ser E POR QUE O BUZÚ?
grupo foi um divisor fonte de reflexão,
Foto: Divulgação

de águas em todos inspiração e diálo- “Olodum fala isso,


os sentidos, como se go com o público né? Todo artista tem
para cada um deles dos ônibus. Citaram que ir aonde o povo
houvesse uma ver- Bezerra da Silva, Ed- está. Qual o palco
são “antes e depois” son Gomes, Olodum hoje que tem mais
do RP. Por embasa- e muito rap. Rilton, público? É o buzú, tá
mento, leia-se: sen- que veio do teatro, ligado? Então a gen-
taram para estudar menciona também te usa a noção de
pensadores negros o TEN -Teatro Expe- difusão de outro po-
e buscar referências rimental do Negro eta, o Thiago Gato
teóricas, conceitu- do Abdias do Nas- Preto, que faz uma
ais e artísticas. Liam cimento pra poder contagem louca lá
e discutiam Frantz trabalhar na pers- dele. Ele fala que se
Fanon, Racionais, pectiva afrocen- um poeta pega um
Bell Hooks, além de trada com o teatro buzú com trinta pes-
letras de música também. soas, depois de pe-
Foto: Divulgação
gar 10 buzús são tre- tem poesia que fala
zentas. Dez poetas de racismo e a pes-
50 alcançam três mil. soa pensa ‘pô isso 51
Um alcance muito já aconteceu co-
grande, por isso que migo’. Já teve buzú
literatura

o buzú é palco prin- que rolou briga, já


cipal do poeta, dá teve buzú que já
pra cobrir Salvador rolou assalto. Já
toda nessa conta. teve buzú que rola-
Mas assim, eu creio ram discussões sau-
que a gente não dáveis, desabafo,
deve só se limitar ao choro. No chapéu
ônibus. Muitas pers- vem moeda, vem
pectivas de litera- bala de gengibre
tura de poetas que para sua garganta,
tem surgido ago- já botaram 100 con-
ra têm se limitado to no meu chapéu
apenas aos ônibus, (risos), bilhetinho do
mas o movimento tipo ‘continue fa-
literário em si não é zendo seu trabalho,
fixo apenas aos co- fala do racismo no comunidades, mas tou a gente de criar te apresenta. Tipo, ele é muito impor-
letivos. Existem os sa- ônibus, em casa... também em escolas asas e voar pra váa- se eu chego pra re- tante’ ou mesmo
raus que tem uma então é muito rela- municipais, faculda- arios lugares, não só citar e alguém me ‘me apaixonei por
invasão muito gran- cional”, articula Ne- des e eventos artís- Salvador” , enfatiza olha estranho eu já um poeta...’. Muitos
de dos poetas. Os greiros. Com o pas- ticos. “A poesia nos Negreiros. recito logo uma po- convites também
slams, que são ba- sar do tempo e do permitiu ir pra muitos esia pancada. Se surgiram a partir do
talhas de poesia e de s e n v ol v i m e n t o lugares: bienal da BUZÚ NÃO SE PEDE, tem muito coroa, buzú. Fora os moto-
já dão uma outra vi- pessoal de cada um, UNE no Rio de Ja- BUZÚ SE CONQUISTA eu recito ‘Tia Anas- ristas que às vezes
sibilidade pra quem os jovens do RP per- neiro em 2015, Cha- tácia’ porque eu não permitem que
tá nesse meio de li- ceberam o quanto pada Diamantina Negreiros nos conta sei que é uma poe- a gente suba por-
teratura também”, a poesia possibili- no festival de Len- um pouco de suas sia que vai ter uma que algum outro
coloca Rilton. tava a juventude a çóis, festival Dorival estratégias para li- empatia. O buzú poeta com outra
“Na verdade o que adentrar espaços Caymmi... A gente dar com um possí- também dá muito conduta injuriou os
a gente faz são es- que eram elitizados, já foi pra Itacaré co- vel não do motorista pra gente. E você passageiros. Às ve-
crevivências, um porque além do tra- nhecer um quilom- ou uma recepção vai nas pessoas que zes, ele tá mau hu-
termo que a Con- balho nos coletivos bo numa vivência negativa dos pas- você coopta. Fa- morado, então a
ceição Evaristo usa. eles já foram convi- massa que a gente sageiros: “Quando biana mesmo tem gente trata ele logo
A gente fala das dados a fazer ofici- hoje já estabeleceu chega no buzu, vc várias poesias que como se o ele fosse
nossas vivências, de nas, palestras e inter- uma certa parceria. tem que trocar com falam sobre o sofri- o dono do buzú. Se
abordagem policial, venções não só nas A poesia possibili- aquilo que o buzú mento da mulher, ele tá na frente, pi-
Foto: Divulgação

que o enfrenta- tras pessoas, a gen- projetos particula- Públicas na UNEB e


mento que a ação te pode ser aborda- res. E mesmo com é técnica em pro-
poética do grupo do e de repente vir trabalhos parale- dução cultural.
provoca às vezes é a ter a nossa vida los, o selo identitário “Mesmo estando
52 perigoso para eles. ceifada. De modo “Resistência Poéti- distantes em corpo, 53
É importante e ne- que, se hoje foi pe- ca” continua as- a poesia se faz pre-
cessário, claro, mas riferia, amanhã a sociado a eles, de sente em nossas vi-
literatura

ainda assim, perigo- gente faz orla, de- modo até involun- das.” Considera Ne-
so. “Porque a gen- pois de amanhã ou- tário. Adriane tra- greiros.
te está exposto. No tra periferia e assim balha com audio- Para além do reco-
momento que a vai” completa. visual, Fabiana tem nhecimento como
gente sai de casa o projeto “Nega sinônimo de suces-
e vai para o buzú a POESIA E PERSPECTI- Fyah” com um zine so, o grupo se auto-
gente pode se de- VAS lançado e faz algu- define por um cer-
mas intervenções; to marco ético: o
Rilton tem o proje- compromisso com

