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O DESEJO DO UM

Por

BRUNO COSENTINO

Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira

(Programa de Vernáculas)

Trabalho apresentado às professoras

Sofia de Souza Silva e Mônica Genelhu Fagundes,

no curso “O desejo como questão para a poesia”.

Faculdade de Letras da UFRJ

2० semestre de 2016
Introdução

Numa entrevista concedida à Clarice Lispector para a revista Manchete, em 1967,


Vinicius de Moraes responde à provocação da escritora (que lhe diz ter vindo a ideia de que o
que o poeta amava de verdade era o amor e nele incluía as mulheres) dizendo que de fato amava
o amor, mas que por esse amor compreendia “a soma de todos os amores, ou seja, o amor de
homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem
para homem e o amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes”. É sobre um desses
amores, dentro do amplo espectro do sentimento amoroso de Vinicius, que pretendo refletir, o
amor de homem para mulher, a “mulher amada”. Vinicius continua: “isso não quer dizer que eu
não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a impressão de que, àquelas que amei realmente,
me dei todo”. Mas a dúvida de Clarice persiste: “quando um homem e uma mulher se encontram
num amor verdadeiro, a união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os
desentendimentos: duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo
par novos amores”; ao que Vinicius rebate: “é claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói
para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso.
Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.”1
Esse trecho guarda uma contradição que é fonte da riqueza da personalidade amororosa
de Vinicius, pois tenta harmonizar duas concepções supostamente irreconciliáveis: o amor
paixão (que se esgota, no limite, no momento do encontro) e a duração do amor como
“construção de verdade”, para usar o termo do filósofo Alan Badiou. Segundo o pensador
francês, a concepção romântica do amor paixão põe ênfase no momento do êxtase inicial, que
não seria para ele o essencial da ideia de amor, fundado sim na construção duradoura, a que
chama também de “aventura obstinada” (é a esta última que Clarice se refere na pergunta a
Vinicius). Explica ainda que a ideia de que a única dimensal temporal da eternidade seja o

1
​MORAES, Vinicius de. ​Vinicius de Moraes - Encontros. CAMPOS, Simone; COHN, Sérgio (ORG.). Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2007.
instante já se encontrava no pensamento grego, mas que ele tenta propor, ao contrário, uma
concepção de eternidade “menos milagrosa e mais laboriosa, ou seja, uma construção persistente,
ponto por ponto, da eternidade temporal”.2 A partir dessa explicação, poderíamos dizer que para
Vinicius, ao contrário do que pensam Badiou e Clarice, o amor é mesmo aquele que crê no
instante como eternidade. O crítico literário Alcides Villaça, em sua análise do uso do soneto
pelo poeta, chama inclusive a atenção para a exaltação do instante como motivo recorrente de
sua obra, adequado à brevidade formal da consagrada forma fixa: a “marca nostálgica liga-se, na
poesia de Vinicius, a uma promessa (e desejo) da forma permanente e garantida que, no entanto,
de súbito, se dissipa. Tal anseio de infinitude, representado no espaço contido e no tempo
momentâneo (‘que seja infinito enquanto dure’), parece ajustar-se plenamente ao voo impetuoso
mas breve do soneto”.3 É verdade que a exaltação do instante extático está lá, mas não é somente
isso que pode explicar a eleição de Vinicius pelo amor paixão, pois ele também deseja a duração.
O momento de êxtase inicial, em outros termos, está associado ao amor que a filosofia grega
idetifica como ​Eros, “aquele que sentimos quando estamos apaixonados, no sentido mais forte e
mais verdadeiro do termo”.4 Deriva de ​Eros, não à toa, palavras que guardam o elemento sexual
das relações amorosas, como o erotismo, por exemplo, pois é nesse momento da relação amorosa
que o desejo sexual está mais patente. Se seguiria e/ou se sobreporia a ​Eros na relação amorosa a
Philia (o componente de amizade) e o ​Ágape (o sagrado da relação, a transcendência a partir da
vida a dois). Não é incomum Vinicius chamar a mulher amada de “amiga”. Dessa forma, seria
apressado dizer que Vinicius deseja estritamente o amor paixão no sentido de ​Eros somente ​—
chama que se consome rapidamente ​—​, mas sim “que seja eterna enquanto dure”; ele parece
querer que o êxtase inicial permaneça, mas isso é impossível.
Segundo uma pesquisa realizada pelo psicanalista Jurandir Freire Costa e publicada no
livro “Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico”, para a maioria dos entrevistados

