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DOI: 10.5216/sec.v13i2.

13421

Populismo e neopopulismo na
América Latina: o seu legado
nos partidos e na cultura
política

Marcello Baquero
Ph.D em Ciência Política (Florida State University)
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, Brasil
nupesal@yahoo.com

Resumo Nas democracias latino-americanas estão emergindo fenômenos que se supunham ter
desaparecido em virtude do surgimento das chamadas sociedades pós-modernas. Um
desses elementos é o neopopulismo, sobre o qual continuam a existir divergências a
respeito de sua conceitualização e impacto no processo democrático. Este artigo tem
como objetivo analisar o neopopulismo, avaliando sua origem e evolução, o impacto
nos partidos políticos e o tipo de cultura política que se constitui quando essa práxis
política está presente. O estudo, de caráter descritivo-empírico, utiliza dados de pes­
quisa tipo survey realizada em 2005, em três capitais latino-americanas, com amostras
probabilísticas. Os resultados apontam para a presença de predisposições favoráveis dos
cidadãos às figuras politicamente populares em detrimento das instituições. Sugerem-
se, como conclusão, alguns dispositivos que poderiam se constituir em caminhos
alternativos para fortalecer uma cultura política participativa e fiscalizadora dos
gestores públicos, valorizando as instâncias de mediação política convencional.

Palavras-chave: neopopulismo, América Latina, partidos, democracia, cultura po-


lítica.

Introdução

A pesar de as Ciências Sociais terem declarado o fim do populis-


mo na era da globalização e do pós-modernismo, esse fenômeno
continua vigente sob novas ou não tão novas roupagens, comprome-
tendo o fortalecimento democrático na América Latina. Desse modo,
questões que eram centrais num passado recente continuam a ser proe-
minentes nas discussões sobre a democracia contemporânea.
Nos últimos anos, por exemplo, tem se constatado uma perda de
representatividade da expressão social e, por consequência, a materia-
lização da irrelevância do campo político para a maioria dos cidadãos,
o que limita sua vontade de participar, via instituições formais, da vida
política. Ao mesmo tempo, tal situação resulta numa tendência de re-
colhimento para o privado, haja vista a não existência de fontes de
construção de identidades coletivas com base na solidariedade e em
valores objetivos universais. O cidadão individualista e egoísta, por-
tanto, renega a política na sua dimensão formal, embora dela participe.
Seu comportamento político, nessas circunstâncias, se mostra favorável
a aceitar campos privados de negociação com indivíduos e não com
instituições. Esse é o caso do neopopulismo contemporâneo.

