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CDD – 780.420981
AGRADECIMENTOS
Aos meus colegas do choro: Déo Rian, Luiz Otávio Braga, Mauricio Carrilho,
Anna Paes, Luciana Rabello, Sérgio Prata, Leonardo Miranda, Egeu Laus, Rodrigo
Ferrari, Simone Cit e Roberto Gnattali, que colaboraram com seus valiosos depoimentos
e sabedorias.
i
ARAGÃO, Pedro de Moura. O Baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e O Choro.
Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-graduação em Música, Centro de
Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
RESUMO
Esta tese propõe uma releitura do livro O Choro: reminiscências dos chorões antigos de
Alexandre Gonçalves Pinto a partir de ferramentas metodológicas da memória social e
da etnomusicologia. O livro, lançado em 1936, se insere entre os primeiros discursos
sobre a música popular urbana em um período marcado por intenso processo de
solidificação da indústria fonográfica no Brasil, e aponta para a construção da memória
musical do país ao eleger uma prática musical – o choro – como fator de identidade de
uma rede formada por diversos estratos sociais do Rio de Janeiro. Escrito por um
carteiro aposentado que era também cavaquinhista e violonista, a obra apresenta cerca
de trezentos perfis de músicos populares da época, se constituindo como um dos
primeiro relatos etnográficos realizados por um insider de uma música popular urbana.
A partir dos aparatos metodológicos citados, propõe-se uma leitura da obra como um
texto polifônico, cuja linguagem pode ser caracterizada como uma trama complexa que
apresenta elementos díspares como gírias, oralidades e fragmentos de visão de mundo
de diversos estratos sociais da época. Em particular, salienta-se o fato de que o livro
representa uma memória subterrânea e subalterna de instrumentistas populares que
elegeram a polca como representante da nacionalidade em detrimento do samba que
então surgia como símbolo da música brasileira. A releitura abrange ainda aspectos
musicológicos apresentados pelo livro, tais como ensino, aprendizado e transmissão das
práticas musicais descritas, com destaque para o papel dos acervos manuscritos de
choro dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX. Finalmente, a tese discute as
diversas re-significações do livro por parte de diferentes atores sociais da atualidade
como músicos, jornalistas, professores universitários, e amantes da música brasileira de
forma geral.
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ARAGÃO, Pedro de Moura. O Baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e O Choro.
Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-graduação em Música, Centro de
Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
ABSTRACT
This dissertation revisits one of the most important books about a Brazilian popular
music "O Choro: reminiscências dos chorões antigos", written by Alexandre Gonçalves
Pinto. Written in 1936, the book can be considered one of the first portrays of urban
popular music in a period marked by the phonographic industry consolidation in Brazil.
The book also provides an original approach to the construction of Brazilian musical
memory electing a musical practice – o “choro” – as an identity factor of a network
formed by various social strata in Rio de Janeiro. Written by a retired postal worker
who was also a guitarist and “cavaquinhista”, the book presents biographies of nearly
three hundred musicians of this period of time, and can be considered one of the first
ethnographic accounts written from an insider’s perspective. The dissertation reviews
the diverse readings of this historical piece by musicians, journalistas, scholars, and
music lovers in general. Relying on ethnomusicologic and social memories concepts, I
propose new readings of this work that emphasizes previously underestimated
musicological aspects, such as teaching, learning and transfer of musical practices. In
particular, I emphasize the key role of choro’s manuscripts collections of the nineteenth
and early decades of the twentieth century.
iii
SUMÁRIO
PREÂMBULO..............................................................................................................vii
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 1
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................294
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................313
ANEXOS.......................................................................................................................320
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Fichamento de O Choro por Jacob do Bandolim: exemplo de uma página – pág. 40
LISTA DE TABELAS
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Preâmbulo - Castelos de Memórias
vii
partida para uma teia de re-significações e interpretações sobre as práticas musicais e
sociais que descreve.
