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História da Matemática

Autora: Profa. Marisa Rezende Bernardes


Colaboradores: Profa. Mirtes Vitória Mariano
Profa. Valéria de Carvalho
Prof. Daniel Scodeler Raimundo
Professora conteudista: Marisa Rezende Bernardes

Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Estadual de Maringá (1980), graduação
em Licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual de Maringá (1988), mestrado e doutorado
pelo programa de pós graduação da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho, concluídos respectivamente em 2003 e 2009, e é vinculada ao grupo de pesquisa
em História Oral e Educação Matemática (GHOEM). Profissionalmente, é professora titular da
Universidade Paulista, campus Bauru, desde 2003.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B522 Bernardes, Marisa Rezende

História da Matemática. / Marisa Rezende Bernardes - São


Paulo: Editora Sol.
164 p. il.

Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos


e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-028/11,
ISSN 1517-9230.

1.História da Matemática 2.Educação Matemática 3.Memória


I.Título

CDU 511.2

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Simone Oliveira dos Santos
Sumário
História da Matemática
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7
Unidade I
1 MATEMÁTICA: DA PRÉ‑HISTÓRIA AO MUNDO ANTIGO................................................................... 13
1.1 A Pré‑História: panorama cultural................................................................................................. 13
2 MATEMÁTICA NO ANTIGO EGITO............................................................................................................... 18
2.1 Influência egípcia.................................................................................................................................. 24
3 MATEMÁTICA NA MESOPOTÂMIA............................................................................................................. 26
4 MATEMÁTICA NA GRÉCIA ANTIGA............................................................................................................ 33
Unidade II
5 MATEMÁTICA NA CHINA, ÍNDIA E MUNDO ÁRABE............................................................................ 72
5.1 Matemática na China.......................................................................................................................... 72
5.2 Matemática na Índia............................................................................................................................ 76
5.3 Matemática no mundo árabe........................................................................................................... 84
6 MATEMÁTICA NA ÉPOCA DO RENASCIMENTO E PANORAMA CULTURAL DOS
SÉCULOS XVI A XVIII........................................................................................................................................... 86
7 A MATEMÁTICA NOS SÉCULOS XVI A XX E A ESCOLA BRASILEIRA............................................ 107
7.1 A matemática nos séculos XVI a XVIII......................................................................................... 107
7.2 A matemática nos séculos XIX e XX............................................................................................120
8 ESCOLA BRASILEIRA: OS GRANDES MATEMÁTICOS DO PAÍS......................................................136
APRESENTAÇÃO

A introdução a seguir tem a função de apresentar de forma mais elaborada os objetivos da disciplina
História da Matemática e sua vinculação com o projeto pedagógico e político do curso. É uma perspectiva
que defende não ser concebível estudar a história da matemática como algo estanque, sem vinculação
pedagógica com disciplinas específicas e muito menos utilizá‑la como mero atrativo inicial para conteúdos
específicos. A história da matemática é, sobretudo, uma forma de orientação aos profissionais docentes
a respeito da origem de questões ideológicas que perpassam o ensino, notadamente, a força da visão
eurocêntrica da matemática. Portanto, o objetivo aqui proposto é sistematizar o conhecimento que a
humanidade acumulou nesta área, mas sem perder de vista as análises dos contextos social, histórico e
cultural que proporcionam a possibilidade de compreensão da ciência de modo mais abrangente e, em
consequência, uma ação política mais efetiva na esfera da educação.

INTRODUÇÃO

Nascer: já assisti gata parindo. Sai o gato envolto num saco de água e todo
encolhido dentro. A mãe lambe tantas vezes o saco de água que este enfim
se rompe e eis um gato quase livre, preso apenas pelo cordão umbilical.
Então a gata‑mãe‑criadora rompe com os dentes esse cordão e aparece um
fato no mundo. (...) Estou dando a você a liberdade. Antes rompo o saco de
água. Depois corto o cordão umbilical. E você está vivo por conta própria
(LISPECTOR, 1973, p. 41).

A primeira perspectiva que este texto irá abordar é o fato de ele ter sido elaborado para um curso
de educação à distância. Esta é uma questão importante, uma vez que estabelece um ambiente
de aprendizagem diferente daquele utilizado pelo ensino presencial e, portanto, com exigências
diferenciadas. Mais do que em outra modalidade, a educação à distância caracteriza‑se por ser uma
prática educativa que exige do estudante construir conhecimentos e participar efetivamente de seu
próprio crescimento. Esse modelo implica, obviamente, um processo de ensino próprio, uma vez que
modifica ou mesmo suprime o aparato físico e estrutural do ensino presencial. Assim, a função docente
sofre um deslocamento: o professor tem seu papel descentralizado e a forma de atenção ao aluno
está mais próxima do que se entende por pesquisa em meios acadêmicos. É um novo formato de
ensino‑aprendizagem na graduação, no qual os estudantes, assim como aqueles que se iniciam em
pesquisas acadêmicas, devem aprender a estudar sozinhos, buscar informações com base em indicações
do docente responsável pelo curso e serem capazes de fazer inferências na produção de seu próprio
conhecimento.

Como este texto foi produzido para a modalidade EaD, as leituras indicadas estão em sua maioria
disponíveis on‑line. Essa preocupação está relacionada ao fato de alguns alunos da UNIP Interativa serem
de regiões onde o acesso a determinados materiais impressos é difícil. Porém, isso não os descompromete
de fazer pesquisas de materiais pertinentes à área de interesse das disciplinas em bibliotecas locais.

Este texto foi dividido em três unidades (e seus subtópicos), conforme o leitor poderá aferir no sumário.
No entanto, essa foi uma arbitrariedade da autora, já que a história da matemática se desenvolveu de acordo
7
com condições e necessidades históricas, ou seja, ela não é linear e nem suas descobertas estiveram sempre
relacionadas. Na verdade, a história da matemática é caótica, muitas vezes completamente anônima. Essa ressalva
é importante porque há na sociedade uma visão arraigada – e inúmeros trabalhos acadêmicos comprovam isso
– de que a abordagem que a maioria dos professores de matemática defende (conscientemente ou não) é a
abordagem internalista, que privilegia somente o conhecimento do ponto de vista interno da própria matemática,
levando os estudantes a crerem que o desenvolvimento da área sempre esteve pautado pela racionalidade.

No entanto, mesmo defendendo à exaustão alguns pontos de vista (inclusive o internalista), os


professores têm uma vida que transcende a defesa de seus pontos de vista sobre a matemática. Suas
vidas em família, a relação com seus companheiros e filhos, com colegas de profissão e com amigos
e parentes acrescentam fatos novos ao que se sabe das relações individuais com a categoria docente
e com a sociedade. Todos esses aspectos permitem uma reflexão sobre os condicionantes de práticas
pedagógicas estarem, assim como a sociedade e a cultura de uma época histórica, sempre adaptando‑se
a um mundo em transição – assim como ocorreu com a história da matemática.

Em sua obra, Michel Foucault defende a possibilidade de se interrogar o discurso do outro além da
ideologia no qual se inscreve: o discurso é muito mais. O discurso é o que se deve apreender a partir de
posições assumidas, da fala, das práticas cotidianas, de profissionais que denunciam os efeitos recíprocos
do par saber‑poder e a sua integração estratégica na conjuntura de correlação de forças nos diversos
confrontos produzidos na reprodução da vida (BERNARDES, 2009, p. 53‑54).

Dentro dessa perspectiva, a matemática é uma forma de discurso do poder e, como o estudante
perceberá no decorrer da leitura deste texto, o panorama cultural da humanidade avaliza essa
perspectiva.

A história da matemática não conseguiu atribuir muitas de suas descobertas aos seus autores. Feita
por e para as coletividades, ela não concedeu certificados, apenas alguns nomes são conhecidos e, mesmo
assim, em muitos casos apenas porque transmitiram, exploraram e comentaram certos conhecimentos
desenvolvidos por outras pessoas.

Saiba mais

A leitura do artigo indicado a seguir permitirá uma visão panorâmica do


que será tratado mais detalhadamente na disciplina:

SOUZA, A. C. C. Histórias, sensos matemáticos e constructos reflexivos


matemáticos: questões sobre educação. Disponível em: <http://www.
diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/artigos_
teses/MATEMATICA/Artigo_Carrera.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2011.

Outro aspecto que deve ser mencionado com clareza nesta introdução é a identificação da perspectiva
a partir da qual foi desenvolvido este texto: ele está atrelado ao projeto pedagógico do curso, formador
8
de professores em matemática. Porém, entrelaçada a essa diretriz fornecida pela Instituição está a
perspectiva atual da comunidade de educadores matemáticos. Na introdução do livro de Bicudo &
Garnica (2001), há uma observação que nos mostra a complexidade atual do fazer docente, daqueles
profissionais que trabalham tanto com pesquisas quanto com o ensino da matemática:

O amadurecimento de uma área faz‑se sentir pela zona de densidade que


a envolve, quando são encontrados concepções, conceitos, questões que se
superpõem, entrelaçam‑se, criando a impossibilidade de ver‑se com clareza
do que e de qual perspectiva se fala. É essa a situação que percebemos na
educação matemática, no momento (BICUDO & GARNICA, 2001, p. 09).

Nessa perspectiva, não é concebível estudar a história da matemática como algo estanque, sem
vinculação pedagógica com disciplinas específicas e muito menos utilizá‑la como mero atrativo
inicial para conteúdos específicos. A história da matemática é, sobretudo, uma forma de orientação
aos profissionais docentes a respeito da origem de questões ideológicas que perpassam o ensino,
notadamente, a força da visão eurocêntrica da matemática.

O objetivo aqui proposto é sistematizar o conhecimento que a humanidade acumulou nesta área,
no entanto, tendo sempre em vista que a análise do contexto social, histórico e cultural proporciona
a possibilidade de compreensão da ciência de modo mais abrangente do que aquele mantido pelo
positivismo, como assim defendem Bicudo & Garnica:

Permitem que se aceite como ciência procedimentos que conduzam à


construção do conhecimento sustentados em critérios de rigor que digam
dos modos de obter dados, de analisá‑los, de interpretá‑los, de generalizar
resultados obtidos, de construir argumentações e de dispor de argumentos
contrários, incompletos e insatisfatórios de maneira a articulá‑los em torno
de uma ideia sustentada pelo autor, explicitando sua lógica e convencendo
o leitor quanto à sua plausibilidade (BICUDO & GARNICA, 2001, p. 16).

Essa forma de pensar caracteriza‑se por ser analítica, crítica, reflexiva e abrangente e, segundo a
perspectiva aqui defendida, o caro leitor talvez já possa desenvolver ferramentas para romper o saco
gestacional que tem guardado a gestação do futuro professor e, com os próprios dentes, obter a liberdade
de propor ações, intervenções e decisões em seu ambiente formativo e, posteriormente, profissional.

Assim, ele poderá contribuir efetivamente para o conhecimento do mundo cultural, científico,
tecnológico, religioso, artístico, enfim, do mundo humano. Poderá analisar também qual a função do
cordão umbilical que normalmente liga os estudantes e professores às crenças fortemente arraigadas
ao pensamento matemático de que a matemática é independente do humano, portanto, independente
dos âmbitos cultural e social.

Essa liberdade é estar “vivo por conta própria”, como definiu Clarice Lispector no recorte que inicia
esta Introdução. É analisar e refletir propostas e ações educacionais nos diferentes contextos em que
ocorrem. O futuro professor, liberto do saco gestacional e do cordão umbilical que a escola lhe impõe,
9
terá condições de educar o olhar: não só observar a escola, mas buscar a finalidade e a intenção dos
procedimentos na área de educação.

Souza (2001) observa que só é possível perscrutar a paisagem escolar a fim de identificar a rede
de fenômenos que ela abriga quando se educa o olhar usando ferramentas intelectuais adequadas.
As paisagens que o olhar captura não são construídas somente a partir do natural, mas, também,
segundo uma perspectiva histórico‑social: há os atores das paisagens que nela transitam, transitaram
ou transitarão e há sempre presença e não presença naquilo que permanece e naquilo que muda. Os
sujeitos que percorrem anonimamente a paisagem se movem e agrupam‑se sob um substrato comum: a
sociedade, que é historicamente determinada, vinculada a uma dada cultura e abrange um conjunto de
vidas e suas infinitas relações. Desse modo, embora o olhar sempre tenha algo de pessoal ou individual,
ele avalia a paisagem a partir de juízos e de valores estéticos e éticos que a sociedade da qual faz parte
lhe insufla: ao construir a paisagem, o sujeito também é construído por ela.

Souza ainda considera que o fato de o tempo não ser um continuum é importante na constituição
das paisagens pelo sujeito: há um ponto entre o passado e o futuro no qual o ser humano se encontra e
no qual o tempo se modifica, onde o ser individual tem de se posicionar, “tensionado” ao mesmo tempo
pelo passado e pelo futuro. A educação é a possibilidade de o ser humano arbitrar essa luta, projetando‑se
para o futuro a partir do ponto em que, apesar da mobilidade, se encontra indefinidamente.

Para que esse ponto não se torne uma lacuna entre o passado e o futuro, mas uma terceira força1, é
necessário um esforço do sujeito, que deverá marcar simultaneamente posições frente ao passado e ao
futuro. A proposta do autor parece óbvia: o passado balizando o futuro. Essa é a finalidade de se estudar
a história da matemática.

No entanto, há uma grande dificuldade nesta tarefa delegada à educação: a de não alimentar as
possibilidades de perpetuar relações hegemônicas. O grande entrave desse encargo atribuído à educação
é a memória coletiva sempre ter sido disputada por classes, grupos ou estamentos.

(...) a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta


das forças sociais pelo poder. Tornarem‑se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos,
dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos
de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2003, p. 422).

Ao manipular a memória, esse mecanismo do poder instala uma luta na constituição da paisagem
na mente do sujeito, resultado de movimentos de lembranças e apagamentos. Souza observa que a
memória, o olhar, o cenário e a paisagem estão imbricados em uma teia de relações que impede o

1
Em Souza (2001), percebe-se claramente que essa terceira força é uma resultante – metáfora apoiada obviamente
numa concepção vetorial, no paralelogramo de composição de forças. As forças do passado e do presente chocar-se-iam
caso o sujeito (cuja interferência determina a intensidade da resultante) não se interpusesse de modo a provocar um
“desvio” no ponto onde ocorreria o “choque”.

10
privilégio de um sobre o outro. Essa teia de relações constitui o sujeito da paisagem como elemento
do próprio cenário. Segundo o mesmo autor, por essa razão o olhar do nosso tempo precisa buscar as
relações entre o visível e o invisível, pois nelas é que se encontra uma possível interpretação do real. A
análise dessa articulação permite perceber a memória e o cotidiano como artífices da paisagem, sendo
esta distinta da estática percepção do natural.

Assim, Souza considera que educar o olhar é buscar analisar quais práticas educacionais habitam
o cotidiano escolar e relacioná‑las às normas e regras praticadas no contexto social mais amplo,
objetivando a percepção e a análise de um campo múltiplo e móvel de correlação de forças existentes
em dada sociedade. Em suma, educar o olhar é se perceber sujeito da paisagem em qualquer cenário,
seja ele escolar, urbano, rural, de miséria ou de luxo.

E você está vivo por conta própria (LISPECTOR, 1973, p. 41).

Saiba mais

A leitura do artigo indicado a seguir permitirá um questionamento


sobre outras possibilidades além da lógica formal para o pensar e fazer
profissional:

BERGAMO, G. A.; BERNARDES, M. R.. A produção do conhecimento na


teoria marxista, questões metodológicas e implicações na educação. In:
Educação & Sociedade. vol. 27, no 94. Campinas, jan./abr., 2006. Disponível
em: <http://www.sepq.org.br/IIsipeq/anais/pdf/gt4/07.pdf>. Acesso em: 27
mar. 2011.

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HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Unidade I
1 MATEMÁTICA: DA PRÉ‑HISTÓRIA AO MUNDO ANTIGO

Observações iniciais: sobre a memória

De acordo com Le Goff (2003), no estudo da memória histórica é necessário dar uma importância
especial para a lacuna entre as sociedades de memória essencialmente oral e as de memória essencialmente
escrita e, também, para as fases de transição da oralidade à escrita. Esse cuidado é necessário uma vez
que as novas gerações, acostumadas à extensão da memória à maquina – com o advento dos modernos
computadores –, tendem a negligenciar as manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse,
a afetividade, o desejo, a inibição e a censura exercem sobre a memorial individual e, consequentemente,
refletem na memória coletiva.

Pareceu preferível, para melhor valorizar as relações entre a memória e a


história, (...) evocar separadamente a memória nas sociedades sem escritas
antigas ou modernas – distinguindo, na história da memória, nas sociedades
que têm simultaneamente memória oral e memória escrita, a fase antiga de
predominância da memória oral em que a memória escrita ou figurada tem
funções específicas; a fase medieval de equilíbrio entre as duas memórias,
com transformações importantes das funções de cada uma delas; a fase
moderna de processos decisivos da memória escrita, ligada à imprensa e à
alfabetização; e, por fim, reagrupar os desenvolvimentos do último século
relativamente ao que Leroi‑Gourhan chama “a memória em expansão” (LE
GOFF, 2003, p. 423).

1.1 A Pré‑História: panorama cultural

Como já foi dito anteriormente, o desenvolvimento do conhecimento em matemática sempre esteve


relacionado às necessidades dos grupos ou sociedades. Apenas por pretensão didática, o texto será
dividido em épocas e será feita a tentativa de relacionar os efeitos da atividade mnêmica própria de
cada grupo ou sociedade com a impossibilidade de uma escrita linear para a história da matemática.

