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Traos/Form/ Ação, São Paulo

4 : 1 5-39, 1 9 8 1 .

A PRODUÇÃO SOCIAL DA LINGUAGEM:


UMA LEITURA DO TEXTO DE MIKHAIL BAKHTIN
(V.N. VOLOCHINOV), MARXISMO
E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Lauro Frederico Barbosa da S I L V E I RA*

RESUMO: Dia n te do problema de fundamen tar criticamen te a produção semiótica no interior da


formação econômica e social capitalista e m esm o da fase inicial de implan tação do socia lism o , BAKH­
TIN, ou seu discíp ulo VOLOCHINOV, discute as proposições da lingüística de tradição sa ussuriana e
do subjetivism o individualista dos vosslerianos e, evitando o m ecanicism o pretensamen te marxista,
propõe o estabelecimento da instância social e ideológica da forma ção do discurso _ Após elaborar os
fundamentos gerais da produção social dos sign os, detém-se na análise dos discursos indiretos progres­
sivamente elaborados na litera tura burguesa a partir do século XVIII francês_

UNITERMOS: Linguagem; sign o; tem a ; en unciação; valoração; en toa ção; discurso direto; discur­
so indireto; discurso indireto livre; infra -estrutura e super estrutura; ideologia .

O. In trodução à Leitura pequeno resumo d a apresentação que Ro­


mam JAKO B S O N elaborou n o m omento
O texto que se segue constitui uma em que o texto, d u rante longo tem p o exi­
mera leitura atenta do texto de B AK H ­ lado pela censura, é trazido a públic o .
TIN . Propunha-se originariamente ser
publicado como uma simples resenha 01.01 - As condições da ela bora ção do
mas, devido à extensão que assumiu, tex t o e s u a im p or t ân cia
julgou-se conveniente que se apresentasse histórica .
como um artigo . Somente p retende, no
entanto, mediatizar a leitura d o texto d o A tradução para o p ortuguês do texto
autor russo s e m n a d a lhe acrescentar s e ­ de BAK HTIN** contribui para alimen­
não u m a certa organização mais sistemá­ tar no Brasil a discussão sobre o s proble­
tica e a explicitação de alguns conceito s . mas das relações entre linguagem e as con­
Também pretende apresentar a tra­ dições sociais de sua produção .
dução para o português d o original russo, O texto interessante de si mesmo,
louvar o empreendimento d o s tradutores guarda sobretudo u m grande valor histó­
e tecer algum comentário sobre a precarie­ rico. Publicado com a assinatura de V . N .
dade do trabalho de p u blicação e impres­ VOLOC H I N O V nos anos d e 1 92 9- 1 9 3 0
são realizado no Brasil . mas da autoria de seu mestre M I K H A I L
Sendo tal o intento, damos, de ime­ BAKH T I N , a p ó s longo perío d o d e ostra­
diato, lugar à leitura, iniciando-a com um cismo e esquecimento , ressurge desta vez

• Professor Assistente- Doutor d o Departamento de Filosofia - Faculdade d e Educação , Filosof i a , C i ê n c i a s Sociais e

da Documentação - UNE S P - 1 7 5 00 - M a rili a - SP - B r a s i l .


•• BAKHTIN, M IKHA I L (V.N . VOLOCHINOV) - Marxismo e Filosofia d a Linguagem. Problemas fundamentais
do Método Sociológico na Ciência da Linguagem, prefá c i o de R o m a n Jakob s o n , ap resentação de M a r i n a Vaguell o . T radu­
ção brasileira de M i chel Lahud e Vara Frateschi V ieira com a colaboração d e Lúcia T e ixeira W i s n ik e C a rlos Henrique D .
Chagas Cruz, Editora Hucitec, São Paulo, 1 97 9 .

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a leitura do texto de M ikhail B akhtin ( V .N. V olochinov), mar­
xismo e filoso fia da linguagem . Trans/Form/ Ação, São Paul o , 4: 1 5 -39, 1 9X I.

no Ocidente Capitalista em 1 97 2 na série em toda a Europa, a concepção estética e


Janva Linguarum d a M outon, n o mesmo lingüística de Benedetto C R O CE . O cará­
ano sendo publicada a tradução em inglês ter psicológico d o ato criativo d a expres­
em Nova Iorque . são determina o enfoque que por esta cor­
Roman JAKOBSO N , que o ferece em rente é dado ao signo lingüístico .
sua introdução estas informações, j á sa­ A corrente oposta exalta o caráter
lienta a importância d a obra n o seu cará­ objetivo e o histórico que deve assumir o
ter pioneiro quando reconhece que ela objeto imediato d a lingüístic a .
" . . . antecipa as atuais explorações reali­ Colocando-se no caudal da concepção po­
zadas no campo d a sociolingüí stica e, sitivista da ciência, restringe-se a abordar
principalmente, consegue preceder as pes­ o fenômeno lingüístico como u m " fato " ,
quisas semióticas d e hoje e fixar-lhes no­ isolando-o , enquanto obj eto d e investiga­
vas tarefas de grande envergadura . A ção, das variantes concretas de natureza
" dialética do signo " , e do signo verbal em individual ou de qualquer m arca de um
particular, que é estudada n o livro conser­ processo evolutivo de formação de natu­
va, ou melhor, adquire u m grande valor reza históric a . Ferdinand de S A U S S U R E
sugestivo à luz dos debates semióticos é reconhecidamente a figura de proa desta
contemporâneos " . (p . X) corrente e sua influência é decisiva não só
entre os lingüístas d e expressão francesa
01.02 - O Deba te com as correntes lin­ na qual destaca-se a figura de C h arles
güísticas predominantes BALL Y , como na própria lingüística rus­
sa com R . S C H O R R , W I N O G RADOFF e
Debatendo com as duas c orrentes lin­ as escolas de FORTUNATOFF e de KA­
güísticas mais importantes que lhe eram SAN . A p oética russa, contemporânea
contemporâneas e acessíveis, B A K H T I N aos trabalhos de B A K H T I N , so fre nítida
esforça-se por caracterizá-las d e m o d o su­ influência desta concepção d o signo lin­
cinto e preciso a fim d e criticá-las e expor güístico . Opondo-se à consideração psico­
dialeticamente u m a abordagem obj etiva logista do fenômeno da comunicação, es­
da produção e d a função d o signo e , em tabelece com S A U S S U R E a distinção en­
especial, do signo lingüístic o . P ara as pe­ tre " langue" e " parole" no interior d o fe­
quenas dimensões d o texto - n a presente nômeno da linguagem e concentra sua
edição em português, o texto de BAK H ­ atenção especialmente sobre a " langue "
TIN ocupa 1 70 páginas d e formato médio pois esta in depende das individualidades
- o autor consegue alcançar seu intento dos sujeitos falantes e constitui-se num
com clareza e precisão . sistema normativo de natureza form a l .
Reconhece u m a corrente que aborda
Distinguindo lapidarmente o sistema
a questão da linguagem sob o ângulo filo­
normativo da formação histórica dos ele­
sófico e histórico o qual acentua o caráter
mentos deste sistema , reconhece duas lin­
subjetivo e expressivo dos sign o s . E sta
güísticas: - a sincrônica e a diacrônica -
corrente teria sua origem nos trabalhos de
, e escolhe a primeira como o obj eto ade­
Wilhelm H U M B O L DT e teria se expandi­
quado da investigação cientí fica .
do na Alemanha graças s o b retudo ao tra­
balho Karl V O S S L E R contando com Em sua crítica a cada u m a das cor­
discípulos tais como Leo S P ITZE R , rentes, BAK H T I N procura detectar seu
LO RSK e L E R C H . N a tradição lingüísti­ erro primeiro ou nuclear - proton
ca russa, POTEBNIA e seus discípulos d a pseudos (p . 7 3 , 9 8 , 1 07 s) . A tendência
escola de Kharkov é quem desenvolve este do obj etivismo abstrato de que S A U S S U ­
tipo de abordagem , devend o -se aproxi­ R E é o m a i s notório representante, peca
mar da mesma, na I tália e p osteriormente na base por separar " langue " e " p arole " ,

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x i s m o e filosofia da ling uagem . Trans/Form/ Ação, São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 9 8 1 .

opondo radicalmente, através delas, a ins­ ções do obj etivism o lingüístico ou d o s u b ­


tituição social ao ato exclusivam ente indi­ jetivismo idealista .
vidual (p . 7 3 ) . Peca igualmente quando
atribui à diacronia e à história u m a irra­ 02.01. - O Marxism o e o fenôm en o da
cionalidade que a afasta definitivamente linguagem
do domínio da ciência (p . 7 3 ) . A tendên­
cia que aborda o fenômeno da linguagem O estabelecimento correto d o proble­
do ponto de vista subj etivista e idealista ma é o que pretende o autor realizar, p o i s
tem o mérito de " s ustentar que as enun­ e m s e u tem p o - c o m o m e s m o a i n d a h o j e
ciações isoladas con stituem a substância - a questão das f o r m a s ideológicas da re­
real da língua e que a elas está reservada a presentação , sobretudo quando p retende
função criativa na língu a " (p . 1 07) m a s equacionar o s fundamentos critico­
deixa de compreender adequadamente o filosóficos da linguagem sob a luz da aná­
problema da produção do signo ao nível lise marxista, ainda não tinha recebido
com unicativo e expressivo uma vez que um tratamento adequad o . N o s p arágrafos
reduz à subjetividade individual o ato d a iniciais do prólogo d o livro, o autor de­
fala atribuindo à enunciação, mesmo d o monstra plena consciência desta situação
signo interior, um caráter acidental, limi­ e j u stifica, diante da extrema c o m plexida­
tativo e deformador d a expressividade de do empreendimento, os lim ites de sua
subjetiva (p . 98) . exposição : . . . " P ortanto , a problemática
de nosso trabalho, que desbrava, de certa
Tomando posições opostas, am bas as form a, u m terreno ainda virgem , s ó pode,
correntes não satis fazem às exigências da evidentem ente, situar-se n u m nível bas­
natureza do fenômeno lingüístic o . Ten­ tante modesto . Não se trata de u m a análi­
dem a estabelecer cortes dem asiadamente se marxista sistemática e definitiva dos
abruptos para determ inar as feições d o problemas básicos da filoso fia d a lingua­
objeto lingüí stico, q u e r separando a " lan­ gem . Tal análise só p oderia resultar de um
gue" da " parole" (pg . 7 3 ) , quer estabele­ trabalho coletivo de grande fôleg o . De
cendo uma estranheza essencial entre o nossa parte, tivemos que nos restringir à
conteúdo interior e a o bjetivação exterior, simples tarefa de esboçar as orien ta ções
chegando às exacerbações românticas de de base que u m a reflexão aprofundada
TCHUTC H E V ao d izer que " O pensa­ sobre a linguagem deveria seguir e o s
mento expresso pela palavra é u m a menti­ procedim en tos m etodológicos a partir d o s
ra" ou de FET ao exclamar "Oh, se pelo quais esta re flexão d e v e estabelecer-se p a ­
menos alguém pudesse exprimir a alma r a abordar os problemas concretos da l i n ­
sem palavras " . (p . 97 n. o 1) Desconhecem güística" . (p . 1 1 )
o caráter social da produção do signo de­
term inante do fenômeno semiótic o , e em Para realizar esta tarefa tem se con­
particular do fen ômeno lingüístic o , não frontar no próprio seio d o s trabalhos que
só na instância da exteriorização sob a desenvolvem o pensamento m arxista, c o m
forma de enunciados mas da próp ria for­ a s tendências reducionistas d o fenômeno
mação ao nível da consciência . (p . 1 74) lingüístico à es fera das " . . . p articulari­
dades da consciência e d o psiquism o " (p .
Somente por uma abordagem que l I ) , e com o freqüente em prego de " . . .
considere a própria formação d a cons­ categorias d o tipo m ecanicista " em
ciência no âmbito das relações sociais e domínios que, por a u sência d e estudos
que determ ine suas relações c o m a es fera mais desenvolvidos realizad o s p o r M arx e
ideológica e suas manifestações, é p o ssível Engels, encontram -se . . . " no estádio d o
definir o estatuto do sign o , e em especial materialism o mecanicista pré-dialétic o " .
do signo lingüístico , sem cair nas ab stra- (p . 1 1 )

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção s o c i a l da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ), m a r ­
x i s m o e filosofia da l i n g u agem . Trans/Form/ Ação, São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

