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AMBIVALÊNCIAS

O Nordeste nas obras de Gilberto Freyre


e Celso Furtado
Rejane Calazans

O Nordeste não é só isso. Em off, esta decla- ralidade de significados construídos em torno dela.
ração abre uma vinheta televisiva, enquanto Em consonância com a seca, pensa-se em pobreza,
aparece uma imagem de terra ressecada, visivel- miséria, violência, coronelismo, messianismo. Em
mente carente de chuva. Ao corte desse cenário, contraste com a seca, vêm à lembrança imagens de
segue-se uma seqüência de imagens para mostrar paisagens e eventos turísticos, como o Pelourinho
que o Nordeste é uma região onde se consomem de Salvador, as praias de Fortaleza, o Bumba-meu-
produtos variados, apresentando cenas de fluxos Boi do Maranhão, enfim, abundância, exuberância,
de pessoas em lojas.1 A intenção é atrair investi- prazeres. Apesar de contrastantes, essas visões do
mentos para a região, mostrar que ela não se Nordeste convivem lado a lado, de uma forma
esgota na miséria, ao contrário, por detrás da ambivalente.
imagem da seca existe uma economia viva e Ao pensar nessas ambivalências, a abor-
dinâmica. No entanto, um Nordeste não exclui o dagem proposta por Zygmunt Bauman configura-
outro, isto é, o movimento da economia não se como uma importante chave analítica. De acor-
exclui a estagnação da seca. Estagnação e movi- do com esse autor, a ambivalência decorre de uma
mento dão um duplo sentido à região. das principais funções da linguagem, qual seja, a
de nomear e classificar (Bauman, 1999). Podem-se
Muitas imagens são evocadas quando se
considerar dois níveis de manifestação da
menciona a região Nordeste, evidenciando a plu-
ambivalência na região Nordeste. Um decorre do
esforço de classificação do Brasil em regiões, esta-
Artigo recebido em dezembro/2005 belecendo a relação entre o Nordeste e as demais
Aprovado em dezembro/2006 regiões do país, especialmente em oposição ao Sul