O primeiro momento a ser focado é o da Idade da Pedra (c. 5000000 – 3000 a.C). O período designado
para essa era é arbitrário, pois não se sabe com certeza quando a Idade da Pedra começou.

Nessa época, o ser humano era nômade, vivia em pequenos grupos, caçava pequenos animais
selvagens, pescava e colhia frutas, castanhas e raízes. Segundo Eves (2004), esses grupos ocupavam
porções habitáveis da África, sul da Europa, sul da Ásia e América Central.

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Unidade I

Eves ainda observa que também não se pode precisar com certeza o final da Idade da Pedra:
algumas culturas persistiram nesse estágio em algumas partes do mundo até o século XIX ou XX. Os
conquistadores europeus se depararam nos séculos XVI e XVII no sul da África, Austrália e Américas com
povos que ainda viviam na Idade da Pedra.

Figura 01 – Machado de pedra encontrado no sítio Santa Clara (de propriedade de Valério Otávio Rabelo Rezende), no município de
Engenheiro Beltrão, Paraná

A sociedade era rígida e as comunidades formadas por clãs ou tribos tinham um líder ou chefe. Não
havia ascensão social e nem rudimentos de política, valendo a “lei do mais forte”. Os homens caçavam
para obter alimento e as mulheres cuidavam dos filhos, da limpeza e preparavam os alimentos. Os
grupamentos humanos não eram numerosos, uma vez que a comida era escassa e estragava rapidamente.
Por isso, era necessário que frequentemente se deslocassem, o que justifica o caráter nômade das tribos
primitivas.

Le Goff (2003) afirma que, nessas sociedades sem escrita, a memória coletiva aparentemente
ordenava‑se segundo três grandes interesses: a idade coletiva do grupo, que se fundava em certos
mitos de origem; o prestígio das famílias dominantes, expresso pelas genealogias; e o saber técnico,
transmitido por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa.

Uma possível esquematização da Idade da Pedra em três períodos é dada por Eves e mostra como
as necessidades humanas foram modificando‑se e, com elas, as adaptações possíveis ao mundo em
transformação foram surgindo. Segundo o autor, os historiadores esquematizam essas transformações
dividindo a Idade da Pedra em três períodos:

• Paleolítico ou Antiga Idade da Pedra (c. 5000000 – 10000 a.C.).

• Mesolítico ou Média Idade da Pedra (c. 10000 – 7000 a.C.).

• Neolítico ou Nova Idade da Pedra (c. 7000 – 3000 a.C.).


14
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Nos dois primeiros períodos da Idade da Pedra, há poucos registros de avanços científicos e intelectuais
em decorrência da atividade de caça e colheita de frutos desses povos. Embora sem tempo para as
atividades intelectuais em função da dificuldade para sobreviver, algum progresso científico ocorreu
em decorrência da comercialização já existente entre as pessoas. Elas comercializavam entre si e havia
necessidade de anotar a parte de cada família na caçada e na colheita – um prelúdio do pensamento
científico. Assim, em relação ao desenvolvimento matemático, no período pré‑histórico o ser humano
iniciou um rudimentar processo de contagem no qual utilizava desenhos em cavernas e em pedras,
ranhuras em ossos e marcas em galhos. Mas, de acordo com Le Goff, foi no período Paleolítico Médio
que apareceram as primeiras figuras, ligadas à mitologia.

O último período caracterizou‑se pelo declínio da Idade da Pedra e por dar lugar às Idades do
Bronze e do Ferro. Por volta do ano 4000 a.C., com o desenvolvimento dos utensílios de bronze e com o
florescimento da agricultura, a vida dos grupamentos humanos foi se modificando. Quando a produção
de alimentos passou a ser superior às necessidades locais, começou a surgir o comércio. A partir daí,
iniciou‑se as descobertas científicas e se desenvolveram as grandes civilizações.

Em torno de 3000 a.C., as primeiras civilizações emergiram ao longo das margens de grandes rios
tais como o Nilo, na África (Egito); o Tigre e o Eufrates, no Oriente Médio (Mesopotâmia); o Amarelo, na
China; e os rios Indo e Ganges, na Índia.

Observação

A grande valorização do trabalho se dá na cidade. Esta é uma das


funções históricas fundamentais da cidade: nela são vistos os resultados
criadores produtivos do trabalho (LE GOFF, 1998, p. 49).

As civilizações que emergiram nesse período diferiam amplamente das sociedades de caçadores e
colhedores da Idade da Pedra. Eves (2004) afirma que a densidade populacional obrigou esses povos a
encontrar outros meios de obter alimentos. Iniciou‑se, assim, uma agricultura intensiva. O autor pontua
que essa espécie de “revolução agrícola” criou novas necessidades, tais como o desenvolvimento da
engenharia em construções de sistemas de barragens e irrigações, registros das estações das chuvas e
das enchentes e, também, traçados de mapas que especificavam as valas de irrigação. “Os agricultores
rezavam aos deuses para que as cheias e as chuvas pudessem vir conforme as tabelas e, no processo,
observavam o movimento das estrelas. Todas essas atividades deram origem a novas classes de homens
educados: sacerdotes, escribas e astrólogos” (Ibidem, p. 53). No interior desses agrupamentos já fixados
em cidades e sem a necessidade de se deslocar atrás de alimento, surgiram pessoas – reis, sacerdotes,
mercadores e escribas – que tinham tempo para ponderar sobre os mistérios da natureza e da ciência.

Em suma, o período de 3000 a 525 a.C. testemunhou o nascimento de uma nova


civilização humana cuja centelha foi uma revolução agrícola. Novas sociedades
baseadas na economia agrícola emergiram das névoas da Idade da Pedra nos
vales dos rios Nilo, Amarelo, Indo, Tigre e Eufrates. Esses povos criaram escritas;
trabalharam metais; construíram cidades; desenvolveram empiricamente a
15
Unidade I

matemática básica da agrimensura, da engenharia e do comércio; e geraram


classes superiores que tinham tempo bastante de lazer para se deter e considerar
os mistérios da natureza. Depois de milhões de anos, afinal a humanidade
tomava a trilha das realizações científicas (EVES, 2004, p. 56).

As cidades propiciavam condições para mercados de agricultores e artesãos trocarem bens, surgindo,
assim, uma classe de mercadores.

Figura 02 – Pintura rupestre esquemática em Peña Escrita, Fuencaliente, província de Ciudad Real (Espanha)

Nessa época, há a criação da escrita, evolução das antigas figuras rupestres ainda desordenadas.

Figura 03 – Escrita cuneiforme

Na Mesopotâmia, por volta de 4000 a.C, os sumérios desenvolveram a escrita cuneiforme,


representada em placas de argila. Quase simultaneamente foram desenvolvidas no Egito duas formas de

16
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

escrita: uma mais simples, denominada demótica, e uma forma mais complexa, a hieroglífica, composta
de símbolos e figuras. O aparecimento e difusão da escrita provocaram uma revolução na memória
coletiva, propiciando a preservação de registros necessários ao desenvolvimento urbano que emergia
nessas regiões:

A memória coletiva, no início da escrita, não deve romper o seu movimento


tradicional a não ser pelo interesse que tem em se fixar de modo excepcional
num sistema social nascente. Não é, pois, pura coincidência o fato de a escrita
anotar o que não se fabrica nem se vive cotidianamente, mas sim o que
constitui a ossatura duma sociedade urbanizada, para a qual o nó do sistema
vegetativo está numa economia de circulação entre produtos, celestes e
humanos, e dirigentes. A inovação diz respeito ao vértice do sistema e engloba
seletivamente os atos financeiros e religiosos, as dedicatórias, as genealogias,
o calendário, tudo o que nas novas estruturas das cidades não é fixável na
memória de modo completo, nem em cadeias de gestos, nem em produtos
(LEROI‑GOURHAN, 1964‑1965, p. 67‑68, In: LE GOFF, 2003, p. 429).

Eves afirma, assim, que a ênfase da matemática primitiva ocorreu na aritmética e na mensuração
prática, como uma ciência empírica para assistir atividades ligadas à agricultura e à engenharia. Essas
atividades necessitavam de uma forma de cálculo para um calendário utilizável; do desenvolvimento de
um sistema de pesos e medidas para ser empregado na colheita; da criação de métodos de agrimensura
para o armazenamento e distribuição de alimentos, a construção de canais e reservatórios e para dividir
a terra; e da instituição de práticas financeiras e comerciais para o lançamento e arrecadação de taxas
para propósitos mercantis. No entanto, foi nesse contexto que se desenvolveram tendências no sentido
da abstração e, até certo ponto, passou‑se então a estudar a ciência por si mesma. Assim, conclui o
autor que a álgebra evolui ao fim da aritmética e a geometria teórica originou‑se da mensuração.

Há dificuldades em localizar no tempo as descobertas em matemática. As comunidades não se


comunicavam com facilidade e os escritos sobre as descobertas na Antiguidade não se preservaram em
decorrência da fragilidade dos materiais utilizados para esse registro. Os babilônios usavam tábuas de argila
cozida, os egípcios usavam pedra e papiros e os primitivos chineses e indianos usavam casca de árvores e
bambu para esses escritos. Além disso, algumas civilizações foram extintas e, com elas, suas descobertas.

Em decorrência desse tipo de dificuldade e, também, de a matemática ter seu desenvolvimento


relacionado com a história das necessidades e preocupações de grupos sociais, Ifrah (1996) a considera
completamente anônima, apesar de sua importância. Feita por e para as coletividades, a matemática
não concedeu certificados e somente alguns de seus nomes são conhecidos, nomes estes de pessoas que
transmitiram, exploraram e comentaram algarismos e sistemas de numeração. Porém, sobre os próprios
autores, o teórico conclui que as informações estão certamente perdidas para sempre, talvez porque
algumas invenções remontem a uma Antiguidade muito mais remota do que se supõe ou porque foram
feitas por homens relativamente humildes a quem a história não deu direito a registro.

Mas estas descobertas nunca estão para sempre asseguradas: uma


civilização se apaga, a dos babilônios ou a dos maias, e, junto com sua
17
Unidade I

casta de sacerdotes rigorosamente recrutados, é um pouco da técnica dos


números que desparece, toda uma invenção a refazer. Trata‑se, pois, de uma
história caótica e tumultuada, cheia de avanços fulgurantes e de recaídas,
em que o passo incerto, errático, feito de tentativas e de erros, de impasses,
de esquecimentos e de renúncias da espécie humana, parece (para nós, que
conhecemos seu coroamento, pelo menos em relação a esse ponto) com o
de um bêbado (IFRAH, 1996, p. 11).

Resumidamente, conclui‑se então que a invenção dos algarismos é anterior à escrita e estes
estiveram relacionados com o pensamento místico e religioso do homem no decorrer da história. Assim,
a lógica não foi o fio condutor da história da matemática. Em verdade, uma nova civilização emergiu
no período de 3000 a 525 a.C. por conta da necessidade de uma economia agrícola que desse conta
das necessidades colocadas pelos agrupamentos ao longo dos rios Nilo, Amarelo, Indo, Tigre e Eufrates.
Esses povos construíram cidades, criaram escritas, utilizaram metais e desenvolveram empiricamente a
matemática básica da agrimensura, da engenharia e do comércio. No entanto, foram as preocupações
de contadores, sacerdotes, astrônomos‑astrólogos e, em último lugar, de matemáticos que presidiram
à invenção e à revolução dos sistemas de numeração. Muitos nomes de números, notações e símbolos
distintos existiram ao longo da história da humanidade, entretanto, apenas alguns acabaram por ter
influência na civilização ocidental, daí serem denominados de “berços da civilização” as regiões agrícolas
do Oriente Médio, da China e do Egito.

2 MATEMÁTICA NO ANTIGO EGITO

Figura 04 – Mapa do Egito

18
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

O Egito localiza‑se no nordeste da África, na região do deserto do Saara. A vida no Egito sempre
dependeu e teve estreita relação com o rio Nilo, que provia a população de água e dos peixes para sua
sobrevivência, além de viabilizar em suas margens a agricultura e o cultivo do papiro para a escrita. O
Nilo também possibilitava o transporte e a comunicação entre as diversas regiões situadas de Norte a
Sul e, por ter águas caudalosas, facilitava a construção de canais de irrigação e diques.

A história do Egito Antigo vai de aproximadamente 4000 a.C. até 30 a.C., quando essa civilização entra
em declínio com a invasão dos romanos. Sua subdivisão é feita em diversos períodos, porém, os contextos
social, político e econômico se assemelham, assim como o matemático e o científico. A sociedade egípcia
era composta pelo faraó, a nobreza, os sacerdotes, os militares, os escribas, os artesãos, os mercadores, os
camponeses (lavradores e pastores) e os escravos. O faraó era o senhor do Egito, considerado uma divindade
– o que lhe dava o poder absoluto – e a nobreza o auxiliava na administração estatal. Os egípcios eram
politeístas, ou seja, acreditavam em vários deuses e animais sagrados. Havia também a crença na vida após a
morte, motivo pelo qual os egípcios desenvolveram a técnica de mumificação de corpos para sua preservação
e construíram pirâmides para abrigar esses corpos e os artefatos da nobreza para a próxima vida.

Inicialmente, a economia egípcia foi centrada na agricultura, com os camponeses cultivando a terra
e fornecendo os produtos para o faraó e a nobreza e retendo para si somente o suficiente para a
sobrevivência. O desenvolvimento do comércio com outros povos para a troca de mercadorias ocorreu
somente num momento posterior.

O desenvolvimento da ciência e da matemática no Antigo Egito teve estreita relação com suas
necessidades práticas. Os estudos de astronomia e agrimensura surgiram pela premência que os egípcios
tinham em saber quando ocorreriam enchentes no Nilo e quais seriam suas extensões. No entanto, o
fato de o rio ter um comportamento bastante regular e, segundo Boyer, de o país ser geograficamente
protegido de invasões estrangeiras permitiram um alto grau de estagnação no desenvolvimento das
ciências. No campo da administração territorial, surgiu a necessidade de registros e cálculos para
possibilitar a cobrança de impostos e taxas diversas.

Quanto à educação no Egito Antigo, ela se destinava apenas ao faraó e sua família, aos sacerdotes
e aos nobres e era uma educação elementar. Por decisão do faraó, alguns escribas tinham acesso à
educação para exercerem sua função.

Figura 05 – Hieróglifos em Memphis, com a estátua de Ramsés II ao fundo

19
Unidade I

Por volta do ano 3000 a.C., os egípcios já tinham desenvolvido seu sistema de escrita: os hieróglifos.
Eles não desenvolveram um alfabeto, mas determinaram símbolos correspondentes aos sons de sua
língua. Ao combinar os fonogramas, formavam‑se as versões esquematizadas de palavras. Com o passar
do tempo, foram desenvolvidas mais duas formas para a escrita: a hierática e a demótica. A hierática
foi usada pelos sacerdotes em textos sagrados e era uma escrita cursiva, geralmente gravada em papiro,
madeira ou couro. A demótica era uma forma simplificada de escrita, usada para as situações de comércio
e situações gerais do dia a dia.

Em seguida, um exemplo de escrita gravada predominantemente em papiros:

Figura 06 – Papiro: documento em escrita cursiva hierática

Figura 07 – Documento em escrita hierática, registrado em papiro e obtido no Templo de Amun

A partir das figuras anteriores, é possível observar as duas formas de escrita egípcia. No entanto,
segundo Boyer, as escritas demótica e hieroglífica só foram desvendadas a partir da descoberta em
1799 pela expedição de Napoleão da pedra de Rosetta (antigo porto de Alexandria). Ela continha uma
mensagem em três línguas: demótica, hieroglífica e grego. Champollion, na França, e Thomas Young, na
Inglaterra, decifraram as escritas antigas por serem conhecedores da língua grega.

20
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Figura 08 – Pedra de Rosetta

Figura 09 – Demarcação dos três tipos de escrita

Desta forma, Boyer indica que a numeração hieroglífica egípcia foi facilmente decifrada. Pelo menos
tão antigo quanto as pirâmides e datando de cerca de 5000 anos atrás, o sistema baseava‑se na escala
de dez. Para a representação numérica, tinham símbolos em hieróglifos e em hierático:

Figura 10 – Hiróglifos

21
Unidade I

Figura 11 – Hierático

O sistema de numeração dos Egípcios baseava‑se em sete números‑chave: 1, 10, 100, 1.000, 10.000,
100.000 e 1.000.000. Todos os outros números eram escritos combinando os números chave.

1 10 100 1.000 10.000 100.000 1.000.000

Figura 12

Esses símbolos eram colocados lado a lado e repetidos até nove vezes. Por exemplo, o número 1.342
seria escrito da seguinte forma:

Figura 13

O sistema usado era o decimal, ou seja, cada dez símbolos eram trocados por um símbolo de ordem
superior, mas não era posicional: cada símbolo não tinha um valor relativo, ou seja, um valor que dependia
da sua posição dentro do número. Não havia um símbolo para o zero. Os sistemas de numeração tinham
por objetivo prover símbolos e convenções de agrupamento desses símbolos de forma a registrar a
informação quantitativa e poder processá‑la.

Boyer aponta que as inscrições egípcias revelam familiaridade com grandes números desde tempos
remotos. Os egípcios eram precisos no contar e no medir e, em razão disso, as pirâmides foram construídas
com alto grau de precisão e orientação.

Com base na relação que estabeleceram entre as inundações do rio Nilo e os surgimentos heliacais
da estrela de Sirius, os egípcios construíram um bom calendário solar feito de 12 meses de 30 dias e mais
cinco dias de festa. Como esse calendário perdia um quarto de dia por ano, as estações avançavam em
torno de um dia a cada quatro anos. A data de sua origem é discutível, mas se supõe que esse calendário
tenha sido construído em torno de 2773 a.C.
22
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Para Eves, o Egito sempre se manteve em um semi‑isolamento. A natureza tranquila do rio Nilo fez
com que o desenvolvimento do conhecimento matemático no Egito não tenha sido tão importante
quanto aquele alcançado na Babilônia.