Mas é impossível negar a i m p ortância Nela, o autor critica as p o sições que


dos problemas de filoso fia d a linguagem atribuem a precedência da consciência re­
tanto no interior d a concepção m arxista lativamente a linguagem e , conseqüente­
do mundo quanto na produção filosó fica mente, do individual subj etivo face ao so­
contemp orânea . A s m ú ltiplas implicações cial, salientando a filoso fia de W ilhelm
que o problema estabelece n o interior do DIL THEY por fundar na p sicologia a
marxismo exige u m a análise cuidadosa e a classe das ciências do espírito , as quais
atualidade candente do tratam ento do fe­ privam o mundo m aterial de qualquer
nômeno na sociedade b u rguesa, cuj a filo­ sentido e de toda signi ficação , em be­
so fia . . . " está se desenvolvendo sob o nefício de um " espírito " fora d o tempo e
signo da palavra " (p . 1 2) , requer u m a ati­ do espaço (p . 3 5 ) . Recusa igualmente a
tude crítica que elucide c o m cuidado os abordagem funcionalista do fenômeno
diversos posicionamentos e c o ntrapo n h a psíquico que separa drasticamente o con­
a o s possíveis limites e deformações d o teúdo da atividade mental da forma de
equacionamento do problem a , a real c o n ­ seu procedim ento , atribuindo o conteúdo
junção dos fatores n e l e i m plicado s . ao contexto social (ideologia) e retendo
somente a forma - o com o em oposição
D iante desta desafiante tarefa, ao o que como obj eto d a análise psico­
-

BAKHTIN propõe u m a abo rdagem em lógica. (p . 40) Reconhece porém , na pri­


três estágios sucessivos cuj a seqüência meira concepção, o m érito de não rei ficar
obedece a uma particu larização progressi­ o fenômeno psíquico na medida mesma
va . P ropõe uma d ivisão d a obra em d oze em que o toma como essencialm ente rela­
capítu los agrupados em três partes, ca­ cional , com um fen ômeno de significa­
bendo à prim eira . . . " indicar o lugar ção . A outra concepção também não é
dos problemas da filosofia d a linguagem desprovida de verdade, sobretudo quando
dentro do conjunto da visão m arxista d o atrib ui ao ideológico uma precedência so­
mundo " (p. 1 3 ) ; à segunda, desenvol­ bre o psíquico .
ver . . . " O problema da natu reza real dos
fenômenos lingüí stico s " , discutindo as Trata-se, contudo, de posições atra­
questões " d a evolução da língua, da inte­ vessad as por radical parcialidade a qual
ração verbal, da com preensão e o proble­ deforma, de um o u outro modo, o estatu­
ma da significaçã o " (p . 1 3 ) ; e à terceira, to do psíquico , do semiótico e do ideoló­
o estudo concreto de uma questão de lin­ gic o .
guagem que, segundo o autor, só recebe
um tratam ento éldequado quando aborda­ N a con stante alternância entre o p s i ­
do por uma teoria sintática fundamentada cologismo redutor de t o d a a atividade
numa filosofia que equacione a produção sígnica à expressão da individualidade
social dos signos lingüístic o s . Trata-se da subjetiva e do anti-psicologismo q u e sub­
análise das refrações diversas q u e assume, trai qualquer atividade interior da cons­
na produção literária, o discurso de ciência, denuncia B A K H T I N o con flito
ou trem e, em especial, do discurso indire­ no qual se debate o pensamento burguês e
to livre . julga poder afirmar que " . . . a filoso fia
burguesa até o momento não resolveu o
02.02. Linguagem, consciência e problema das relações entre p sicologia e
ideologia ideologia . (p . 43)

Somente uma abordagem crítica que


As relações en tre linguage m , cons­ dialetise ambas as posições colocará cor­
ciência e ideologia con stituem o objeto d a retamente a qu estão do signo e d a cons­
primeira parte . ciência, da psicologia e da ideologia .

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SILVEIRA, L.F.B. da. - A produção social da linguagem: uma leitura do texto de Mikhail Bakhtin (V.N. VOlochinov), mar­
xismo e filosofia da linguagem. Trans/Form/ Ação, São Paulo, 4: 15-39, 1981.

Partindo da proposição que o signo é panhada de uma refração verbal" (p.


condição necessária para a existência da 24). Deste modo pode BAKHTIN con­
ideologia, BAKHTIN afirma, em concor­ cluir no final do 1. o capítulo, que a "pala­
dância com o pensamento de MARX, que vra é o objeto fundamental do estudo das
a consciência só pode surgir e se afirmar ideologias" e é da análise filosófica de seu
como realidade mediante a encarnação estatuto e de seu processo de formação,
material em signos. (p. 19) Como o signo que o marxismo poderá elaborar uma
se instaura num processo de interação so­ crítica da ideologia.
cial, a consciência é um fato sócio­
A tradição marxista, porém, não per­
ideológico.
mite que a análise da linguagem e, por
A consciência adquire forma e exis­ conseqüência, das relações entre consciên­
tência nos signos criados por um grupo cia e ideologia se faça sem que se esclare­
organizado no curso de suas relações so­ çam as condições de determinação da
ciais. Os signos são o alimento da cons­ ideologia. A tendência a um simplismo
ciência individual, a matéria de seu desen­ exagerado ronda constantemente a abor­
volvimento, e nela vê refletidas sua lógica dagem d a s f o r m a s i d e o l ó g i c a s ,
e suas leis. A lógica da consciência é a ló­ desfigurando-as. A determin(\ção das for­
gica da comunicação ideológica, da inte­ mas de representação da consciência ou
ração semiótica de um grupo social. De das superestruturas tem com freqüência
modo que, se privarem a consciência de assumido a forma de uma causalidade de
seu conteúdo semiótico e ideológico, dela tipo mecanicista. Para bem equacionar o
não sobra nada. (cf. p. 2 1) problema desta determinação, torna-se
necessário, no dizer do autor, "...seguir
Devido a sua pureza e neutralidade, as diversas esferas de influência reciproca
ou seja, devido ao fato de constituir-se so­ e todas as transformações..." (p. 25) das
mente como signo, não possuindo outro relações materiais da produção e dos ele­
uso senão o semiótico e por poder preen­ mentos do conjunto único e indivisível
cher qualquer espécie de função ideológi­ que constitui a esfera ideológica como
ca e mesmo por somente exigir o próprio uma totalidade. É no estudo do material
organismo humano como meio de sua verbal, - sendo a palavra um indicador
produção, a palavra é assumida pelo au­ sensível das relações sociais, capaz de re­
tor como a classe privilegiada dos signos presentar as mais inúmeras fases transitó­
para a análise das relações entre consciên­ rias das mudanças sociais antes que, pelo
cia e ideologia, quer ao nível interior à resultado de uma acumulação quantitati­
própria consciência - a constituição do va, surja uma forma ideológica nova e
discurso interior - quer ao nível de suas acabada -, que a forma desta determina­
manifestações exteriores:... "como ins­ ção poderá ser explicitada.
trumento da consciência, a palavra fun­
ciona como elemento especial que acom­ No segundo capítulo, assume
panha toda criação ideológica, seja ela BAKHTIN o conceito de Psicologia do
qual for". (p. 23) Presente em todos os corpo social, elaborado anteriormente
estágios e em todas as dimensões da for­ por PLEKHÂNOV, como "o elo de liga­
mação da consciência e sendo profunda­ ção entre a estrutura sócio-política e a
mente maleável em sua formação, ideologia no sentido estrito (ciência, arte,
constitui-se o signo lingüístico no indica­ etc" (p. 27) e que, sempre se materiali­
dor mais adequado das configurações as­ zando sob forma de interação semiótica
sumidas pela consciência em seu processo - especialmente verbal - constitui-se no
de representar: "toda refração ideológica meio ambiente inicial dos atos da fala. Tal
do ser em processo de formação é acom- conceito manifesta-se nos diversos aspec-

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M ik h a i l B a k h t i n (V . N . V ol o c h i n o v l , m ar­
xismo e filoso fia da l i n g u agem . Trans/Fo'rm/Ação, S ã o P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 ..

tos da " enunciação " sob a forma de d i fe­ decorre o processo evolutivo d o signo
rentes modos de discurso (internos e ex­ apesar da resistência d a classe dom inante
ternos) sensíveis as m u danças sociais à s que tenta preservar nos signos o valor d a
quais se vinculam ( p . 2 8 ) verdade de o n t e m como s e n d o v á l i d o hoje
C o m o processo a t i v o de representa­ em dia; valoração que ela impôs quando
ção, deve ser estudado não s ó em seu c o n ­ se sobrep ôs à classe que antes a d o minava
teúdo - nos tem as atualizados n u m certo e que agora tornou indefinidamente está­
momento -, mas nos tip o s e formas c o n ­ vel .
cretas que p l a s m a m e s s e s tem a s . Descaracterizando a dinâmica do
Estas form as, através de sua tipolo­ processo de significação e valoração, nu­
gia, devem ser estudadas pelo m arxis m o , ma tentativa inútil de resistir à s m udanças
pois a elas correspondem c o m o determ i­ sociais , salienta-se o caráter refratário d o
nantes, as relações de produ ção e a estru­ signo n o s limites d a ideologia dominante.
tura sócio-política d o m omento histórico A crise dialética d o signo , disfarçada
em que surgem . (p. 29) em muitos momentos da vida social ,
Só pelo estudo d a m ú tua i n fluência revela-se plenamente nos períodos revolu­
do signo e d o ser, da c o m plexa es fera da cionários (p . 3 3 ) .
rep resentação e da es fera não m e n o s c o m ­
A fim d e insistir n o c aráter funda­
plexa d a s relações de p r o d u ç ã o e d a estru­
mentalmente social da produção d o signo
tura sócio-política de q u e a c o n sciência é
e, por conseqüência, da consciência, é que
consciência, pode-se, segun d o o autor,
BAK H T I N , n o 3 . o capítul o , estabelece a
clarificar a determinação causal d o signo '
já mencionada d iscussão com as correntes
pelo ser . D eterm inação d e modo algum
de pensamento que, o u atribuem à cons­
transparente ao nível da representaçã o ,
ciência individual subj etiva prioridade e
m a s refratada dialeticamente n o sign o .
antecedência face ao signo, ou desqualifi­
O signo retrata o ser . Traz as m arcas cam qualquer instância instauradora de
do horizonte social de sua época e dos significação à consciência .
grupos sociais determ inados q u e o produ­
Os fundamentos de u m a psicologia
zem . Mas sempre atravessado pelas valo­
objetiva não podem ser buscados nas
rações sociais atrib uídas aos objetos, sem­
áreas da fisiologia ou da biologia onde o
pre produzirá, na medida mesma em q u e
indivíduo é visto como um mero o rganis­
s e constitui em elemento de c o m u nicação
mo mas na sociologia, onde a formação
entre os grupos, refrações d o ser que sig­
da consciência e de sua expressão é consi­
nifica . (p . 29s) .
derada como o resultado das interações
Como na sociedade de classe há con­ sociai s .
trad ições que a atravessam estruturamen­ N ã o há p s i q u i s m o sem m aterial se­
te, as valorações sociais atribuídas aos ob­ miótico . A atividade psíquica i m plica na
jetos reproduzem estas c o n tradições . Co­ expressão semiótica entre o organis m o e o
mo porém a mesma linguagem atua c o m o meio exterior, e, por conseguinte, deve ser
meio de comunicação entre o s diversos analisada como u m sign o . (p. 34s)
grupos sociais, B A K H T I N ( p . 3 2 ) salien­
ta a não coextensividade entre classe so­ A significação, contrariamente à p o ­
cial e comunidade semiótica, decorrendo sição de D I L T H E Y , é v i s t a p o r BAK H ­
daí que " . . . em todo signo ideológico TIN, não como u m a pura expressão d o
confrontam -se í n d ices de valor c ontradi­ "espírito " , m a s como função d o signo e
tórios" . O signo é a arena onde se desen­ não pode ser representada c o m o indepen­
volve a luta de classes . D este ,c o n fronto dente dele . (p . 3 5 )

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xismo e filosofia da l i n g u agem . Trans/Form/ Ação, S ã o P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