O castelo de pedras do carteiro Cheval é hoje uma referência mundial de
construção artística feita por um homem comum; o castelo de memórias do carteiro
Gonçalves Pinto, se não alcançou a glória de seu colega francês, nos permite
vislumbrar as práticas musicais e os feitos artísticos de centenas de homens comuns.
Esse trabalho é dedicado à memória de Ary Vasconcelos e Alexandre Gonçalves Pinto.
viii
1) Introdução
Esta tese tem como foco um dos mais instigantes livros sobre a música popular
escrito em 1936 por Alexandre Gonçalves Pinto (por alcunha “o Animal”), documento
chave para o entendimento do choro no início do século e uma das principais fontes de
da velha guarda, e grande parte dos chorões d’agora” (Pinto, 1978) o livro pode ser
considerado como o primeiro relato de um insider sobre uma música popular urbana no
Brasil. Escrito por um carteiro que era ao mesmo tempo violonista e cavaquinhista, o
uma linguagem bastante peculiar. Sua edição inicial de 1936 foi de dez mil exemplares,
e embora o autor planejasse uma 2ª edição da obra, esta nunca se realizou em seu
Gonçalves Pinto aponta para a construção da memória musical do país ao eleger uma
prática musical – o choro – como fator de identidade de uma rede formada por diversos
que ela surgia como fato cultural e social” (Moraes, 2006: 120); 2) por serem tais
concedido uma espécie de credenciamento automático para definir a seleção dos ‘fatos
dignos’ de registro, sua veracidade e a ordenação causal e temporal dos eventos (id.,
121). Tal grupo de fatores também teria mais dois desdobramentos: o primeiro seria a
sobre certas ‘origens, características e linha evolutiva’ da música popular (...) nas
discurso baseado nas vivências de rodas, festas, serestas etc, a narrativa que prevalece
objeto artístico pelos meios de produção com que estes são gerados3 (Hennion, 2002).
No caso específico do livro, a motivação principal do autor para escrevê-lo - sua paixão
por esta prática musical - desaparece de modo a fazer com que a obra se converta em
3
Para Hennion “a sociologia interrompe a relação sujeito-objeto artístico ao mostrar a tela social
necessário para esta projeção recíproca”. Dessa forma, a abordagem da sociologia da arte dá ênfases a
aspectos como condições de produção e de difusão, autonomização de uma profissão, etc., fazendo com
que os objetos artísticos permaneçam obliterados (Hennion, 2002: 126)
2
mera fonte primária de entendimento das condições sociais e históricas que permitiram
etnográfica, algo que a meu ver nunca foi feito pelos poucos estudiosos que se
debruçaram sobre ela, como Vasconcelos, Tinhorão e Cazes. Tais autores, apesar de
sociais a respeito do ambiente do choro no início do século XX, mas muitas vezes
longo da tese. Mais do que isso, creio que a principal lacuna de todos os escritos sobre o
livro passa pelo enfoque da leitura. O ponto central da tese é o de que O Choro é um
documento complexo, que não pode ser lido como uma narrativa convencional: ele não
profissional das letras. Quando lido assim, sua análise redunda em dois extremos
diferentes: por um lado tem-se uma atitude crítica, resultado da aparente falta de
Gonçalves Pinto. É esta também a postura de críticos da atualidade, como Cazes (1998),
(...) por tantas vezes usado como fonte, é tremendamente mal escrito e cheio de
imprecisões e absurdos. Assim, vê-se literalmente na página 115 a seguinte sandice:
‘A polka é como o samba — uma tradição brasileira. (...) A polka é a única dansa
que encerra os nossos costumes, a única que tem brasilidade’” (Cazes, 1998:18)
ponto de vista estatístico e nos trechos em que fala dos ambientes do Choro, o livro
3
revela, por entre dezenas de erros de gramática, dados importantes.” (idem). No
advindo das classes populares, um “primitivo” que, apesar de importante, não estava
“culturalmente equipado para a tarefa que com tanto amor e dedicação se lançou”
Este enfoque de leitura, portanto, nos leva a estes dois extremos, igualmente
equivocados em minha opinião: Gonçalves Pinto não é um ignorante que se esforça para
escrever, por um lado, e nem um “ingênuo” e pobre carteiro a quem devemos tratar com
condescendência. Por certo ele também não é um intelectual no sentido usual do termo.