Foto: Divulgação
to “Poeta com P de a modificação de
lotando, muitas ve- Reclamou o direito preto”, um espetá- mentalidades. Essa
zes é assim que ele de pagante de não culo teatral e poéti- noção de suces-
quer ser tratado, ser incomodada. co; Lucas faz facul- so pautada numa
então é estratégico Eis que, diante do dade de filosofia na ética com a trans-
dar essa majesta- incômodo solitário UFBA; Negreiros tem formação social foi
de a ele. Tem tam- da moça, o restan- nível superior em ilustrada pela situa-
bém gente que não te do buzú entoou Comunicação So- ção em que a poe-
gosta, que diz que em uníssono, gritan- cial com Relações sia “Feio é seu pre-
a gente precisa fa- do em defesa da
zer outra coisa, que poesia: “GRUPO DE
isso não é trabalho, POESIA RESISTÊNCIA
ou que racismo não POÉTICA, GRUPO
existe, é coisa de DE POESIA RESISTÊN-
nossa cabeça”. CIA POÉTICA. E esse
Rilton fala de uma movimento espon- parar com qualquer O Resistência Poéti-
situação emblemá- tâneo, sem o menor pessoa. Podemos fi- ca é definido pelos
tica que bem ilus- agenciamento ou car marcados. Por integrantes como
tra os conflitos no inflamação por par- isso que é estraté- uma perspectiva
ônibus. Certa feita, te dos integrantes gica a mudança de construção co-
uma determinada não parou até que a de roteiro. A gente letiva e individual,
passageira, bran- incomodada pedis- pode estar ali hoje, de modo que, para
ca, se incomodou se o ponto. Quanto aí um policial não além do trabalho
com a performan- às contrariedades, foi com nossa ideia coletivo, cada um
ce do Resistência. Negreiros pontua e ele convocar ou- desenvolve seus
conceito” sobre a se propõe a fazer
54 estética do cabelo ações comunitá- 55
crespo, recitada du- rias. Em 2015, no ani-
rante uma semana versário de um ano,
literatura

no mesmo trajeto, realizaram o “A arte


acabou auxiliando invade a praça” na
na transição capilar Tereza Batista, pe-
de uma passageira. lourinho. A partir dis-
“Ela me disse que so tiveram a idéia
hoje era uma ou- de trazer pra dentro
tra pessoa, que se de outras comuni-

Foto: Divulgação
reconhecia como dades o “A arte in-
mulher preta, então vade”.
me deu um abraço “Acho que a gente
e a gente chorou faz revolução sem
nesse momento. Foi dinheiro o tempo
muito único. Isso pra todo, até porque es-
mim é sucesso por- “Acho que a gente faz revolução sem dinheiro o tempo todo” sas atividades que
que as pessoas tem a gente faz são sem
um entendimento dinheiro, mano. Já
da poesia e a partir tirei comida da mi-
disso o outro se mo- nha casa para fazer
difica” conta Rilton, evento da minha
emocionado. rua. De minha dis-
pensa de comida
E REVOLUÇÃO SEM estar vazia mas eu
DINHEIRO, ROLA? insistir que tem que
fazer, tem que fazer,
O RP é altamente a comunidade pre-
politizado, e no en- cisa disso aqui”, re-
tanto, apartidário. lata Rilton. Negreiros
Dizem não se sentir completa: “ No ‘A
contemplados pe- arte invade a Baixa’
los rótulos “esquer- a gente conseguiu
da” ou “direita” do fazer café, almoço,
espectro político. merenda primeiro
Dentro dessa outra e segundo round e

Foto: Divulgação
lógica de mudan- ainda teve grupo
ça social, o grupo de teatro - e ima-
outros lugares e não
critico quem vai. O
que eu acho é que
56 a galera que tem 57
ido pro buzú agora
é uma galera que
literatura

recita qualquer po-


esia, sem a preo-
cupação em dizer
que a poesia não é
de sua autoria, é de

Foto: Divulgação
outra pessoa. Dei-
xamos de postar na
nossa página por-
que nosso material
não é todo registra-
do e a gente perce-
gine pessoas que buzú. A questão é bia que as pessoas
nunca tinham ido que eu nunca fui pegavam, altera-
ao teatro na comu- pro buzú só pra fazer vam e saíam por aí
nidade .Uma mulher dinheiro, pra pegar recitando como se
cedeu a casa dela a moeda. O que eu deles fossem. Essa
como ponto base, ia fazer no buzú é falta de respeito de
onde a gente pôde um trabalho psico- pegar nosso produ-
cozinhar e usar ba- lógico até pra mim. to, transformar esse
nheiro. A igreja foi Me ajuda a conse- produto e não dizer
onde a gente cons- guir falar, encarar que é seu.
truiu palanque, bo- as pessoas, ir para
tou som. Mas claro os debates. Pra mim
que, ao final do mês aquele momento é
quando você preci- importante. Eu não
sa pagar o aluguel faço mais buzú por-
e depende exclusi- que agora eu tenho
vamente desse di- uma outra lógica
nheiro, é frustrante de vida. Minha for-
você ir pro buzú e mação acadêmica
não fazer dinheiro. e a formação ob-
Eu por já ter forma- tida ao longo dos
ção superior já fui projetos que eu já texto: Alana Falcão
muito criticada por participei me pos- bailarina, professora de dança
continuar indo ao sibilitaram estar em e dramaturgista

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