O ideal de realização emocional depende: a) ​de encontrar um parceiro por quem se sinta, ao
mesmo tempo, atração sexual e atração amorosa; b) de encontrar um meio de tornar esta parceria
ideal permanente. Mas este ideal é posto como ‘inatingível’ e muitos se mostram descrentes quanto
à possibilidade de sua concretização. A descrença nasce da convicção de que as parcerias não podem

2
BADIOU, Alan; TRUONG, Nicolas. ​Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
3
VILLAÇA, Alcides. Da fidelidade aos sonetos. In: MORAES, Vinicius de. ​Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
4
COMPTE-SPONVILLE, Andre. ​Amor. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
durar por dois motivos: a) um dos parceiros se sente sexualmente atraído por outro, enquanto a
parceria afetiva ainda dura, e não quer abrir mão de sua liberdade sexual; b) ou a ‘paixão’ cessa,
levando com ela o interesse sexual e afetivo em relação ao outro.

Embora Vinicius pareça se encaixar no caso de realização emocional da maioria dos


entrevistados, e de ter se casado muitas vezes porque a paixão cessou (ou a chama se apagou),
ele nunca se mostrou descrente desse ideal (ou a mitologia em torno dele, também criada por ele
próprio, nos faz ter essa percepção). Jurandir continua sua análise dizendo que aprendemos que
“a atração física é algo fácil de ser sentido, pois depende de nossa ‘natureza biológica’. Mas
aprendemos que o ‘amor’, em sua forma apaixonada, só acontece ‘raramente e com pessoas
especiais’”. O amor paixão romântico, por ser raro, conclui, adquiriu um enorme valor cultural e
por isso se tornou um grande problema moral, pois somos levados a considerar que a “‘a questão
da sexualidade’ se tornou menos importante moralmente do que ‘a questão amorosa’ no que
concerne à realização emocional dos indivíduos”.5 Em Vinicius, o paradoxo tem origem em por
um lado uma formação católica tradicional e por outro uma experiência sensual nas praias da ilha
do governador, onde passava férias, repleta de sol, mar, noites ao ar livre, areia, pescadores,
prostitutas. Octávio Paz no seu livro “A dupla chama” distingue amor, erotismo e sexualidade,
dizendo que

O trânsito da sexualidade ao amor se caracteriza por uma crescente complexidade (...). A


sexualidade é animal; o erotismo é humano. É um fenômeno que se manisfesta dentro de uma
sociedade e que consiste, essencialmente, em desviar ou mudar o impulso sexual reprodutor e
transformá-lo numa representação. O amor, por sua vez, também é cerimônia e representação, mas é
alguma coisa a mais: uma purificação, como diziam os provençais, que transforma o sujeito e o
objeto do encontro erótico em pessoas únicas. O amor é a metáfora final da sexualidade. Sua pedra
de fundação é a liberdade: o mistério da pessoa. Não há amor sem erotismo como não há erotismo
sem sexualidade. Mas a cadeia se rompe em sentido contrário: amor sem erotismo não é amor e
erotismo sem sexo é impensável e impossível”.