RBCS Vol. 22 nº. 64 junho/2007


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e ao Sudeste. O outro é interno, ou seja, a conju- Mas esse Nordeste de figuras de homens e de
gação de elementos contraditórios dentro de uma bichos se alongando quase em figuras de El Greco
mesma região – elementos como miséria e opulên- é apenas um lado do Nordeste. O outro Nordeste.
cia, seca e fartura, violência e sociabilidade har- Mais velho que ele é o Nordeste de árvores gor-
das, de sombras profundas, de bois pachorrentos,
moniosa, sertão e litoral.
de gente vagarosa e às vezes arredondada quase
Essa convivência de elementos contra-
em sanchos-panças pelo mel de engenho, pelo
ditórios é construída e consolidada de diversas peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e
formas – como nas imagens veiculadas pela tele- sempre o mesmo, pela opilação, pela aguardente,
visão –, além de assegurar um lugar privilegiado pela garapa de cana, pelo feijão de coco, pelos
para o Nordeste no pensamento social brasileiro. vermes, pela erisipela, pelo ócio, pelas doenças
Trata-se de um olhar de extrema acuidade, que que fazem a pessoa inchar, pelo próprio mal de
tenta explicar suas especificidades, o por quê da comer terra (Idem, ibidem).
pobreza e da miserabilidade, a razão de sua ri-
queza cultural. A resposta não significa apenas Gilberto Freyre já alertava, pois, para a
um diagnóstico da situação regional, mas tam- existência de dois Nordestes: um de árvores gor-
bém, e sobretudo, uma explicação para o Brasil, das e sombras profundas, e outro da seca e da
seja na perspectiva do atraso econômico, seja do miséria. Com efeito, observamos aí a convivência
ponto de vista da diversidade cultural. de elementos opostos numa clara manifestação de
Celso Furtado e Gilberto Freyre foram dois ambivalência. Freyre justamente evocava a
dos mais importantes pensadores brasileiros que se ambivalência contida na palavra, , reconhecendo,
dedicaram a pensar o Nordeste, e suas visões da inclusive, que Nordeste não se resumia a essas
região refletem, de fato, suas concepções do Brasil. duas imagens:
Gilberto Freyre enfatizou a “civilização do açúcar”,
ou seja, o litoral do Nordeste; Celso Furtado, por Aliás há mais de dois Nordeste e não um, muito
sua vez, centrou suas análises no sertão nordesti- menos Norte maciço e único de que se fala tanto
no. À primeira vista, os Nordestes apresentados no Sul com exagero de simplificação. As especia-
lizações regionais de vida, de cultura e de tipo físi-
por esses autores são espaços geográficos que se
co no Brasil estão ainda por ser traçadas debaixo
opõem. No entanto, mais do que espaços geográ-
de um critério rigoroso de ecologia ou sociologia
ficos, suas concepções refletem espaços sociais. regional, que corrija tais exageros e mostre que
dentro da unidade essencial, que nos une, há
diferenças, às vezes profundas (Idem, p. 42).
Gilberto Freyre e o Nordeste
A região foi pensada por Gilberto Freyre não
O Nordeste de Gilberto Freyre é o que se como um espaço determinado pelos elementos
desenvolveu a partir da região açucareira. Mas o físicos, mas como um espaço social. Isso foi ex-
autor reconhecia que a região não se reduzia a isto: plicitado pelo autor no prefácio a Casa grande &
senzala, ao afirmar ser o espaço social ocupado
A palavra “nordeste” é hoje uma palavra desfigu-
pelo sistema patriarcal da lavoura açucareira
rada pela expressão “obras do Nordeste” que
condicionado por elementos geológicos, botâni-
quer dizer: “obras contra as secas”. E quase não
sugere senão as secas. Os sertões de areia seca
cos e físico-geográficos, mas, de forma alguma,
rangendo debaixo dos pés. Os sertões de paisa- determinado por eles. Seu ponto de vista era de
gens duras doendo nos olhos. Os mandacarus. que o sistema patriarcal com suas formas cons-
Os bois e os cavalos angulosos. As sombras leves tantes e processos incessantes, sua ação e sua
como umas almas do outro mundo com medo do dinâmica, foi superior a todos os elementos físi-
sol (Freyre, 1989, p. 41). cos – tropicais ou quase tropicais (Freyre, 2001).
A região açucareira, para o autor, foi onde
No entanto, dando seguimento à citação, o melhor se expressou o sistema patriarcal de colo-
autor apresenta o Nordeste que será seu objeto de nização portuguesa no Brasil, representado pela
reflexão: casa-grande, complementada pela senzala. Mas