Opondo-se, portan to , a u m a visão gicamente considerado . O p rocess o d a i n ­


dicotômica que opõe psiquismo iriterior e dividualização ao n í v e l d a con sciência
relações sociais - de natureza ideológica constitui u m fenômeno s ó c i o -ideológico
-, o autor pode afirmar que "a passagem determ inado historicam ente _ (p_ 44)
da atividade m ental interior oc orre no O signo interior distingue-se do signo
quadro de u m mesmo domínio q ualitati­ exterior não pela sua natu reza m a s pelo
vo, e se apresenta como uma simples m u ­ seu destinatário _ Trata-se d e u m movi­
dança quantitativa " (p. 3 8 ) E pode con­ mento dirigido ao próprio orga n i s m o e
cluir que a palavra é o fundamento da vi­ determina-se no contexto de sua indivi­
da interior . dualidad e . Esta determ inação, p o rém , se
Esta crítica, se é dirigida as posições faz pela totalidade das condições vitais e
que defendem a psicologia c o m o funda­ sociais que constituem esta individualida­
mento das " ciências d o espírito " , passa a de e só é captado através d o s signos ideo­
se opor tam bém à psicologia funcionalis­ lógicos, os quais se esclarecem p o r oposi­
ta, embora esta recuse ao espírito qual­ ção a outros sign o s _ A interioridade não é
quer estatuto privilegiado ou m e s m o qual­ inefável, sua explicitação se faz necessária
quer consciência ao nível d o psiquismo in­ para sua plena constituição e tende, por
dividuaL Aproxim ando o psiquismo d o conseqüência, a assumir uma forma se­
modo de funcionar de qualquer organis­ miótica, obj eto de o b servação exteri o r , a
mo que opera sobre u m conteúdo que lhe qual implica uma situação social determi­
é estranho, rea firma p o r u m encaminha­ nada . (p . 45 -48)
mento oposto ao idealismo diltheyano a
Se, porém , o discurso interior se rea­
separação igualmente radical entre o liza no interior d o d o m í n i o semiótic o ,
psíquico e o ideológico, a esfera mental e nem por isso é analisável adequadamente
a esfera sociaL O p õ e , - ao nível ideológi­ pelas categorias lingüí sticas tradicionais
co -, se bem que sem a necessária preci­ de c a r á t e r e s t r i t a m e n t e a n a l í t i c o ­
são conceitual, ao psiquismo individual elementaL Suas formas m í n i m a s são m o ­
(orgânico) , algo c o m o u m a " c onsciência nólogos completos e réplicas de u m diálo­
global" caudatária da " c o n sciência trans­ go sem que laços gramaticais unam essas
cedental " kantiana _ (p _ 40ss)
réplicas . Suas ligações seguem leis de con­
Propondo a superação dessas posi­ vergência apreciativa de natureza emocio­
'ções antagônicas através da crítica da fa­ nai e leis próprias de concentrações de
lha comum a ambas: a separação entre in­ diálogos em estrita dependência das con­
dividuai e social o u ideológico c o m o ins­ dições históricas d a situação social e d o
tâncias mutuamente irred utíveis, BAKH­ curso programático da existência _ (p _
TIN vai rever o próprio estatuto d o indivi­ 49s)
duai e, por conseqüência, o s d a interiori­ É , conseqüentemente, no campo d o
dade subjetiva e da exteriorização ideoló­ signo reconhecido c o m o unidade inviolá­
gica _ Assum indo a existência d o discurso vel de uma forma e de u m conteúdo so­
interior e do discurso exterior, não vai cialmente determináveis, o u sej a , ao nível
opô-los como domínios antagônicos e ir­ de seu tem a , que as fron teiras entre o
reconciliáveis, mas vai neles rec on hecer psíquico e o ideológico p o d erão ser deli­
duas instâncias de u m processo único as mitadas .
quais mantêm entre si uma interação dia­
O signo ideológico tem vida na medi­
lética _
da em que ele se realiza n o psiquismo e ,
O social não se opõe ao individual reciprocamente , a realidade psíquica vive
enquanto pessoa mas ao natural, o u sej a, sustentada pelo suporte ideológic o . ( p .
ao individual enquanto organismo biolo- 50) .

21
S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção s o c i a l da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do tex to de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ) , m a r ­
x i s m o e filosofia da l i n g uagem . T r a n s / F o r m / A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 -3 9 , 1 9 8 1 .

Esta mútua implicação rea liza-se, p o ­ divíduos historicamente determ inados e


rém , de uma maneira estritamente dialéti­ em que o fator ideológico e o fator expres­
ca: pela obliteração e destruição d o s pólos sivo não se contrapõem como In stâncias
para recip rocamente se e fetivarem , antagôn icas, mas como dimensões que in­
teragem con stantemente na produção do
Assim , term inando a argumentação
fenômeno integral semiótic o .
do 3 , o capítulo e com ele c o m p letan d o a
apresentação do m o d o c o m o o pensamen­ A questão que s e coloca é d e esclare­
to dialético materialista deve instaurar a cer as relações precisas entre estas instân­
questão da produção da linguagem , cias, definindo o s elementos que c o m ­
BAKHTIN considera que o signo interior põem o fenômen o . E x i g e u m a determ ina­
deve ser experimentado subj etivam ente ção clara do elemento lingüí stico em que
para se tornar signo ideológic o ; devend o , deve se basear a análise ; o modo de sua
por s u a vez, o signo ideológico integrar-se formação ; suas dimensões signi ficantes
no domínio dos signos interiores para per­ para o estu d o ; o grau de estruturação que
manecer vivo, ev i tando assu m i r " . . . o es­ apresenta nas diversas relações d o sujeito
tatuto honorí fico de u m a incom preensível com seu auditório e o grau de significân­
relíquia de m useu " , signo morto, objeto cia que assume na compreensão dos fato­
da filologia tradicional . (p . 5 1 ) res sociais que determ inam sua produção .
Dedicando o capítulo q uarto do li­
02.03. - Dialética e Lingüística vro, - o primeiro que compoe a segunda
parte , à exposição das duas c orrentes
-

Nos quatro capítulos da segunda par­ que dividem a abordagem do fenômeno


te, pretende B AK H T I N determinar a na­ da linguagem , reserva B A K H T I N os três
tureza do obj eto da ciência da linguagem outros capí tulos à crítica de cada uma de­
e o tipo de abordagem que deve esta ciên­ las e à exposição da abordagem que lhe
cia realizar para apreen dê-lo adequada­ parece mais adequad a . O capítulo quinto
mente . dedica-se a refutar as propostas d o " obje­
É no contexto da discussão c o m a tivismo abstrato " ; o seguinte, aquelas
concepção " obj etivista abstra t a " e " su b ­ formuladas pelo " subj etivismo idealista"
jetivista idealista" da linguagem e da pró­ e o último a definir p o sitivamente a natu­
pria ciência lingüística, que a propo sta reza e o estatuto da linguagem , tendo por
que parece co rreta a B A K H T I N , vai se unidade a enunciação .
elaborar . O núcleo da crítica, como já se
mencionou, é o estabelecimento em a m ­ 02. 03 . 0 1 . - Crítica ao o bje tivism o
bas a s tendências de u m a dicotomia radi­ abstrato
cal entre o indivíduo e o meio institucio­
nal onde se encontra inserid o ; dicotomia Do " objetivis m o ab strato " e das teo­
que, desconsiderando ora u m a instância, rias lingüísticas dele caudatárias, a crí tica
ora a outra, reduz o fenômeno d a lingua­ fundamental é o fato de tomar a língua
gem a uma mera expressão da subj etivida­ como um sistema normativo sincrônico e
de individual ou elege a língua, enquanto nela encontrar o objeto da ciência da lin­
instituição social, c o m o único objeto guagem .
passível de um estu d o cientí fico e sistemá­ Seu caráter normativo para a c o m u ­
tico. nidade dos falantes é absolutamente fal­
A tese defendida p o r BAKHTIN é a so .
de que a linguagem s o m ente p o d e ser ana­ O sistema lingüístico é produto de
lisada como uma produção concreta dos uma reflexão abstrata sobre a língua, não
atos da fala, atos estes produzidos por in- procede do locutor nativo e não serve aos

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u a ge m : u m a l e i t u ra do texto de M i k h a i l B a k h t i n (V . N . V o l oc h i n o v l, m a r ­
x i s m o e filosofia da l i n g u agem . T r a n s / F o r m l A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 9 8 1 .

propósitos imediatos da produção (p . 7 8 ) . Não se limitand o , porém , a denun­


Também o interlocutor dele n ã o se serve ciar a inadeq uação desta corrente lin­
para a descodi ficação das m ensagen s . Na güística, inadequação q u e volta a ser
descodi ficação , diz o autor, o essencial apontada n o final d o capítulo quando in­
não consiste em reconhecer a forma utili­ siste que o sistema de formas não pode
zada, mas compreendê-Ia n u m contexto servir de base para a com preensão e expli­
concreto preciso ; o essencial é com preen­ cação dos fatos lingüísticos enquanto fa­
der sua signi ficação numa enunciação tos vivos e em evolução, mas que ele n o s
particular . ( p _ 79) distancia da validade evolutiva e v i v a d a
língua, de s u a s funções sociais, apesar d a s
Distinguindo o sinal d o signo, e atri­ freqüentes preten sões a u m a significação
buindo aos sinais as características da sociológica que estas abordagens preten­
classe dos estímulos mais o u menos c o m ­ dem apresentar (p . 94) , BAKHTIN
plexos q u e atingem a sensibilidade, só fa­ propõe-se penetrar nas razões históricas e
ce a eles, reconhece a atitude d o suj eito de ideológicas que explicam esta visualização
meramente os identi ficar e , somente a do problem a .
eles, a imobilidade, diríam o s , de vincula­
ção aos fatos bruto s . O s signos são obje­ Aproximando-se de Nicolas M A R R ,
tos de compreensão e não de mera identi­ d o qual integra em s u a exposição trec h o s
ficação, e são descodificados pela m obili­ das "As Etapas d a T e o r i a J afética( l 926)
dade que os caracteriza n o interior do aponta, o autor, a antiga origem desta
contexto em que concretamente se inse­ concepção de língua presente nas propos­
rem . tas contem porânea s . A lingüí stica é filha
da filologia que se preocupava em deci­
Somente uma língua estrangeira, frar monumentos antigos separados d o
pouco dominada pelo descodificador, contexto concreto de sua produção . N o s
apresenta-se-Ihe c o m o u m objeto a ser trabalhos filológic o s , encontra o s ances­
identificado e reconhecido . . . "A assim ila­ trais de seu método de trabalho e das cate­
ção ideal de uma língua dá-se quando o si­ gorias que utiliza . O texto se lhe apresenta
nal é completamente absorvido pelo signo como uma enunciação m o n ológica, cuj a
e o reconhec imento pela com preensão " . compreensão assume um caráter eminen­
(p . 80) temente passivo de identificaçã o , reco­
nhecimento, e decifração e "a língua se
No processo de comunicação entre apresenta como estrangeira para o lin­
membros de uma comunidade lingüística, gülsta " . ( p . 8 3 s)
não se percebe o caráter coercitivo das
formas lingü ísticas (p. 80) . E m condi­ E mais ainda: a lingüí stica e sua an­
ções normais, o critério da correção lin­ cestral, a filologia, e com ela a própria Fi­
güística cede lugar ao critério permanente loso fia e Teologia, trazem a marca da re­
ideológico de que toda a palavra, na for­ produção de uma estrutura social depos­
ma da enunciação , está in separavelmente ta . A lingüística é marcada não só pelo
carregada . Im porta-nos menos a correção espírito da pesquisa de tex tos antigos, es­
da enunciação do que seu valor de verda­ trangeiros, mas pelo ensin o . D a leitura de
de ou de mentira, seu caráter poético, vul­ textos mítico s , da pesquisa d o " l o g o s " e
gar, etc . A eleição da língua como situa­ da interpretação das Escrituras , este filão
ção normativa como objeto d a lingüística, do estudo da linguagem está reservado
falseia radicalmente sua pretensão expli­ aos sacerd otes, às autoridades d o saber .
cativa do fenômeno da comunicação ver­ Penetrar no " m istéri o " do texto e ensinar
bal e não j u stifica o método ab strativo sua significação , é uma função de imposi­
que estas teorias pretendem adotar . ção de um poder . O caráter norm ativo da