Embora tenham desempenhado um papel relevante na obtenção de informações sobre a matemática


desenvolvida pelos egípcios, os calendários e pedras tumulares forneceram informações sobre o contar
e o medir. Os conhecimentos e registros históricos que temos sobre a civilização egípcia e a matemática
por eles desenvolvida provêm principalmente de alguns papiros encontrados a partir do século XIX, que
resistiram ao desgaste do tempo por mais de três milênios e meio. Os papiros mais importantes são o de
Rhind, o de Moscou e o de Berlim.

Papiro de Rhind (ou de Ahmes)

O papiro que ficou conhecido como papiro de Rhind (ou papiro de Ahmes), segundo Boyer, foi comprado
em 1858 pelo escocês Alexander Henry Rhind em uma loja de Luxor. Ele é um antigo papiro egípcio, com
cerca de 0,30 m de altura e 5 m de comprimento, contém 85 problemas matemáticos escritos em hierático
e foi feito pelo escriba Ahmes, que o copiou por volta de 1650 a.C. de outro documento mais antigo, de
aproximadamente 2000 a.C. Em sua maioria, os problemas envolvem assuntos de natureza prática, são de
cunho aritmético ou geométrico e cada um deles está acompanhado de sua resolução. O papiro de Rhind
encontra‑se no British Museum (exceto alguns fragmentos, que estão no Brooklin Museum).

Figura 14–Papiro de Rhind

De acordo com Boyer, os numerais e outros assuntos não foram escritos no papiro de Rhind na forma
hieroglífica, mas sim em escrita cursiva. A numeração é decimal, mas com a introdução de sinais especiais
para representar dígitos e múltiplos de potências de dez, em um processo denominado de ciferização. O
autor ainda complementa que, introduzido pelos egípcios há cerca de 4000 anos, esse processo significou
uma importante contribuição à numeração e continua sendo um instrumento eficaz até os dias atuais.

Eves afirma que, ao descrever os métodos de multiplicação e divisão utilizados por este povo, os
papiros também são fontes primárias ricas sobre a matemática egípcia antiga, já que através deles
sabe‑se que os egípcios faziam uso das frações unitárias e do emprego da regra de falsa posição2,
solução para o problema da determinação da área de um círculo e para muitos problemas práticos os
quais as aplicações da matemática solucionariam.
2
O método de falsa posição será mostrado no tópico “Influência egípcia”.

23
Unidade I

Papiro de Moscou

O papiro de Moscou data de aproximadamente 1850 a.C. e foi escrito por um escriba desconhecido e com
menos cuidado do que o papiro de Rhind. Ele também é chamado de papiro de Golonishev em homenagem
a quem o comprou em 1893, no Egito. O papiro de Moscou está também escrito em hierática e nele são
apresentados 25 problemas matemáticos, quase todos da vida prática. O curioso em relação a esse papiro é
que nele há um trapézio, mas os cálculos associados são referentes ao tronco de uma pirâmide.

Papiro de Berlim

O papiro de Berlim também foi adquirido por A. H. Rhind, em Luxor, em 1850. Boyer afirma que ele
data de aproximadamente 2000 a.C. e está parcialmente danificado. Ele é o mais antigo documento que
chegou até nossos dias e apresenta uma equação de 2° grau.

Cronologia

O quadro abaixo é feito com base em Eves (2004, p. 67‑71):

Quadro 1

História Civilização egípcia Comentários


3000 a.C. Cetro real egípcio com gravações em hieróglifos Numeração da ordem de centenas de
egípcios milhares e milhões
2600 a.C. Construção da grande pirâmide de Gizé Envolveu problemas de matemática e
engenharia
1950 a.C Papiro de Kahun Problemas teóricos a respeito de
progressões aritméticas e geométricas
1850 a.C. Papiro de Moscou ou de Golonishev
1850 a.C. Data do mais antigo instrumento astronômico
existente, misto de fio de prumo e colimador
1650 a.C. Papiro de Rhind (ou papiro de Ahmes)
1500 a.C. Extração do maior obelisco existente, erigido Tem 105 pés de altura, base quadrada de
diante do Templo do Sol, em Tebas. lado igual a 10 pés e pesa 430 toneladas
1500 a.C. O mais antigo relógio de sol que existe data Está no Museu de Berlim
dessa época
1350 a.C. Papiro de Rollin, contém algumas enumerações Está no Museu do Louvre e mostra a
elaboradas sobre alimentos utilização prática de grandes números
1167 a.C. Papiro de Harris. Foi preparado por Ramsés IV, Relata grandes obras de seu pai, Ramsés
quando ascendeu ao trono III

2.1 Influência egípcia

Aritmética e álgebra

Eves expõe que todos os 110 problemas dos papiros de Moscou e de Rhind são numéricos. A maioria
deles é de natureza prática, mas há também alguns de natureza teórica.

24
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

O autor sustenta que uma das características do sistema de numeração egípcio é o caráter aditivo
da aritmética dependente. A multiplicação e a divisão eram em geral efetuadas por uma sucessão de
duplicação, considerando que todo número pode ser representado por uma soma de potências de 2.
Esse sistema se adequa muito bem ao ábaco e, por essa razão, perdurou enquanto este esteve em uso.

Boyer indica que, para os egípcios, era familiar a comutatividade da multiplicação e muitos dos
problemas do papiro de Ahmes mostram manipulações equivalentes à regra de três.

Observação

Método da Falsa Posição:

x
Considere a equação: x + = 24
7
7
Assumindo um valor conveniente para x, tal qual x = 7: 7 + = 8
7
Como 8 deverá ser multiplicado por 3 para resultar 24, o valor de x
correto é 3.(7) = 21.

Ainda, os egípcios eram calculadores e estudaram geometria, contudo, não faziam provas geométricas
nem generalizavam suas conclusões. Por meio de exemplos, conheciam o teorema de Pitágoras e
contribuíram com os gregos com relação às regras de cálculo.

Eves percebe que já havia certo simbolismo na álgebra egípcia, já que no papiro de Rhind
aparecem símbolos para mais e menos e símbolos ou ideogramas para igual e incógnita também eram
empregados.

Frações Unitárias

Na Idade da Pedra não havia o conhecimento sobre frações. Boyer considera que foi com o advento
de culturas mais avançadas durante a Idade do Bronze que parece ter surgido a necessidade do conceito
de fração e de notação de frações.

Para os egípcios, as frações de denominador 1, chamadas de frações unitárias, indicavam o recíproco de


qualquer número inteiro através de um simbolismo próprio. Algumas passagens encontradas nos papiros
indicam que havia alguma percepção das regras gerais e dos métodos no tratamento de frações.

Geometria

Eves aponta que dos 110 problemas presentes nos papiros de Moscou e de Rhind, 26 são geométricos.
Muitos deles estão relacionados à mensuração de terras e a volumes de grãos. Aparecem também

25
Unidade I

problemas relativos à proporção e tentativas de cálculo de volumes de sólidos. Boyer chama atenção
para o fato de o conhecimento de proporção ser vital na construção de pirâmides, uma vez que as faces
deveriam manter uma inclinação constante. Eves complementa afirmando que, no papiro de Moscou,
existe um exemplo correto da fórmula do volume de um tronco de pirâmide e nenhum outro exemplo
inquestionavelmente genuíno dessa fórmula foi encontrado na matemática oriental antiga.

Boyer revela que não se conhece teorema ou demonstração formal na matemática egípcia. Entretanto,
algumas comparações relacionando perímetros e áreas de círculos e quadrado efetuadas no vale do rio
Nilo estão entre as primeiras afirmações precisas da história referentes a figuras curvilíneas.

3 MATEMÁTICA NA MESOPOTÂMIA

A Mesopotâmia localizava‑se no Oriente Médio, na região situada no vale dos rios Eufrates e Tigre,
onde hoje se localiza o Iraque e a Síria. A palavra Mesopotâmia, em grego, significa “entre rios”. A região
foi habitada inicialmente pelos sumérios que, por volta do ano 4000 a.C., desenvolveram o sistema de
escrita provavelmente mais antigo da história humana.

Figura 15 – Mapa da Mesopotâmia

Ao longo do tempo, essa região foi invadida por diversos grupos humanos, tais como os amoritas, os
cassitas, os elamitas, os hititas, os assírios, os medos e os persas, que absorveram a cultura local. Os antigos
povos que habitavam a Mesopotâmia são frequentemente chamados de babilônios, embora, segundo Boyer,
essa denominação não seja inteiramente correta. Ele afirma que, a princípio, a cidade de Babilônia não foi o
centro de cultura associado com os dois rios, mas a expressão “babilônica” foi atribuída à região durante o
período de 2000 a.C. a 600 a.C., aproximadamente. Quando a cidade foi tomada por Ciro da Pérsia, em 538 a.
C., o império babilônico terminou. A região é ocasionalmente denominada de Caldeia em razão da dominação
dos caldeus, provenientes do sul da Mesopotâmia, principalmente durante o último século antes de Cristo.

Os povos da Mesopotâmia escreviam em tabletes de argila cozida em fornos ou ao sol e, para gravar
os caracteres, usavam estiletes. Como mencionado anteriormente, eles desenvolveram uma escrita que
ficou conhecida como cuneiforme, pois as marcas feitas na argila pareciam pequenas cunhas. Esses
tabletes se mostraram mais resistentes ao tempo do que os papiros e uma enorme quantidade deles
26
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

resistiu e chegou até os nossos dias, permitindo acesso à cultura dos babilônios. Hoje, eles estão no acervo
de diversas universidades inglesas e norte‑americanas. Dessas, destaca‑se particularmente a coleção G.
A. Plimpton, da Universidade de Columbia, com tabletes de 1900 a.C. a 1600 a.C., aproximadamente. Nos
tabletes, entre outros assuntos, estão registrados problemas matemáticos, fórmulas e desenhos.

Eves relata que os arqueólogos têm trabalhado nessa região sistematicamente desde antes da metade do
século XIX, tendo sido desenterrado mais de meio milhão de tábuas de argila. Somente no sítio da antiga Nipur
foram encontradas mais de 50.000 tábuas. Das cerca de meio milhão delas, quase 400 foram identificadas como
estritamente matemáticas. No entanto, o autor observa que o trabalho para decifrar sua escrita cuneiforme foi
árduo e posterior à decifração dos hieróglifos egípcios, ocorrendo, portanto, pouco antes de 1800.

Boyer pondera que, apesar da abundância de materiais relativos à Mesopotâmia, eles provêm estranhamente
de dois períodos muito distantes no tempo. Há uma quantidade de material dos primeiros séculos do segundo
milênio a.C. (Babilônia antiga) e outra dos últimos séculos do primeiro milênio a.C. (período selêucida). A
maior parte das contribuições importantes em matemática remonta ao período mais antigo.

Por volta de 3000 a.C., a civilização dos sumérios era avançada, com estruturas políticas e religiosas definidas
e um sistema sofisticado de irrigação, com canalização e diques para o controle das enchentes dos rios Tigre
e Eufrates. Entre 2100 a.C. e 2004 a.C., os sumérios tiveram grande prosperidade e consolidaram seu sistema
jurídico, seu sistema meteorológico simplificado, seu calendário e ainda construíram diversos templos.

O desenvolvimento da civilização na Mesopotâmia ocorreu em estreita dependência dos rios Tigre e Eufrates.
Os povos prosperaram com base na agricultura, que se desenvolvia graças à fertilização da terra decorrente das
inundações dos dois rios. Contudo, de forma diversa do que se passava com as águas do rio Nilo, os períodos de
cheia dos rios Tigre e Eufrates eram bastante irregulares, obrigando a realização de numerosas obras de irrigação
e drenagem. Desse modo, desenvolveu‑se a engenharia e a navegação para o transporte de mercadorias.

Quanto à matemática, assim como no Antigo Egito ela se desenvolveu em função das necessidades
do dia a dia: inicialmente para contabilizar animais, cereais etc., posteriormente para a administração dos
bens, organização de obras e cobrança de impostos. Eves observa que as tábuas encontradas mostram
que os sumérios antigos estavam familiarizados com todos os tipos de contratos legais e usuais, tais
como faturas, recibos, notas promissórias, crédito, juros simples e compostos, hipotecas, escrituras de
venda e endossos. O autor afirma que há tábuas que são documentos de empresas comerciais e outras
que lidam com sistemas de pesos e medidas. Os sumérios efetuaram também medições do tempo e
observações na astronomia para auxiliar suas atividades práticas.

Boyer indica que os babilônios usavam um sistema numérico sexagesimal, isto é, com base no número 60.
Eles conheciam os resultados das multiplicações e divisões, raízes quadradas e cúbicas, equações e o processo
de fatoração. Eles usavam palavras como incógnitas num sentido abstrato. Os assuntos matemáticos que
se apresentam nos tabletes vindos da Mesopotâmia são: o sistema de numeração sexagesimal e as tábuas
trigonométricas e, na geometria, o estudo do tronco de cone e do tronco de pirâmide quadrangular regular; o
perímetro da circunferência; e o teorema de Pitágoras e as ternas pitagóricas. Ainda, o sistema de numeração
usado variava entre o posicional, o decimal e o sexagesimal e a base 60 era apropriada principalmente para o
cálculo com frações, por conta dos divisores naturais de 60: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 10, 12, 15, 20, 30, 60.
27
Unidade I

Figura 16 – Símbolos para os números

Segundo Boyer, especula‑se que o sistema sexagesimal teve origem provavelmente na astronomia,
especificamente na contagem do tempo, isto é, na divisão do tempo em horas, minutos e segundos. O
sistema seria originário da junção de dois sistemas mais antigos: o decimal e outro de base seis. No entanto,
o autor considera mais provável que a base de 60 unidades tenha sido adotada e legalizada no interesse da
metrologia, uma vez que uma grandeza de 60 unidades pode ser mais facilmente subdividida em metades,
terços, quartos, quintos, sextos, décimos, dozeavos, quinzeavos, vigésimos e trigésimos, fornecendo assim
dez subdivisões. Eves informa que, mesmo nas tábuas mais antigas, o sistema sexagesimal posicional já
estava estabelecido. Muitos dos textos dos primeiros tempos mostram a distribuição de produtos agrícolas
e de cálculos aritméticos baseados neste sistema. Apesar da forma fundamentalmente decimal das
sociedades atuais, esse sistema ainda permanece nas unidades de tempo e angulares.

Saiba mais

Baseados na obra de Georges Ifrah, que faz parte de nossa referência


bibliográfica, alunos da licenciatura em ensino de matemática da Faculdade
de Ciências da Universidade de Lisboa apresentaram uma série de seminários
que foram reproduzidos no texto 6 formas de pensar os algarismos,
disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/
algarismos/introducao.htm>. Acesso em: 19 maio 2011.

Operações fundamentais

De acordo com Boyer, os babilônios desenvolveram a melhor notação para frações conhecida até
a Renascença. A precisão de seus resultados diferia muito pouco daqueles possibilitados pelo processo
atual. Além disso, segundo o autor, os matemáticos babilônios não foram hábeis apenas com sistemas de
28
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

numeração, mas também no desenvolvimento de processos algoritmos, entre os quais um para extrair a
raiz quadrada. As operações aritméticas fundamentais eram tratadas de forma semelhante à atual e com
facilidade comparável. Ainda segundo o autor, também existem tabelas babilônicas que contêm potências
sucessivas de um dado número, semelhante às atuais tabelas de logaritmos ou, mais propriamente, de
antilogaritmos. Apesar de existirem lacunas em suas tabelas exponenciais, os babilônios utilizavam a
interpolação por partes proporcionais para a obtenção de valores intermediários aproximados.

Geometria

Este campo sempre esteve relacionado à mensuração prática. Segundo Eves, no período de 2000
a.C a 1600 a.C., os babilônios já conheciam as regras gerais do triângulo retângulo, do volume de um
paralelepípedo reto‑retângulo e o volume de um prisma reto com base trapezoidal. No entanto, como
observa o autor, a principal marca da geometria babilônica é seu caráter algébrico.

Álgebra

Eves aponta que, em torno de 2000 a.C., a aritmética babilônia já havia evoluído para uma álgebra
retórica bem desenvolvida. Eles não só resolviam equações quadráticas, seja pelo método equivalente ao
de substituição numa fórmula geral, seja pelo método de completar quadrados, mas também discutiam
algumas equações cúbicas e algumas equações biquadradas. Para Boyer, esses conhecimentos indicam
tanto o alto grau de habilidade técnica dos matemáticos babilônios quanto a maturidade e flexibilidade
dos conceitos algébricos envolvidos.

Plimpton 322

Do ponto de vista matemático, um dos mais importantes documentos que chegaram até nós
é o tablete designado por Plimpton 3223. Eves indica que ele foi escrito no período babilônico
antigo (aproximadamente entre 1900 e 1600 a.C.). Boyer observa que a tábula encontra‑se
parcialmente danificada, mas o esquema de construção é claramente discernível. Inicialmente,
ela foi tomada como um registro comercial, mas uma análise mais profunda mostrou que aquilo
que foi registrado nela constitui em profundo significado matemático na teoria dos números.
Sabe‑se que, entre outras notações, a tábula traz a relação entre os três lados de um triângulo.

Figura 17 – Plimpton 322


3
Sua designação se deve ao fato de pertencer à coleção de G. A. Plimpton, da Universidade da Columbia, e à sua
catalogação sob o número 322.