Quando descreve um dos atributos do amor, a “exclusividade”, ou seja, a exigência de


fidelidade entre o casal, admite que sua desobediência ocasional é o pão de cada dia da relação e
que apesar de ser uma fraqueza, uma falta, “pode e deve ser perdoada porque somos seres

5
COSTA, Jurandir Freire. ​Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
imperfeitos e tudo que fazemos está marcado pelo estigma de nossa imperfeição original”.6 Para
muitos casos, algumas saídas concretas para a contradição do amor romântico tornado prática
ideal no contexto da nossa sociedade parecem ser a relação extraconjugal ou as casas de
prostituição. Vinicius casou-se muitas vezes, no entanto não se sabe que tenha tido amantes; ao
contrário, em muitos textos e em sua receita de “Para viver um grande amor” ele diz:

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher. (...) Para viver um grande
amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fieldade ​— para
viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade,
dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para Vinicius amante da mulher amada as relações extraconjugais são portanto


prejudiciais. A contradição em Vinicius é então desejar que o êxtase inicial, o ​Eros, seja
prolongado, ou melhor, que ele se torne Philia e ​Ágape, que essas três características do amor se
fundam de tal maneira que se tornem indissociadas umas das outras. Vinicius acreditava na
relação duradoura fundada contudo em seu aspecto mais frágil, o ​Eros, desejando porém que ele
fosse ao mesmo tempo o amor de amigo e o amor sagrado. Uma hipótese é a de que ​Eros seja o
principal móvel da ação de Vinicius em suas relações amorosas. Ele diz na mesma entrevista à
Clarice que só é ciumento fisicamente, “é o ciúme de bicho, não tenho outro.”7 No documentário
sobre Vinicius dirigido por Miguel Faria Jr. vários amigos, entre eles enfaticamente Tônia
Carrero, chamam a atenção para seu desejo sexual do poeta. Não quero dizer com isso que fosse
movido somente pelo desejo sexual, mas gostaria de jogar luz na dimensão do ​Eros como a
principal propulsora e espécie de amor ideal onde desejo sexual e paixão amorosa,
companheirismo, sentimento do absoluto (ou de deus) se encontrariam em sua plenitude ​— e o
objeto dessa plenitude é a mulher amada.

6
PAZ, Octavio. ​A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
7
MORAES, op.cit.
Para além da mulher amada, pessoa real, para além de um amor pessoal, há também para
Vinicius uma mulher ideal (ou que tem a “dimensão do infinito”), revelada por ele em diversos
poemas, e que seria uma espécie de ​domna soiseubuda (tal qual descrita pelo poeta provençal
Bertran de Born), que guarda características de várias outras. No poema “Epitalâmio”, após listar
longamente nomes de muitas mulheres e as lembranças associadas a elas, declara: “Quem és,
responde! / És tu a mesma em todas renovada?”.8 A busca de uma mulher que inclua
características renovadas de outras várias é parte, acredito, de uma obsessão maior do poeta, um
desejo de absoluto (Diz ele: “Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca
de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado”, em “Sobre poesia”, de ​Para viver um
grande amor), cuja origem podemos identificar em sua formação religiosa, mas que permanece
orientando sua poética ao longo da vida mesmo após o rompimento com a poesia sublime
praticada nos dois primeiros livros; esse desejo de absoluto inclui outros desdobramentos que são
parte do mesmo fenômeno: a fusão com a mulher amada, ou seja, a aspiração à unidade
primordial, e a crença numa espécie de ancestralidade do par amoroso, mais especificamente
uma memória arquetípica do casal homem e mulher, que remonta à cena de origem descrita no
Gênesis. Esse parece ser o arquétipo de Vinicius. A aspiração ao um, a ancestralidade do casal,
tais desdobramentos revelam o tal amor que tem a “dimensão do infinito”.
Sendo um poeta em que a poesia está tão impregnada da vida, é importante acompanhar a
transição promovida pelo poeta de uma primeira fase religiosa, sublime, idealista para uma
segunda fase terra-a-terra, apegada à materialidade e à concretude do mundo; e como uma e
outra fases se sobrepõem. Isso resultou numa personalidade amorosa complexa. O crítico
português David Mourão Ferreira, em seu texto “O amor na poesia de V. de M.”, a esse
propósito, cita um trecho de Novalis, segundo o qual diz que “para o homem, a equação é
corpo-alma. Para a espécie, homem-mulher.” Mourão acredita que

a evolução poética de Vinicius de Moraes documenta, flagrantemente, a ​passagem de um plano


para o outro. No entanto, a primeira equação não ficou resolvida; e o conflito que refletia essa
procura, insidiosamente se introduziu na segunda, frustrando-lhe também a solução desejada. Nesse
malogro residem, todavia, a grandeza e a originalidade de Vinicius de Moraes. A equação
‘homem-mulher’, que os seus poemas de amor pretendem atingir, vem de antemão comprometida (e,