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Assim, a América Latina continua a desafiar os Esse contexto possibilita que líderes neopopulis-
cientistas sociais a encontrar explicações para fenô- tas rompam com o marco institucional poliárquico,
menos dessa natureza, exigindo análises sob perspec- defendendo e desenvolvendo uma práxis política com
tivas diferentes dos pesquisadores. Muitos deles, ine- base em ações e discursos fortemente ancorados no
briados pelo aporte teórico do neoinstitucionalismo, líder político. O pacto social, nesse cenário, não é
concluíram, equivocadamente, que a consolidação da respeitado: tais formas de alcançar o poder dependem
democracia no continente estava plasmada em análi- mais consistentemente dos votos e apoio das classes
ses sobre os desempenhos institucionais. populares – chamadas, presentemente, de setores su-
Presentemente, sabe-se que, embora as institui- balternos – em detrimento das classes média e alta.
ções sejam imprescindíveis nas estratégias políticas A questão que se coloca, então, na pauta do pro-
dos atores, não é razoável supor que o simples fun- cesso de construção democrática é: como os novos
cionamento delas possa garantir a continuidade e a governos têm sucesso no estabelecimento de gestões
normalidade da democracia, uma vez que continua a públicas que colocam as instituições da democracia
persistir a desigualdade social. Por exemplo, se o mer- representativa em segundo plano? Na tentativa de
cado é considerado o lócus de fazer política na vida responder a essa questão, este trabalho pretende exa-
moderna, abrangendo todo o cenário social, a disputa minar os elementos que ajudam a manter governos
pelo poder passa a ocorrer entre as elites que utilizam (neo)populistas no poder numa época caracterizada
as próprias regras do mercado para alcançar seus ob- como pós-moderna ou pós-materialista. O trabalho
jetivos, negligenciando totalmente a sociedade civil e está estruturado em três partes: a primeira examina
abrindo caminho para fenômenos tais como o clien- a origem e a evolução do populismo desembocando
telismo, a corrupção e, atualmente, o neopopulismo. no neopopulismo; a segunda parte analisa o impacto
O resultado provoca o desencanto, a indiferença e a de neopopulismo nos partidos políticos; e a terceira
desconfiança das pessoas, que não reconhecem na po- parte avalia, empiricamente, aspectos da cultura po-
lítica o terreno adequado e natural do exercício de lítica associados ao fenômeno do neopopulismo. Os
sua cidadania. dados empíricos utilizados provêm principalmente de
Apesar dessa situação, o neoinstitucionalismo, pesquisa tipo survey realizada em 2005 em três cida-
associado aos critérios operacionais estabelecidos por des latino-americanas: Porto Alegre (Brasil), Mon-
Dahl (1997), fizeram com que pesquisadores na área tevidéu (Uruguai) e Santiago do Chile (Chile), com
de política comparada na América Latina voltassem amostras representativas probabilísticas de 500 entre-
sua atenção para características institucionais, como a vistas em cada cidade (Nupesal, 2005).
forma de governo (Linz; Valenzuela, 1994) e a insti- O argumento central deste trabalho é de que o
tucionalização dos sistemas partidários (Mainwaring; apoio das classes majoritárias aos líderes políticos, em
Scully, 1995), em detrimento de outras dimensões, detrimento das instituições políticas, radica em predis-
entre as quais a dimensão normativa da democracia. posições atitudinais e comportamentos influenciados
O fato é que o mistério democrático, como bem por variáveis de caráter estrutural, que promovem o
nos lembra Rouquié (1985), continua a nos rondar e a personalismo, o particularismo e práticas clientelísticas
nos estimular intelectualmente. Um desses mistérios que fomentam o fenômeno (neo)populista. A versão
é o reaparecimento do neopopulismo na época da moderna do populismo, em nossa opinião, é uma ré-
terceira onda democrática (Huntington, 1991), que plica daquilo que Faletto (1982, p. 72) identificou há
tem ocorrido apesar da existência de uma poliarquia mais de duas décadas como um populismo participati-
formal eficiente, de avanços econômicos, e de discur- vo: “o populismo continua a ser, apesar de todos seus
sos cartesianos para superá-lo. Desse modo, não só vícios, a grande experiência de participação política
compromete a moldura institucional, mas, sobretudo, popular”. Assim, não se trata de avaliar se o populismo
obstaculiza a participação política cidadã que se pau- pertence ou não ao passado, mas de compreender sua
ta por comportamentos à margem de certa raciona- presença contemporânea no processo de construção
lidade esperada na qual é imperativo que a mediação democrática da América Latina, fazendo uma retros-
institucional entre Estado e sociedade seja eficiente e pectiva sobre sua origem, evolução e conceituação.
considerada legítima pela população.
A presença desse fenômeno político se explica
em parte pela incapacidade das instituições poliárqui- O populismo e o neopopulismo
cas modernas em proporcionar, além de uma estabi-
lidade formal, um bem-estar social e econômico para
a maioria da população. Tal situação produz subcul- O termo “populismo”, como conceito teórico,
turas com uma consciência social precária que as vul- é um dos temas mais polêmicos da ciência políti-
nerabiliza a discursos demagógicos e de manipulação ca latino-americana. Nas décadas de 1930 e 1950,
de líderes populares. produziu-se no panorama político da América Lati-
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na uma mudança significativa no que diz respeito às segundo plano, lançando mão de medidas provisórias