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A p r o d u ção s o c i a l da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o loc h i n o v ) , m a r ­
x i s m o e f i l o s o f i a da li nguagem . T r a n s / F o r m l A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

língua traz consigo a marca d o exerClCIO contrário, é a expressão que organiza a


deste poder . P ara o exercício desta dupla atividade mental, q u e a m odela e determi­
função : - uma heurística, a outra peda­ na sua orientação " . (p . 9 8 )
gógica - , instauram-se as categorias q u e
Todos os aspectos da expressão­
até h o j e constituem o arcabouço da l i n ­
enunciação serão determ inados pela situa­
güística e d e finem suas t r ê s g r a n d e s d i v i ­
ção social mais imediata d o ato da fal a .
sões : a fonética, a gramática e o léxic o ,
todas elas analíticas e fraccionantes da Toda a palavra é dialógica e supõe
enunciação . (p . 84s) um certo horizon te social q u e determina a
criação ideológica do grupo social e da
Pela exaltação d o texto críptic o , da época a que pertence . Este é o horizonte
língua estrangeira p o rtadora d e santida­ contemporâneo da produção literária,
de, de poder, força e verdade,
cientí fica, moral e j urídic a .
estab eleceu-se a desquali ficação da língua
na tiva destituída d e " m i stéri o " e podería­ O m u n d o interior t e m u m auditório
mos deduzir, da c o m u nidade q u e só a ela SOCIal em cuj a atmos fera se contraem as
tem acesso . deduções interiores, as m otivações, as
apreciações , etc .
Desvinculada da história de sua for­
mação e da consciência a ela ligada, a O mundo interior, - a subj etividade
língua torna-se mera norma ab strata na -, é plasmado social e ideologicamente .
qual só se penetra passiva e o b ediente­ O interlocutor, e por con seqüência, o ato
mente . (p . 8 6 - 8 8 ) da fala, não podem ultrapassar as frontei­
ras de uma classe e de uma época bem de­
N a base do obj etivis m o ab strato está
finidas .
a premissa de u m a visão racionalista e me­
canicista, inadequada para a co ncepção A materialização da palavra como
concreta da língua como u m fenômeno signo é determ inada pelas relações sociais
perm anentemente históric o . (p . 94-9 5 ) concretas em que se efetu a . ( p . 99)
A estrutura da atividade mental é tão
02. 03. 02 - Crítica ao "Su bjetivism o social como sua obj etivação exteri o r . O
idealista ". grau de consciência, clareza e acabamento
Se a corrente " s ubj etivista idealista " formal da atividade mental é diretamente
tem o mérito de ter nascido n o interior d o prop orcional ao grau de orientação social
pensam ento romântico-nativista e assim em que esta se situ a . ( p . 1 00)
voltar seu interesse para a língua m aterna, Fora de sua obj etivação social, de
viva procurando compreender o ato vivo sua realização material determ inada -
da expressão dos indiví d u o s , traz a falha, pelo gesto, pela palavra, pelo grito - , a
já apon tad a , de cen tralizar c o m exclusivi­ consciência é uma mera ficção . M a s , com
dade na interioridade d o sujeito a origem a obj etivação social, a con sciência torna­
da expressão e da consciência, tomando se uma força real, capaz de exercer, em re­
as expressões exteriores como simples torno, uma ação e ficaz sobre as bases eco­
marcas deformadas e degradadas desta nômicas da vida social . M a terializa-se em
subjetividade . (p. 96-98) . organizações sociais definidas e impõem-
se por uma expressão ideológica sólida ao
A esta visão , contrapõe B A K H T I N
nível da ciência, das artes, d o direito .
uma concepção essencialmente social e
Mesmo não tendo alcançado tal nível de
dialógica do fen ômeno lingüí stico e d a
organização , a consciência é originaria­
própria formação da subj etividade .
mente um fato social ; caso contrário , este
" N ão é a atividade mental q u e orga­ salto ao social nunca se realizaria (p .
niza a expressão, a firma o autor, mas, ao 1 04)

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a leitura do texto de M i k h ai l B a k h ti n ( V . N . V o l o c h i n o v )' m ar-
xismo e filosofia d a linguagem . Trans/Form/ Ação, São Paulo, 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

É numa referência con stante à ideo­ no comum da situação d e produção , Não


logia do cotidian o , n ível m e n o s sistemati­ será através d a identificação . d a língua
zado da esfera ideológica, q u e a ciência, a com o sistema lingüístico abstrato das for­
arte, a religião recebem sua avaliação mas da língua, nem ao percebê-Ia c o m o
crítica e significação social . A avaliação emanação comprometida d o psiquismo
crítica, que é, segundo B A K H T I N , a úni­ individual dos falantes, q u e ela p oderá ser
ca razão de ser de toda produção ideológi­ adequadamente abordad a . (p . 1 1 0)
ca, opera-se na lógica da ideologia d o co­ O componente da língua q u e deve se
tidiano, colocando toda obra, por mais constituir em obj eto a partir do qual ela
sistematizada que sej a , numa situação so­ deve ser estudada, é a enunciação tomada
cial determ inada, ou sej a , n o contexto dos como um tod o , E l a con stitui a unidade
indivíduos receptores nos diversos m o ­ real da cadeia verbal e não pode ser desti­
mentos concretos da história . (p . 1 05 ) tuída do seu caráter fundamentalmente
Quanto mais pro fundamente intera­ históric o . S u a realização se dá n o curso d a
ge com as relações sociais, mais se desen­ comunicação v e r b a l , sua totalidade s e n d o
volve e se aproxima a produção da cons­ determinada pelos lim ites q u e se c o n figu­
ciência . O aperfeiçoamento da " indivi­ ram pelos pontos de contacto c o m o con­
dualidade criadora" se fará pela interação texto em que se insere (p . 1 1 0) .
mais intensa dos indivíduos com seu audi­ Reconhecendo este estatuto d a enun­
tório social . M enos sua produção depen­ ciação, pode BAKHTIN recolocar a ques­
derá de fatores meramente biográ ficos e , tão das relações entre o processo interior e
"a fortiori " , biológicos , Para a interpre­ o processo exterior da fala, entre a ativi­
tação desta produção , terá total prim azia dade mental e comu nicação social . O pro­
o método sociológic o , não o que se baseia cesso da fala, é u m processo único que
em resultados das análises estatísticas, compreende uma dimensão interior e uma
mas o que mais aprofunde e elucide a exterior . Trata-se de u m processo ininter­
complexas relações sociai s . (p . 1 07) rupto, sem começo nem fim , em que a
enunciação realizada exteriormente
A enunciaçã o , sua elaboração es­
tilística e a própria cadeia verba l , às quais constitui-se, n o d izer metafórico d o au­
se reduzem a realidade da língua, são fe­ tor, numa ilha n o oceano sem lim ites d o
discurso interior e em p r o f u n d a i n ter­
nômenos estritamente sociais e consti­
tuem elos de uma evolução históric a . For­ relação com ele . A s dimensões desta ilha,
ma e conteúdo são indivisíveis e este últi­ ou sej a, da enunciação enquanto ato de
mo não pode ser deduzido das condições esteriorização , são estabelecidas pelas exi­
do psiquismo individual . A forma essen­ gências sociais d o ambiente ideológico
cial da língua é dialógica e só pode ser es­ imediato .
clarecida sociologicamente . S e Leo S P T I ­ As condições sociais em q u e se ins­
Z E R e Otto D I E T R I C H tiveram o m érito creve a enunciação determinam a forma
de criticar a condição m o n ológica em que concreta que assumirá (p . 1 1 1 ) . Deste
era inserida a enunciação nos estu d o s lin­ modo pode concluir B A K H T I N que, " u ­
güísticos, falharam por reduzir o diálogo m a análise fecunda d a s formas d o conj u n ­
a parâmetros da individualidade subj etiva t o d e enunciações c o m o unidades reais d a
em vez de tê-lo estudado sociologicamen­ cadeia verbal só é p o ssível de u m a pers­
te . (p . 1 07s) pectiva que encare a enunciação indivi­
A língua vive e evolui historicamente duaI como u m fenômeno puram ente so­
na comunicação verbal concreta em cons­ ciológico " . (p . 1 1 2)
tante entrelaçamento com outros tipos de Cabe, portanto, à filoso fia m arxista
enunciação e cresce com eles sobre o terre- da linguagem , para não falsear ideologi-

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g uagem : u m a l e i t u r a do t e x t o de M i k h a i l B a k h t i n (V . N . V o l o c h i n o v ) m a r -
'
xismo e filosofia da l i n g u agem . T r a n s / F o r m / A ç ã o , S ã o P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 9 8 1 .

camente O fenômeno, . . . " c olocar c o m o lógico entre sUjeitos que, se c o m unican­


base d e s u a doutrina, a enunciação c o m o do, constroem sua própria consciência .
realidade da linguagem e c o m o estrutura
Se é um ato dotado de sentid o , a u m
socio-ideológica " . (p . 1 1 2 )
tempo expressivo e comunicacional, a
Esta é a tarefa que B A K H T I N se pro­ enunciação supõe, no interior do tema co­
porá realizar n o último capítulo desta par­ mo um componente necessário para a sua
te e que tentará verificar, n a seguinte, em constituição, elementos reiteráveis e idên­
um caso preciso cuj o tratam ento, sobretu­ ticos todas as vezes que são repetid o s ; ele­
do pela corrente idealista e subj etivista da mentos convencionais que perm item a in­
linguagem que p o r ele m u ito se interes­ versão efetiva entre o s agentes da fala . No
sou, caía em impasses insolúvei s . interior da concretude singular d o tema ,
estão presentes o s elementos de
02.03.04. Esboço d e uma filosofia mar­ significação .
xista da linguagem Devido a seu estatuto abstrato e con­
vencional, som ente a signi ficação é
Tomada a enunciação c o m o a unida­ passível, segundo o autor, de análise pela
de real que deve ser analisada pela ciência decomposição da enunciação n o s elemen­
da linguagem e que deve ser c o n stituída tos lingüísticos que a c o m p õe m . (p . 1 1 5 )
por uma filoso fia de linguage m , BAKH­
O tema , resumindo o texto de
TIN reconhece-a c o m o con stituída de dois
BAKHTIN, é u m sistema dinâmico e
elementos: o tema e a signi ficação .
complexo que tende a adaptar-se às condi­
Toda enunciação c o m pleta é dotada ções de um tod o , n o interior de u m pro­
de um sentido único e definid o , u m a sig­ cesso evolutiv o . É "uma reação da cons­
nificação u nitária . Este sentido é o tema ciência em devir ao ser devir " . (p . 1 1 5 )
da enunciação o qual integra c o m o u m a A significação , por sua vez, é o apa­
unidade, c o n f o r m e j á foi m e n c i o n a d o , a rato técnico utilizado para a realização do
forma e o conteúdo da enunciação . tema.
Se a enunciação é tomada c o m o u m Só há significação c o m o elemento de
todo concreto e singular, na m e d i d a em um tem a ; mas o tema só tem sentid o ,
que se constitui n o ato da fala, o tema de­ apoiado na estabilidade da significaçã o .
ve ser único, individual e não reiteráve l ; é
O tema é a efetivação de significação,
a expressão de u m a situação hi stórica
sendo esta última u m potencial socialmen­
concreta na qual tem origem e se efetua a
te disponível, som ente efetivado n o inte­
enunciação . É determ inado pelas formas
rior de um tema concreto .
lingüísticas efetivadas n o ato de sua emis­
são assim como pelos elementos não ver­ O tema precede a signi ficação pela
bais que integram a situação d a em issão . sua natureza . Se houvesse uma palavra in­
(p. 1 1 4) significante ela seria u m tema puro . M as a
A enunciação não se reduz, portanto, complexidade das relações sociais exige a
às sentenças analisadas pela lingüí stica presença de várias palavra s . Neste m o ­
tradicional . Não é u m caso de uma classe mento, tema e signi ficação se distinguem ,
abstrata de construções p o s síveis dentro se bem que sempre o tem a implique, devi­
da língua, como também não con stitui um do à concretude da situação de sua atuali­
mero recurso instrumental u tilizado pela zação, uma pluralidade de significações .
subj etividade para expressar u m a produ­ (p . 1 1 6s)
ção inefável que, só n o interior d o espíri­ Devido ao seu caráter singular e,
to, seria genuína. É u m ato concreto e dia- diríam os, plasmador da con sciência pela

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A p r o d u ção social da l i n guagem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ) , m ar­
xismo e filosofia da l i n g u agem . T r a n s / F o r m / A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , l n l .