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Freyre generaliza essa idéia, no sentido de que O Nordeste que Gilberto Freyre abordou em
daí se formou todo um sistema econômico, social sua obra não era apenas um recorte naturalista da
e político. Em outras palavras, foi em torno dos região, mas um espaço social. Era um ethos, cuja
senhores de engenho que se construiu o tipo de base foi a civilização açucareira e seu ponto de
civilização mais estável da América Hispânica. maior intensidade, Pernambuco. Os valores cul-
Assim, a casa-grande, embora associada particu- turais que se desenvolveram a partir desse centro
larmente ao engenho da cana-de-açúcar e ao se espalharam por todo o Brasil e não se restringi-
patriarcalismo nordestino, não deveria ser consi- ram cronologicamente a um determinado período
derada exclusiva da economia açucareira, uma de nossa história.
vez que o sistema patriarcal se estendeu a toda É importante frisar que Gilberto Freyre não
monocultura escravista e latifundiária, tornando- era apenas um pesquisador do modo de viver
se a tradução mais profícua do caráter social nordestino, mas se apresentava como portador
brasileiro (Idem). desse ethos, alguém que tinha legitimidade sufi-
Gilberto Freyre definiu a sociedade patriarcal ciente para clamar para um revigoramento dos
como sendo um luxo de antagonismos. Luxo que, valores da região, como o fez no Manifesto regio-
por outro lado, não deixava de constituir antago- nalista (Freyre, 1952). Ao tentar tornar o ethos
nismos em equilíbrio, em que os excessos despon- nordestino algo vivo, ele fabricou imagens de
tavam em cada aspecto da vida colonial (Lima, Nordeste que se confundiam à sua própria
2001). Ao aproximar visões diferentes, até imagem, o que fica evidente com a publicação do
antagônicas, sem dissolvê-las (Araújo, 2001), Frey- seu diário (Freyre, 1975), em que a vivência e a
re afirmou que a civilização patriarcal continha memória do autor são apresentadas ao público.
sinais de mais e de menos, ou seja, era uma Dessa forma, Freyre tornou-se o principal idea-
sociedade que comportava oposições geradas em lizador do discurso sobre a brasilidade nordestina,
sua própria base, a monocultura, elemento pri- que erigiu a região como uma marca da origina-
mordial para qualquer esforço de interpretação lidade brasileira.
social, e mesmo psicológica, do Nordeste agrário
(Freyre, 1989).
Celso Furtado e a transformação
O perfil da região é o perfil de uma paisagem do Nordeste
enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-
grande, pelo cavalo de raça, pelo barco a vela,
A infância no Nordeste marcou profunda-
pela palmeira imperial, mas deformada ao
mente Celso Furtado, que lembrava da região
mesmo tempo pela monocultura latifundiária e
escravocrática; esterilizada por ela em algumas de como um mundo marcado pela violência e arbi-
suas fontes de vida e de alimentação mais va- trariedade, uma sociedade estratificada e parada
liosas e mais puras; devastadas nas suas matas; no tempo (Furtado, 1997a)
degradadas nas suas águas (Idem, p. 18). Foi na indústria açucareira que, segundo ele,
se originou a sociedade nordestina. O rápido
Ao mesmo tempo em que deformou as desenvolvimento dessa indústria, apesar das di-
fontes de vida naturais, a cana adoçou a vida ficuldades do meio físico, indicava claramente a
social. No prefácio de Açúcar, livro de receitas concentração do esforço do governo português na
publicado por Gilberto Freyre, ele afirma que, produção da cana-de-açúcar. Isso ficava patente
além da influência direta do açúcar sobre a também nos privilégios que eram concedidos pela
comida, a cozinha, as tradições portuguesas de Coroa portuguesa aos donatários, como honrarias,
bolo e de doce, o açúcar influenciou indireta- títulos e isenções de tributos (Furtado, 2001).
mente as maneiras e os gestos, adoçando-os A capacidade de a unidade exportadora açu-
assim como às palavras, ao adoçar a própria careira preservar sua estrutura determinou sua
língua portuguesa (Freyre, 1997). Trata-se, por- persistência. A economia açucareira do Nordeste
tanto, de um processo ambivalente, em que resistiu por mais de três séculos a prolongadas
deformação e criação não se excluem. depressões, recuperando-se sempre que as con-
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dições do mercado externo permitiam, não das como subdesenvolvidas. Centro-periferia foi
sofrendo nenhuma modificação estrutural signi- o conceito empregado para descrever o processo