orientações políticas dos governos da época. Surgia, e decretos-leis para governar.
nesse período, uma nova modalidade de governo – Um fator de discordância entre as várias corren-
o populismo. Na virada do milênio, esse fenômeno tes teóricas que estudam esse fenômeno político é o
reaparece e passa a ser denominado neopopulismo. papel que as massas desempenham dentro desse mo-
Alguns autores continuam a insistir em definir o vimento. Por um lado, de acordo com Debert (1979),
populismo em termos de sua base social e econômica o termo “populismo”, tanto na linguagem popular
de apoio, enquanto outros enfatizam seu conteúdo como em análises científicas, é utilizado para expres-
ideológico ou estratégia de discurso. Entretanto, o sar o fenômeno da emergência de classes populares na
fato é que o termo “populismo” tem sido aplicado vida política. Por outro lado, Smith (1978) argumenta
a um amplo conjunto de líderes e movimentos, en- que o ingresso das massas na vida política durante o
quanto alguns autores questionam se o populismo é período populista era meramente instrumental. A di-
realmente um fenômeno único e distinto. vergência de interpretações com relação ao papel das
Isto pode ser atribuído ao fato de que o conceito massas no cenário político levou o Estado populista
sobre populismo não é novo, nem teve sua gênese brasileiro, de acordo com Saes (1976, p. 32), a criar
nos países latino-americanos (o que em parte explica “um mecanismo simultâneo de integração e manipu-
a controvérsia sobre seu significado). O termo já era lação da classe operária”. Essa ambiguidade, continua
utilizado nos Estados Unidos, no século XVII, para Saes, “não deve, no entanto, ser considerada como
caracterizar a preocupação dos pequenos comercian- uma anomalia, mas como uma essência e, ao mesmo
tes rurais da época com as crises geradas pelo sistema tempo, a contradição fundamental do populismo”.
monetário. Dos argumentos acima citados deduz-se que o
O termo “populismo” também foi utilizado para populismo, como forma de governo, caracteriza-se
identificar certos movimentos políticos, e até certos muito mais pelo seu caráter manipulativo, no qual a
tipos contemporâneos de Estado, no chamado “Ter- ingerência “efetiva” das massas no processo decisó-
ceiro Mundo”. Deve-se ressaltar que, nos últimos rio do Estado está, na prática, sempre fora de consi-
anos, o termo “neopopulismo” também tem sido deração, ou tem um caráter puramente simbólico e
empregado para caracterizar partidos ou movimentos manipulativo. Nas condições atuais, o neopopulismo
políticos que operam dentro dos marcos de uma po- trabalha com um clientelismo de massas via políticas
liarquia e economia de mercado, gerando aquilo que públicas de caráter assistencialista. O apoio da popu-
Roberts (1995) chama de um novo paradoxo, qual lação continua a se centrar nos chamados setores su-
seja o surgimento de líderes personalistas que seguem balternos e/ou nas classes populares. Tal distinção visa
políticas neoliberais e, paradoxalmente, contam com demonstrar uma diferença de caráter estrutural entre
o apoio amplo da população. populismo e neopopulismo. Está além dos objetivos
Numa retrospectiva histórica conceitual sobre o deste artigo polemizar tal diferenciação conceitual,
populismo na América Latina, estudos revelam di- mas acreditamos que a mudança de nomenclatura re-
vergências em relação ao seu significado. Por exem- tórica não retrata o que realmente ocorre em nossos
plo, Weffort (1978) considera o populismo como uma países; ou seja, as classes ou setores subalternos conti-
ideologia da pequena burguesia. Já para Saes (1976), o nuam a ser os mesmos que historicamente foram ex-
populismo é visto como a ideologia das camadas mé- cluídos das políticas públicas e se constituem em massa
dias urbanas. Outros estudiosos têm analisado o po- de manobra de líderes que buscam o poder político.
pulismo em termos de situação social, estrutura social Ao contrário do que ocorreu na Europa e nos
e superestrutura ideológica. A ênfase nesses últimos Estados Unidos, comenta Di Tella (1974), na Amé-
aspectos caracterizaria o que Little (1975) denomina rica Latina não se produziram movimentos de mu-
“abordagem estrutural”. Também vem sendo carac- dança social com base nas classes médias através de
terizado como um movimento político, como uma um partido liberal, ou por um movimento operário
síndrome, como uma resposta às crises do desenvol- com base em sindicato, mas surgiu uma variedade de
vimento e como sinônimo de nacionalismo. Igual- movimentos políticos que, na ausência de um melhor
mente, o termo “populismo” tem sido aplicado a um termo, foi denominada “populismo”.
conjunto diverso de situações contextuais, a partir de Um dos elementos que favoreceram a emergên-
múltiplas perspectivas teóricas: a perspectiva histó- cia de movimentos populistas nessas nações foram
rico-sociológica (Germani; Di Tella; Ianni, 1973), a as precárias condições estruturais, de ordem econô-
perspectiva econômica (Dornbusch; Edwards, 1991), mico-social. Os líderes populistas capitalizaram, ha-
a perspectiva ideológica (Laclau, 1977) e a perspectiva bilmente, as crises econômicas, desenvolvendo um
política (Franco; Cotler; Rochabrún, 1991). Nas duas discurso político que “sensibilizava” as massas, em-
últimas décadas, o neopopulismo tem sido associado pregando, inclusive, alguns dos símbolos e retóricas
a líderes populares que relegam o Legislativo a um usados pelos fascistas durante os anos 1930. Essa situa­