efetiva interação que estabelece entre o s devem s e r objeto de u m a ciência que s e


agentes da f a l a , o tema não é apreendido baseie n u m a crítica dialética da produção,
por um processo de mero reconhecimento respeitando a totalidade d o fen ô m e n o .
e identi ficação . Supõe u m a forma ativa de
O sentido da totalidade de tudo que
compreensão e tem sempre em germe uma
assume importância a o s olhos de u m de­
respo sta . S ó esta resposta c o m p reensiva é
term inado grupo é, na propo sta d e
capaz de apreender o tem a . ( p . 1 1 7 )
BAKHTIN , inteiramente determ inado pe­
Situações fam iliares fazem c o m que a la expansão da in fra-estrutura econômic a .
intim idade do contexto em que se situa o
Atento , c o m o a terceira parte de
ato enunciativo permita que enunciações
Marxism o e Filosofia da linguagem vai
dispensem o uso de significações explíci­
comprovar, para não cair n a tendência in­
tas . O tema é aí realizado através da en­
terpretativa de explicar esta determinação
toação expressiva, sem o auxílio d a signi­
pelos m odelos m ecanicistas que antes de­
ficação e da articulação gramatical . O te­
nunciara c o m o comprom etendo vários
ma im plica antes de tudo u m a apreciação
trabalhos pretensam ente m arxistas, o au­
da parte do sujeito , apreciação esta que,
tor esclarece esta total determinação d o s
em muitos casos, é desprezada pelo lin­
fenômenos supraestruturais p e l a in fra­
güista tradicional, considerando-a decor­
estrutura, salientando o caráter estrita­
rente de elem entos para-lingüístico s . (p .
mente dialético desta expansão e da cor­
1 20)
respondente expansão d a es fera ideológi­
Para BAK H T I N a dimensão aprecia­ ca:
tiva deve ser integrada como preocupação "Não há nada na c o m p osição d o sen­
central e indissoc iável d o estudo da lin­ tido que possa colocar-se acima d a evolu­
guagem , devendo ser procurados seus ção , que sej a independente d o alargam en­
índices na abordagem da enunciaçã o . to dialético d o horizonte social . A socie­
A significação objetiva forma-se gra­ dade em transformação alarga-se para in­
ças à apreciação, pois é ela que indica que tegrar o ser em transformação . Nada p o ­
uma determ inada significação entrou n o d e permanecer estável n e s s e process o . É
horizonte dos interlocutores . A l í n g u a co­ por isso que a signi ficação , elemento abs­
mo fenômeno históric o , c o m o processo trato igual a si mesmo, é absorvida pelo
evolutivo, depende essencialmente d a tema , e dilacerada por suas c o n tradições
apreciação s o c i a l efetivada nas enuncia­ vivas, para retornar en fim s o b a forma de
ções . A ela se deve o papel criativo das uma significação c o m u m a estabilidade e
mudanças de significação . T o d a m u d ança uma identidade igualmente provisórias " .
de significação é uma reavaliação d o sen­ (p . 1 22)
tido e a efetivação de u m novo tem a . O tem a c o m o realidade viva,
Trata-se d o deslocamento d e u m a palavra dinamiza-se n o seio d a sociedade em
determ inada de um contexto apreciativo transformação . A significação reage devi­
para um outro . (p . 1 2 1 ) do ao seu caráter fundamentalmente está­
As mudanças relevantes a o nível d a tico e estratificante . Deste modo u m fenô ­
significação d a s enunciações c o nstituem meno de rompimento i n t e r n o d o elemento
fenômenos de pro funda inserção nas si­ convencional se estabelece n o s m omentos
tuações sociais e somente c o m o fenôme­ das revoluções sociais tendendo novamen­
nos sociais podem ser investigada s . As te a reencontrar as condições de u m a nova
avaliações realizad a s ao nível d o s grupos estabilidade . Ao nível d a enunciação, as­
sociais que efetuam tais mudanças, respei­ sim se realiza o processo d a luta d e classes
tadas a natureza e a dinâmica própria d o s e da efetivação de u m a estrutura de po­
fenômenos locucionais e com unicativo s , der .

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a leitura do texto de Mikhail Bak h t i n ( V . N . Volochinov) J mar-
xismo e filosofia da linguagem . Trans/Forml Ação , São Paulo, 4 : 1 5 -39, 1 98 1 .

02.04. Um estudo de sin taxe: o discurso esta concepção d o fenômeno da lingua­


citado gem mantém -se num nível abstrato , inca­
paz de recuperar a integridade d a enuncia­
02.04.01 O Esta tuto do Discurso Cita do ção e, consequentemente, d o discurso .
(p . 1 25 - 1 27 )
A terceira e última p arte do livro ,
A interferência d o d i s c u r s o narrativo
composta de quatro capítulo s , desenvolve
e do discurso citado recebe u m tratamento
a aplicação da concepção d e sintaxe assu­
extremamente simplista desprovido de
mida por B A K H T I N ao caso d o discurso
qualquer adequação à natureza do fenô­
citado presente especialmente na obra lite­
meno quando , por exemplo, A . M .
rária . O fenômeno é conveniente para ve­
PECHKO V S K Y reduz tal construção à
rificar e comprovar a validade d a proposi­
uma transposição do discurso direto ao
ção teórica, por tratar-se d e u m caso limi­
indireto . (p . 1 43 - 1 44) A p resenta-se, e111
te entre uma construção d e natureza gra­
outras interpretações, c o m o u m a forma
matical e de u m recurso estilístico que es­
ilógica de construção gramatical em que,
pecialmente põe à prova as c o ncepções in­
pela ausência de articulações explícitas (a
terpretativas . (p . 1 42) G ramaticistas co­
conj unção " q u e " e o s verbos introdutivos
mo TOBLER e KALE P K Y ; u m eminente
do discurso de outrem ) , s ó pode recuperar
representante d o obj etiv i s m o abstrato c o­
seu sentido extralingüisticamente . Tal é a
mo BALL Y e os partidários do subj etivis­
posição do KALEPKY concluindo por
mo idealista, L O R C H e L E R C H , segui­
· uma ocultação d o sujeito ao qual se atri­
dores das teorias d e V O S S L E R , aborda­
buiu a fala (p . 1 63 ) ou a p o s ição de
ram o problem a , procurando todos uma
BALL Y ao acusar u m a dissociação entre
explicação do discurso indireto livre, e se­
" forma lingüístic a " e " figura de pensa­
gundo o autor, falharam em seu intento .
mento " , atribuindo a prim eira ao autor e
Somente a explicação precisa e minu­ a segunda, reduzida a um pretenso
ciosa do discurso e d a enunciação como domínio do sentido ao qual índice lin­
realizações completas d o ato d a fala, em güístico algum corresponde, ao herói.
sua realização escrita, c o m o u m fenôme­ (p . I 64)
no de natureza ideológica de cunho essen­
Os vosslerianos, por sua vez, tenden­
cialmente social e capaz de formar a cons­
do constantemente a minim izar a função
ciência individual pela determinação que
lógica e racional no fenômeno d a expres­
mediatiza as condições sócio-econômicas
são lingüí stica, encontram no recurso lite­
do momento histórico que o produz, pode
rário do discurso ind ireto livre u m campo
atingir o cerne d o significado d o discurso
privilegiado para afirmar a instância sub­
citado indireto - e em especial , em sua
jetiva que se encontra na origem d a fala .
variante livre -, esclarecendo as condi­
ções das trans form ações estilísticas e d a
Eugen L E R C H e Gertraud L O R C K
produção de f o r m a s gramaticais estáveis
voltam-se ao discurso indireto livre e pro­
para sua expressão . curam compreendê-lo no domínio da ca­
Os preconceitos da lingüística con­ tegoria do vivid o , privilegiando-o entre os
temporânea, j á denunciados anteriormen­ recursos literário s . Para L O R C K , as elip­
te, afloram , ao ser analisado o discurso ci­ ses gramaticais utilizadas pelo autor pelas
tado, sobretu do na variante livre d o dis­ quais autor, herói e narrador trocam suas
curso indireto . D o m inada pela forma mo­ falas ressaltam o papel ativo d o i m aginá­
nológica do discurs o , dec o m p o ndo-o ao rio, constituem a instância criadora da
nível das orações e analisando-as c o m ca­ obra literária . É da imaginação d o autor à
tegorias sintática s redutíveis às formas imaginação do leitor que a men sagem se
elementares da m o r fologia e d a fonética, estabelece e a libertação da produção lite-

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SIL V E I R A , L . F . B d a . - A produção social da linguagem : u m a leitura do texto de M ikhail Bakhtin ( V . N . V o l o c h i n o v ), m a r­
:
XIsmo e fIloso fIa da linguagem . Trans/Form/ Ação, São Paulo, 4: 1 5 -3 9 , 1 98 1 .

rária dos rígidos esquemas lógicos impos­ to em seu Budden b r o o k , aperfeiçoand o - o


tos pela razão ao discurso é felizmente o b ­ n a Montanha M ágica _
tida pelo discurso indireto livre . ( p . 1 68 -
Não é mais a imaginação que resp on­
1 70) Nele encontra o analista u m campo
derá, para L E R C H , pela instância expres­
privilegiado para sua investigaçã o : pene­
siva da atividade literária m a s a " sensibi­
trar " no domínio d a alma d a língu a " .
lidade simpatizante " , a e mpatia (Einfüh­
(p. 1 70)
lung) p ara c o m a personagem , empatia
suscitada no próprio leito r . (p. 1 7 1 - 1 7 3 )
LERCH dedicar-se-á a u m a reconsti­
tuição histórica d a expressão literária vol­ Baseado n o caráter i m inentemente
tada à construção d o discurso citad o . sociológico e ideológico d o fenômeno lin­
Opondo sentimento à razã o , encaminha güístico e tendo p o r c o n seqüência a enun­
sua análise até o século X V I I francês ciação completa, d o tada d e tema e signifi­
quando as formas gramaticais se aperfei­ cação, como obj eto elementar, a qual se.
çoando permitem , c o m o s recursos d a insere em sua produção em discursos dia­
concordância dos temp o s verbais, d a logantes, BAKH T I N reconhece n o fenô­
omissão do verbo introdutório d o discur­ meno sintático do discurso citado a pre­
so citado, d o uso aperfeiçoado d o imper­ sença indissociável de dois aspectos estri­
feito e da p lena disposição n a escolha d o s tamente articulado s : o discurso citado é
pronom es, q u e o narrador tome p osição constituído por esquemas lingüístico s , tais
autônoma não mais se dissolvendo na ati­ como o discurso direto, o discurso indire­
vidade mental d o her ó i . L A FONT A I N E to, o discurso indireto livre p o r suas m o ­
em suas fábulas, trabalha c o m p l e n a cons­ dificações e variantes dessas m o d i fica­
ciência o discurso indireto livre, harmoni­ ções, elaboradas socialmente e interioriza­
zando a análise ab strata e a i m pressão das pela consciência d o s falantes para a
imediata, e expressando a simpatia pro­ transmissão das enunciações de o u trem n a
funda do autor c o m suas personagen s . medida em que as integra c o m o de o u ­
LA BRUY E RE consegue o b ter efeitos trem , num c ontexto narrativo coerente e
satíric o s , p r o d u z i n d o uma p s e u d o ­ de natureza imediatamente m onológic a .
obj etividade q u e de fato serve p a r a refra­ D a í propor o autor c o m o problema a
tar ironicamente todas as suas representa­ ser abordado nesse trabalho, d o tar de
ções . uma orientação sociológica o fenômeno
da transmissão d a palavra de o utrem , e
No século X I X tal recurso chega à através dele , traçar os caminhos d o méto­
perfeição , quando F L A U B E R T dardej a do sociológico em lingüí stic a . Adverte, n o
com seu olhar o que acha repugnante e entanto, q u e face ao restrito m a terial ana­
odioso, mas explorando a a m b ivalência e lisado - a presença desses recursos em
a incoerência do discurso indireto livre, textos selecionados na literatura russa - ,
joga sobre o repugnante e o odioso sua os resultados obtidos são limitados em
sensibilidade e c o m eles se identific a . Re­ sua extensividade, e que as generalizações
vela assim a incoerência d a própria atitu­ históricas de maior p orte que p orventura
de do autor . ocorrerem na exposição, terão u m caráter
Se a França aper feiçou seus recursos meramente provisório e hipoté t ico . (p .
lingüísticos para trabalhar o discurso indi­ 1 29)
reto livre, nas outras línguas o processo se o discurso citado é, genericamente, o
deu mais tardiamente _ E m nosso séc u l o , discurso no discurso, a enunciação na
porém , os outros i d i o m a s n e l e chegaram , enunciação, mas é também u m discurso
pela leitura , talvez, de autores c o m o Z o l a . sobre o discurso , a enunciação sobre a
Thom as M a n n recorre a e s t e procedimen- enunciaçã o . Daí a importância de analisar

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S I L V E I R A , L . F . B d a . - A produção s o c i a l da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o lo c h i n o v ), m a r ­
:
XIsm o e ftlosofla d a l i n g u agem . T r a n s / F o r m / A ç ã o , S ã o P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 9 R 1 .