Como já sugerido, sua escrita é uma trama polifônica e complexa que traz em
indústria cultural), referências a fatos históricos, políticos e cotidianos, tudo isso unido
por um único fio condutor: a paixão de seu autor por uma música. Esta paixão musical
leva o autor a fazer pela primeira vez na história da música popular urbana brasileira um
ambientes musicais da época, das festas, danças, etc. Ao mesmo tempo, o livro deixa
patente o conceito de música como algo que não se resume a um discurso sonoro, mas
que engloba todo o seu entorno social – as festas, as comidas, o público ouvinte, o
carnaval, etc.
4
Lido portanto através deste prisma – o de um depoimento etnográfico escrito
por um bricoleur que faz uma espécie de mosaico de modos de discursos – a obra ganha
meu objeto de estudo, um livro escrito por um velho carteiro aposentado, longe de ser
absurdos”, se constitui como uma trama narrativa com objetivos bem claros: descrever
um grupo unido por uma identidade sonora, muito embora composto de pessoas de
diferentes classes sociais; fornecer uma paisagem sonora do Rio de Janeiro no início do
século, relacionando diversos bairros da cidade com a música que ali se fazia; sugerir
como se aprendia aquela música, de que modos era transmitida. E, mais importante,
mutuamente.
uma obra relativamente difícil de ser encontrada, já que a edição da FUNARTE foi de
somente dois mil exemplares) e minha primeira impressão lendo a obra foi de
construções de frases estranhas, e grande número de referências para mim sem sentido.
Com o tempo, à medida que passei a me interessar pela pesquisa em choro, fui
aprendendo a reconhecer a importância das informações contidas no livro, ainda que por
detalhada mostrava não apenas um material riquíssimo sobre o ambiente musical do Rio
de Janeiro das primeiras décadas do século XX como uma descrição cuidadosa das
práticas musicais dos instrumentistas populares da época. Mais ainda, que o livro
5
desvelava aspectos musicológicos da praxis musical da época tais como relações de
aspectos. Esta percepção, entretanto, só me foi dada quando meu enfoque de leitura foi
modificado: ao invés de tentar identificar uma narrativa linear e coesa, passei a entender
binômio memória-etnografia. Como base metodológica para tal tarefa, realizei uma
realização. Estes textos estão relacionados com três questões básicas: 1) o problema da
entre identidades sociais e música; 3) o papel da narrativa neste processo — tomo aqui o
conceito Villa (1995), para quem a narrativa constitui uma categoria epistemológica que
foi tradicionalmente confundida com um gênero literário, mas que seria um dos
6
tópicos utilizo alguns textos-chave da etnomusicologia e de estudos sobre a música
popular como Blacking (1995), Middleton (1990) e Hennion (2002), além de textos
sobre memória social e recentes estudos que trabalham com as relações entre etnografia
e história (Coelho, 2009; Gonçalves, 2007; Martins, 2008); para o terceiro tópico uso
como referenciais teóricos textos de crítica literária como Bakhtin (1981, 1987) e da
chorões da época. Como se verá, havia uma associação imediata entre este tipo de
música e um modo de vida festiva, com farta comida e bebida, em oposição ao dia-a-dia
de trabalho. Esta dualidade é colocada de forma recorrente, com a citação, por parte do
autor, do que ele chama de “heróis do choro”, ou seja, aqueles indivíduos que
vida representada pelos choros. Procuro fazer aqui uma análise destes “anti-heróis”
Idade Média (Bakhtin, 1987). O segundo traz uma comparação entre o escrito de Pinto e
sobre o livro Memórias de um sargento de milícias, como se verá. Além disso, procuro
da música popular urbana carioca realizo uma análise comparativa entre o livro O
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Choro e outras fontes importantes que se constituem como memórias das práticas
procuro entender algumas das diferentes visões e leituras da música popular do período
no que tange a conceitos como gênero musical, “brasilidade”, relação com a indústria
fonográfica etc. Como se verá, os relatos deste período estão longe de apresentar uma
“gêneros musicais”, a questão das “origens”, a relação com a indústria fonográfica, etc.