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ção prevalece nos dias atuais, pois a situação econô- O que se pode afirmar é que, ao mesmo tempo
mica da maioria da população latino-americana con- em que os movimentos neopopulistas modernos se
tinua a ser precária, mantendo as condições para que popularizam, as aspirações e expectativas das classes
um discurso popular se consolide. emergentes de conseguir uma mobilidade social rela-
Poucos temas são, desse modo, mais centrais para tivamente rápida não se materializam. Configura-se,
a análise das democracias modernas do que a com- nesse contexto, um problema histórico das sociedades
preensão da influência das desigualdades econômicas sob esse efeito, qual seja a incapacidade real de conci-
na manutenção de traços e práxis tradicionais na po- liar o processo de crescimento econômico com uma
lítica. As disparidades sociais e econômicas criam um distribuição de renda mais adequada, capaz de satisfa-
potencial de geração de conflitos entre o que Tocque- zer às reivindicações de grupos emergentes.
ville (1998), no século XIX, identificava como os que A habilidade dos líderes neopopulistas de co-
têm e os que não têm. Nessas circunstâncias, há uma optar grupos politicamente “ameaçadores” tira toda
percepção hegemônica na opinião pública de que o e qualquer possibilidade de sucesso de organizações
governo e as instituições políticas não são merecedo- secundárias para se organizar. Assim sendo, o líder
res de confiança por sua incapacidade de processar as neopopulista se transformou (e se transforma) num
demandas sociais. A percepção, por parte da maioria agente de organização das massas em detrimento de
da população, de uma incapacidade institucional para outras organizações, tais como os partidos políticos.
resolver os problemas sociais produz, na prática, uma Leis (2008), por exemplo, na sua comparação en-
desinstitucionalização dos mecanismos de mediação tre o antigo populismo e o neopopulismo contem-
política, vulnerabilizando os setores mais frágeis da porâneo, argumenta que o primeiro não prejudicava
população para apelos demagógicos e populistas. a democracia com seu fracasso, enquanto o populis-
Desse modo, a prática política do neopopulis- mo na sua versão “neo” afeta negativamente as de-
mo – da mesma maneira que o velho populismo – se mocracias. Segundo o autor, as promessas de solução
orienta, na sua essência, pelas regras tradicionais de imediata dos problemas do país implicam, quando
dominação político-econômica. Essa práxis política da chegada do populismo ao governo, uma violência
bloqueia o acesso de novos grupos e das massas ao contra o sistema institucional estabelecido. Acrescen-
poder. Por essa razão, pode-se dizer que o populismo ta ainda que a América do Sul registra uma presença
e o neopopulismo são movimentos sem base firme cada vez mais forte do populismo e um consequen-
em nenhuma classe social específica, mas dependem, te retrocesso político. Presentemente, no âmbito da
para a sua sustentação política, do apoio de vários se- América Latina, aponta-se Hugo Chávez como a
tores das mais variadas classes, sendo a classe popular materialização do populismo contemporâneo, junto
urbana atualmente sua espinha dorsal. com seus colegas Evo Morales, na Bolívia, e Rafael
Além dessas características, outros fatores podem Correa, no Equador (Plattner, 2010).
ser apontados como vitais para que o neopopulismo Examinadas as características gerais dos movi-
surgisse com força na virada do milênio. Um deles mentos populistas, passa-se, a seguir, a analisar as ra-
foi a incapacidade (ou não desejo) dos partidos polí- zões de sua influência negativa na evolução de parti-
ticos tradicionais de se ajustarem a uma nova realida- dos nas nações latino-americanas.
de econômica em evolução. Outro elemento crucial,
e decorrente do anterior, foi a emergência de novos
grupos influentes na sociedade que reivindicavam seu Populismo e partidos políticos
espaço político-econômico.
Pelo exposto, constata-se que os movimentos
neopopulistas, de uma forma geral, superestimam Uma forma de superar os vícios de práxis neopo-
a sua capacidade de conciliação e acomodação dos pulista é a de (re)institucionalizar a participação po-
interesses divergentes. Na medida em que procu- lítica mediada pelos partidos políticos. Pressupõe-se
ram atender todo e qualquer tipo de tensão social e que os partidos modernos precisam ser fortalecidos na
política, acabam criando um governo de posiciona- sua capacidade de canalizar os interesses da sociedade
mentos políticos híbridos e limitados, principalmente perante o Estado. A reinstitucionalização de mecanis-
pela sua intenção exagerada de tentar resolver con- mos efetivos de mediação política poderá significar o
flitos de natureza histórica, através de uma política fim de iniciativas (neo)populistas. Desse modo, o que
de favoritismo e empreguismo. Nessas circunstâncias, necessita prevalecer é a ação coletiva mediada pelos
constata-se que as alterações políticas de natureza es- partidos e não a participação coletiva anômala, que
trutural não têm ocorrido como se esperava das novas ocorre em governos personalistas.
democracias, na medida em que governos populares O que precisa ser ressaltado é que a condição
de “esquerda”, têm continuado a utilizar mecanismos de precariedade econômica da maioria da população
neoliberais quando no poder. gera massas disponíveis que não atuam motivadas por
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interesses coletivos e, portanto, são facilmente mani- mo opera cooptando os membros do Legislativo para
puláveis por líderes “personalistas” e/ou “carismáti- alterar a Constituição com vistas a se manter no po-
cos”. Ao mesmo tempo, é preciso enfatizar que esse der. Geralmente, o lema utilizado para dar legitimi-
comportamento massificado, considerado anômalo dade a essa prática política é o de recorrer à “política
pelas ciências sociais, é, de fato, um comportamento da antipolítica”.
racional em virtude das circunstâncias em que ocor- Assim, as eleições continuam a ser utilizadas
re. Instituições formais de mediação política, quando como um instrumento para dar às massas a ideia de
ineficientes e combinadas com as condições econô- “estar participando” do processo políti­co. Esse tipo
micas precárias da população, geram relações sociais de manipulação deteriora as possibilidades de surgi-
que operam por meio de redes clientelísticas, nas mento de parti­dos políticos de oposição efetivos, na
quais os eleitores trocam seu apoio eleitoral por favo- medida em que não só o populismo os desprez­a, mas
res e pela obtenção de serviços essenciais (Menéndez- as próprias massas não são atraídas por organizações
-Carrión, 1988). partidárias alternativas, já que estas não têm nem es-
Essa situação não é específica de uma determi- truturas sólidas, nem melhores “programas” que o
nada época, mas acreditamos, da mesma forma que popu­l ismo.
Laclau (1977), que as práticas políticas geradas pela Outro elemento que contribuiu decisivamente
mobilização populista, longe de se constituírem para o sucesso dessa práxis política, em detrimen-
numa mistura híbrida de tradição-modernidade que, to de partidos, foi o caráter carismático dos líderes,
espera-se, se esgote com o processo de globalização, que habilmente utilizam esse elemento para conso-
na verdade se materializam numa especificidade da lidar e aumentar seu poder, para implementar suas
experiência popular de fazer política. Por essa razão, estratégias político-econômicas e sociais e para
é fundamental tentar compreender como os cidadãos manter, fora da arena política, parti­dos de oposição.
fazem política e como a decodificam, ou seja, como Essa situação continua vigente na maioria dos países
se constrói uma cultura política que gere mecanismos latino-americanos.
para o fortalecimento do neopopulismo. Igualmente não se deve esquecer de que o po-
O populismo começou como movimento pulismo tem uma forma de funcio­namento que é de
popular e, ao mesmo tempo, manteve contradições caráter corporativista. Subjacente ao corporativismo
internas e vícios políticos tradicionais. Os mecanis- está a negação de qualquer organização (partido) fora
mos empregados pelos líderes desses movimentos para das redes governamentais. Isto porque uma das ca-
conseguir o poder foram quase os mesmos utilizados racterísticas do populismo/corporativismo é a de que
para mantê-los nessa posição. Mobilizam os eleitores todo e qualquer interesse privado seja representado
das camadas populares para desequilibrar “legalmen- na política através de organizações ou instituições or-
te” as eleições, organizam passeatas em massa contra denadas hierarquicamente e controladas pelo Estado
os seus oponentes. Fazem uso extensivo do cliente- (Wynia, 1978).
lismo para recompensar seus seguidores e utilizam os Em regimes com essas características, os partidos
recursos do Estado para promover o desenvolvimento políticos não são efetivos pela forma como o proces-
econômico e estabelecer mediações entre empresários so eleitoral é operacionalizado. Isto é, a força de um
e empregados. partido nas urnas não é determinada pela plataforma
Esses elementos que se reproduzem no neopopu- partidária, mas sim pela “popularidade dos líderes
lismo constrangem o desenvolvimento de uma cul- populistas”. A utopia eleitoral dos líde­res populistas,
tura política participativa, ao mesmo tempo em que portanto, pode ser antecipada a priori, devido ao con-
deslegitimam as instituições políticas, principalmente trole que estes exercem sobre as massas populares.
os partidos políticos. Igualmente, o neopopulismo, Adi­cionem-se a esse aspecto o desapego e a descon-
da mesma forma que o populismo tradicional, ao fiança das pessoas nas instituições políticas.
invés de incentivar a constituição de partidos bem- Cabe ressaltar que, nas áreas urbanas, o cliente-
-estruturados e que desfrutem de uma continuidade, lismo se manifesta de forma diferente; isto é, o pró-
gera movimentos sociais e políticos precariamente prio contexto operacional modifica a dinâ­m ica do
organizados. Prevalece, nesse contexto, uma práxis funcionamento das relações patrão–cliente. É sabido,
política que superdimensiona a instituição presiden- por exemplo, que a maioria dos países da América
cial e não as organizações intermediárias que esta- Latina sofre de desemprego crônico. No entanto,
belecem as relações entre Estado e sociedade. Numa quase todas as pessoas nessas áreas que têm idade para
análise histórica se verifica que o populismo não in- trabalhar ganham alguma coi­sa, por menos que seja.
centivava a formação de partidos, visto que se con- “Isto é possível graças a um corpo superabundante
siderava como um movimento apolítico, cuja tarefa de empre­gos administrativos nas empresas públicas e
essencial era a de restaurar a economia, através de um privadas e também a uma política de inver­são públi-
fervoroso nacionalismo. No presente, o neopopulis- ca que permite empregar, na construção, a mão-de-