29
Unidade I

Um momento de reflexão para o futuro professor

Boyer faz uma observação curiosa que, no contexto de um curso de licenciatura, vale a pena ser
comentada:

As realizações dos babilônios no domínio da álgebra são admiráveis,


mas os motivos que impulsionaram essa obra não são fáceis de
entender. Era suposição comum que virtualmente toda a ciência e a
matemática pré‑helênicas eram puramente utilitárias; mas que espécie
de situação da vida real na Babilônia antiga podia levar a problemas
envolvendo a soma de um número e seu recíproco, ou a diferença entre
uma área e um comprimento? Se o motivo era utilitário, então o culto
do imediatismo era menos forte do que hoje, pois conexões diretas
entre o objetivo e a prática na matemática babilônia não são nada
aparentes. Que pode ter havido tolerância para com a matemática por
si mesma, se não encorajamento, é sugerido por uma tableta (No 322)
na Plimpton Collection da Columbia University. A tableta do período
babilônio antigo (1900 a 1600 a.C. aproximadamente) e as tabelas que
contêm podiam facilmente ser tomadas por um registro de negócios.
No entanto, a análise mostra que há um profundo significado na
teoria dos números, e que talvez se relacionasse com uma espécie de
prototrigometria (BOYER, 2003, p. 23).

O comentário do autor é interessante porque ele reitera uma perspectiva que não pode passar
despercebida ao futuro professor: a matemática é uma criação humana e a forma como ela é apropriada
difere conforme o contexto em que ela é utilizada. De fato, nos primórdios da sociedade humana a
ênfase da matemática primitiva ocorreu na aritmética e na mensuração, como uma ciência prática para
assistir a atividades ligadas à agricultura e à engenharia. Mas foi exatamente esse contexto que criou as
condições para que se desenvolvessem tendências no sentido da abstração. Uma forma de se perceber
isso é o alerta de Ifrah (1996) em relação à importância de se diferenciar a forma como o número é
concebido por diferentes grupos humanos, ou seja, as pessoas nem sempre são capazes de conceber
qualquer número abstrato.

O autor aponta que inúmeras hordas “primitivas”, como os zulus e os pigmeus da África, os aranda
e kamilarai da Austrália, os aborígenes das ilhas Murray e os botocudos do Brasil percebem o número
de modo um tanto qualitativo. Para esses grupos, o número se reduz a uma “pluralidade material” e
assume o aspecto de uma realidade concreta indissociável da natureza dos seres e objetos em questão.
O traço comum de diferentes agrupamentos possuírem a mesma quantidade de itens, tais como cinco
carneiros ou cinco árvores, se reduz a uma espécie de capacidade natural chamada de “percepção
direta do número” ou “sensação numérica”. Expressões como “muito” e “vários” são utilizadas para
caracterizar agrupamentos e avaliá‑los. Essa aptidão natural não pode ser confundida com a “faculdade
abstrata de contar”, que diz respeito a um fenômeno mental mais complicado e constitui uma aquisição
relativamente recente da inteligência humana.

30
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Figura 18 – Objeto de decoração reproduzindo momento de reflexão de um membro de uma horda primitiva

Determinadas espécies animais também são dotadas de um certo tipo de percepção direta dos
números. Em alguns casos, são capazes de reconhecer as modificações de conjuntos numericamente
reduzidos. No entanto, é curioso notar que as faculdades humanas de percepção direta dos números
não ultrapassavam a de certos animais, pois não iam além do número quatro. Ifrah indica que, para que
o ser humano pudesse progredir no universo dos números, foi necessário que certos procedimentos
mentais fossem agregados à sensação numérica inata. Daí que, diante da existência de um embrião
de capacidade de abstração entre os babilônios, a perplexidade de Boyer causa certa estranheza, pois
as condições geográficas da Mesopotâmia exigiam o desenvolvimento da matemática e ela de nada
serviria se ficasse trancafiada a um grupo de sábios.

É importante observar a história segundo essa perspectiva porque, atualmente, ainda há controvérsias
a respeito de a quem deve ser dada a capacidade de abstração e de inferência. É a discussão que Vianna
(2003) coloca para a educação matemática:

A educação matemática só é possível porque, uma vez que existe a


matemática, as pessoas podem trocar experiências matemáticas entre si.
Quero deixar bem claro aqui uma prioridade que dou à matemática: se ela
não existisse, não haveria educação matemática. Mas não basta que exista
matemática, ela deve ser instituída como uma prática social relevante, e é
essa relevância e esse modo de instituição que vão determinar a necessidade
de uma educação matemática. (...) A educação matemática depende, de modo
radical, de como a sociedade institui, a cada época, a matemática como
prática social relevante. A educação matemática existe porque, existindo
a matemática, as sociedades, ao fazerem dela um dos elementos de sua
cultura, criaram necessidades específicas de comunicação e, a par dessas
necessidades, encontraram dificuldades no exercício dessa comunicação
(VIANNA, 2003, p. 48).

Os professores de matemática irão se deparar com essas dificuldades de comunicação que os objetos
matemáticos colocam para sua prática. Além disso, em um primeiro momento ainda confundirão os

31
Unidade I

objetos da educação matemática com os da matemática. No entanto, é exatamente na perplexidade de


Boyer que talvez resida o caminho para diferenciá‑los.

O desenvolvimento da matemática está intrinsecamente ligado ao humano, inclusive como faculdade de


abstração. Boyer relaciona a capacidade de abstração às possibilidades que uma sociedade proporciona:

As culturas pré‑helênicas também têm sido estigmatizadas como puramente


utilitárias, com pouco ou nenhum interesse pela matemática por ela mesmo.
Aqui, também, está envolvido um julgamento, mais do que prova indiscutível.
Então, como agora, a vasta maioria da humanidade se preocupava com problemas
imediatos de sobrevivência. O lazer era muito mais raro do que hoje, mas mesmo
assim havia no Egito e na Babilônia problemas que têm características de
matemática de recreação. Se um problema pede a soma de gatos e medidas de
trigo, ou de comprimento e uma área, não se pode negar a quem o perpetrou ou
um certo humor ou uma procura de abstração (BOYER, 2003, p. 29).

Por fim, vale destacar que é da civilização que se desenvolveu na Mesopotâmia o primeiro código de
leis escrito da história: o código do imperador Hamurabi. Esse código continha uma legislação sobre o
direito de propriedade, escravidão, relações familiares, religião, crimes, comércio, empréstimos a juros etc.
e era extremamente rígido. Nele, estavam previstas as punições para roubo, auxílio à fuga ou ocultação
de escravos e incesto, por exemplo.

Acredita‑se que, infelizmente, vários problemas matemáticos da época não foram registrados,
contudo, provavelmente a civilização que se desenvolveu na Mesopotâmia produziu conhecimentos
além do que podemos imaginar.

Quadro 2 – Cronologia

História Civilização da Mesopotâmia Ciência


8000 a.C. Objetos em argila
3500‑3000 a.C. Cidades sumerianas - Desenvolvimento da Criação da roda
escrita cuneiforme
3000‑2350 a.C. Primeiros tabletes de Argila com
problemas matemáticos
2100‑2000 a.C. Desenvolvimento do sistema
sexagesimal
2000‑1600 a.C. Tabelas com multiplicações, raízes,
coeficientes e algoritmos
1700 a.C. Babilônios – Legislação Código de Hamurabi, desenvolvimento
da álgebra e da geometria
1500‑747 a.C. Babilônios – Palácios Astronomia
650 a.C. Assírios – Biblioteca de Astronomia Astronomia
612 a.C. Caldeus Artes Astronomia
540 a 500 a.C. Persas – Calendários Astronomia
336 a.C. Alexandre

32
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

4 MATEMÁTICA NA GRÉCIA ANTIGA

Figura 19 – Mapa da Grécia

A atividade intelectual das civilizações do Egito e da Mesopotâmia perdeu seu ritmo bem antes da era
cristã, cedendo espaço para uma nova civilização assumir a hegemonia cultural. Segundo Struik (1997),
os novos povos que se destacavam eram os hebreus, os assírios, os fenícios e os gregos. No entanto,
como já mencionado anteriormente, o período anterior à era cristã foi marcado por um longo período
de progresso intelectual e científico. Em regiões agrícolas denominadas “berço da civilização” (Oriente
Médio, China e Egito), projetos de irrigação foram desenvolvidos e as primeiras cidades, pirâmides,
monumentos e os Jardins Suspensos da Babilônia foram construídos. Além disso, a escrita foi inventada
e desenvolveu‑se a matemática, a astrologia e a metalurgia. O sistema de tribos foi substituído por
sistemas complexos de governo, como as cidades‑estado e os pequenos impérios. Porém, como observa
Eves, as realizações culturais mais impressionantes ocorreram na Grécia, durante o período Helênico (c.
800‑336 a.C.), e na China, nos primeiros tempos do Período Clássico (c. 600‑221 a.C.).

A civilização na Grécia antiga se constituiu por volta de 2000 a.C. pela migração vinda do Egito e do
Oriente Médio, pouco depois da fundação do Império Babilônio pelos amoritas.

Eves nota que, em 300 anos, despontou na Ilha de Creta uma nova civilização, altamente avançada,
que dominava a escrita e a leitura. A localização geográfica dessa civilização foi entre os mares Egeu,
Jônico e Mediterrâneo, mas, como observa Boyer, a civilização helênica não estava só localizada ali. Em
600 a.C., colônias gregas podiam ser encontradas ao longo das margens do Mar Negro e Mediterrâneo e
foi nessas regiões afastadas que um novo impulso se manifestou na matemática. O autor constata que
os colonistas da beira‑mar, especialmente na Jônia, contavam com duas vantagens: tinham o espírito
ousado e imaginativo típico de pioneiros e estavam mais próximos dos dois principais vales de rio
dos quais podiam extrair conhecimentos. Ainda de acordo com o autor, os gregos não hesitavam em
absorver elementos de outras culturas, de outra forma, não teriam aprendido como passar tão depressa
à frente de seus predecessores imputando a tudo sua marca.

33
Unidade I

Os gregos atuais se denominam helenos em função de seus antepassados. Considera‑se que o povo
heleno, denominação dada aos cidadãos da Grécia antiga, foi aquele que construiu a base da civilização
ocidental.

Struik afirma que a Idade do Bronze foi substituída, então, pela Idade do Ferro, o que transformou a
arte da guerra, baixou os custos dos instrumentos de produção, aumentou o excedente social, estimulou
o comércio e permitiu maior participação dos cidadãos nas questões econômicas e de interesse público.
As cidades que surgiam ao longo da costa da Ásia Menor e no continente grego eram cidades comerciais,
onde os antigos proprietários de terras tinham que lutar contra uma classe de mercadores independentes
e politicamente conscientes.

Ainda segundo as afirmações de Struik, por volta de 800 a.C. começaram a surgir as “pólis”, isto é,
as cidades‑estado, delineando a vida política grega. Essa nova organização social criou um novo tipo
de homem. Os mercadores eram independentes, mas sabiam que tinham de lutar por esse estado de
coisas constantemente. Não havia lugar para uma visão estática de vida. Adicionalmente, a religião era
politeísta – os deuses possuíam características humanas – e a mitologia era muito importante para os
gregos, já que os mitos e as lendas eram usados para transmitir ensinamentos.

Embora tivessem existido várias dezenas de cidades‑estado gregas, algumas se sobressaíram. Como
ilustra Eves, sendo portos marinhos, Corinto e Argos eram cidades comerciais de grande movimento.
Situadas nas costas da Jônia (hoje Turquia), Mileto e Esmirna eram cidades‑empório importantes. Rodes,
Delfos e Samos eram comunidades ilhoas que se dedicavam à pesca e ao comércio. Siracusa era a maior
das colônias gregas, na Itália. Tebas era um grande centro agrícola e Olímpia era sede dos famosos Jogos
Olímpicos quadrienais. Porém, o autor conclui que as cidades gregas mais importantes eram Atenas
(grande centro comercial e cultural) e a militarista Esparta.

O período até 336 a.C. foi marcado por conflitos entre as cidades‑estado em virtude da escassez de
alimentos. Premido pela deficiência de condições de sobrevivência, o povo espartano se militarizou ao
máximo e travou sangrentas guerras com outras cidades‑estado. Eves afirma que o exército espartano
era temido em toda a Grécia, mas a manutenção do poderio bélico teve como consequência uma herança
intelectual praticamente nula. Atenas também passou por momentos de turbulência em decorrência da
escassez de alimentos e sofreu inclusive com uma guerra interna entre pobres e ricos. Ela só retomou o
caminho da prosperidade quando o reformador Sólon foi eleito. O novo líder alterou a forma agrícola da
região, incentivando o cultivo de oliveiras e videiras, e deu início a uma constituição bastante democrática
para o mundo antigo, apesar de, à época, mulheres e escravos serem impedidos de votar.

Depois de Sólon, a prosperidade e democracia estiveram juntas em Atenas. O azeite e o vinho,


acondicionados em jarras artísticas produzidas pelos artesãos, eram comercializados em ampla escala
não só na Grécia, mas também fora dela. O grande mercado ágora era reduto também da vida intelectual
da cidade. O mesmo acontecia em outras cidades‑estado, locais onde os filósofos ensinavam seus
discípulos e lançavam novas ideias.

Contudo, um período turbulento de guerras contra a Pérsia e contra Esparta arruinou parte do
mundo grego. Uma vez enfraquecidas, as cidades gregas foram dominadas pelos macedônios e, em 336
34
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

a.C., Alexandre, o Grande (356‑323 a.C.) uniu toda a Grécia sob o Império Macedônio. Alexandre havia
sido aluno do grego Aristóteles e, por este motivo, admirava a cultura grega, que seguiu progredindo.

Nessa fase, o centro se desloca para Alexandria e a cultura grega se funde com a oriental, o que leva
a novo desenvolvimento da matemática e das ciências. Após a morte de Alexandre, o império se divide
em três partes e, no século I a.C., todas as cidades‑estado foram dominadas pelos romanos, levando a
cultura grega ao declínio.

Os gregos se destacaram na dramaturgia (como foi o caso de Sófocles (496?‑406? a.C.)), na poesia,
nas artes plásticas e na arquitetura. Segundo dados de Eves, a descrição das vitórias gregas sobre
os invasores persas feita por Heródoto (484?‑424? a.C.) e o relato da luta fratricida entre Esparta e
Atenas feito por Tucídides (460?‑400? a.C.) foram os primeiros relatos reais do mundo antigo. Eles
desenvolveram a filosofia principalmente no período clássico, sendo Platão e Sócrates os filósofos mais
conhecidos desse tempo.

A matemática grega começou a se desenvolver na Jônia, localizada na Ásia Menor, e tomou impulso
a partir dos conhecimentos e descobertas dos egípcios e dos babilônios com os quais os gregos tiveram
contato por meio de viagens. Entretanto, a grande diferença entre os gregos e esses outros povos era
que aqueles tentaram explicar os fenômenos da natureza de forma científica, sem recorrer a mitos e à
religião. A utilização do raciocínio dedutivo em matemática – o que, segundo Eves, se deve a Tales de
Mileto (640?‑564?) e Pitágoras (586?‑500 a.C.) – deu origem à criação de uma matemática organizada,
diferente daquela de caráter prático desenvolvida no Egito e na Mesopotâmia. A lógica foi sistematizada
num tratamento medicinal de Aristóteles e Hipócrates de Quio (a quem se deve o famoso juramento
médico hipocrático), que lançou os fundamentos da medicina moderna.

Portanto, em torno do século VI a.C. surgiram Tales e Pitágoras, que tiveram para a matemática a
mesma importância que Homero na história e Hesíodo na literatura, no entanto, as obras desses últimos
foram copiadas e sobreviveram, chegando aos nossos dias atuais, enquanto que as de Tales e Pitágoras
se perderam e chegaram até nós apenas pelas narrações de historiadores e matemáticos posteriores,
sendo que Tales e Pitágoras viajaram ao Egito e à Babilônia e tiveram informações diretas dos povos
dessas civilizações.

Um momento de reflexão para o futuro professor

É importante para o aluno de licenciatura em matemática compreender as possibilidades de utilização


da história da matemática. Ela não deve ser compreendida como um fim em si mesma, mas como uma
ferramenta para a compreensão de como fazer da matemática uma prática social relevante.

Como nos ensina a história, qualquer prática social está atrelada às múltiplas relações de poder que
perpassam, caracterizam e constituem o corpo social. Desde a época dos filósofos gregos e seus discípulos,
o ensino é um campo de experimentação para que objetos (matemáticos ou de qualquer outra área)
se transformem; novas comunicações apareçam; conceitos sejam elaborados, metamorfoseados ou
importados; e estratégias sejam modificadas frente à realidade de que os discursos que regem a educação
ou qualquer outro campo do saber são discursos de perspectivas, sejam individuais ou de grupos.
35
Unidade I

E, se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, de seus direitos) fala da
verdade, essa verdade não é, tampouco, a verdade universal do filósofo. É
verdade que esse discurso (...) é sempre um discurso de perspectiva. Ele só
visa à totalidade entrevendo‑a, atravessando‑a de seu ponto de vista próprio.
Isso quer dizer que a verdade é uma verdade que só pode se manifestar a
partir de sua posição de combate, a partir da vitória buscada, de certo modo
no limite da própria sobrevivência do sujeito que está falando (FOUCAULT,
2000b, p. 61).