8
MORAES, Vinicius de. Epitalâmio. In: ​Poemas esparsos. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
portanto, ao malogro condenada), em virtude do primeiro termo continuar ​carregado das
perplexidades da outra equação irresolúvel.

Por isso, como destaca ainda Mourão, nunca há em Vinicius a leveza do encontro carnal
percebida nos autores gregos e latinos, não há o “simples corpo que proporciona o prazer”, mas a
exaltação da mulher em toda sua grandeza de par consagrado ao homem desde as origens.
Mourão afirma com razão que não há em Vinicius acessos religiosos, associados ao pavor, ao
inferno, mas um “sentimento religioso da existência”, que deseja alcançar o equilíbrio entre
corpo e alma, e que assume por vezes a forma de preocupação moral.9 Em suma, para o poeta, o
encontro com a mulher amada nunca é tão somente um encontro limitado às contingências da
vida, mas revestido de um sentimento de missão, do imponderável, da fatalidade da união entre
um homem e uma mulher, que como diz no poema “Namorados no mirante”, são “mais antigos
que o silêncio” (em ​Para viver um grande amor).

A ancestralidade do amor

Vinicus observa a cena banal de um casal de namorados no mirante ou no parque e


percebe a ancestralidade do amor, a suspensão do tempo e da história:

Eles eram mais antigos que o silêncio


A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
Remontavam às origens ​—​ a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.10

Ou:

São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores
que por ali espapaçam sua verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para

9
​FERREIRA, David Mourão. O amor na poesia de V. de M. In: ​Vinicius de Moraes: poesia completa e prosa: volume único. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
10
MORAES, Vinicius de. ​Namorados no mirante. In: ​Para viver um grande amor. ​São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se
há de saber a quantos milênios remontam.11

Ainda:

Fazem-se cafunés maravilhosos, esfregam-se os narizes, acarinham-se os rostos, enfim: tudo isso
que faz a deliciosa cozinha dos que se amam e que vem sendo a mesma desde os tempos mais
recuados no tempo.12

Em “O amor dos homens, atesta:

Caminhe ela
Lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha
Para o desconhecido ​—​ esse eterno par
Com que começa e finda o mundo.13

A imagem do “eterno par” é a de Adão e Eva descrita na segunda história da criação; Eva
é criada por Deus a partir da costela de Adão para lhe fazer companhia no paraíso (diz Vinicius
em “Poema de aniversário: “​Vi tua forma emergir do meu flanco, e se esforçar, imensa ondina
arquejante, para se despreender de mim; eu te pari gritando, em meio a temporais desencadeados,
roto e imundo do pó da terra.”)​; há portanto uma derivação da mulher a partir do homem, ambos
eram originariamente somente um corpo, que se tornaram dois. Diz o Gênesis em tradução
poética de Haroldo de Campos:

E para o homem
não encontrou parceira a par dele

E fez cair O-Nome-Deus um sono torpor


sobre o homem e ele adormeceu
E tomou uma de suas costelas
e fechou a carne por sob ela

E configurou O-Nome-Deus a costela


que tomara do homem em mulher
E a fez vir até o homem

11
MORAES, Vinicius de. ​O amor por entre o verde. In: ​Para viver um grande amor. ​São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
12
MORAES, Vinicius de. ​Namorados públicos. In: ​Para viver um grande amor. ​São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
13
MORAES, Vinicius de. ​O amor dos homens. In: ​Para viver um grande amor. ​São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
E disse o homem
esta desta vez osso
de meus ossos
e carne de minha carne
A esta chamarei MUlher
pois do homem-hÚMUs esta foi tomada