ficativa (Idem, ibidem). técnico na economia mundial e para explicar a
Apesar de centrar sua análise no sertão, para distribuição de seus ganhos. De acordo com essa
Celso Furtado a sociedade nordestina originou-se idéia, a divisão internacional do trabalho provo-
na indústria açucareira, o que caracterizou o iní- cou, desde os primeiros estágios do capitalismo
cio da colonização portuguesa na América no industrial, efeitos diferenciados na economia
século XVI. O incentivo português ao cultivo da mundial, que cresceu de forma também diferen-
cana-de-açúcar e o mercado de dimensões relati- ciada em termos de estágio de desenvolvimento.
vamente grandes possibilitaram que se formasse Ou seja, o desenvolvimento econômico na região
um sistema econômico de alta produtividade e central produzia o subdesenvolvimento na peri-
em rápida expansão na faixa litorânea do Nor- feria (Moraes, 1995).
deste brasileiro. Esse sistema necessariamente A região semi-árida era, então, a periferia da
acarretou conseqüências diretas e indiretas para faixa litorânea. A influência da economia litorânea
as demais regiões do subcontinente que eram na região semi-árida deu-se em duas vertentes,
reivindicadas pelos portugueses. Dessa forma, segundo Celso Furtado. De um lado, criou a de-
“mesmo aquelas comunidades que aparentemen- manda por criação de animais; de outro, gerou
te tiveram um desenvolvimento autônomo nessa uma oferta de pessoal capacitado para promover
etapa da colonização, deveram sua existência a ocupação territorial. Assim, a ocupação do se-
indiretamente ao êxito da economia açucareira” mi-árido nordestino realizou-se com pequeno
(Idem, p. 41). esforço financeiro e centrou-se, desde o início, na
A própria expansão da economia açucareira pecuária extensiva, o que constituiu a base da
fomentou a formação de um setor suplementar de organização socioeconômica, em vez de ser sim-
apoio, com a criação de animais, sobretudo o ples complemento da atividade agrícola.
gado de corte e de tiro. Mas logo se evidenciou A sociedade periférica que emergiu na zona
que era impraticável criar gado na faixa litorânea, semi-árida tinha como traço característico a dis-
isto é, dentro das unidades produtoras de açúcar persão espacial dos camponeses, que dependiam
(Idem). As terras interioranas, na região semi-árida totalmente dos proprietários de terras. Nesse con-
do Nordeste, foram, então, ocupadas para suprir a texto, o trabalhador rural não dispunha de meios
carência por animais de tração e proteína alimen- para acumular riqueza, o que resultava num endi-
tar. Quando o pólo exportador crescia, a deman- vidamento cada vez maior. Conseqüentemente, a
da por insumos provenientes desse setor periféri- população trabalhadora dessa região estava con-
co, evidentemente, se expandia; mas não só isso, denada ao imobilismo, isto é, reproduzir o passa-
a economia periférica não parou de crescer, ainda do de forma mecânica (Furtado, 1997).
que houvesse oscilações no setor exportador, pois Celso Furtado demonstrou que as formas
o essencial de sua produção era autoconsumido, e assumidas pelos dois sistemas da economia
a disponibilidade de terras era considerável. Ou nordestina – o açucareiro e o de criação – se
seja, criou-se uma estrutura capaz de resistir às constituíram em elementos fundamentais na for-
oscilações da demanda. E foi a separação dessas mação do que viria a ser a economia brasileira no
duas atividades econômicas – a açucareira e a de século XX, quando a região Centro-Sul emergiu
criação – que deu lugar ao surgimento de uma como centro econômico e as disparidades regio-
economia dependente no interior da região nais foram acentuadas com o avanço da industria-
nordestina (Idem). lização (Furtado, 2001). Para o autor, um sistema
Com efeito, Celso Furtado aplicou o mode- industrial de base regional não podia coexistir
lo centro-periferia, elaborado pelas teses da dentro de um mesmo país com um conjunto de
Cepal – Comissão Econômica para a América economias primárias dependentes e subordi-
Latina e o Caribe –, no interior do Nordeste. A nadas, pois as relações econômicas entre uma
Cepal inaugurou nos anos de 1950 a reflexão economia industrial e economias primárias ten-
sobre as economias que passaram a ser conheci- diam sempre a formas de exploração. Esta era a
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base ideológica da Operação Nordeste, um plano acarreta os sentimentos de irresolução e de perda