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-obra excedente de caráter manual” (Ionescu; Gell- vitáveis em curto prazo, para a consecução de seus
ner, 1970, p. 46). objetivos. A justificativa para esse tipo de compor-
Analisado dessa forma, o neopopulismo é um tamento tem sido buscada na analogia proposta por
movimento pragmá­t ico, caracterizado por uma ambi- Weber (1999) sobre a ética da convicção, vis-à-vis a
guidade ideológica, forçado a adotar ideias imediatis­ ética da responsabilidade, a qual permite que con-
tas, operacionalizadas e implantadas id eias na efeti- vicções (ideológicas) possam ser substituídas por um
vação de objetivos em curto prazo. bem maior (o país), sem representar algum tipo de
Dos pontos já discutidos pode-se concluir que comprometimento ético ou moral. Com base nes-
a experiência po­pulista na América Latina tem de- se princípio, a convivência do neopopulismo com o
monstrado que, na medida em que “eliminou” o neo­liberalismo é considerada normal.
patrão tradicional (caudilho ou coronel), o próprio Na área política, como foi observado anterior-
líder do mo­v imento assumiu o papel do patrão, pelo mente, o pior de todos os ma­les, no nosso entender, foi
menos até que a síndrome de dependência fosse su- o aspecto negativo, em termos gerais, que o populis-
perada (o que até hoje não se conseguiu). Em vez de mo, co­mo forma de governo, exerceu na evolução dos
eliminar completa­mente a dependência social numa partidos políticos. O modelo populista de desenvolvi-
relação paternalista, o populismo criou um patrão gi- mento econômico deixou deliberadamente à margem
gantesco – o Estado e sua burocracia –, produzindo do “processo de produção” a maior parte dos cida­dãos
o que alguns autores têm denominado “clientelismo que, de repente, se encontraram desorganizados e,
de massas” (Andrade, 2005). Nesses tipos de governo, mesmo no contexto urbano, forçados a recorrer às for-
os partidos políticos não são autorizados a funcionar mas de reivindicação tradicionais – principalmente o
“normalmente”, atrasando a sua evolução e apren­ clientelismo. Do mesmo modo, o neopopulismo even-
dizado organizacional. tualmente é viciado pelo próprio elemento que ini-
Mas como explicar a difusão e aceitação das cialmente procura combater – a corrupção. Assim, o
ideias populistas nas sociedades latino-americanas? neopopulismo, na América Latina, continua a eviden-
Principalmente de grupos que, teoricamente, seriam ciar uma incongruência entre teoria, discurso e práti-
antagônicos a estes movimentos? ca. Embora seja um movimento de “boas intenções”,
Di Tella (1974, p. 60), que analisa o populismo na o neopopulismo se caracteriza pela administração pes-
América Latina, argu­menta: soal da sociedade e pela falta de visão programática de
desenvolvimento econômico e político-social, produ-
As massas têm nos países do Terceiro Mundo mais zindo uma cultura política híbrida e passiva.
poder do que jamais tive­ram na experiência europ Nesse sentido, acreditamos que a cultura política
eia, para um dado nível de desenvolvimento econô­ é uma variável importante para entender por que o
mico. Por isso, aos setores superiores ou médios (ain- populismo tem sobrevivido na virada do milênio na
da no caso de que sejam partidárias da reforma) tor- América Latina.
na-se necessário utilizar ideologias demagógicas; do
contrário não poderão canalizar as massas a seu favor.
A necessidade de uma ideologia se torna ainda mais Cultura política
aguda pelo fato de que não apenas é necessário inte-
grar as massas, mas também os intelectuais, e alguns
dos grupos incon­g ruentes. Os estratos mais baixos As explicações de fenômenos políticos com base
das massas poderiam contentar-se com uma liderança na cultura política ressaltam o significado do papel da
personalizada, carismática, desde que a consideras- história na sua configuração moderna. A opção por
sem fortemente anti-imperialista ou antioligárquica. estudar a cultura política associada ao neopopulismo
Porém, os outros grupos, em particular os intelec- responde não só à suspeita de que tradições cultu-
tuais marginais ou subocupados, exigem um maior rais exercem uma influência significativa (o que não
refinamento ideo­lógico. significa dizer determinismo) na manutenção desse
fenômeno, mas é na vigência desses tipos de governo
A partir desse argumento, o neopopulismo pode que se materializa a base de comportamento político
ser caracterizado como um movimento político, já que auxilia a interpretar como se estrutura uma cul-
que a própria ambiguidade ideológica é um fator de tura política afeita ao personalismo e não às institui-
atração dos vários segmentos heterogêneos da socie- ções. O neopopulismo é, portanto, em nossa opinião,
dade, necessários para “legiti­mar” o governo. Mas, o resultado de uma cultura política que gera formas
como querem resultados imediatos, ao invés de um particulares de construção de identidades. Tal refle-
desenvolvimento gradual e dentro de uma realidade xão se mistura a uma preocupação nos meios acadê-
latino-americana, os neopopulistas se vêem compeli- micos e de governos sobre o futuro da democracia
dos a utilizar medidas pragmáticas, consideradas ine- nesse continente.
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Há um consenso entre os estudiosos desta temá- em rotinas e em modus vivendi, ou em molduras fun-
tica que atualmente a democracia passa novamente cionais que preservam práticas deletérias para a cons-
por um processo de adjetivação. Entre os adjetivos trução de uma democracia plena.
modernos estão: democracia deficiente, democracia É inevitável, nesse cenário, uma realidade que
iliberal, semidemocracia, democracia eleitoral, de- não funciona nem pela dimensão moderna (novos
mocracia formal e democracia procedimental. Tam- movimentos sociais, multiculturalismo, desterrito-
bém se fala da qualidade da democracia: então por rialização e pós-modernidade), nem pela lógica não
que não uma “democracia neopopulista”? moderna, mas por uma lógica influenciada por ele-
Esses tipos de democracia tomam como base a mentos culturais que mistura o moderno com o pós-
democracia representativa. O que se tenta demons- -moderno. A decodificação de alguns conceitos nesse
trar é que, numa democracia adjetivada na América cenário, pelos cidadãos, é paradoxal, porém lógica.
Latina contemporânea, a proteção do cidadão pela Por exemplo, a grande maioria das pessoas, quando
lei e pela constituição, o mercado como instância re- indagada, afirma apoiar a democracia como valor, o
guladora das relações sociais e econômicas e a ilusão que daria a ideia de que elas compreendem a dinâmica
de paridade nas transações sociais como dimensões e o funcionamento de um sistema democrático. No
“modernas” são elementos que convivem simulta- entanto, quando indagadas sobre a operacionalidade
neamente com padrões de interação reveladores de dessa democracia que elas apoiam, a grande maioria
submissão clientelística e personalista. Em outras pa- se mostra insatisfeita e descontente. O apoio verbal
lavras, a democracia representativa coexiste com prá- não se traduz num apoio real. É o que Easton (1968)
ticas de tomada de decisões que mostram um total se referia como apoio difuso e apoio específico.
desprezo pelo princípio democrático. Em situações Este paradoxo produz uma cultura política hí-
de pobreza estrutural grave e em situações de aces- brida, na qual frequentemente as coisas “funcio-
so desigual a informações e à educação, a igualdade nam” por meio de comportamentos que se desviam
formal é deslocada facilmente pelas relações patrão– da moldura jurídica, da lei ou da norma, ou seja, do
cliente, e as instâncias de garantia de cumprimento moderno. Dentro dessa configuração, as eleições se
da lei são frequentemente violadas pelo poder de des- convertem em um protocolo vazio de competência
crição das elites. e significado real em que predominam o personalis-
Nessa direção, Olsen (2008) argumenta que, mo e o clientelismo. Como consequência, os eleito-
enquanto a corrupção e a falta de representatividade res votam mais nas pessoas que eles acreditam poder
continuarem a se manifestar na maioria dos países em resolver seus problemas imediatos de caráter material
desenvolvimento, no caso da América Latina, a situa- – como educação, saúde, trabalho e segurança – e
ção se agravará por meio da presença da desigualdade não por preferência ou conhecimento das propostas
e da pobreza. Ilustrativa do descontentamento gera- partidárias em relação ao modelo a ser implantado,
do por essa situação é a resposta dos cidadãos latino- caso esses partidos sejam eleitos, e muito menos por
-americanos que apoiariam um ditador e não um lí- conhecer os arranjos institucionais (Paley, 2001). Não
der eleito, caso eles considerassem que um governo há, portanto, bases sobre as quais identidades cole-
não democrático proporcionasse melhores benefícios tivas que emanem de um desejo de construir algo
econômicos (Caputo, 2004). universal se materializem. Pelo contrário, reforçam-
Assim, convive o moderno da afirmação da exis- -se as perspectivas individualistas e particulares. Tal
tência do Estado de direito com as irregularidades e fato fica claro ao se examinar o que catalisa o voto do
atrasos nos processos penais, com a justiça de “clas- eleitor entrevistado (Gráfico 1).
se”, com o caos jurídico e a debilidade institucional Uma das características da democracia plena, na
(Schor, 2001), produzindo casos de corrupção, im- sua dimensão política, se refere ao papel que os parti-
punidade e arbitrariedade. Nessas circunstâncias, a dos políticos precisam desempenhar como interlocu-
maioria dos cidadãos recorre a estratégias de prote- tores da sociedade perante o Estado. De um ponto de
ção à margem das instituições formais, pois estes não vista republicano se supõe que os partidos são centros
acreditam que essas instituições, formalmente res- de debate e elaboram planos de governo com os quais
ponsáveis pela proteção das pessoas, o façam eficiente os eleitores aprendem a se identificar. Tal aprendizado
e eticamente. se daria via educação política. Desse modo, estaria
Nesse contexto, as relações sociais se constituem claro para os eleitores que os partidos possuem dife-
em uma obrigação que deriva do afeto pessoal, pois rentes ideologias e essas dimensões ideológicas pro-
é essa instância que recompensa, de alguma maneira, duziriam identidades partidárias.
no imaginário coletivo da maioria dos latino-ame- Para aqueles que eventualmente não manifes-
ricanos, o fato de viverem em sociedades marcadas tam uma identificação partidária na época de elei-
por profundas desigualdades e de riscos cotidianos. A ções, essas lealdades seriam catalisadas pelas propos-
consequência é de que algumas práticas se convertem tas dos partidos. A realidade, no entanto, mostra que