Por isso o homem deixa


seu pai e sua mãe
E se apega à sua mulher
e eles serão uma carne una.14

Em outro mito, desta vez pagão, presente no discurso de Aristófanes, do ​Banquete, de


Platão, o ser originário era um andrógino, mas que por castigo dos deuses, por tê-los desafiado, é
transformado em homem e mulher, condenados para sempre à busca da metade perdida. A
androginia também está em algumas interpretações do Gênesis:

Nós pensamos na primeira estrutura afetiva e sexual de Adão em termos antropológicos (...). É a
mitologia bíblica que nos ajuda a imaginar Adão — em sentido psíquico — como um verdadeiro e
real ​androgginos, isto é, macho e fêmea. No ​Gênesis I, 27 é dito: “Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea o criou”. É a passagem mais densa de mistério,
pois introduz o conceito da androginia no indivíduo segundo o supremo princípio da harmonia total
do Uno que é feito de Dois; mas é também conceito que consente em perpetuar na terra — mediante
a multiplicação da espécie na união do macho com a fêmea — a imagem de Deus, pois o homem lhe
é semelhante. Adão trazia em si, fundidos, o princípio masculino e o princípio feminino e tais
princípios só depois foram separados sucessivamente.15

A nostalgia do um originário é recorrente na obra de Vinicius. Em “​O amor dos homens”,


do livro ​Para viver um grande amor, o poeta se angustia com a impossibilidade da fusão
completa com a mulher amada:

No teu cotidiano, perdida, ah tão perdida


De mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito
Como pesada porta. Terei ciúme
Da luz que te configura e de ti mesma
(...)
Vem-me a angústia

14
CAMPOS, Haroldo de. ​Éden: um tríptico bíblico. São Paulo: Perspectiva, 2004.
15
SICUTERI, Roberto. ​Lilith: A lua negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Do limite que nos antagoniza.16

Em emocionante crônica do mesmo livro, Vinicius identifica a mesma angústia no


momento da separação:

Sabia que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria,
mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez
mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma
feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos
instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu
espaço próprio, perdida em sua cogitações próprias ​— um ser desligado dele pelo limite existente
entre todas as coisas criadas.17

O retorno ao um (ou a descontinuidade dos seres)

A percepção de que somos seres descontínuos, ou seja, de que cada ser nasce e morre
sozinho e entre nós e os outros seres há um abismo insondável, provoca angústia em Vinicius,
pois ele deseja a fusão utópica com a mulher amada. Segundo Georges Bataille, no livro ​O
erotismo, a continuidade do ser (sendo impossível) pode encontrar sentido na morte, pois haveria
um momento durante a reprodução em que o espermatozóide e o óvulo se fundem para a criação
de uma nova vida: “O espermatozóide e o óvulo estão no estado elementar dos seres
descontínuos, mas se ​unem e, em consequência disso, uma continuidade se estabelece entre eles
para formar um novo ser, a partir da morte, do desaparecimento dos seres separados. O novo ser
é, ele mesmo, descontínuo, mas traz em si a passagem à continuidade, a fusão, mortal para cada
um deles, dos dois seres distintos.” Haveria, portanto, em todos nós, uma nostalgia da
continuidade perdida, que traz como consequência um impulso de morte percebido pelo autor
como constitutivo do erotismo; diz ele: “A passagem do estado normal ao de desejo erótico
supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua”, na qual a ação
decisiva é o desnudamento, um corpo que se mostra aberto a um estado de comunicação com o
outro corpo através de seus canais, “canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A
obscenidade significa a desordem que perturba um estado de corpos que estão conformes à posse

16
​MORAES. op cit.
17
MORAES, Vinicius de. Separação​. In: ​Para viver um grande amor. ​São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
de si, à posse da individualidade durável e afirmada.”18 Esse descontrole, perda de si, é associado
ao impulso erótico, cujas formas Bataille distingue três: o erotismo dos corpos (que, se
quisermos fazer uma comparação, poderíamos dizer que se assemelha ao ​Eros), o erotismo dos
corações (​Philia) e o erotismo sagrado (​Ágape). Explica:

O erotismo dos corpos tem de qualquer maneira algo de pesado, de sinistro. Ele guarda a
descontinuidade individual, e isto é sempre um pouco no sentido de um egoísmo cínico. O erotismo
dos corações é mais livre. Ele se separa, na aparência, da materialidade do erotismo dos corpos, mas
dele procede, não passando, com frequência, de um seu aspecto estabilizado pela afeição recíproca
dos amantes. (...) Em sua origem, a paixão dos amantes prolonga no campo da simpatia moral a
fusão dos corpos entre si. Ela a prolonga ou lhe serve de introdução. Mas, para aquele que a sente, a
paixão pode ter um sentido mais violento que o desejo dos corpos. Nunca devemos esquecer que,
apesar das promessas de felicidade que a acompanham, ela introduz inicialmente a confusão e a
desordem. A paixão venturosa acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade em questão,
antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é comparável ao seu oposto, o
sofrimento. Sua essência é a substituição de uma descontinuidade persistente por uma continuidade
maravilhosa entre dois seres. Mas essa continuidade é sobretudo sensível na angústia, na medida em
que ela é inacessível, na medida em que ela é busca na impotência e na agitação. (...) As chances de
sofrer são tão grandes que só o sofrimento revela a inteira significação do ser amado. Ao amante
parece que só o ser amado pode neste mundo realizar o que nossos limites não permitem, a plena
fusão de dois seres, a continuidade de dois seres descontínuos. (...) O erotismo abre para a morte. A
morte abre para a negação da duração individual.19

O domínio erótico segundo Bataille é equivalente à recusa de nos fecharmos em nós


mesmos, é a abertura para o outro e portanto para a morte. Para Vinicius, a mulher amada é o
objeto a partir do qual ou com o qual deseja negar sua duração individual, morrer com ela, mas a
consciência e a sensação da impossibilidade o deixa angustiado e é por isso que para ele quando
se ama não se tem paz e quando se tem paz não há mais amor. Canta em um de seus
afro-sambas: “Mas amar é sofrer. Mas amar é morrer de dor.20 Nesse sentido, Eucanaã Ferraz
formulou o binômio ​amor-problema21 para tratar do estado amoroso em que Vinicius, diante da
impossibilidade de “amar em paz” (uma espécie de utopia para ele, análoga à fusão dos corações
como nos diz também Bataille), se vê entre duas situações igualmente pertubadoras: amar e,
logo, sofrer por estar fadado a nunca atingir a fusão completa com a mulher amada; ou não amar

18
BATAILLE, Georges. ​O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
19
Idem, ibidem.
20
​MORAES, Vinicius de; POWELL, Baden. Canto de Xangô. In: ​Os afro sambas.
21
FERRAZ, Eucanaã. ​Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2006.
e viver em paz. Mas o poeta preferiu amar e por isso, para ele, amar é sofrer, como deixa claro
neste trecho do “Soneto do amor maior”:

Louco amor meu, que quando toca, fere


E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer.22

O desejo de fusão ou de retorno ao um originário ou de continuidade é (assim como


explicado por Bataille) frequentemente metaforizado por Vinicius com a ideia da morte. Diz ele
na ​“Carta do ausente”, de ​Para viver um grande amor: “sua vida / É minha vida, sua morte a
minha morte.” Ou:

Será serena e tarda, repousarei em ti


Como o homem sobre seu túmulo, pois nada
Haverá fora de nós. Nosso amor será simples e sem tempo.23

E ainda mais explicitamente:

Quisera dar-te, sobretudo, Amada minha, o instante da minha morte; e que ele fosse também o
instante da tua morte, de modo que nós, por tanto tempo em vida separados, vivêssemos em nosso
decesso uma só eternidade. 24