as articulações precisas entre o discurso apreciativa n ã o se realizam diretamente


narrativo e o discurso citad o . sob as form a s sintática s , sob a s form a s ,
Quando a enunciação citada passa a por exem plo, d o discurso direto ou ind ire­
constituir o tema do discurso narrativ o , o to . Estas formas de discurso, declara o
tema autôno m o - do discurso ora citado autor, são esquem a s padronizados para a
- torna-se o tema de u m tema . (p, 1 3 0) citação do discurso de o u trem . Tais es­
quemas, contud o , s ó podem ter surgido e
A enunciação d o narrador, tendo in­ tomado forma de acordo com as tendên­
tegrado na sua c o m p o sição uma outra cias dominantes de apreensão d o discurso
enunciação, elabora regras sintátic a s , es­ de ou trem , ten do assumido u m a form a e
tilí sticas e composicionais para a s s i m ilá-Ia uma função na língua, quando então pas­
parcialmente, embora c o n servan d o , pelo sam a exercer u m a i n fluência reguladora
menos numa form a rudimentar, a auto­ - estimulante ou inibidora - sobre o de­
nomia primitiva d o discurso de outre m , senvolvimento das tendências d a apreen­
sem o q u e e l e n ã o poderia s e r c o m pleta­ são apreciativa, cuj o campo de ação é de­
mente apreendido . finido por essas form a s . (p . 1 3 3 ) . Trata­
Esta elaboraçã o , p o r m a i s ativa e se, conseqüentem ente, não de uma deter­
criativa que sej a da parte do autor do dis­ minação mecânica que geraria um círculo
curso narrativo , não se reduz quanto à vicioso ou mesmo u m a tautologia, m a s de
origem , à mera subj etividade, c o m o terá um processo dialético entre o p s icológico
ocasião BAK H T I N de denunciar a o criti­ e o ideológico e entre o individual e o so­
car não só a tendência geral d o s v o ssleria­ cial .
nos mas a própria proposta de T O B L E R "A palavra vai à palavra " . A apreen­
d e que, n u m certo m omento, o falante re­ são ativa do discurso exterior como atua­
solvesse dispor, de m o d o diverso a o tradi­ lização do fundo perceptivo d o sujeito re­
cional, a fala entre o s falantes , para isto ceptor se fará necessariamente pela me­
recorrendo a u m j og o inaudito d o s tem ­ diação do discurso interio r .
pos e modos de verbo disp oníveis na
língua . (pg . 1 6 1 - 1 62 ) . Desde a exposição O processo de compreensão e d e
inicial do estatuto d o fenômeno estu d a d o , apreciação d o discurso exterior far-se-á
o autor insiste que a s f o r m a s u s a d a s na c i ­ em dois planos inseparáveis mas que po­
tação do discurso refletem tendências b á ­ dem exercer, conforme o momento, do­
sicas e constantes d a recepção a t i v a d o minância sobre o outro . Reelaborado a o
discurso de ou trem . Tais tendências s ã o nível do discurso interior, o discurso
geradas no s e i o s o c i a l que e s c o l h e e g r a ­ apreendido sofre o processo a o qual
matiza apenas o s elementos de apreensão BAKHTIN denom ina, em seqüência a o s
ativa e apreciativa d a enunciação de ou­ trabalhos de J A K O U B I N S K Y , de " c o ­
trem que são socialmente pertinentes e mentário efetivo " . Este p r o c e s s o
constantes e que encontram seu funda­ ' constitui-se, ao menos parcialmente, n o
mento na existência econômica d e uma dizer d o autor, no fundo perceptivo d a
comunidade lingüística d a d a . (pg . 1 3 2 ) . palavra . Enquanto i s t o , prepara-se o re­
ceptor para assumir o papel de sujeito
Não cabe defender u m reducionismo
emissor, elaborando a réplica interior que
das form as d a con sciência à s c o n struções
pode vir a se exterioriza r . É c o m ela que se
sintáticas, como não cabe defender a teo­
armará o contexto narrativo d o discurso
ria especular em que a s c o n s truções se­
citad o . (p. 1 3 3 - 1 34) .
mióticas e literárias reproduzem p a s siva­
mente a s relações sociais, refratando-as, E stabelecida esta base conceitual, p o ­
quando for o caso, p o r mera resistência d e BAKHTIN encaminhar o trabalho pa­
material . As formas de apreen são ativa e ra o objeto próximo de sua pesquis a . Ci-

30
S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h t i n (V . N . V o l o c h i n o v ) , m ar­
xismo e filosofia da l i n guagem . T r a n s / F o r m l A ç ã o , S ã o P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

tando O próprio tex to, assim este objeto se texto narrativo dissolve a estrutura c o m ­
configura: . . . "o objeto verdadeiro da pes­ pacta e fechada d o d i s c u r s o cita d o .
quisa deve ser j ustamente a interação di­ Realiza-se na literatura o " estilo p ictóri­
nâmica dessas duas dimensões, o discurso co" que W O L F F L I N reconhecia n o Bar­
a transmitir e aquele que serve para roco . Neste processo de interpenetração e
transmiti-lo . N a verdade, eles s ó têm uma de abertura para a introdução de funções
existência real, só se formam e vivem atra­ mutuamente valorativas entre o discurso
vés dessa inter-relação, e não de maneira narrativo e o discurso cita d o , ora domina
isolada . O discurso citado e o c o n texto de o colorido efetivado pelo narrador n o dis­
transmissão são somente o s ter m o s de curso citad o ; ora o discurso citado tende a
uma inter-relação dinâmica . E s s a dinâmi­ dissolver o c o n texto narrativo . Aparece,
ca, por sua vez, reflete a dinâmica d a então , o narrador n o lugar d o autor, e a
inter-relação social d o s indivíduos na co­ narrativa passa a assumir a linguagem das
municação ideológica verbal . (Trata-se personagen s . D a primeira tendência, b u s ­
naturalmente, de tendências essenciais e ca BAK H T I N exem plos n a literatura
constantes dessa c o m unicação) " . (p . francesa do Renascimento d o final d o sé­
1 34) . culo X V I I I e em algumas o b ras d o século
XIX . Na literatura russa, G O G O L é o
Duas orientações c o m p õem em seus
exem plo escolhido em sua tendência natu­
fund amentos as relações entre o discurso
ralista . Da segunda, o romance d o final
narrativo e o discurso citado : o discurso
do século X I X é que melhor ilustra, aí se
direto e o discurso indireto .
destacando D O S T O I E V S K I . (p. 1 3 6 -
O primeiro se c o nstrói tendo em vista 1 3 8)
isolar o discurso de o u trem e acentuar sua Tratando-se de orientações profun­
signi ficação, evitando entremeá-la com das da com unicação social, ao nível d o
interpretações da parte d o autor d o dis­ discurso, é de fundamental i m p ortância
curso narrativo . N o quadro d o dogmatis­ considerar o fim procurado pelo c o n texto
mo racionalista aper feiçoaram-se as for­ narrativo . O discurso literário tende a tra­
mas e variantes que e fetuam tal tipo de ci­ balhar com maior su tileza esta inter­
tação . Aproxim ando BAK H T I N suas relação entre o s discursos e a tran smitir
considerações daquelas que W O L F F L I N com mais matizes as tran s formações so­
elaborara para distinguir a produção fridas pela in terorientação sócio-verbal
artí stica do Renascimento daquela que te­ entre autor e personagem . O discurso re­
ve lugar no Barroc o , na orientação que tórico é, de si m e s m o , mais atento aos di­
encaminha o discurso direto reconhece o reitos de propriedade d a palavra e à con­
"estilo linear " : aquele em que, havendo seqüente autenticidade d o discurso cita­
completa homogeneidade estilística do do. P reocupa-se sobrem o d o c o m a hierar­
texto, - falando o autor e a personagem quia social de valores e tende a evitar ré­
a mesma linguagem -, n o discurso c o n s ­ plicas e comentários a discursos prove­
truído c o m o s e n d o d o outro chega-se à nientes de enunciadores localizados n o s
máxima sobriedade e plasticidade . ( p . mais altos degraus d a escala social .
1 34- 1 36)
Deste m o d o , pode-se entender por
O segun d o , ao c ontrári o , recorre a que formas mais flexíveis de citação indi­
procedimentos con strutivo s que j u sta­ reta do discurso de o utrem , onde o
mente permitam a in filtração d e réplicas e domínio do autor permite q u e este mais
comentários do autor no discurso de o u ­ espontaneamente interfira c o m seus j ulga­
trem . Trabalha com s u tileza as citações de mentos de valor sobre o discurso citad o ,
modo que se salientem o s aspectos emoti­ tenham despontado originariamente n o s
vos e avaliativo s das enunciaçõe s . O con- gêneros menores d o classicis m o , tais c o -

31
S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A p r o d u ç ã o social da l i n g u a ge m : u m a l e i t u r a do t e x t o de M i k h ai l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ) , m ar­
x i s m o e filosofia d a l i n g u agem . Trans/Forml Ação, São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

m o a s fáb ulas d e L A F O N TA I N E . (p . integra na construção indireta a maneira


1 3 8 - 1 39) de dizer do falante citad o , podendo mes­
mo adotar recursos que, acentuando o
02. 04.02. - Esq uemas e varian tes da ci­ "estranhamento do discurso narrativo à
tação do discurso de o u trem . fala citada, dê ênfase a " c olorações " que
ressaltam os m atizes d a atitude d o próprio
Fundamentando toda a análise no fe­ autor, construindo assim uma imagem va­
nômeno concreto d a enunciação, B A K H ­ lorativa da personagem " . ( p . 1 47 - 1 50)
T I N considera o e s q u e m a de base do d i s ­
Se bem que o estudo de BAK H T I N
curso, ou sej a , o que o classifica em direto
tenha p o r m e t a a análise d o discurso indi­
ou indireto, como uma organização abs­
reto livre, não deixa de levantar variantes
trata que s ó se realiza sob a forma de va­
do discurso direto . Tal levantamento, em­
riantes específicas . Essas variantes permi­
bora sumário, contribui para salientar a
tem a acumulação das m u d anças das
especificidade daquela variante que mais
construções discursivas no curso d a histó­
lhe interessa explicitar e para, hipotetica­
ria, conduzindo à estabilização de n o s s o s
mente, esclarecer as condições que permi­
hábitos de orientação a t i v a em relação ao
tiram seu surgimento .
discurso de ou trem , hábitos que se fixarão
sob a forma de representações lingüísticas Das múltiplas concreções que pode
duráveis nos sistemas sintátic o s . assumir o discurso direto, destacam-se em
A análise dessas variantes , presentes duas etapas no texto de BAK H T I N , cinco
no discurso literári o , permite a captação classes de orientações e variantes .
das tendências evolutivas d a língua num O discurso pode ser introduzido de
momento histórico . ( p . 1 4 1 - 1 42 ) tal forma que seu tema sej a antecipado
N o discurso indireto, cuj a significa­ por um discurso ind ireto . Seus temas bási­
ção é caracterizada pela transmissão cos são previamente apresentados rece­
analítica d o d i s c u r s o d e o u t r e m , bendo do autor o colorido que pretende
estabelece-se a simultaneidade da análise ressaltar . A esta orientação, B A K H T I N
da entoação do discurso citado e de sua denom ina discurso direto prepara do .
transposição no contexto narrativ o . (p . A preparação do falante citado pode
1 44- 1 45 ) ser marcada por uma caracterização tal
Tal discurso orienta-se em duas l i ­ que se torna dispensável a significação de
nhas principai s , conforme queira salientar fala para que o leitor reconheça a " colo­
o conteúdo semântico preciso d o discurso ração" de que ela é portadora . N o teatro,
citado , ou a expressão d o falante . Daí de­ por exem plo, a caracterização d o palhaço
correm suas principais variante s , as quais predispõe a platéia à gargalhada antes
se caracterizam ao nível de enunciações , mesmo que o ator pronuncie sua fala .
por construções lingüísticas específic a s . À Trata-se do discurso direto esvazia do .
primeira variante, B A KH T I N denomina
A narrativa pode se disseminar na fa­
discurso indireto analisador do con teú do;
la do herói . A narrativa irá se apresentar
à segunda, denomina discurso indireto
como saindo da consciência das persona­
analisador da expressão . (p . 1 46- 1 47 )
gens , o autor podendo dela se d istanciar e
Enquanto a primeira retem -se n o pla­ por ela dem onstrar ironia ou desprez o . O
no temátic o , trans formando outros aspec­ discurso da personagem principal se ocul­
tos da construção em elementos integran­ tará, e as palavras da narrativa pas sarão a
tes do tema e d o próprio c o n texto narrati­ pertencer simultaneam ente, do ponto de
vo e guardando a distância que separa a vista da expressividade, a dois c ontexto s
narrativa do cita d o ; a segunda variante que se entrecruzam : o do autor-narrador

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . · A p r o d u ção social da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texlo de M i k h a i l B a k h l i n (V . N . V o l o c h i n o v J , m a r ·
xismo e filosofia da linguagem . Trans/Form l A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 · 3 9 , 1 98 1 .