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Gráfico 1 - Quando vota o que é mais importante? concepção ampla da democracia, levando a uma de-
sordem democrática denominada neopopulismo.
Assim, o sucesso de líderes (neo)populistas se dá
em virtude da sua capacidade de mobilizar os cida-
dãos emocionalmente. Isto ocorre, fundamentalmen-
te, pelo fato de que sociedades de massas, como as
latino-americanas, proporcionam as bases para que as
relações sociais intermediárias (com instituições polí-
ticas) não prosperem.
De maneira geral, na sociedade moderna, as re-
lações primárias (com base na família e nas relações
face a face) perdem sua função de transmitir valores
de fiscalização social e de apoio psicológico. Na me-
dida em que essas pessoas não encontram nenhum
respaldo nas instituições de mediação política atu-
ais, há uma perda de interesse delas em participar de
qualquer organização formal ou informal. As relações
secundárias ou intermediárias que caracterizam esse
cenário são frágeis. Como resultado se consolida, a
Fonte: NUPESAL, 2005. Total de entrevistados: 494 em Porto Alegre, despeito dos avanços institucionais e formais, um tipo
415 em Montevidéu e 420 em Santiago. de relação social terciária na qual o cidadão estabelece
uma identidade diretamente com o Estado, ou seja,
com o líder político. Se esse líder político possui ca-
esse ideal republicano está longe de se concretizar. risma e poder de mobilização, plasmam-se as condi-
Atualmente, os partidos abrigam nas suas fileiras os ções para o ressurgimento do neopopulismo e de uma
pensamentos mais diversos e contraditórios. Quase cultura política híbrida. Do ponto de vista da teoria
ninguém conhece os programas partidários, que fre- democrática, tal situação produz massas urbanas, sem,
quentemente não são lidos. Os partidos de massa, por no entanto, constituir cidadãos. Isto sucede porque
sua vez, têm se caracterizado, nos últimos anos, por os cidadãos não conseguem mais depender do Estado
ser partidos inclusivos que buscam somar vontades e, para protegê-los. Em tal cenário, as pessoas buscam
portanto, fogem de debates de natureza ideológica. fora das instituições governamentais dispositivos de
Fazem promessas de todo tipo, geralmente contra- proteção. Nesse caso, voltam-se fundamentalmente
ditórias, mas têm um eco profundo na maioria da – e de modo paradoxal – para os líderes carismáticos
população que não confia nos partidos. de plantão.
Esse contexto é propício para que líderes com Dessa condição resulta um cidadão politicamen-
“carisma” e com discursos afinados com o que o povo te vulnerável e economicamente excluído, que inter-
quer consigam deslocar os partidos como ponto de naliza normas e valores de desapego às instituições de
referência para a preferência eleitoral. A maioria dos mediação política e prefere se envolver em relações
eleitores, assim, dá muito mais importância à figura de troca de favores que descaracterizam o processo
do candidato do que ao partido pelo qual ele concor- democrático e, ao mesmo tempo, propicia a prospe-
re. Isto fica claramente demonstrado no Gráfico 1, ridade do neopopulismo. A exclusão social, portanto,
no qual se observa que, em três cidades consideradas que se mantém na vigência das democracias moder-
politicamente avançadas, a maioria dos entrevista- nas, produzindo uma desvinculação e insatisfação
dos respondeu ser a pessoa do candidato o elemento que afeta aos latino-americanos, cria um terreno fér-
fundamental para votar. Em Montevidéu, 60% dos til para os experimentos neopopulistas. Isso resulta na
entrevistados, em Porto Alegre 70%, e em Santiago erosão das instituições de mediação e representação
do Chile, 80%. Quando é o personalismo que pre- da sociedade, pois os cidadãos não participam da are-
valece nos pleitos eleitorais, o resultado não pode na política, conforme pode ser visto no Gráfico 2.
ser outro senão uma tendência ao fortalecimento do Os dados do Gráfico 2 reúnem atividades de par-
neopopulismo. ticipação convencional, comunitária e não conven-
Desse modo, as relações entre democracia e ne- cional. Embora se constatem diferenças significativas
opopulismo estão sempre num processo de tensão. A entre Montevidéu, Porto Alegre e Santiago, todas as
democracia vê no neopopulismo um obstáculo para cidades sinalizam não haver uma tradição participati-
solidificar um marco institucional, na medida em va em nenhuma das modalidades examinadas. Mes-
que essa prática distorce o jogo político convencio- mo que Montevidéu apresente os maiores índices de
nal, apelando para recursos e práticas vedadas numa participação, em comparação com as outras cidades,
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Gráfico 2 – Porcentagem de cidadãos que não parti- Gráfico 3 - Avaliação dos serviços públicos (péssimo
cipam de atividades políticas e ruim)