Nesse recorte, o que Foucault destaca é que a mobilidade de um sistema se dá de duas formas:
primeiramente, por meio das modificações intrínsecas aos seus elementos (no caso, dos conceitos
em matemática), já que, como a história mostra ao seu decorrer, a matemática evoluiu de puramente
utilitária para uma forma mais sistematizada e, nesse movimento, ocorreu a evolução humana de uma
espécie de capacidade natural chamada de “percepção direta do número” ou “sensação numérica” para
a “faculdade abstrata de contar”. Essas modificações internas de um domínio podem determinar novos
objetos e, dessa forma, novos edifícios teóricos podem ser construídos, possibilitando ao sujeito novas
perspectivas. E, em segundo lugar, as tendências externas e as necessidades reais de sobrevivência
modificam o que é aceito como verdade pelo sujeito. Foram as condições historicamente acumuladas
que permitiram ao período helênico grego as realizações intelectuais e as mudanças de perspectivas
individuais e coletivas.

No entanto, é interessante observar como os dois níveis propostos por Foucault não se desenvolvem
segundo uma autonomia sem limites: da diferenciação primária dos objetos da matemática à formação
das estratégias discursivas de uma sociedade existe toda uma sorte de relações. Quanto a essas questões,
Foucault (1972) não admite dúvidas:

Mas entendamo‑nos: não são os objetos que permanecem constantes, nem


o domínio que formam; nem também o ponto de emergência deles ou seu
modo de caracterização; mas o relacionamento das superfícies em que
podem aparecer, em que podem se delimitar, em que podem se analisar e se
especificar (FOUCAULT, 1972, p. 62).

Portanto, não se trata apenas de buscar a instância originária das relações – no caso deste texto,
as que possibilitaram o aparecimento dos objetos matemáticos –, mas sim buscar as variantes dessas
relações, ou seja, a forma como a educação é instituída pela sociedade e como, reciprocamente, atua
sobre os indivíduos, permeando as relações de poder, crenças e visões de mundo, obrigando essa
sociedade a recusar e validar qualquer explicação ou prática que negligencie as condições históricas.

Tales de Mileto

Mileto era uma cidade da Jônia, na qual Tales nasceu supostamente por volta do ano 624 a.C. No
entanto, essa é uma aproximação, pois não se tem nenhum registro que ateste a veracidade desses
dados, o que existe são apenas extrapolações ligadas a fatos contados sobre sua vida como, por exemplo,
o fato de que ele teria previsto o eclipse de 585 a.C. Boyer observa, contudo, que o importante é que a
36
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

opinião antiga o considera como o primeiro filósofo, matemático e astrônomo ocidental e um dos sete
sábios da Grécia histórica. Diz‑se ter sido um homem muito astuto, comerciante de sal, estadista de
visão e defensor do celibato.

Boyer ainda revela que foi atribuído a Tales o status de primeiro matemático verdadeiro por ele ser
considerado o responsável pela organização da geometria dedutiva. Tales iniciou a geometria abstrata a partir
de conhecimentos empíricos que, no entanto, já eram do domínio dos agrimensores egípcios e babilônicos.

Boyer e Eves declaram que, embora não exista comprovação histórica, atribui‑se a Tales a demonstração
dos seguintes teoremas:

Observe a figura a seguir e relacione com as afirmações abaixo, atribuídas a Tales:

C2

α
Cn
α
C1
α

A B

Figura 20 – Descrição do teorema de Tales de Mileto

• Um ângulo inscrito num semicírculo é reto.

• Um círculo é bissectado por um diâmetro.

• Os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais.

• Os pares de ângulos opostos formados por duas retas que se cortam são iguais.

• Se dois triângulos são tais que dois ângulos e um lado de um são iguais respectivamente a dois
ângulos e um lado de outro, então os triângulos são congruentes.

O Teorema de Tales: quando retas paralelas são cortadas por retas transversais, então as medidas dos
segmentos correspondentes determinados nas transversais são proporcionais.

37
Unidade I

Isto é: AD = AE ou AB = AC .
DB EC AD AE

Figura 21 – Ilustração do teorema de Tales

Como foi dito anteriormente e como bem observa Boyer, não há documentação que prove tais
afirmações. O que chegou até nós foi escrito por Proclus, que viveu de 410 d.C. a 485 d.C. Segundo este
autor, Tales foi ao Egito e lá aprendeu diversas proposições e, de volta à Grécia, instruiu seus sucessores
sobre elas. Proclus atribui a Tales o enunciado dos teoremas.

Conta‑se ainda que Tales tornou‑se famoso por divulgar um método de cálculo da altura de uma
pirâmide a partir do comprimento de sua sombra. Ao colocar um bastão de altura A perpendicular ao
solo e observar sua sombra B, temos que os triângulos de base C e altura D e o outro de base B e altura A
(vide figura) são semelhantes, então D = C . Logo, para conhecer a medida da altura D de uma pirâmide,
A B
basta conhecer as medidas A do bastão, B da sombra do bastão e a medida C constituída pela sombra da
pirâmide mais a metade da medida da aresta de sua base. A altura será então: D = A.C
B

A
B C
Figura 22 – Ilustração do teorema geométrico atribuído a Tales

38
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Pitágoras de Samos

Enquanto Tales foi um homem prático e de negócios, como afirma Boyer, Pitágoras foi um profeta e um
místico. Há relatos de que ele nasceu na ilha de Samos, no mar Egeu, tendo vivido aproximadamente de 571 a
500 a.C. Ele é historicamente uma figura imprecisa, pois sua vida está envolta em muita fantasia, uma vez que
não existem escritos próprios de Pitágoras que tenham chegado até nossos dias. Os registros históricos que
temos sobre ele são todos de fontes muito posteriores à sua existência. Uma das primeiras menções históricas
a Pitágoras vem de um grego chamado Filolau e foram escritas quase 100 anos depois de sua morte.

Conta‑se que, assim como muitos dos filósofos gregos, Pitágoras também viajou pela Ásia Menor
e pelo Egito e lá assimilou informações de matemática e de astronomia. Alguns autores afirmam que
ele foi discípulo de Tales, mas, como observa Boyer, possivelmente as semelhanças que existem entre
as obras dos dois sejam decorrentes das viagens que este engendrou durante a vida, uma vez que há
uma diferença de meio século entre suas idades. Quando Pitágoras retornou de suas viagens a Samos,
o poder local estava nas mãos do tirano Polícrates, o que o levou a migrar para o porto marítimo de
Crotona, que era uma colônia grega na península itálica. Ali, de acordo com Eves, ele fundou a famosa
Escola Pitagórica que, além de ser centro de estudo de filosofia, matemática e ciências naturais, era
também uma irmandade estreitamente unida por ritos secretos e cerimônias.

Figura 23 – Obra de Peter Paul Rubens e Frans Snyders

A reprodução da obra de arte acima é interessante porque, como aponta Eves, uma das características
da escola pitagórica era a suposição de que a causa última das várias características do homem e da
matéria são os números inteiros, o que levava a uma exaltação ao estudo das propriedades dos números
e da aritmética, junto com a geometria, a música e a astronomia. No entanto, como indica Boyer,
observa‑se também na obra de arte a existência de vegetais, uma alusão ao fato de que o vegetarianismo
era imposto aos seus membros, aparentemente porque a ordem acreditava na doutrina da metempsicose,
ou transmigração de almas, e, portanto, matar um animal poderia representar para um amigo falecido
perder sua nova morada.
39
Unidade I

Num certo sentido, a Escola Pitagórica foi a primeira universidade do mundo ocidental. Ela era organizada
na forma de irmandade religiosa e intelectual secreta, com centenas de alunos, e usava o pentagrama como
símbolo. Seus membros acreditavam na purificação da mente pelo estudo de geometria, aritmética, música
e astronomia. Eves informa que esse grupo de matérias ficou conhecido na Idade Média como quadrivium,
ao qual se acrescentava o trivium, formado de gramática, lógica e retória. Os ensinamentos da escola eram
inteiramente orais e as descobertas eram atribuídas ao fundador. Portanto, não se sabe ao certo o que de
fato se pode atribuir ao próprio Pitágoras em relação ao conhecimento produzido.

Misticismo sobre números

Muitas civilizações primitivas partilhavam de várias crenças sobre numerologia e, atualmente, tais
preceitos ainda se encontram em certas comunidades místicas. No entanto, por mais que a numerologia
não seja uma criação dos pitagóricos, sua adoração aos números mostra aspectos de abstração como,
por exemplo, a veneração ao número dez não estar ligada à anatomia de mãos e pés humanos. Boyer
faz um relato sobre o pensamento místico que direcionava a escola pitagórica:

O número um, diziam eles, é o gerador dos números e o número da razão; o dois
é o primeiro número par, ou feminino, o número da opinião; três é o primeiro
número masculino verdadeiro, o da harmonia, sendo composto da unidade e
da diversidade; quatro é o número da justiça ou retribuição indicando o ajuste
de contas; cinco é o número do casamento, união dos primeiros números
verdadeiros feminino e masculino; e seis é o número da criação. Cada número
por sua vez tinha atributos peculiares. O mais sagrado era o dez ou o tetractys,
pois representava o número do universo, inclusive a soma de todas as possíveis
dimensões geométricas. Um ponto gera as dimensões, dois pontos determinam
uma reta de dimensão um, três pontos não alinhados determinam um triângulo
com área de dimensão dois e quatro pontos não coplanares determinam um
tetraedro com volume de dimensão três; a soma dos números que representam
todas as dimensões é, portanto, o adorado número dez (BOYER, 2003, p. 36).

Observação

O autor ainda destaca a importância de o misticismo pitagórico


associar‑se a números com extensão geométrica. Logo, a matemática não
só se tornou um ramo da filosofia, mas se constitui como base de unificação
de todos os aspectos da realidade.

Aritmética pitagórica (números figurativos)

Apesar do misticismo e religiosidade, os pitagóricos eram grandes matemáticos. Eves observa que
parece haver uma concordância universal de que os números figurados se originaram com os pitagóricos.
São exemplos de classificações numéricas interessantes os números triangulares, os números quadrados
e os números perfeitos.
40
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Os números classificados como triangulares são os que formam triângulos equiláteros.

Seja Tn o n‑ésimo número triangular. Então:

T1 = 1
T2 = 2 + 1 = 3

T3 = 3 + (2 + 1) = 6

T4 = 4 + (3 + 2 + 1) = 10

n(n + 1) n(n + 1)
Tn = Tn−1 + n = (1 + 2 + 3 + ... + n) + n = Tn =
2 2

Os números quadrados são os que formam quadrados perfeitos. Portanto:

Q1 = 1 Q2 = 4 Q3 = 9 Q4 = 16
Seja Qn o n‑ésimo número quadrado. Então, Qn = n2

Assim, podemos determinar uma relação entre os números triangulares e os números quadrados. A
soma de dois números triangulares consecutivos formam um número quadrado:

T2 + T1 = Q2; T3 + T2 = Q3; T4 + T3 = Q4

Ou seja: Qn = Tn + Tn − 1 = n + 2Tn – 1

Os números perfeitos são aqueles cuja soma dos divisores (excetuando‑se ele próprio) é o próprio
número. Exemplos: O numero 6 é um número perfeito pois seus divisores são: 1,2,3 e 6. Então,excetuando‑se
o 6 temos a soma dos divisores é 1 + 2 + 3 = 6.

Proporções

De acordo com Boyer (2003), é possível que Pitágoras tenha conhecido na Mesopotâmia as três médias: a
aritmética, a geométrica e a subcontrária (posteriormente denominada harmônica) e, ainda, a proporção áurea,
que relaciona duas delas: “o primeiro de dois números está para a sua média aritmética como a média harmônica
está para o segundo” (Ibidem, p. 38). Acredita‑se que os pitagóricos expandiram esse conhecimento posteriormente,
mas não é possível precisar a data de listagem das dez possibilidades de médias, como apresentado a seguir.
41
Unidade I

Se b é a média de a e c, sendo a menor do que c, então as três quantidades estão relacionadas por
uma das equações:

b−a a b−a a b−a b c−a c c−a b


= = = = =
c −b c c −b c c −b a b−a a b−a a
b−a a b−a c b−a c c−a c c−a b
= = = = =
c −b b c −b a c −b b c −b a c−b a

Saiba mais

A leitura do artigo indicado a seguir permitirá um questionamento


sobre como os campos emergentes de investigação em história, filosofia e
sociologia da educação matemática poderiam vir a participar de maneira
crítica e qualificadora da formação inicial e continuada de professores de
matemática.

MIGUEL, A. História, filosofia e sociologia da educação matemática na


formação do professor: um programa de pesquisa. In: Educação e Pesquisa,
São Paulo, v. 31, n. 1, p. 137-152, jan./abr. 2005. Disponível em: < http://
www.ghoem.com/textos/p/Sociologia_e_EM.pdf>. Acesso em 02 jun. 2011.

Um momento de reflexão para o futuro professor

A proporção áurea demonstra que “o primeiro de dois números está para a sua média aritmética
como a média harmônica está para o segundo” número, usando uma notação moderna que pode ser
escrita como:
A C B

a-x

AB BC
Sendo: =
BC AC

a x a− x x
Ou, de forma equivalente: = ou =
x a− x x a
Essa proporção se mostrou de grande utilidade em estudos arquitetônicos e artísticos. Daí, é interessante
se definir conceitos derivados dela que foram utilizados como parâmetros para deteminado padrão estético.
42
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Alguns exemplos muito conhecidos da aplicação da proporção áurea à concepção de beleza


humana são as obras Homem Vitruviano e Mona Lisa, ambas de Leonardo da Vinci. Na Mona Lisa,
o número áureo é utilizado nas relações entre tronco e cabeça e entre os elementos do rosto da
mulher retratada.

Figura 24 – Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci

Figura 25 – Mona Lisa, de Leonardo da Vinci

43
Unidade I

Número de ouro: também chamado de razão áurea, seção áurea ou segmento áureo. Esse número
é simbolizado pela letra f, inicial de Fídias, escultor grego que o utilizou em suas obras, ou por τ(tau). O
número de ouro é obtido da seguinte maneira: quando uma linha segmento é dividida em duas partes,
de tal modo que a razão entre o segmento inteiro e a parte maior seja igual à razão entre a parte maior
e a parte menor, essa relação é chamada relação áurea e o número obtido é o número de ouro.

Observe o triângulo retângulo abaixo:

m+n m
Utilizando a definição dada, temos: =
m n
Ao desmembrar a primeira parte da equação, temos:

m n m
+ =
m m n
n m
1+ = (**)
m n

m
Denominando, assim: =f
n
n 1
Obtém‑se, reciprocamente: =
m f
Ao substituir as duas últimas relações em (**), tem‑se:

1
1+ = f
f
f +1
=f
f
f + 1 = f2
f2 − f − 1 = 0

44
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Ao resolver a equação do segundo grau, temos:

1± 5
f=
2
Ou seja, a raiz positiva é dada por:

1 + 2.23607
f=
2
f = 1618034
,

1
Ainda, quando se quer obter o segmento áureo de outro segmento dado, basta multiplicá‑lo por
f
e, quando se quer obter um segmento AB onde é conhecido o segmento áureo, basta multiplicar AB por
f = 1,618034 (número de ouro).

Saiba mais

Quem estiver interessado nas aplicações do número de ouro em polígonos


regulares, nas artes, no pentágono regular estrelado, no corpo humano, na
flora, na fauna, na pirâmide de Queops, nas danças clássicas, nas grandes
catedrais da Idade Média, na Arquitetura, no modulor de Le Corbusier, na
poesia e na série de Fibonacci, poderá acessar o trabalho disponível em:
<http://www.ime.unicamp.br/~eliane/ma241/trabalhos/aureo.pdf>. Acesso
em: 29 abr. 2011.

Teorema de Pitágoras

Eves afirma que credita‑se à Escola Pitagórica a demonstração de um dos mais famosos teoremas
da matemática, que ficou conhecido como O teorema de Pitágoras e demonstra que “num triângulo
retângulo, o quadrado sobre a hipotenusa é igual a soma dos quadrados sobre os catetos”. Esse teorema
já era conhecido pelos babilônios há mais de um século, mas sua primeira demonstração geral pode ter
sido dada por Pitágoras. Muitas conjecturas têm sido feitas a respeito do encaminhamento dado por
Pitágoras ao teorema, porém, a mais provável é a demonstração por decomposição, como ilustrado na
figura a seguir:

45
Unidade I

b a a b

c c
a b b b
b2

c2

b c c a a a2 a

a b a b

Figura 26 – Diagrama do teorema de Pitágoras

Na figura, foi denotado por a, b e c os catetos e a hipotenusa de um triângulo retângulo e os dois


quadrados têm lados a+b. O segundo quadrado está decomposto em seis partes – os dois quadrados
sobre os catetos e quatro triângulos retângulos congruentes ao triângulo dado. O primeiro quadrado
está decomposto em cinco partes – o quadrado sobre a hipotenusa e quatro triângulos retângulos
congruentes ao triângulo dado. Subtraindo‑se iguais de iguais, conclui‑se que o quadrado sobre a
hipotenusa é igual à soma dos quadrados sobre os catetos. A prova de que a parte central da primeira
decomposição é um quadrado de lado c requer o uso do fato de que a soma dos ângulos de um
triângulo retângulo é igual a dois ângulos retos. Porém, Eves ilustra que o Sumário Eudemiano4 atribui
esse teorema sobre triângulos em geral aos pitagóricos, assim como a necessidade de se conhecer certas
propriedades sobre retas paralelas, envolvidas na demonstração desse teorema.

Observação

Existem inúmeras demonstrações do teorema de Pitágoras que foram


construídas ao longo da história por diversos povos e personalidades. Já
foram catalogadas em torno de 370 demonstrações.

Para enriquecer seu trabalho, o professor do ensino fundamental poderá


recriar a demonstração acima em papel cartão, o que permitirá aos alunos
o manuseio das formas geométricas.