político direcionado à região, iniciado durante o de controle. Uma forma de suprimir tal sentimen-
governo de Juscelino Kubitschek sob a direção de to seria a busca por uma situação de equilíbrio,
Celso Furtado, e de onde se originou a Sudene – em que as oposições coexistissem em harmonia
Superintendência de Desenvolvimento do Nor- (Bauman, 1999). Gilberto Freyre propunha justa-
deste (Furtado, 1959). mente uma harmonização entre o rural e o urba-
A Sudene pretendia ser um órgão de no, evitando desequilíbrios ambientais. Essa pers-
natureza renovadora com o objetivo de dar ao pectiva socioecológica concretizar-se-ia em uma
governo um instrumento que o capacitasse a for- política rurbana, que equilibraria os valores ur-
mular uma política unificada de desenvolvimento banos e rurais não apenas no Nordeste, mas no
para o Nordeste. Um dos pontos primordiais para Brasil como um todo (Freyre, 1987).
essa nova formulação política foi a seca (Idem). A Uma outra forma de eliminar aquela sen-
partir da seca de 1877, o governo federal passou a sação de indecisão seria a busca incessante pela
implementar as frentes de trabalho no Nordeste, ordem, suprimindo e eliminando tudo que não
que tenderam a se proliferar nos períodos de seca. fosse precisamente definido. Trata-se de uma
Para Celso Furtado, esse tipo de ação do governo prática tipicamente moderna. O horror à mistura
reforçava o status quo existente. O quadro de e a obsessão pela separação impulsionam o pro-
fome criado pela seca não era percebido como cesso de fragmentação do mundo, resultando em
decorrente de decisões tomadas pela classe diri- uma dicotomia que cria a ilusão de simetria ao
gente, reflexo de uma estrutura social que estava representar seus membros como iguais e inter-
sendo reforçada pela ação governamental. A cambiáveis. Mas a própria existência dessa dico-
Sudene propunha reverter esse quadro, distan- tomia já é testemunho da presença de um poder
ciando-se dos tradicionais esquemas de enfeu- diferenciador, classificador (Bauman, 1999).
dação que cercavam os órgãos governamentais da De acordo com essa argumentação, a dico-
região (Furtado, 1997). tomia inerente ao conceito centro-periferia é uma
Furtado acreditava que era preciso uma ferramenta primordial do modelo de análise ela-
intervenção planejada na região de forma a borado pela Cepal e encontra-se claramente per-
acabar com a injustiça social, a violência e a mi- ceptível na obra de Celso Furtado, quando ele
séria; e a Sudene representava, para ele, a rea- aplica tal modelo à realidade brasileira. Ao refle-
lização desta possibilidade. tir sobre o processo de formação da economia
brasileira, Celso Furtado percorreu a trajetória de
desenvolvimento desigual no Brasil, que fez com
Últimas palavras que a região Centro-Sul emergisse como centro
dinâmico do país (Furtado, 2001).
As visões de Nordeste elaboradas por Celso Cada um a seu tempo e com uma perspecti-
Furtado e Gilberto Freyre reafirmam que a seca va própria, Gilberto Freyre e Celso Furtado rea-
não elimina a fartura, mas convive com ela. Essa é lizaram uma incursão pela ambivalência presente
a manifestação mais clara da ambivalência interna na região Nordeste. O primeiro propôs uma abor-
apontada na discussão proposta por este trabalho. dagem socioecológica, que promovesse o equi-
A ambivalência resulta em uma sensação de inde- líbrio entre contrários. O segundo, por sua vez,
cisão, de irresolução e, portanto, de perda de con- pretendia dissolver o atraso econômico e social
trole. No entanto, é importante frisar que falar em que opunha o Nordeste ao Centro-Sul desenvolvi-
sensação de indecisão é diferente de indecisão. do, mediante uma intervenção planejada na região.
Diferença que decorre do fato de a indecisão im- Na abordagem de Freyre, era preciso uma
plicar sempre na possibilidade de escolha, o que restauração dos valores culturais do verdadeiro
não ocorre no campo da ambivalência, onde ca- Nordeste, um retorno ao passado, que se rea-
racteres diferentes coexistem, sendo que um não lizaria no futuro. Nessa idéia também está implíci-
elimina o outro. E é justamente essa sensação de ta a busca por características que poderiam dife-
indecisão, em que a escolha não é possível, que renciar o Brasil como nação, no sentido de
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arrefecer a visão do país pautada em modelos Nordeste. São Paulo, Companhia das
europeus. Letras.
Na abordagem de Furtado, uma intervenção
_________. (2001), Casa-grande & senzala. 45 ed.
planejada transformaria o Nordeste em uma região
Rio de Janeiro, Record.
desenvolvida, mediante um projeto de desconcen-
tração regional de renda, a superação do arcaísmo FURTADO, Celso. (1959), A operação Nordeste.
da estrutura fundiária, a apropriação e o uso Rio de Janeiro, Instituto Superior de
improdutivo do excedente rural pelos grandes pro- Estudos Brasileiros.
prietários fundiários, a reforma agrária; em suma, a _________. (1997), “A fantasia desfeita”, in
justiça social. E o futuro do Brasil como nação de- _________, Obra autobiográfica de
penderia de tal transformação Celso Furtado, tomo II, São Paulo, Paz e
Em contraponto à abertura deste artigo, Terra.
poderíamos dizer: “O Nordeste não é só isso”.
Mas o Nordeste também é isso. Identidade plural, _________. (1997a), “Aventuras de um econo-
que abrange concepções já consolidadas, como mista brasileiro”, in _________, Obra
as de Celso Furtado e Gilberto Freyre, o Nordeste autobiográfica de Celso Furtado, tomo
está certamente aberto a novas formulações. II, São Paulo, Paz e Terra.
_________. (2001), Formação econômica do
Brasil. São Paulo, Companhia Editora
Nota Nacional.