que imprime ironia à fala d a personagem e uma orientação particular d a interação


e o da personagem-obj eto desta valora­ do discurso narrativo e d o discurso cita­
ção, cuj a fala, nada de irônica . Tem-se aí do, depois de expor as diversas interpreta­
uma variante especial do discurso direto . ções lingüí sticas e p sicológicas que dele
(p . 1 5 1 - 1 5 5 ) foram dadas e de discuti-las , B A K H T I N
Outras d u a s variantes serão apresen­ procura explicá-lo coerentemente com s u a
tadas: a do discurso direto retórico e a do concepção do fenômeno lingüístico e nele
discurso indireto su bstituído . Nelas, pro­ verificar a oportunidade e adequação des­
põe BAKHTIN, encontraria o discurso ta concepção .
indireto livre, condição para seu surgi­ Se foi a corrente vossleriana do " sub­
mento . jetivismo idealista" que mais se dedicou
Localizando-se na fronteira do dis­ ao estudo do fenômeno, nele reconhecen­
curso narrativo e d o discurso citado, o do notável expressão d a individualidade,
discurso direto retórico con stitui-se pela é contra seus pressupostos que o pensador
intervenção do autor na cena narrada co­ russo argumentará, retomando, em parte,
mo porta-voz do her ó i . Atravessa assim o as críticas que antes fizera à concepção
discurso citado na forma direta com u m a subjetivista e individualista d o fen ômeno
fala q u e tem por finalidade provocar a da expressão lingüística, m a s contribuin­
persuasão do leitor, ou da audiência, à fa­ do com alguns esclarecimentos de não
la do herói e se constitui em pergunta ou pouco interesse .
exclamação que conota a gravidade d a A realidade subj etiva do falante não
atitude narrada e d a f a l a citada . O autor existe fora de sua m a terialização obj etiva
pergunta, por exemplo, em nome do he­ na língu a . Fora da expressão lingüística, a
rói, numa situação que exige decisão : " o personalidade não existe nem para si nem
que fazer? " . para os outros . A personalidade interior
Pelo discurso direto substituído , subj etiva, constituindo-se numa forma de
estabelece-se um paralelismo de entoação . representação de relações sociais, é u m
Trata-se de um discurso que a persona­ ideologem a . Não p o d e , p o i s , constituir-se
gem deveria pronunciar e d o qual o autor numa base consistente para, a partir dela,
se encarrega . O discurso indireto livre co­ se estabelecer explicações de tipo causaL
nhece também um processo de superposi­
Mais ainda, seria inverter o s termos
ção de discurso s , mas no caso aqui trata­
da relação explicativa, partir da subj etivi­
do, e que exatamente se j usti fica c o m o
dade para esclarecer o fenômeno lingüísti­
discurso direto , não há inter ferência d o
co e comunicativo . O ideologema perma­
discurso narrativo s o b r e o d i s c u r s o cita­
nece informe e instável quando não for
do .
determ inado graças aos produtos mais es­
No discurso indireto livre convergem táveis e elaborados d a criação ideológic a .
dois discursos diferentemente orientados
É a língua q u e ilumina a personalida­
e o discurso citado apresenta su ficiente
de interior e a consciência; que as cria, di­
flexibilidade para resistir por trás da
ferencia e aprofunda .
transmissão valorativa efetuada pelo au­
tor (p . 1 5 5 - 1 5 8 ) . A personalidade é, do ponto de vista
de seu conteúdo interior, o tema da língua
02.04.03. -- O discurso indireto livre e esse tema desenvolve-se e varia no qua­
dro das estruturas lingüísticas mais está­
Reconhecendo no discurso indireto vei s . Deste modo pode in ferir B A K H T I N
livre uma tendência nova e p o sitiva na que não é a palavra que constitui a expres­
apreensão a tiva da enunciação de ou trem são da personalidade interior , mas, ao

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A prod ução social da linguagem : u m a leitura do texto de M ikhail Bakhtin (V . N . Volochinov), m a r­
x ismo e filoso fia da linguagem . Trans/Forml Ação, São P a u l o , 4: 1 5 -39, 1 98 1 .

contrário, esta última constitui u m a pala­ (p. 1 77), não tem o s a combinação de em­
vra contida e interiorizada . A palavra é a patia e distanciamento dentro d o s limites
expressão da com unicação social, da inte­ da alma individual . Trata-se, outrossim ,
ração social de personalidades d e finida s , de uma inter-relação especí fica entre o
d e produtores . E a s condições m ateriais discurso narrativo e o discurso citad o , de
da socialização determinam a orientação uma forma própria de apreensão ativa d o
temática e con stitutiva d a personalidade discurso de outrem na qual combinam-se
interior numa época e n u m meio d etermi­ as entoações da personagem , como empa­
nado (p . 1 74) . tia, e das entoações d o autor, como dis­
tanciamento , dentro d o s lim ites de uma
A evolução da consciência individual
mesma e única construção lingüística . A
depende da evolução d a língua, conside­
construção obj etiva do discurso não é u m
radas as estru turas gramaticais como con­
instrumento a m o r f o dependente da subje­
cretamente ideológicas . A evolução d a
tividade que se exp ri m e . É necessário le­
língua, p o r sua v e z , é determinada pela
var em conta o j ulgamento de valor ine­
evolução da c o m unicação social e de suas
rente e toda palavra viva, revelado pela
bases materiais .
acentuação e pela entoação expressiva da
A evolução da língua determina o s enunciação, donde decorre o sentido do
destirios da enunciação individual n u m discurs o .
determ inado m o m ento, s e u g r a u de resis­ É com e s t a peculiar concepção de s i n ­
tência a influência s , o grau d e diferencia­ taxe q u e p o d e BAK H T I N abordar o d i s ­
ção dos seus diversos aspectos e a nature­ curso indireto livre sem precisar reconhe­
za de sua individualização semântico­ cer sua especificidade numa franj a de ir­
verbal . Esta expressão d a individualidade racionalidade a que tanto o s vosslerianos
se faz primeiramente nas instâncias mais quanto os gramaticistas recorriam . Tra­
estáveis da língua, tanto em seus esque­ balhando com o conceito de enunciação
mas, quanto em suas variantes . A perso­ como elemento concreto da fala, o qual
nalidade do falante aparece como uma compreende u m tema não redutível à sig­
construção dotada d e estabilidade à qual nificação mas integrado igualmente por
sempre se une u m conteúdo temático par­ elementos de valoração, pode o autor ex­
ticular . plicar sua especificidade pela identifica­
Se o suj eito é o agente da enunciação , ção da palavra citada, graças às entoações
ele acontece dentro das p o ssibilidades e acentuações próprias d o herói e à orien­
concretas que a língua, como recurso de tação apreciativa d o discurs o . A í se perce­
comunicação social, lhe o ferece e a pró­ be que os acentos e as entoaçõ'es d o autor
pria enunciação reage sobre o falante na estão sendo interrompidos pelos j u lga­
configuração de sua personalidade . mentos de valor de outra pesso a . E ste
atravessar de acentuações o caracteriza
A apreciação da formação do discur­ como discurso indireto , como discurso
so indireto livre não pode, p o i s , pautar-se analítico, e o diferencia radicalmente d o
numa possível evolução d a imaginação discurso direto sub stitu í d o , no q u a l ne­
subjetiva e de sua p o s sível exaustão, c o m o nhum acento novo aparece em relação ao
pretende L O R C K reconhecer na burgue­ contexto narrativo ( p . 1 7 7 ) .
sia francesa autora d o s textos literários e
Seu caráter indireto , especialmente
que o leva a esperar que u m a renovação se
complexo, impede a encenação absoluta .
produzirá no m omento em q u e o proleta­
Somente a adaptação da prosa à leitura si­
riado começar a se expressar .
lenciosa - o que é de se notar como u m
No fenômeno lingüístico obj etivo d o fenômeno peculiar da civilização m oder­
discurso indireto l i v r e , escreve B A K H T I N na e do papel do indivíduo dela decorren-

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i nguagem : u m a l e i t u r a do tex t o de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ) , m a r­
xismo e filosofia d a l i n guagem . Trans/Forml Ação, São P a u l o , 4 : 1 5 -39, 1 98 1 .

te - tornou possível a superpo sição d o s qüências elucidativas das relações sociais.


planos e a complexidade intran smissível que permitiram seu surgimento e evolu­
oralmente de suas estruturas entoativas ção .
(p. I 7 8 ) . Ao lado de o u tras variantes expressi­
vas do discurso direto e indireto , o discur­
02 .05 . - As dim ensões sociológicas da so indireto livre implica em desenvolvi­
análise do discurso indireto mentos importantes das línguas européias
livre .
contemporâneas e denuncia u m a . . . " revi­
ravolta importante n o destino social d a
À guisa de conclusão , sem para ela
enunciação " . (p . 1 8 1 )
dedicar um capítulo à parte, B A K H T I N
proj eta sobre as relações sociais o s resul­ Colorindo e atravessando o discurso
tados obtidos pela análise d o discurso in­ citado e imiscuindo o p osicionamento d o
direto livre . autor na trama das personagens, o discur­
so indireto livre e a s variantes que lhe são
Retomando o estatuto especí fico da contemporâneas e que igualmente c o m ­
palavra como produção social, pode-se partilham do m e s m o " e stilo pictóric o "
resumir deste m o d o o primeiro m o m ento extrem ado d e discurso, somente s e impu­
das conclusões do texto : a palavra, como seram na literatura ocidental devido a u m
fenômeno ideológico por excelência, está processo de " subj etivação p r o f u n d a e g e ­
em constante evolução e reflete a seu m o ­ neralizada da palavra - enunciação ideo­
d o , m a s fielmente, todas as m u d anças e lógica" . ( p . 1 8 1 )
alterações sociais que a determinam (p .
1 80) . O núcleo semântico da palavra não
mais impera na enunciação e , c o m ele, o
Se a palavra pode ser investigada em
papel hegem ônico da asserção . A palavra
sua evolução semântica, o u na trama d a
é percebida, salvo n o caso d o s c o n textos
história do conhecimento, - da evolução
cientí ficos, como a ex pressão de u m esta­
da verdade -, ou na história d a literatu­
do subjetivo fortuito . Mesmo as ciências
ra, - na evolução da verdade na arte - ,
humanas parecem admitir o domínio da
pode também ser abordada n o estudo d a
opinião e suas proposições se impõem na
língua c o m o material ideol ógico, c o m o
medida em que se apresentam c o m o a me­
meio onde se reflete ideologicamente a
lhor solução p ossível de u m problem a . A
existência . Tais estudos levantarão o pro­
enunciação apresenta-se instável e incerta;
cesso de reflexão e d a refração da nature­
ou diríam os, provável e provisória .
za e da história na evolução d a palavra .
Na ficção, e daí a imp ortância e o de­
Pode no entanto, o estudo da palavra senvolvimento crescente d o discurso indi­
voltar-se para o s fenômenos que se pas­ reto livre, " toda a atividade verbal consis­
sam na própria palavra, quer elaborando te em distribuir a palavra d e o utrem e a
uma história da filo s o fia da palavra, palavra que parece ser a de o u trem " .
quer, no que BAKHTIN denomina, histó­ (p . 1 8 1 )
ria da palavra na palavra, onde reconhece
ter realizado seu trabalh o . Trabalha, com
efeito, a palavra na palavra e a palavra so­ A depreciação d o núcleo semântico
bre a palavra, ao analisar o s esquemas bá­ dá origem não s ó à s formas indiretas de
sicos e as variantes da citação d o discurso citação em que a carga valorativa e idios­
de outrem . sincrática d o discurso do autor predomina
sobre " o que" é dito, como d á lugar a um
Se dentre as formas concretas de cita­ processo presente, tanto na p oética q uan­
ção , voltou-se especialmente ao discurso to nas ciências da linguagem , de reificar a
indireto livre, dele tirará agora conse- palavra . O formalism o predomina na so-

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A p r o d u ção s o c i a l da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ), m ar ­
x i s m o e filosofia da lingu agem . T r a n s / F o r m l A ç ã o , S ã o P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 9 8 1 .

ciedade burguesa ocidental, assim c o m o dução supra estrutural, procura ir a o fun­


n o contexto d o m u n d o soviétic o . do do processo de produção simbólica,
A isenção q u e m antinha B A K H T I N desenvolvê-lo teoricamente e investigá-lo
no estudo do fen ô m e n o lingüístico, pro­ num caso elucidativo ' tal como é o d o dis­
curando abrangê-lo em s u a integridade curso citad o _ E n frenta resolutamente as
mas sem tomar p o sição s o b re a produção teorias mais imp ortante s , apresenta-as
social da linguagem , é finalmente p rej udi­ com respeito e rigor e as critica com admi­
cada no final do texto _ E m itindo u m j uízo rável lucidez _ Trabalha com cuidado o fe­
de valor sobre esta tendência crescente de nômeno à luz do materialis m o histórico
realização d a função temátic a , propõe o sem cair nas falhas freqüentes de u m me­
autor que se promova u m a renovação d a canicism o .
palavra ideológic a _ C a b e , a s e u v e r , u m a S e a escolha d a produção lingüística
recuperação d a palavra c o m s e u tem a i n ­ como objeto su ficiente para a com preen­
tacto, penetrada por u m a apreciação s o ­ são da produção social no domínio semió­
cial segura e categórica, que realmente tico pode ser critica d a , e se a teorização
signifique e sej a resp o n sável por aquilo do signo que procura respeitar a integri­
que diz _ É difícil dizer se tal proposta cor­ dade do fenômeno apresenta alguma obs­
responde a u m a po sição própria d o autor, curidade e insegurança, isto não retira o
disposto a interferir n o processo d a pro­ valor do texto . A eleição do texto literário
dução discursiva literária e cientí fic a , o u como lugar de verificação de u m fenôme­
s e aí n ã o se enco ntra u m a estratégia de no que atraves s a todo o domínio d a pro­
adequação a u m a p o lítica que iniciaria u m dução semiótica e cuj a análise, mesmo es­
controle do Estado n a produção ideológi­ tabelecendo restrição quanto a o valor d a
ca ; política que iria inaugurar o período inferência e da generalização, pretende
lamentável e d i ficilmente s uperável d o elucidar um fenômeno que recobre a s di­
"realismo socialista " _ versas dimensões das relações sociais ao
nível da representação ideológic a , tam­
bém fica sujeito a alguma s u speição . *
03_ O que dizer de "Marxism o e
Filosofia da Linguagem " Tomar a enunciação c o m pleta c o m o
objeto central d a lingüística e assumi-Ia,
Esta leitura, que chega a seu térm i n o , não como entidade ab strata ou dec o m ­
não pretende contrapor à propo sta de ponível e articulável num q u a d r o de p o s i ­
BAK HTIN outro modo de tratar o fenô­ ções e oposiçõe s ; c o n siderá-Ia c o m o u m
meno da produção lingüístic a _ O m érito todo complex o , integrada por componen­
do livro é indiscutível, quer pela seriedade tes gramaticais respo n sáveis pela signifi­
como aborda o tem a , quer pela originali­ cação e por componentes de valoração e
dade com que o desenvolve . Recusando a entoação e não permitir isolar somente
situação simplista de acompanhar as aná­ um deles para elaborar a teoria lingüísti­
lises anteriormente realizad a s o u de mera­ ca; trabalhar o fenômeno, por c o n seqüên­
mente aplicar a o fenômeno d a linguagem cia, ao nível d o tem a ; recuperar n o estudo
um modelo esquemático deduzido d a s te­ das regras de comp osição d a sintaxe toda
ses do materialismo histórico s o b re a pro- esta complexidade e proj etar a enunciação