De acordo com Eves, o problema de encontrar inteiros a, b e c que possam representar os catetos e
a hipotenusa de um triângulo retângulo está estreitamente ligado ao teorema de Pitágoras. Ternos de
números dessa espécie são chamados de ternos pitagóricos. No entanto, o estudo da tábula Plimpton
322 mostra evidências razoáveis de que os babilônios antigos sabiam como calcular esses ternos.

A figura a seguir é interessante porque mostra uma fotografia do fragmento YBC 7289 (c. 1800‑1600
a.C.), no qual se percebe um estudo babilônico sobre relações em um triângulos isósceles, o que

4
Eves informa que o Sumário Eudemiano consiste nas páginas de abertura do Comentário sobre Euclides, Livro I, de
Proclo, e é um breve resumo do desenvolvimento da geometria grega desde seus primeiros tempos até Euclides.

46
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

posteriormente levou os pitagóricos ao problema da raiz quadrada de dois. O fragmento original está na
Babilônia Yale Collection.

Figura 27 – Fragmento babilônio YBC 7289 (c. 1800‑1600 a.C.)

Para os pitagóricos, o número era algo perfeito, assim, só admitiam números racionais. Estranhamente, na
aplicação do teorema de Pitágoras em um triângulo de catetos valendo 1, surge a necessidade de um número
que, ao ser elevado ao quadrado, fosse igual a 2. Esse número não é racional, o que levou a um grande problema
conceitual para os pitagóricos, que consideravam que tudo dependia dos números inteiros. Além disso, Eves
observa que, na definição pitagórica de proporção – em sua teoria geral das figuras semelhantes e assumindo
como comensuráveis duas grandezas quaisquer similares –, o resultado esperado só poderia ser uma grandeza
comensurável. Por muito tempo a descoberta de números irracionais se limitou a raiz de 2, no tanto, mais tarde
Platão e Teodoro de Cirene (c. 425 a.C.) descobriram muitos outros números irracionais em situações semelhantes,
isto é, para o cálculo da hipotenusa de um triângulo retângulo de catetos 2 e 1, surge o 5 e, para o cálculo da
hipotenusa de um triângulo retângulo de catetos 3 e 1, surge o 10 e assim por diante.

Eves conclui que o problema criado para a ideia de proporção foi resolvido por Eudoxo, discípulo de Platão
e do pitagórico Arquitas, através de uma nova definição. O tratamento por Eudoxo dado aos incomensuráveis
coincide com a exposição moderna dos números irracionais feita por Dedekind, em 1872.

Aritmética e logística

A história da matemática do período de Tales e dos pitagóricos está baseada em conjeturas e


inferências, uma vez que quase não existem documentos dessa época. Boyer comenta a possibilidade
de que muitos conhecimentos matemáticos datados do sexto e do quinto séculos a.C. tenham relação
com os seguidores posteriores da escola. Talvez tenha havido exagero por parte dos membros de outras
épocas na atribuição ao fundador e aos primeiros membros da seita dos méritos da visão abstrata que
fez da matemática uma disciplina intelectual.

Observação

Em virtude do estabelecimento da matemática neste período como uma


disciplina racional, Tales é considerado o primeiro matemático e Pitágoras,
o pai da matemática.

47
Unidade I

No entanto, o que não se discute é que os povos da antiguidade evitavam o uso excessivo de frações,
uma vez que o ábaco podia ser facilmente adaptado a qualquer sistema de numeração ou qualquer
combinação de sistemas. Essas técnicas eram atribuídas a uma disciplina denominada logística. Boyer
ainda observa que os pitagóricos não se preocupavam com a enumeração das coisas, tarefa esta atribuída
à logística. Para eles, o importante era a essência e as propriedades do número em si – disciplina que
denominavam aritmética, o que atualmente corresponderia à teoria dos números.

Observação

Struik (1997) diferenciou aritmética e logística para os matemáticos


gregos da seguinte forma: logística era o conhecimento vulgar e aritmética
era a ciência dos números.

A Escola Pitagórica ensejou forte influência na poderosa habilidade de Euclides, Arquimedes e Platão,
na antiga era cristã, na Idade Média, na Renascença e até em nossos dias, com o Neopitagorismo.

Quadro 3 – Cronologia – de Tales a Pitágoras

Introdução e posterior desenvolvimento significativos da geometria dedutiva Thales (600 a.C); Pitágoras (540 a.C.)
Início da teoria dos números (Escola Pitagórica) 540 a.C.
Descoberta das grandezas incomensuráveis (Escola Pitagórica) 540 a.C.

A Idade Heroica

Como afirma Boyer e como já mencionado anteriormente, praticamente não existem documentos
comprobatórios das atividades matemáticas entre os gregos até o século V a.C. Toda a história dessa
época se baseia em narrações fragmentárias e elaboradas nos séculos seguintes. Entretanto, o autor
assegura que, durante a segunda metade do quinto século, uma série de matemáticos esteve envolvida
com problemas que constituíram a base dos desenvolvimentos posteriores em geometria. Daí essa
era ser denominada de Idade Heroica da matemática. As mudanças fundamentais por que passou a
matemática pouco antes do século 400 a.C. podem ser resumidas da seguinte forma:

A atividade matemática já não se centrava quase inteiramente em duas


regiões quase em extremidades opostas do mundo grego: floresceu à volta
do Mediterrâneo todo. No que agora é o sul da Itália havia Arquilas de Tarento
(nasceu em 428 a.C. aproximadamente) e Hipaus de Metapontum (viveu por
volta de 400 a.C.); em Abdera na Trácia achamos Demócrito (nasceu em
460 a.C aproximadamente); mais perto do mundo grego, na península ática,
há via Hípias de Elis (nasceu em 460 a.C. aproximadamente); e em Atenas
viveram em tempos diferentes durante a segunda metade, crítica, do quinto
século a.C., três matemáticos de outras regiões: Hipócrates de Chios (viveu
por volta de 430 a.C.), Anaxágonas de Clazomene (morreu em 428 a.C.) e
Zeno de Elea (viveu por volta de 450 a.C.) (BOYER, 2003, p. 43).
48
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Sócrates

Boyer coloca que a influência de Sócrates na matemática foi ínfima, pois ele considerava que nem
a matemática nem a ciência poderiam satisfazer seu desejo de conhecer as coisas. Sócrates morreu
no início do quarto século a.C., mas Platão, seu discípulo e admirador, tornou‑se inspiração para a
matemática do século IV a.C.

Platão

Ao fim de 431 a.C., com o início da guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta, pouco se fez em
temos de desenvolvimento matemático. Platão nasceu em torno de 427 a.C., o ano da grande peste
que matou quase um quarto da população de Atenas. Segundo informações de Eves, Platão estudou
filosofia com Sócrates, matemática com Teodoro de Cirene nas costas da África e tornou‑se amigo
íntimo de Arquitas. Fundou em Atenas sua famosa academia, responsável por quase todos os trabalhos
importantes do século IV a.C. e pelo elo de ligação da matemática dos pitagóricos mais antigos com a
posterior e duradora Escola de Alexandria.

Eves nota que a importância de Platão está menos em descobertas matemáticas e mais em sua
convicção de que o estudo da matemática fornecia o mais refinado treinamento do espírito. Foi por
intermédio de Platão e Aristóteles que se soube o que ocorreu na Idade Heroica grega. Amante da
matemática, Platão escreveu na porta de sua academia: “aqui não adentrem aqueles não versados
em geometria”. Alguns veem nos diálogos de Platão a primeira tentativa séria de uma filosofia da
matemática.

Platão estudou os poliedros regulares, que eram associados aos quatro elementos de um sistema
cósmico (tetraedro tendo origem no fogo; o cubo, na Terra; o octaedro, no ar; e o icosaedro, na água), que
fascinou os homens por séculos. A admiração dos pitagóricos pelo dodecaedro levou‑os a considerá‑lo
o quinto e último sólido regular como símbolo do universo.

Figura 28 – Sólidos platônicos

49
Unidade I

Em geral, os matemáticos importantes que viveram nessa época se relacionaram com a Academia
de Platão.

Eudoxo de Cnido

Eudoxo viveu de 408 a.C. a 355 a.C. Nasceu em Cnidos, na Península Resadiye, na Ásia Menor – onde
hoje é a Turquia – e foi discípulo de Platão. Ele foi astrônomo, matemático e também filósofo, o que
era comum para os sábios daquela época. Para adquirir conhecimentos, Eudoxo viajou para estudar
com mestres famosos: foi a Tarento aprender matemática e astronomia com Arquitas (discípulo de
Pitágoras), à Sicília estudar medicina com Filiston e, em seguida, foi à Atenas assistir aos debates de
filosofia na Academia de Platão.
Segundo Boyer, suas maiores contribuições na matemática são: a teoria das proporções e o método
de exaustão. Até o aparecimento de Eudoxo, não havia uma definição para os números irracionais.
Os irracionais são números tais como 52 , por exemplo, que não podem ser escritos a partir da razão
entre dois números inteiros. Isso foi um transtorno no que diz respeito às proporções, que eram dadas
apenas para razões de números inteiros e não se podia explicar, por exemplo, a razão entre a diagonal e
o lado do quadrado. A partir do estabelecimento dos irracionais, torna‑se possível comparar quaisquer
comprimentos.

Boyer ainda indica que os matemáticos gregos sabiam inscrever e circunscrever poligonais em
curvas, mas não tiraram nenhuma conclusão sobre elas, pois não tinham o conceito de limite. Segundo
Arquimedes, Eudoxo introduziu o Axioma de Arquimedes, que serviu de base para o chamado método
da exaustão, o equivalente grego do cálculo integral. O axioma estabelece que dadas duas grandezas,
pode‑se achar um múltiplo de uma que excede a outra. A base do método é a seguinte propriedade: se
subtrai‑se de uma grandeza uma parte não menor que a sua metade e assim por diante, restará uma
grandeza menor que qualquer grandeza dada da mesma espécie.

Eratóstenes de Sirene

Natural da colônia grega de Sirene, Eratóstenes viveu de 276 a.C. a 194 a.C. Desde jovem, revelou‑se
um prodígio e teve a oportunidade de estudar com os maiores mestres da época. Sua formação
em matemática se deu na linha pitagórica, a mais avançada de seu tempo. Escreveu trabalhos em
astronomia e matemática, além de se interessar por gramática, poesia, filosofia, história e geografia.
Na astronomia, acreditava que a Terra era esférica, solta no espaço e girava ao redor de um centro de
fogo junto com outros corpos celestes. Suas principais contribuições foram: o cálculo do comprimento
da Terra e um método para o cálculo dos números naturais primos, que ficou conhecido como Crivo
de Eratóstenes.

Eratóstenes calculou a circunferência da terra chegando a uma medida que corresponde a 40.000
km, valor que está muito próximo ao atual, o que é surpreendente para um cálculo tão antigo.

Para calcular a medida da circunferência da Terra, Eratóstenes de Cirene usou as seguintes


informações:

50
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

• No solstício de verão em Assuan, uma vareta fincada no solo não fazia sombra ao meio‑dia.

• A distância entre Assuan e Alexandria é de aproximadamente 793 km (na unidade da época:


5.000 stadium).

• Alexandria e Assuan ficam aproximadamente no mesmo meridiano.

• A cidade de Assuan fica no Trópico de Câncer.

Utilizando uma vareta cravada verticalmente em Alexandria no mesmo dia e horário do solstício de
verão em Assuan, podia‑se calcular o ângulo formado entre a vareta e sua sombra.

7012’

Vareta

Sombra

Relacionando esses tamanhos, Eratóstenes chegou ao ângulo de 7º12’, provavelmente com o uso da
cotangente.

Alexandria

C Assuan
^b Raios solares

Considerando:

• C: o centro da Terra.

• â: ângulo entre a vareta e a sombra em Alexandria.

• ^b : ângulo com vértice C e lados formados pelos prolongamentos das varetas cravadas
verticalmente em Alexandria e Assuan.

51
Unidade I

Os raios do sol são aproximadamente paralelos, então â e ^b são ângulos alternos internos e concluímos
portanto que â = ^b = 7012.

Assim, por uma regra de três simples, temos:

7012 → 793km
3600 → x
3600.793
Logo: x = = 50.793 = 39650 km
7012’
Então, a circunferência da Terra é de aproximadamente 40.000 km e seu raio é de 6.310 km. Na
unidade de medida da época:

7012 → 5000 stadium


3600 → x
3600.5000
Logo x = = 50.5000 = 250000 stadium.
7012 ’
Boyer informa que, além desse cálculo, Eratóstenes criou um método para a determinação de
números primos até um valor limite. Ele organizou esse método em forma de crivo:

1º passo: colocar em ordem crescente os números inteiros até o valor limite estabelecido. Por
exemplo, quanto ao número 33:

2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33.

2º passo: tirar a raiz quadrada do valor limite 33 = 5,75.

3º passo: eliminar todos os múltiplos de 2, 3, 4, e 5, isto é, de todos os números naturais até a raiz
quadrada do valor limite.

Temos, então, que os números primos até 33 são: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29 e 31.

Fim do Período Helênico

Com a inesperada morte de Alexandre, em 323 a.C., seu império foi repartido entre seus
generais. A época posterior a Alexandre é chamada de Civilização Grega Helenística ou
Alexandrina.

Euclides de Alexandria

Conforme mencionado, depois da morte de Alexandre Magno, seu império foi dividido entre
seus lideres militares, dentre eles Ptolomeu I, que ficou com o controle da parte egípcia do Império.

52
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Assim, por volta de 306 a.C., o Egito tinha Alexandria como sua capital. Segundo Boyer, foi criada
nela uma famosa escola conhecida como Museu e os homens sábios da época eram atraídos para
ela. Vieram de Atenas os homens de maior talento e o grego Euclides foi convidado para chefiar
o departamento de matemática. Pouco se sabe a respeito de sua vida e presume‑se que tenha
estudado com Platão ou pelo menos na Academia. Euclides de Alexandria foi autor da obra Os
Elementos, da qual infelizmente apenas a metade resistiu ao tempo e chegou até os nossos dias.
Nessa obra, ele sistematizou conhecimentos acumulados por seu povo nos séculos anteriores,
além de diversos teoremas que ele mesmo demonstrou. No entanto, com exceção de A esfera de
Autólico, só sobreviveram os livros relacionados aos mais antigos tratados gregos. Muito do que o
próprio Euclides escreveu, inclusive algumas de suas obras mais importantes, como o Tratado sobre
as Cônicas, se perdeu.

Observação

História sobre Euclides: Ao ser indagado por Ptolomeu sobre se não


haveria um caminho mais curto para o conhecimento geométrico, o
mestre teria respondido que “não há estradas reais na geometria” e, ao ser
questionado por um aluno sobre a utilidade prática da matéria que estava
sendo vista, ordenou a seu escravo que desse a ele uma moeda “para que
tivesse algum ganho com o que estava aprendendo” (EVES, 2004, p. 165).

Segundo Eves, nenhum trabalho, exceto a Bíblia, foi tão largamente usado e estudado e provavelmente
nenhum exerceu influência maior no pensamento científico do que o livro Os Elementos, de Euclides.
Essa obra foi copiada inúmeras vezes de forma que erros e variações acabaram sendo incorporados a ela.
Suas edições modernas se baseiam numa revisão feita por Teon de Alexandria, no século IV d.C.

Eves ainda aponta que a primeira tradução latina de Os Elementos foi em árabe. Cópias chegaram
até nós através das traduções do árabe para o latim, no século XII, e para o inglês, no século XVI. Esse
livro não tratava apenas de geometria. Ele é composto por 465 proposições, distribuídas em 13 livros.
Das obras de Euclides, apenas cinco foram preservadas: Óptica (sobre a visão), Os Fenômenos (sobre
astronomia), Divisão das Figuras (sobre figuras planas), Os Dados (uma espécie de manual de tabelas) e
Os Elementos (sobre aritmética, geometria e álgebra).

Por meio dos relatos de Proclus, tomamos conhecimento de que Euclides compilou em Os Elementos
muitas das proposições de Eudoxo. Os 13 livros de Os Elementos são capítulos na verdade, uma vez que foram
escritos à mão em pergaminho. Nele, há 465 proposições organizadas numa dedução lógica dos teoremas,
definições, axiomas e postulados. Os seis primeiros livros são sobre geometria elementar, os três seguintes são
sobre a teoria dos números, o décimo é sobre grandezas irracionais e os três últimos são sobre geometria.

A respeito do conteúdo de cada livro de Os Elementos, Eves comenta: no livro I estão definições, axiomas
e postulados; congruência de triângulos; teoria das paralelas; relações entre áreas de paralelogramos,
triângulos e quadrados. Contém também o teorema de Pitágoras e resume os conhecimentos da escola
pitagórica. O livro II possui 14 proposições de transformações de áreas e álgebra geométrica pitagórica. O
53
Unidade I

livro III tem 39 proposições, apresentando teoremas sobre ângulos, círculos, cordas, secantes e tangentes.
O livro IV apresenta as construções de polígonos regulares inscritos e circunscritos num círculo. O livro V
apresenta a teoria das proporções de Eudoxo. O livro VI apresenta aplicações das proporções eudoxianas
à geometria plana. Os livros VII, VIII e IX tratam da teoria elementar dos números e o livro X enfoca as
grandezas irracionais e é, para muitos especialistas, o livro mais notável da obra. Os três últimos livros
(XI, XII e XIII) versam sobre geometria espacial.