La domna soiseubuda

Na época da publicação de sua ​Antologia poética, Vinicius reconheceu em sua obra duas
fases distintas; diz ele no prefácio: “​Poderia este livro ser dividido em duas partes (...). A
primeira, transcendental, frequentemente mística, resultante de sua [do autor] fase cristã”, e a
segunda, na qual “estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo
material”. 25 A inclinação ao absoluto da primeira fase, no entanto, não desaparece de todo na
segunda, tendo antes desviado sua via de acesso, materializada então, sobretudo, na figura da

22
​MORAES, Vinicius de. Soneto do amor maior. In: Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
23
_________. O amor dos homens. In: ​Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
24
_________. ​Poema de aniversário​. In: ​Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
25
http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/livros/antologia-poetica
mulher; tampouco a religiosidade foi extinta; e, nesse caso, mesmo tendo em vista seu ceticismo,
a aproximação com o candomblé (em clara oposição ao catolicismo do início) é significativa.
Como sugerido por ​David Mourão Ferreira e apontado acima, pode-se dizer que essa luta contra
si mesmo é consequência da não-resolução da equação corpo-alma, situação propícia à
consagração da mulher amada, nunca apenas uma mulher, pessoa, humana, contingente, mas
também espécie de ser divino capaz de resolver o conflito religioso da primeira equação. Daí a
fidelidade incondicional, o ciúme de bicho, o entregar-se todo àquelas que amou, mesmo que a
chama um dia apagasse e ele precisasse se apaixonar novamente e reviver com outras mulheres a
experiência do êxtase amoroso, como ele disse, o mais frágil, porém o único capaz de construir
para a eternidade. Os muitos casamentos de Vinicius parecem ser fruto desse descompasso entre
a idealização da mulher e a mulher real. A despeito de sempre dar nomes às mulheres e de
reconhecer nelas os atributos pessoais, de gozar a brevidade de suas existências, para Vinicius
elas são também parte de uma mulher total, absoluta, sem corpo, ou melhor, composta em sua
fantasia por todas elas, formando assim a imagem idealizada da “mulher amada”. Cada nova
paixão é complemento das anteriores, enfim esperança da realização do amor total:

Tu me perguntarás
E eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas
Que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher
Até descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema
Dessa desesperada minha busca; que em ti
Fez-se a unidade.26

Em “Separação, de ​Para viver um grande amor:

Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara
em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca.

E neste lindo trecho sobre Maria Lúcia Proença, sua quarta esposa:

Para mim, devoto que sou da serena e mágica Lucina, a nova revelação possui uma beleza
dificilmente superável. Pois não vivi eu também todos esses anos à espera de descobrir a outra face

26
MORAES, Vinicius de. O amor dos homens. In: ​Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
desse ser a um só tempo real e distante, misterioso e claro, luminoso e indevessável que se chama
Mulher? E não foi preciso que ela descesse à Terra e, sob as aparências do amor, desvendasse só
para mim os segredos de sua outra face, oculta desde o início dos tempos.27

A ​domna soiseubuda é assim a solução poética encontrada por Vinicius para restituir o
casal original, que compreende também como partes de um mesmo desejo de absoluto a
aspiração ao um, a suspensão do tempo, a eternidade. ​A consumação plena da relação amorosa
— carnal e espiritual ​— parecia obedecer, em Vinicius, a uma necessidade de ​reconhecimento de
si no outro, sentimento que está na origem da palavra ​eucaristia. Para terminar, cito um trecho
“Da solidão”:

Será esta a maior das solidões? Realmente, o que pode existir de pior que a impossibilidade de
arrancar à morte o ser amado, que fez Orfeu descer aos infernos em busca de Eurídice e acabou por
lhe calar a lira mágica? (...) A solidão que a morte da mulher amada deixa não é, porquanto absoluta,
a maior solidão. (...) A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se
recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no
absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da
mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo
entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às
verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio,
semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.28

27
_________. A outra face de Lucina. In: ​Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
28
MORAES, Vinicius de. Da solidão. In: ​Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

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