• o Artigo de n o s s a a u t o r i a : A P r o d u ç ã o d o S i g n o n u m a E s t r u t u ra S ocial A n tagônica. T r a n s / F o r m l A ç ã o , S ã o P a u l o ,


3 : 8 1 -90, 1 980, dedica-se em g r a n d e p a r t e a o desen v o l v i m e n t o dessas c r i t i c a s , sobretudo n o q u e concerne a redução d o s i g n o
a o domínio do s i m b ó l i c o e a s u p e r p o s i ç ã o d a s u p e r e s t r u t u r a (de caráter i d e o l ó g i c o ) à i n fra-e s t r u t u r a ( c o n s t i t u i d a pelas rela­
ções materiai� de produção). A proposta veiculada pelo a r t i g o e encaminhar a a n á l i se das formas d e representação d a cons­
ciência através de teorias semióticas que incorporem a s e u s objetos a classe geral d o s signos r não somente os s i g n o s c o n v e n ­
cionais e q u e , c o n seq ü e n t e m e n t e , e s t e n d a m a a n á l i se d a p r o d ução semiótica até o m o m e n t o originário d o embate m a t e r i a l
d a s forças prod u t i v a s . Para o c o n h e c i m e n t o e a v a l i ação dessas c r í t i c a s remetemos o l e i t o r ao r e f e r i d o a r t i g o .

36
S I L VE I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a leitura do t e x t o de M i k h a i l B a k h t i n ( V . N . V o l o c h i n o v ) , m a r ­
x i s m o e filosofia da l i n g u agem . T r a n s / F o rm l A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 9 8 1 .

no conj unto mais complex o , e mais con­ tanto, eram classificad o s como para­
creto , do discurs o ; elucidar o s discursos lingüístico s .
como formas de natu reza essencialmente
dialógica, parece-n o s a contribuição cen­ A natUreza intrinsecamente social e
trai de BAK H T I N para o estudo da lin­ ideológica do signo lingüístic o , - assim
guagem , capaz de redim i-Io das c o n se­ como de todo fenômeno semiótico -, e
qüências de um fracionamento incapaz de as relações que c o m ele estabelece a ins­
recuperar no objeto de investigação , a in­ tância da representação da c o n sciência, é ,
tegridade do fenômen o . Deve-se ainda re­ sem dúvida, a tese mais claramente defen­
conhecer que a enunciação c o m o fenôme­ dida por BAK H T I N . D e seu d esdobra­
no íntegro , permite a recuperação integral mento, constrói-se toda a teoria. É ao
da análise m o rfológica e fonética n o s li­ nível da polêmica que o tex to se c o n fronta
mites precisos de seus objetos próprio s . com as outras c orrentes que estudam o fe­
Também a separação, freqüentemente de­ nômeno da linguagem . P or tratar-se de
nunciada, entre o signo lingüí stico neutro uma questão primeira de natureza crítico­
e integralmente artic ulado a partir de filosófica, divide definitivamente a s posi­
componentes elementares perfeitamente ções , Aceita a posição, as divergências se
localizarão ao nível d o s desdobramentos
decomponíveis e classificáveis e outros, ir­
para melhor adequação ao fenômeno e
redutíveis a uma sistematização discreta,
para melhor clarificação d o s conceito s .
- tais como o s signos figurativo s , kinési­
Basicamente a posição d e BAK H T I N é
cos e proxêmicos analógicos em sua for­
bem apresentada e se imperfeições exis­
ma e imediatamente significativos -, se­
tem , elas decorrem de seu caráter originá­
paração mais acentuada d o que dissimula­
rio às vezes u m pouco tosco em s u a for­
da num preten so reducionism o de todos
mulação . N o te-se, somente como um
os signos ao modo de se estru turar d o sig­
exem plo, a exp osição d a instância interior
no lingüístico , é corrigida n a base pela
da " apresentação ativa " , pouco analisa­
proposta de BAK H T I N . Todo o signo é
da, à qual BAK H T I N denomina " fu n d o
temá tico e essencialmente ideológic o ,
perceptiv o " . Que t a l instância se e fetue
conseqüentemente, t o d o o s i g n o é funda­
no interior da linguagem c o m o produto
mentalmente enunc iativo , e diríam o s ,
social e integre ao nível subj etivo o con­
analógico . Se tomarm o s a enunc iação e o
junto das relações sociais de natureza s i m ­
discurso como as instâncias fundamentais
bólica, está em coerência c o m seu s pressu­
para a análise mesmo de natu reza sintáti­
postos e, a partir deles, deve ser aceita,
ca, o signo lingüístico não mais se isolará
mas o processo desta apreensão suporia
como uma classe absolutamente estranha
uma análise mais clara e m i n u c i o s a . O tra­
no universo total das sem ioses: guarda balho do inconsciente, que certam ente
evidentem ente seus traço s especí fico s , não é desconhecido do autor que antes j á
apresentando-se, porém , c o m o uma reali­ dedicara um estudo à obra de F R E U D ,
zação particular de u m fenômeno geral . A não é explicitado n o livro q u e lem o s . A
possibilidade de sistem atizar d iscretamen­ articulação concreta, reconhecida pelo
te certos aspectos d o signo lingüí stico não autor como o " c omentário e fetiv o " de
mais dá conta de sua integridade e , con se­ JAKOU B I N S K I , que fornece condições
qüentem ente, não mais o discrimina es­ para a efetivação da " réplica interio r " ,
senc ialmente das outras classes de signo s . implica certamente u m conjunto d e ope­
O modo d e trabalhar o signo lingüístico rações bastante c o m plexas, não somente
proposto por BAKHTIN supera igual­ ao nível específico, - objeto da psicolo­
mente a necessidade de desconsiderar, ao gia -, mas mesmo ao nível de u m a abor­
nível da ciência, aqueles aspectos essen­ dagem filosófica , onde conhecimento, de­
ciais da comunicação verbal que, n o en- cisão e linguagem - sobretudo c o m o

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SILVEIRA, L.F.B. da. - A produção social da linguagem: uma leitura do texto de Mikhail Bakhtin (V.N. VOlochinov), mar­
xismo e filosofia da linguagem. Trans/Form/ Ação, São Paulo, 4: 15-39, 1981.

constituição do discurso interior - se re­ vista facilitar a leitura da obra. Explicita­


lacionam. Mesmo mantendo-se no nível mos os elementos fundamentais da argu­
hipotético da construção teórica, o único, mentação, sobretudo procurando recons­
certamente, que é possível de se manter tituir uma possível unidade do texto. To­
para a explicação de operações intramen­ mamos a liberdade de recontá-Io, agru­
tais, o autor deveria ter desenvolvido me­ pando as críticas às posições opostas à do
lhor sua análise. autor de modo a sistematizar melhor sua
proposta teórica e os resultados de sua
A exclusão drástica da função imagi­
análise. Numa tentativa de ressaltar esta
nativa, - ou melhor, função ao nível do
proposta, deixamos de comentar o traba­
imaginário, lugar concreto em que o acú­
lho de leitura dos textos literários ao qual
mulo de conhecimentos e aptidões passa­
o autor se dedica sobretudo ao discutir os
das já adquiridas se conjuga com a fala de
diversos esquemas e variantes de discur­
outrem para a produção do discurso inte­
sos citados.
rior e da conseqüente réplica exteriorizada
-, que contrapõe BAKHTIN à proposta
Temos finalmente a reconhecer a
de LORCK (p. 176) quando este espera­
oportunidade da tradução para o portu­
va, idealisticamente, que o proletariado
guês desta obra, assim como a seriedade
pudesse vir a assumir um papel renovador
como foi feita. Se a tradução revela cuida­
na produção dos discursos literários, pa­
do e critério, infelizmente não se pode di­
rece decorrer deste tratamento' demasia­
zer o mesmo do serviço de impressão que,
damente sumário da produção do discur­
invertendo freqüentemente linhas do tex­
so interior.
to, dificulta profundamente sua leitura.
É certo que a tese de LORCK sobre a Algumas dessas falhas conseguimos corri­
imaginação peca por uma hipertrofia do gir através da leitura atenta da obra, ou­
subjetivo, e sob este aspecto devia ser cri­ tras não conseguimos recolocar em seu
ticada por BAKHTIN. Mas o imaginário devido lugar, impossibilitando-nos recu­
com uma função ativa de estabelecer as perar a integridade do texto.
relações de causação e de significação dos
signos, organizando-os para uma nova Tais defeitos devem ser denunciados
enunciação, não poderia ser excluído sem a fim de incentivar os responsáveis pelas
maior cuidado, caso não se quisesse cair publicações feitas no Brasil a melhorar
no erro da teoria especular que caracteri­ sua qualidade.
zara o "mecanicismo" pretensamente
marxista e mesmo uma certa variante do Esperamos que a extensão demasiada
behaviorismo. desta leitura não desanime o leitor a to­
mar o texto de BAKHTIN e lê-lo com
Falhas desta ordem despontam aqui
espírito crítico e isenção face a nossa aná­
ou lá no texto de BAKHTIN, mas um ca­
lise e interpretação. O confronto de inter­
minho fica aberto a partir de "Marxismo
pretação contribui para o desenvolvimen­
e Filosofia da Linguagem" para séries ex­
to de um trabalho de intelecção do discur­
tremamente fecundas de análise do fenô­
so do autor, e em se tratando de uma obra
meno social da produção da linguagem e
que abre um espaço para investigações fu­
da literatura.
turas, tal confronto é ocasião para o aper­
Acompanhando o texto proxima­ feiçoamento da pesquisa daqueles que se
mente em suas articulações, tivemos em dedicam a esta área da produção social.

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S I L V E I R A , L . F . B . d a . - A produção social da l i n g u agem : u m a l e i t u r a do texto de M i k h a i l B a k h ti n ( V . N . V o l o c h i n o v ) , m a r ­
xismo e filosofia d a lingu agem . T r a n s / F o r m l A ç ã o , São P a u l o , 4 : 1 5 -39, 1 9 8 1 .

S I L V E I R A , L .F. B . da - The social production of language: a reading of Mikhail Bakhtin (V . N . V o l o ­


chinov) marxism a n d philosophy of language . Trans/Form/Ação, S ã o Paulo , 4 : 1 5 - 3 9 , 1 98 1 .

ABSTRACT: Faced with the problem of lying founda tions for th e semiotic production inside th e
capitalistic social and economic form a tion and even inside the first phase of the esta blishm en t of socia­
lim, Bakhtin, or his disciple Volochin o v, discusses th e propositions of Linguistics along the lin e of the
saussurian tradition and the propositions of the vosslerian individualistic s u bjectivism; he a voids the
pretendedly marxist m echanicism and proposes esta blishing the social and ideologic instance of th e for­
ma tion of discourse. A fter form ula ting th e general principles of the social production of signs, Bakh tin
analyses the indirect discourses which ha ve been gra dually ela borated in the French bourgeois litera ture
since the 1 8th century.

KE Y- WORDS: Language; sign; theme; utteran ce; valua tion; in tona tion; direct discourse; indirect
discourse; free indirect disco urse; infrastructure; superstructure; ideology.

Recebid o em 1 5/4/ 1 9 8 1 .

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