Para Eves, apesar da grande importância do conteúdo, o que Os Elementos apresentam de mais
importante talvez seja a maneira formal segundo a qual ele é apresentado. Essa obra pode ser considerada
como um protótipo da forma matemática moderna. Para demonstrar as leis, Euclides definiu premissas,
verdades absolutas e inquestionáveis da matemática, para que, a partir delas, se estabelecessem conclusões.
A este grupo de normas foi dado o nome de postulados ou axiomas, e as leis que deveriam ser provadas a
partir deles foram chamadas de proposições. O autor ainda acrescenta que uma consequência relativamente
moderna desse estudo foi a criação de um campo de estudos denominado axiomática, dedicado ao exame
das propriedades gerais dos conjuntos de postulados e do raciocínio postulacional.

De acordo com Struik (1997), o raciocínio algébrico de Euclides era totalmente expresso numa forma
geométrica. A expressão A era definida como sendo o lado de um quadrado de área A e o produto a.b
era definido como sendo a área de um retângulo de lados a e b. As equações lineares e quadráticas eram
resolvidas por construções geométricas, através do método aplicação de áreas.

Observação

Struik afirma que Euclides escreveu Os Elementos com a intenção de reunir


num único texto três grandes descobertas de seu passado recente: a teoria das
proporções, de Eudoxo; a teoria dos irracionais, de Teeteto; e a teoria dos cinco
sólidos regulares da cosmologia de Platão. Todas elas eram descobertas gregas.

Euclides definiu cinco postulados (adaptado de BOYER, 2003, p. 73):

• Uma linha reta pode ser traçada de um ponto a qualquer outro ponto.

• Qualquer segmento finito de reta pode ser prolongado indefinidamente para constituir uma reta.

• Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer, pode‑se traçar um círculo de centro
naquele ponto e raio igual à distância dada.

• Todos os ângulos retos são iguais entre si.

• Se uma reta cortar duas outras retas de modo que a soma dos dois ângulos interiores de um
mesmo lado seja menor que dois ângulos retos, então as duas outras retas quando suficientemente
prolongadas se cruzam do lado da primeira reta em que se acham os dois ângulos.

54
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Além dos cinco postulados, Euclides define os seguintes axiomas (adaptado de BOYER, 2003, p.73):

• Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si.

• Se parcelas iguais forem adicionadas a quantias iguais, os resultados continuarão sendo


iguais.

• Se quantias iguais forem subtraídas das mesmas quantias, os restos serão iguais.

• Coisas que coincidem uma com a outra são iguais.

• O todo é maior do que as partes.

Os axiomas se diferenciam dos postulados por tratarem de comparação entre grandezas, enquanto
que os postulados tratam especificamente de questões geométricas.

A partir desses cinco axiomas e desses cinco postulados, Euclides demonstrou todas as proposições
geométricas.

Os três problemas clássicos da geometria grega

Na história da matemática, existem alguns problemas que se tornam famosos por merecerem
a atenção da comunidade matemática por longos períodos de tempo. Esse é o caso dos problemas
clássicos da geometria grega.

Eles são problemas sobre construções geométricas com régua e compasso. São eles: a quadratura do
circulo, a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo.

A dificuldade de resolução desses três problemas reside no fato de os instrumentos utilizados


serem régua não graduada e compasso. A régua não tinha propriedades métricas e só era usada
para unir dois pontos dados. O compasso, por sua vez, era usado para construir a partir de dois
pontos a circunferência como centro em um deles, passando pelo outro ponto. Vale ressaltar que

55
Unidade I

o compasso de Euclides era um compasso de pontas caídas, diferentemente do nosso compasso


atual, de pontas fixas. No entanto, era possível traçar uma circunferência qualquer com o
compasso de Euclides e esses instrumentos foram denominados de instrumentos euclidianos.

Um momento de reflexão para o futuro professor

A essa altura do texto, o aluno deve estar perplexo com a falta de exatidão da história da matemática.
Fragmentária e caótica, ela é feita de retalhos do passado que foram preservados em pedaços de argila,
papiros e bambus e, em sua maior parte, foram preservados através de inferências a partir do material
existente. Este é um aspecto importante em relação a essa faceta do trabalho dos historiadores e não
somente daqueles preocupados com a história da matemática.

O tempo na história não é um continuum, uma vez que as informações se perdem ou são distorcidas.
Portanto, só resta aos historiadores buscar desvendar os tipos de racionalidade implicadas em certo
processo. Essa racionalidade pode estar presente nas dispersões de elementos, com suas lacunas, falhas,
misturas, incompatibilidades, superposições, conversões e substituições. É um processo que procura
definir e descobrir como certos discursos são instituídos sob as formas do justo e ordená‑los tal como
são impostos e admitidos em seus mecanismos institucionais.

Assim, conforme a opção do escritor, a história da matemática pode ser organizada de forma a
perpetuar práticas como, por exemplo, a predominância de uma postura internalista que, malgrado os dados
alarmantes de pesquisas institucionais demonstrarem não dar conta da aprendizagem em matemática,
apoia uma resistência sistemática a qualquer tentativa de implementar novas abordagens provenientes
de concepções alternativas. Porém, é justamente a diferença das instituições e das inserções na cultura
que talvez permitam a visualização de perspectivas novas para o ensino, isso a partir do entendimento de
práticas dominantes e da razão de se mostrarem assim: naturais, eternas, inquestionáveis e aceitas sem
maiores suspeitas. É nas diferenças que se notam mais claramente os jogos de relações que influem nas
perspectivas educacionais de cada instituição de ensino e de cada professor.

Outro aspecto interessante da escrita da história que se mostra com muita ênfase na história
da matemática é o papel da memória coletiva. Segundo Le Goff (2003), o que sobrevive não é o
conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer por aqueles que se dedicam à ciência do
passado e do tempo que passa, ou seja, os historiadores.

Já foi esclarecido anteriormente que muito do que se sabe, por exemplo, da escola pitagórica é fruto
de relatos posteriores aos fatos que podem ter sido deliberadamente atribuídos ao fundador da escola
e aos seus primeiros seguidores. Como observa Le Goff, os materiais da memória têm sido apresentados
pela história sob duas formas: os monumentos, herança do passado; e os documentos, escolha do
historiador. Historicamente, o monumento tem conotação de perpetuação e muito raramente é
relacionado a documentos escritos:

A palavra latina monumentum remete para a raiz indo‑europeia men, que exprime
uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (menini). O verbo monere
56
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um


sinal do passado. Atendendo às origens filológicas, o monumento é tudo aquilo
que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos.
/.../ desde a antiguidade o monumentum tende a especializar‑se em dois sentidos:
1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura; /.../ 2) um monumento
funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que
a memória é particularmente valorizada: a morte (LE GOFF, 2003, p. 526).

O uso da palavra “monumento” abarca dois sentidos: a perpetuação voluntária ou involuntária das
sociedades históricas e a recordação. No entanto, a perpetuação da memória não consiste apenas em
recordar algo do passado, mas tem também a função de “instruir”, tal como as obras comemorativas
cuja função é relembrar o passado de acordo com uma imagem que a sociedade tinha de si própria. O
interesse de quem fez as obras está no futuro (em se tratando de obras humanas, o interesse reside na
formação ou manipulação das opiniões das gerações vindouras). Logo, uma das tarefas de quem está de
posse de um documento histórico é justamente desmontar, demolir possíveis montagens, desestruturar
essa construção e analisar suas condições de produção.

Observe a figura seguinte e verifique que a constituição de monumentos pode ter diversas formas:

Figura 29–Retrato do frei Luca Pacioli, matemático renascentista

Nesse quadro, de autor desconhecido e exposto no Museu e Galeria de Capodimonte, alguns elementos
constituem o ambiente para o retrato do frei Luca Pacioli (1495). Nele, Pacioli está em pé, atrás de uma mesa,
vestindo o hábito de um franciscano. Ele faz uma construção sobre uma placa na qual o nome de Euclides
está escrito na borda. Sua mão esquerda repousa sobre uma página de um livro aberto. Esse livro pode ser sua
Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalità ou uma cópia de Os Elementos, de Euclides.

57
Unidade I

Na mesa, foram alocados instrumentos de um matemático: uma esponja, um transferidor, uma caneta, um
compasso, um pedaço de giz e bússolas. No canto direito, há um dodecaedro sobre um livro com as iniciais
de Pacioli. Na extremidade superior esquerda do quadro há um Rombicuboctaedro, um sólido de Arquimedes
constituído de 18 quadrados e oito triângulos. A identidade do jovem à sua direita é incerta.

Uma possibilidade de entendimento da obra é a de que, ao fazer uso de vários elementos que
remetem a um determinado período da história da matemática, o artista buscou propiciar a quem
observa o quadro uma atmosfera própria da época ou, talvez, a de um ambiente solene próprio ao
estudo de algo ainda misterioso para o período.

Agora, reflita: quais seriam as percepções que a obra lhe proporciona, face o que foi desenvolvido
sobre a história da matemática até este momento?
A quadratura do círculo

Segundo Eves, provavelmente nenhum outro problema exerceu um fascínio maior ou mais duradouro
do que o de construir um quadrado de área igual à área de um círculo dado utilizando apenas régua não
graduada e compasso.

O teórico afirma que os egípcios deram uma solução para o problema em 1800 a.C., ao considerar o
lado do quadrado como 8/9 do círculo dado. Muitos matemáticos têm se envolvido com esse problema,
sendo que o primeiro grego conhecido a se interessar por ele foi Anaxágoras (c. 499 a.C a c. 427 a.C.),
entretanto, não se conhece o seu estudo. Hípias de Elis (c. 425 a.C.) inventou uma curva denominada
quadratriz que foi utilizada tanto para a resolução da quadratura quanto para trisseccionar ângulos.
Mas, ao que parece, Hípias de Elis utilizou a quadratriz para a trissecção de ângulos e um geômetra
posterior, Dinostrato (c. 350 a.C.), se valeu dela para a quadradura.

Eves ainda afirma que é possível obter uma solução elegante para o problema da quadradura com a
espiral de Arquimedes (c. 225 a.C.), que foi construída por ele com essa finalidade.

A trissecção do ângulo

O problema em questão solicita a construção de um ângulo com um terço da amplitude de um


primeiro ângulo dado, utilizando a régua não graduada e o compasso. Desconhece‑se a origem desse
problema, mas a primeira tentativa de resolução é de Hipias (420 a.C.).

Na Grécia antiga, era conhecido o processo de construção da bissetriz de um ângulo qualquer AÔB. Para
isso, basta construir uma circunferência de centro O, coincidente com o vértice do ângulo do qual se quer obter
a bissetriz; em seguida, constrói‑se duas circunferências de mesmo raio centradas nos pontos de intersecção
da circunferência anterior com os lados do ângulo (pontos A e B). A intersecção das duas circunferências é
o ponto C. A semirreta com origem no vértice do ângulo e que passa por C divide o ângulo dado em dois
ângulos com a mesma medida. O almejado é obter as trissecções com os equipamentos euclidianos.

58
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

s
F
B
H

E
G

D O A r

Figura 30–Trissecção aproximada

Demais processos particulares, tais como para se saber o ângulo reto, eram conhecidos, porém,
não se sabia de um processo geral. Hoje em dia, tem‑se conhecimento de que não existe solução geral
apenas usando régua e compasso. No entanto, alguns processos aproximados e soluções como a de
Arquimedes, usando a régua graduada, apareceram na história, além de que foram inventadas tentativas
de soluções por meio de curvas.

Saiba mais

Para entender melhor a quadratriz de Hípias de Elis, acesse <http://


www.ime.usp.br/~leo/imatica/historia/trissectriz.html>. Acesso em: 12
maio 2011.

A duplicação do cubo

Esse problema se diferencia dos demais por ser de geometria espacial, enquanto os outros dois são
de geometria plana. Ele consiste em construir um cubo com o dobro de volume de um primeiro cubo
dado, utilizando para isso a régua não graduada e o compasso.

Segundo Eves, existem várias histórias que contam a origem desse problema. Uma das versões pode
ter surgido com o relato de um poeta sobre a insatisfação do mítico rei Minos com o tamanho do túmulo
erguido para seu filho Glauco. Como o poeta era ignorante em matemática, ele introduziu o erro de
sugerir que, para dobrar o tamanho do túmulo, o rei teria ordenado dobrar as arestas. Conta‑se também
que, posteriormente, uma peste havia afetado a cidade de Atenas e os habitantes teriam ido até o oráculo
da Ilha de Delfos, o mais famoso da Grécia e consagrado ao deus Apolo, em busca de auxílio. O oráculo
orientou‑os para que um altar igual ao dobro do já existente e também em formato cúbico fosse erguido,
para que assim se cessasse a peste. O problema, denominado problema deliano – em decorrência desta
última versão –, foi supostamente encaminhado a Platão, que o submeteu aos geômetras.
59
Unidade I

Hipócrates de Chios foi o primeiro a tentar resolver o problema algum tempo depois de seu
surgimento. Sua ideia foi calcular duas médias proporcionais entre os segmentos de comprimento a e
2a, isto é, achar x e y, tal que: a = x = y .
x y 2a
Dessas proporções, resulta:

x2 = ay
y2 = 2ax

Substituindo o valor de y na segunda igualdade:

x2
y=
a
2
 x2 
  = 2ax
 a
x4
= 2ax
a2
x 3 = 2a3
x = a3 2

Eves ainda indica que Arquitas (c. 400 a.C.) apresentou uma solução para o problema, que envolvia
um cilindro circular reto, um toro de diâmetro interior zero e um cone circular reto. O autor aponta que
é interessante observar a extensão que a geometria teria atingido nesses tempos remotos, já que vários
outros estudiosos apresentaram soluções diversas para o problema.

Arquimedes

“Dê‑me uma alavanca que moverei a Terra”.


(ARQUIMEDES apud EVES, 2004, p. 192)

Figura 31–Alavanca de Arquimedes. Ilustração baseada em sua afirmação de que, com uma alavanca e um ponto de apoio,
conseguir‑se‑ia levantar a Terra

60
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Natural da cidade grega de Siracusa, situada na Ilha da Sícilia, Arquimedes figura entre os
maiores matemáticos de todos os tempos e certamente foi o maior da Antiguidade, segundo
dados de Eves (2004). Arquimedes nasceu por volta de 287 a.C. e morreu em 212 a.C., durante
o cerco que os romanos fizeram a Siracusa. Sabe‑se muito pouco sobre sua vida, mas há a
suposição de que pode ter estudado em Alexandria com os estudantes de Euclides e, apesar
de ter vivido toda a vida em Siracusa, mantinha contato com a Universidade de Alexandria,
em particular com Cônon, Dositeo (sucessores de Euclides) e Eratóstenes (bibliotecário da
Universidade).

Filho de um astrônomo, Arquimedes teve interesse também pela astronomia e construiu


engenhosos planetários para retratar os movimentos dos corpos celestes. Foi autor de inúmeros
engenhos mecânicos e idealizou alavancas e máquinas simples. Entretanto, Boyer (2003) informa
que seu interesse foi sempre os princípios gerais de tudo o que idealizou e não suas aplicações
práticas.

Apesar de seu nome estar ligado às possibilidades das alavancas, não foi ele quem formulou sua lei
geral. No entanto, a lei da alavanca até então estava baseada no argumento cinemático aristotélico.
Arquimedes propôs a lei por princípios estáticos (Lei do Equilíbrio) e a junção desse com o argumento
cinemático aristotélico produziu progressos tanto na ciência como na matemática.

A obra de Arquimedes sobre a lei da alavanca é parte de seu tratado Sobre o equilíbrio dos planos,
escrito em dois volumes. Essa obra não pode ser considerada como a mais antiga da física, uma vez
que Aristóteles, um século antes, havia publicado uma obra em oito volumes denominada Física.
Contudo, Boyer observa que Arquimedes teve o mérito de estabelecer uma relação estreita entre a
matemática e a mecânica, o que muito contribuiu para o avanço da produção de conhecimentos
em ambas as áreas.

Tratado sobre corpos flutuantes

Boyer e Eves indicam que o conhecido princípio de Arquimedes, que relaciona sólidos imersos
em água com a quantidade de líquido deslocada, é associado a histórias cômicas, embora não
muito prováveis. Pelo que consta, o rei Hierão suspeitava da honestidade de um ourives que
confeccionara uma coroa. Então, ele solicitou a Arquimedes que verificasse se não havia prata
misturada ao ouro da coroa.

Este, quando um dia se encontrava nos banhos públicos, descobriu a solução para o pedido
e estabeleceu a primeira Lei da Hidrostática: um corpo mergulhado em um fluido recebe um
empuxo de intensidade igual ao peso do volume de água deslocado. O distraído Arquimedes,
em sua excitação, esqueceu‑se de se vestir e saiu nu pelas ruas, indo para sua casa gritando
“Eureka, eureka!” (“Achei, achei!). Ele colocou a coroa em um dos pratos de uma balança e um
peso igual em ouro no outro prato. Com isso, repetiu a operação sob a água. O prato com a
coroa ergueu‑se, mostrando que ela continha algum material diferente, menos denso que o
ouro.

61
Unidade I

Figura 32 – Ilustração de Arquimedes em um banho morno

Como afirma Boyer, Arquimedes sempre atendia emergências mecânicas. Conta‑se que, em determinada
ocasião e a pedido do rei Hiero, ele conseguiu lançar ao mar um navio que era pesado demais com uma
combinação de alavancas e polias. Eves, por sua vez, comenta que, graças às máquinas de defesa idealizadas
por Arquimedes, a cidade de Siracusa resistiu ao cerco de Roma por quase três anos.