Fonte: NUPESAL, 2005. Total de entrevistados: 500 em Porto Alegre,


Fonte: NUPESAL, 2005. Total de entrevistados: 506 em Porto Alegre, 500 em Montevidéu e 430 em Santiago.
500 em Montevidéu e 500 em Santiago.

a percentagem dos que não participam de nenhuma par com fatores pós-materialistas (qualidade de vida,
atividade está acima de 60%. O aspecto a ser enfa- cuidado com o meio ambiente e iniciativas de bem-
tizado, nesses dados, é o desapego que os cidadãos estar coletivo). Decorrente dessa situação, a dimensão
latino-americanos mostram em relação ao envolvi- política opera dentro de princípios republicanos que
mento na arena política. Quando isso ocorre, a sua valorizam o jogo democrático, inibindo iniciativas
capacidade de se organizar torna-se frágil, e a sua políticas deletérias e de natureza pessoal. O carisma é
participação é influenciada por iniciativas impostas importante, mas não é populista no sentido de mani-
com base em identificações pessoais, ou seja, vulnerá- pular as instituições e os cidadãos. Nessa perspectiva,
veis ao neopopulismo. há uma associação entre qualidade de vida e ausência
Conforme referimos anteriormente, um aspecto de iniciativas neopopulistas.
fundamental que precariza a capacidade de organiza- Quando a percepção dos cidadãos é a de que a
ção das pessoas, propiciando a disseminação do neo- dimensão material não está resolvida, as desigualda-
populismo, são as condições econômicas da maioria des sistemáticas geradas pela baixa qualidade de vida
da população. A pobreza, as deficiências de acesso aos da maioria da população podem estar sinalizando
serviços de saúde, a falta de qualidade na educação e que, a despeito dos avanços poliárquicos, existe cam-
a falta de representação política constituem a regra na po fértil para iniciativas neopopulistas.
maioria das sociedades latino-americanas. O modo Os dados do Gráfico 3 mostram que, excetuando
como a população avalia essas dimensões pode gerar as categorias “transporte”, em Porto Alegre, e “sane-
subsídios significativos para entender com mais pro- amento básico”. em Montevidéu, que receberam ava-
fundidade os fatores que catalisam as predisposições liações relativamente positivas, os outros indicadores
de apoio aos líderes em detrimento das instituições. (saúde, educação e segurança) foram considerados
Desse modo, a bateria de questões que passamos a pela ampla maioria dos entrevistados nas três cidades
examinar se refere ao posicionamento dos entrevis- como ruim e péssimo (na média 76%). Esses dados
tados em relação aos serviços públicos oferecidos nas são contundentes do sentimento de desproteção que
suas cidades. Os dados estão no Gráfico 3. os cidadãos têm em relação ao Estado e suas institui-
As sociedades consideradas desenvolvidas e ções, o que os predispõe para discursos demagógicos
democráticas, segundo alguns autores (Inglehart, e fomenta a base para iniciativas neopopulistas.
1977), são aquelas que têm conseguido resolver ra-
zoavelmente a dimensão material (saúde, educação,
transporte, segurança e saneamento básico). Nessas
circunstâncias, essas sociedades passam a se preocu-