1 Estas são imagens que compõem um comercial LIMA, Luiz Costa. (1994), “Apresentação”, in
veiculado pela Rede Globo. Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e
paz: casa-grande & senzala na obra de
Gilberto Freyre nos anos 30, Rio de Ja-
neiro, Editora 34.
BIBLIOGRAFIA
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ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. (1994), Guerra subdesenvolvimento e as idéias da Ce-
e paz: casa-grande & senzala na obra pal. São Paulo, Ática.
de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de
Janeiro, Editora 34.
BAUMAN, Zygmunt. (1999), Modernidade e
ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor.
FREYRE, Gilberto. (1952), Manifesto Regionalista
de 1926. Recife, Região.
_________. (1975), Tempo morto e outros tempos:
trechos de um diário de adolescência e
primeira mocidade (1915-1930). Rio de
Janeiro, José Olympio.
_________. (1987), Rurbanização – que é. Recife,
Massapé.
_________. (1989), Nordeste. 6 ed. Rio de Janeiro,
Record.
_________. (1997), Açúcar: uma sociologia do
doce, com receitas de bolos e doces do
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AMBIVALÊNCIAS: O NOR- AMBIVALENCES: NORTHEAST- AMBIVALENCES: LE NORDES-


DESTE NAS OBRAS DE GIL- ERN BRAZIL IN THE WORKS TE DANS LES ŒUVRES DE
BERTO FREYRE E CELSO FUR- OF GILBERTO FREYRE AND GILBERTO FREYRE ET CELSO
TADO CELSO FURTADO FURTADO

Rejane Calazans Rejane Calazans Rejane Calazans

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Brasil; Nordeste; Gilberto Freyre; Brazil; Northeast; Celso Furtado; Brésil; Nordeste; Gilberto Freyre;
Celso Furtado; Ambivalência Gilberto Freyre; Ambivalence. Celso Furtado; Ambivalence.

A região Nordeste ocupa um lugar The Northeastern region occupies a La région Nordeste occupe une place
privilegiado no pensamento social privileged space in the Brazilian privilégiée dans la pensée sociale
brasileiro sendo vista ora como local social thought; sometimes as the brésilienne. Elle est soit considérée
da originalidade, ora como o local do place of originality, sometimes as comme un endroit de grande richesse
atraso, ora como ambos. E esta con- the place of decay, sometimes both. culturelle, soit comme la manifesta-
vivência entre características aparen- And this coexistence among appar- tion de retard économique et social.
temente opostas atribui um caráter ently opposite features confers an Elle peut même être considérée sui-
ambivalente à região. Este artigo ambivalent character to the region. vant ces deux perspectives. La fami-
reflete sobre as concepções de Nor- This article reflects on the Northe- liarité de caractéristiques apparem-
deste presentes nas obras de Gilberto astern conceptions in the works of ment opposées imprime un caractère
Freyre e Celso Furtado. Gilberto Freyre and Celso Furtado. ambivalent à la région. Cet article
propose une réflexion sur les con-
ceptions de Nordeste présentes dans
les œuvres de Gilberto Freyre et de
Celso Furtado.

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