Sobre a obra de Arquimedes

Eves considera que os trabalhos de Arquimedes são obras‑primas de exposição matemática. De


grande originalidade, habilidade computacional e rigor nas demonstrações, eles são redigidos a partir
de uma linguagem altamente acabada e objetiva. Cerca de dez tratados se preservaram até nossos dias.
Três desses tratados referem‑se à geometria plana: A medida de um círculo (em que surgiu o método
clássico para o cálculo do π), A quadratura da parábola e Sobre espirais. Outros dois tratados referem‑se
à geometria espacial: Sobre a esfera e o cilindro e Sobre os cones e esferoides.

Figura 33 – Esfera e cilindro de Arquimedes

62
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Arquimedes tinha preferência pelo tratado Sobre a esfera e o cilindro. Nele, ele mostra que a área
de uma superfície esférica é exatamente dois terços da área da superfície total do cilindro circular reto
circunscrito a ela e que o volume da esfera é exatamente dois terços do volume do mesmo cilindro
(BOYER, 2003, p. 90 e EVES, 2004, p. 194).

A expressão “Eureka” é utilizada por diversos grupos que talvez até desconheçam a origem de seu
sentido original. É mais um dos aspectos interessantes da história:

(...) palavras que ocasionalmente surgem em algum grupo mais estreito,


tais como família, seita, classe escolar ou associação, e que dizem muito
para o iniciado e pouquíssimo para o estranho. Assumem forma na base de
experiências comuns. Crescem e mudam com o grupo do qual são expressão.
Situação e história do grupo refletem‑se nelas. E permanecem incolores,
nunca se tornam plenamente vivas para aqueles que não compartilham
tais experiências, que não falam a partir da mesma tradição e da mesma
situação (ELIAS, 1994b, p. 26).

Observe a figura abaixo no que diz respeito às condições em que a pessoa foi retratada, o ambiente
e as peças que compõem o cenário. Quais as percepções que o desenho lhe proporciona, face ao que foi
desenvolvido sobre a história da matemática até agora?

Figura 34–Gravura do filósofo grego Arquimedes em seu banho

A coroa presente na ilustração faz referência ao descobrimento da primeira Lei da Hidrostática e os


utensílios em forma de cilindros e esferas fazem referência ao tratado do cilindro e da esfera.

De acordo com Eves, Arquimedes escreveu dois opúsculos sobre aritmética, relacionados entre si,
mas um deles se perdeu. O trabalho que foi preservado forneceu dados sobre um novo sistema de
numeração, que objetivava números muito grandes (o fato ficou conhecido como “o contador de areia”) e,
63
Unidade I

supostamente, possibilitaria encontrar um limite superior para o número que representasse a quantidade
de grãos de areia que caberia em uma esfera de centro na Terra e raio igual à distância até o Sol. Boyer
complementa que esse trabalho que envolvia números imensos fez com que Arquimedes mencionasse,
muito incidentalmente, “o princípio que mais tarde possibilitou a invenção dos logaritmos – a adição
das “ordens” dos números (o equivalente de seus expoentes quando a base é 100.000.000) corresponde
a achar o produto dos números” (BOYER, 2003, p. 86). Eves observa que foi nesse trabalho que se tomou
conhecimento que Aristarco (c. 310‑230 a.C.) antecipou a teoria heliocêntrica de Copérnico.

Medida do círculo

Ao avaliar a razão da circunferência para o diâmetro de um círculo, Arquimedes mostrou mais uma
vez sua habilidade em computação. Boyer aponta que Arquimedes iniciou seu estudo calculando o
perímetro de um hexágono regular inscrito e foi dobrando sucessivamente a quantidade de lados até o
número de 96.

Figura 35–Processo de iteração para se obter o valor de π utilizado por Arquimedes

O autor conclui que a aproximação obtida por Arquimedes para o valor de π foi superior à dos
egípcios e à dos babilônios.

Invenções mecânicas

Uma das invenções mecânicas mais conhecidas é a bomba de água em parafuso, desenvolvida para
irrigar campos, drenar charcos e retirar água de porões de navios. Eves informa que o aparelho ainda é
usado atualmente no Egito.

Figura 36–Parafuso de Arquimedes

64
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Figura 37–Utilização do parafuso de Arquimedes em uma moderna estação de bombeamento em Kinderdijk, Holanda

Um momento de reflexão para o futuro professor

Em sua página na internet, o portal Conexão Tocantins veicula uma reportagem sobre os
resultados obtidos por pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá em relação às escadas
de peixes utilizadas nas usinas hidrelétricas no Brasil. Parte da reportagem está reproduzida a
seguir:

A construção de uma barragem prejudica o ciclo reprodutivo de diversas


espécies de peixes ao impedir que eles nadem rio acima em busca de um
local apropriado para a desova. Para minimizar o problema, a solução mais
comum é a construção de escadas – sequências de tanques que formam
uma corredeira artificial capaz de estimular a subida dos cardumes.
No entanto, um novo estudo feito por pesquisadores da Universidade Estadual
de Maringá, no Paraná, mostra que as escadas para peixes, idealizadas
originalmente para salmões na América do Norte, são uma armadilha mortal
para as espécies tropicais. O dispositivo aumentaria o risco de extinção das
populações que vivem rio abaixo das barragens. O trabalho, de Fernando
Pelicice e Angelo Agostinho, foi publicado na edição de fevereiro da revista
Conservation Biology e foi objeto de reportagem na revista Nature. De acordo
com Agostinho, o estudo comprovou que as escadas para peixes preenchem
todos os requisitos para serem enquadradas no conceito de armadilha
ecológica. Idealizadas como medida de conservação, elas atuam como uma
fonte adicional de impacto ambiental. (...) De acordo com Pelicice, que é o
autor principal do estudo, as escadas foram concebidas para salmonídeos
que, vindos do mar, sobem os rios, atravessam as escadas e os reservatórios e
desovam nas cabeceiras. (...) Segundo Agostinho, além de impedir a volta dos
peixes adultos e larvas, as escadas não servem para a maioria das espécies.
“Elas são implantadas sem um objetivo claro, simplesmente porque há um
senso comum que acredita em sua utilidade. (...) Para Pelicice, a origem do
problema é a ausência de estudos adaptativos. A técnica de escadas do
Hemisfério Norte foi transposta para a América do Sul sem se considerar
65
Unidade I

o contexto. “Por isso, há diversas deficiências. Há o impacto ecológico, que


traz prejuízo às populações, e o problema de seletividade, que é inerente
às escadas, porque impossibilita a subida de parte das espécies”, afirmou
(REDAÇÃO, 2008).

Na página on‑line chamada Jus Brasil (2009) foi veiculada a reportagem sobre o mesmo assunto.
Parte dela está reproduzida a seguir:

Sustentar 2009 apresenta alternativas de produção de energia elétrica


com menor impacto ambiental

A criação de mecanismos para atender as necessidades energéticas com


o menor impacto ao meio ambiente foi o foco da última conferência do
Sustentar 2009 desta quinta‑feira (28). Entre as alternativas apresentadas
para a produção de energia elétrica menos agressiva estão as pequenas
centrais hidrelétricas (PCHs), o parafuso de Arquimedes e a escada de
“meandros”. As duas últimas são tecnologias trazidas da Alemanha e ainda
são pouco difundidas em Santa Catarina. (...) Rainer Meier, representante
da empresa Atro, veio da Alemanha exclusivamente para apresentar a
tecnologia conhecida como Parafuso de Arquimedes. (...) O parafuso de
Arquimedes é um dispositivo da construção técnica para gerar energia
elétrica oxigenando a água e permitindo que o rio consiga manter o seu
processo natural, preservando os peixes. De acordo com a apresentação, o
parafuso reproduz a passagem dos peixes por um rio de baixa correnteza, se
instalado junto a uma PCH (...) (BORTOLON, 2009).

A fotografia abaixo retrata uma escada para peixes. Quais as percepções que o desenho lhe proporciona
e como poderia ser feito um trabalho com alunos do ensino médio, integrando as diversas temáticas
(tecnologia, história da matemática e meio ambiente) de forma a mediar o trabalho estudantil?

Figura 38 – Escada de peixes

66
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Observação

O exercício proposto anteriormente não terá resposta neste texto,


obviamente porque ele é uma sugestão para o futuro professor de
matemática de como a história da matemática pode auxiliá‑lo na construção
de tarefas que organizem novas aprendizagens e percepções nos alunos.

O Método

Segundo Boyer, um dos aspectos impressionantes da proveniência das obras de Arquimedes está
na descoberta feita no século XXI de um de seus mais importantes trabalhos, denominado por ele
simplesmente O Método e que esteve perdido até 1906. De acordo com Eves, este trabalho é uma carta
endereçada a Eratóstenes e Boyer afirma que ele é de particular importância por revelar uma faceta do
pensamento de Arquimedes não encontrada em outras obras. Eves indica ainda que Arquimedes não
considerava seu método rigoroso e, no entanto, ele estaria relacionado intimamente às ideias do cálculo
integral.

Apolônio

Eves aponta que Euclides, Arquimedes e Apolônio foram os três grandes gigantes da matemática do
século III a.C. Apolônio era cerca de 25 anos mais novo do que Arquimedes e nasceu em torno de 262 a.C.,
em Perga, sul da Ásia Menor. Quando jovem, foi para Alexandria estudar com os sucessores de Euclides.
Sua fama se deve principalmente ao trabalho Secções cônicas. A obra foi escrita em oito volumes, mas só
se tem conhecimento de sete deles, sendo os quatro primeiros em grego e os outros três em árabe.

Antes de Apolônio, os gregos tiravam as cônicas de três tipos de cones de revolução. Os nomes elipse,
parábola e hipérbole foram introduzidos pelo estudioso e foram tomados da terminologia pitagórica
antiga referente à aplicação de bases. Trata‑se de um grande tratado, mas, devido à sua extensão, ao
apuro de sua exposição e à pomposidade dos enunciados de várias proposições complexas, é penoso de
se ler, conclui Eves.

De acordo com as afirmações de Boyer, os métodos de Apolônio em seu tratado são tão semelhantes
aos modernos que, às vezes, se considera sua obra como uma geometria analítica, antecipando em
1800 anos a de Descartes. A grande desvantagem de Apolônio em relação aos inventores modernos da
geometria analítica era não dispor de uma ferramenta mais avançada do que a álgebra geométrica. A
álgebra grega, por exemplo, não englobava grandezas negativas e o sistema de coordenadas era sempre
superposto a posteriori de uma curva dada, a fim de estudar suas propriedades.

Não parece haver exemplo na geometria antiga de ser o sistema de


coordenadas estabelecido a priori para fins de representação gráfica
de uma equação ou relação expressa, seja simbolicamente seja
retoricamente. Da geometria grega podemos dizer que as equações são
67
Unidade I

determinadas pelas curvas, mas não que curvas fossem definidas por
equações. Coordenadas, variáveis e equações eram noções subsidiárias
derivadas de uma situação geométrica específica; e infere‑se que do
ponto de vista grego não era suficiente definir curvas abstratamente
como lugares satisfazendo condições dadas sobre as coordenadas. Para
garantir que um lugar fosse realmente uma curva, os antigos achavam
que era necessário exibi‑lo estereometricamente como uma secção de
um sólido ou descrever um processo cinemático de construção (BOYER,
2003, p. 106‑107).

Trigonometria e mensuração na Grécia

Boyer considera que, assim como outros ramos da matemática, a trigonometria foi obra de
muitos estudiosos e nações. Os antigos egípcios e babilônios já conheciam razões entre lados
de triângulos semelhantes. Mas foi com os gregos que apareceu pela primeira vez um estudo
sistemático de relações entre ângulos (ou arcos) num círculo e os comprimentos das cordas que o
subentendem. Na obra de Euclides não aparece trigonometria no sentido estrito da palavra, mas
há teoremas equivalentes a leis e fórmulas trigonométricas específicas. Além disso, Eves observa
que os astrônomos babilônicos dos séculos IV e V a.C. acumularam uma massa considerável de
observações que foram transmitidas para os gregos. Segundo o autor, foi essa astronomia primitiva
que deu origem à trigonometria esférica.

Aristarco de Samos

A partir da obra de Arquimedes e Plutarco que foi preservada, pode‑se aferir que Aristarco
propôs um sistema heliocêntrico, antecipando‑se a Copérnico por mais de um milênio e
meio. Entretanto, como indica Boyer, o que Aristarco escreveu a esse respeito infelizmente se
perdeu.

Hiparco de Niceia

Eves diz que provavelmente Hiparco foi o mais eminente dos astrônomos da Antiguidade. Ele viveu
em torno de 140 a.C. e suas observações mais notáveis foram feitas no observatório de Rodes, importante
centro comercial. Boyer ilustra que ele foi considerado o “pai da trigonometria” por ter compilado
presumivelmente a primeira tabela trigonométrica. Possivelmente, foi também ele que introduziu o uso
sistemático do círculo de 360º através de sua tabela de cordas. Não se sabe muito da obra de Hiparco
porque quase tudo se perdeu.

Ptolomeu

Boyer observa que a fama de Ptolomeu se deve principalmente a um único livro, o Almagesto,
ligado à astronomia. No entanto, uma obra importante é Geografia. Nela, foi desenvolvido o sistema
de latitudes e longitudes tal como é usado atualmente e ainda métodos de projeção cartográfica.
Ele escreveu também uma obra denominada Óptica, que sobreviveu a partir de uma tradução latina
68
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

de uma tradução árabe. No entanto, Ptolomeu foi o responsável pela escrita de Tetrabiblos (ou
Quadripartitum), que representa uma espécie de religião sideral, que leva a pensar que ele não era
um cientista racional e de pensamento claro. Ele parece ter compartilhado dos preconceitos de sua
época.

Resumo

Cenário histórico entre 550 a.C. e 529 d.C.

Eves afirma que, entre 550 a.C. e 476 d.C., o mundo ocidental foi
dominado por uma série de grandes impérios. O Império Persa foi
conquistado por Alexandre, o Grande, em 330 a.C. No período de 323
a.C. e 31 a.C., o controle foi dividido entre três impérios gregos: Egito
ptolomaico, o reino selêucida e a Macedônia. O Império Romano
dominou durante o período de 31 a.C. e 476 d. C. Em Alexandria, Egito,
os reis gregos construíram e proveram financeiramente uma grande
universidade e a cultura avançou por cerca de 150 anos. Depois desse
período, a busca científica entrou em declínio por vários fatores: carência
de equipamentos, diminuição do apoio governamental após a conquista
do Egito por Roma em 31 a.C., uso crescente de mão de obra escrava,
interesse paralelo pela filosofia e religião e oposição da parte de alguns
líderes religiosos. Por volta de 529 d.C., a última escola grega, a Academia
de Atenas, foi desativada. Somente quase um milênio depois a ciência do
mundo ocidental voltou a florescer.

Exercícios

Questão 1. Nas épocas mais primitivas, a numeração escrita nasceu do desejo de manter
registros de gado ou outros bens com marcas ou traços em paus, pedras etc., aplicando o princípio da
correspondência biunívoca. Os sistemas de escrita numéricos mais antigos que se conhecem são os
dos egípcios e dos babilônios, que datam aproximadamente do ano 3500 a.C. Os egípcios usavam um
sistema de agrupamento simples, com base 10.

Para eles, um traço vertical valia 1; o número 10 era representado por um osso de calcanhar invertido
; o 100 por um laço e o 1000 por uma flor de lótus . Outros números eram escritos com a
combinação desses símbolos.

Um exemplo de um número representado no sistema de agrupamento simples egípcio é:

69
Unidade I

Essa representação refere‑se ao número:

A) 225

B) 1.111

C) 2.125

D) 2.225

E) 10.000

Resposta correta: alternativa C.

Análise das alternativas:

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: o número 225 é muito inferior ao valor que se obtém da soma dos valores numéricos
dos símbolos egípcios presentes no exemplo.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: para se obter o número 1.111 a partir dos símbolos numéricos egípcios, seria preciso
inicialmente, por exemplo, apenas uma flor de lótus. No exemplo em questão, há duas delas.

C) Alternativa correta.

Justificativa: a lógica de representação do sistema de agrupamento simples egípcio apontava que


um traço vertical valia 1, o número 10 era representado por um osso de calcanhar invertido, o 100 por
um laço e o 1000 por uma flor de lótus. Então, a representação refere‑se ao número 2.000+100+20+5
= 2.125.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: seria necessária a presença de mais um laço no exemplo para que o resultado da soma
dos valores dos símbolos fosse 2.225.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: o número 10.000 é muito superior ao valor que se obtém da soma dos valores numéricos
dos símbolos egípcios presentes no exemplo e, para fazê‑lo, seria preciso apenas enfileirar 10 flores de
lótus.

70
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Questão 2. O método da falsa posição foi empregado para resolver equações lineares a partir de
um “chute inicial”. Nesse período, a incógnita x era chamada de aha e o método consistia da escolha de
um número arbitrário como valor para x. A partir desse valor, a expressão à esquerda da equação era
computada e seu resultado era comparado ao lado direito da mesma. Para finalizar, calculava‑se um fator
de correção para obter o valor correto para a incógnita x satisfazer a expressão original. O problema 25 do
papiro de Rhind, por exemplo, consiste na determinação de uma quantidade sabendo que essa quantidade
e sua metade somam 16. Com relação ao problema 25 do papiro de Rhind, pode‑se afirmar que:

A) Esse problema pode ser representado por uma equação polinomial do primeiro grau e o valor de
aha é 16.

B) Esse problema pode ser representado por uma equação polinomial do terceiro grau e o valor de
aha é 32 .
3
C) Esse problema pode ser representado por uma equação polinomial do segundo grau e o valor de
aha é 32 .
3
D) Esse problema pode ser representado por uma equação polinomial do primeiro grau e o valor de
aha é 32 .
3
E) Esse problema pode ser representado por uma equação polinomial do primeiro grau e o valor de
aha é 16.

Resolução desta questão na Plataforma.

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