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Conclusão Torna-se imperativo, também, uma longa e pa-


ciente obra de reelaboração e de conversão interna da
A presença de um líder é importante no neo- política. Essa tarefa é inadiável e inseparável da auto-
populismo, na medida em que permite uma identi- educação dos cidadãos e da consequente modificação
ficação dos cidadãos em termos emocionais. Todos das instituições.
os elementos simbólicos que se põem em ação com A natureza difusa e ambígua do “povo”, do pon-
o neopopulismo estão encarnados no líder. A figura to de vista do neopopulismo, di­ficulta a organização
carismática é a forma que assume a liderança nas so- partidária efetiva. Quer dizer, mesmo que existam
ciedades em que se quer implementar a racionalida- partidos políticos, estes se constituem em instrumen-
de à vida social, desqualificando elementos-chave da tos de “ga­nhar” ou “manter” o poder, sem, no entan-
própria cultura. to, ser efetivos no desempenho de sua função vital – a
Trata-se de uma relação política personalizada representação dos interesses das massas.
que não é mediada por nenhuma instituição. Isso A precária condição social da maioria da popula-
produz um discurso fragmentado, incoerente, mas ção promove a desvinculação e insatisfação dos latino-
que apela aos sentimentos de uma população descren- -americanos e cria um terreno fértil para experimentos
te nas instituições políticas. neopopulistas que minam a legitimidade das institui-
A esse respeito Lechner (1984, p. 28) argumen- ções da democracia. Essa desvinculação tem aumenta-
tava que, nas sociedades latino-americanas, cujo sis- do, apesar dos avanços poliárquicos (Cepal, 2007).
tema sociopolítico não proporciona as condições para Os neopopulistas habilmente capitalizam essas
enraizar um senso de identidade coletiva, os setores atitudes políticas em favor da consolidação dos seus
populares tentam encontrá-lo na identificação pessoal movimentos e programas de ação governamental,
com um líder carismático. visto que as predisposições hostis contra os grupos
Nesse contexto, o discurso populista exerce uma dominantes (internos e externos) coloca­m as classes
influência decisiva no desprezo que os cidadãos mos- menos favorecidas em disponibilidade política para
tram pelas instituições convencionais de mediação líderes “neopopulistas carismáticos”, que têm na ora-
política (Habermas, 1984, p. 86) tória sua arma mais poderosa de persuasão.
É necessário, portanto, reforçar a equidade por Se aceito, pelo menos parcialmente, este ar-
meio da proteção aos setores mais vulneráveis, via gumento, pode-se concluir que o legado populis-
educação, saúde, moradia, espaço público, cultu- ta não foi a implantação de governos democráticos
ra e emprego. As lideranças que acumulam poder, ca­racterizados por partidos políticos, mas uma nova
gerando emprego e riqueza, não como agentes de modalidade de neopopulismo comandada pela capa-
interesses transnacionais, são agentes essenciais de cidade de os líderes contemporâneos utilizarem os re-
desenvolvimento. cursos do Estado para se manterem no poder.
Populismo e neopopulismo na América Latina: o seu legado nos partidos e na cultura política
Marcello Baquero (UFRGS) 191

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Populism and neo-populism in Latin America: its legacy on political


parties and political culture
Abstract

In Latin American democracies the emergence of political phenomena regarded as extinct are now observed due to appearance of
the so-called post-modern societies. One of these elements is the neo-populism, about which theoretical controversies continue to
exist regarding its conceptualization and impact on the democratic process. This article aims to analyze neo-populism, evaluating its
origin and evolution, its impact on political parties and the political culture that emerges if this political praxis is present. The study
is of descriptive-empirical nature. The data come from a probabilistic survey conducted in three Latin American cities in 2005. The
results suggest that there are positive predispositions of citizens regarding popular political personalities and a process of discrediting
of political institutions. We propose some mechanisms that could be useful to strengthen a participative political culture that makes
the political leaders accountable and at the same time, could appreciate conventional mediating institutions.

Key words: neo-populism, Latin America, political parties, democracy, political culture.

Populismo y neo-populismo en América Latina: su legado em los partidos


políticos y en la cultura política
Resumen

En las democracias latino-americanas contemporáneas están surgiendo fenômenos que se pensava que estavan muertos, como con-
sequência del aparecimiento de sociedades pós-modenas. Uno de eses elementos se refiere al neo-populismo, sobre el cual existen
controvérsias com relación a su significado e impacto em el proceso democrático. Este articulo tiene como objetivo analizar lo nuevo
en el neopopulismo, evaluando su orígen y evolución, su impacto em los partidos y en el tipo de cultura política cuando esa práxis
política está presente. Este estúdio es de caráter descriptivo-empirico com base em pesquisa probabilistica realizada em 2005 em trés
ciudades latino-americanas. Los resultados muestran predisposiciónes positivas de los ciudadanos com relación a lideres políticos po-
pulares em detrimiento de las instituiciónes políticas. Proponemos algunos dispositivos que poderían auxiliar a fortalecer una cultura
política participativa com capacidad de fiscalización de los políticos y, al mismo tiempo, valorizando las instituiciónes de mediación
política convencionales.

Palabras clave: neo-populismo, América Latina, partidos políticos, democracia, cultura política.

Data de recebimento do artigo: 6/5/2010


Data de aprovação do artigo: 4/8/2010

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