Neste capítulo procuro dialogar com os mais recentes textos acadêmicos sobre este
tema, que incluem Abreu (1998, 2007), Sandroni (2001), Braga (2002), Carvalho
(2006), etc.
através de uma série de perguntas: 1) de que modo os músicos aprendiam esta música?
modo esta música era transmitida? Como se verá, o livro fornece informações preciosas
a respeito dos arquivos de partituras dos chorões, algo que a meu ver foi pouco
abordado pela bibliografia sobre o gênero até hoje. Pelo seu relato, sabemos que a
leitura e a escrita de partituras era algo importante para a transmissão do choro, sendo
que muitos músicos escreviam álbuns de partituras que eram frequentemente copiados
8
uns pelos outros, em uma verdadeira rede de informação. A partir deste fato, procuro
o tema. Este aspecto nos chama ainda a atenção para o gigantesco acervo de partituras
Rio de Janeiro, bem como o acervo Donga, de posse de sua família), material a meu ver
acervos.
semanal de músicos de choro que perdurou até a década de 1970, alguns dos quais
chegaram ainda a ser retratados no livro O Choro, como Napoleão de Oliveira e Léo
de 1990 e editada pelo livreiro Rodrigo Ferrari e pelo designer Egeu Laus. A revista
continha uma seção dedicada às “Histórias do Animal”, onde o carteiro “reaparecia” nos
tempos atuais para contar “causos” do seu livro e também histórias da atualidade,
grupo de músicos ligados a gravadora Acari, tendo o livro de Gonçalves Pinto como
9
autoria de Simone Cit (com direção musical de Roberto Gnattali), uma espécie de
apontar para qualquer desvio da norma culta. Da mesma maneira, como o objetivo é
optei por identificá-las apenas pelo número da página. Tal indicação remete sempre à
10
Capítulo 1
das práticas musicais da época em esferas mais amplas. Período em que surgem gêneros
como o maxixe, o choro, e – em maior escala – o samba, é, justamente por tal motivo,
Tanto os discursos da época em suas variadas instâncias – fontes primárias como jornais
e revistas, livros publicados, gravações etc. – como os discursos posteriores sobre este
imagens, representações, discursos e mitos podem ser vislumbrados. Mais do que isso,
envolve uma verdadeira “rede” de mediadores formada por diversos atores sociais, que
ao longo deste período se entrelaçam através de uma teia complexa que envolve fatos
justamente um relato em forma de livro que se intitula “O Choro”. Por trás deste nome
sendo primeiramente o nome pelo qual se designava o conjunto formado por violões,
cavaquinhos e flautas surgidos nas últimas décadas do século XIX (ou o lugar onde o
interpretação peculiar que estes grupos davam à execução de danças européias, tais
como polcas, valsas, schottischs, quadrilhas, entre outros. Nesta passagem de nome de
conjunto para gênero musical, a bibliografia ressalta sempre uma “influência africana”
rodas de choro), etc. Obviamente estas associações mudam de acordo com o ponto de
vista de cada indivíduo ou grupo social que evoque a palavra. Para um músico de choro
classe média do Rio de Janeiro de finais da década de 1990, a palavra poderia estar
12
ligada à ideia de boemia, diversão e mesmo associada a certos locais da cidade, como a
Lapa (bairro boêmio do Rio de Janeiro que presenciou neste período um dos muitos
que está em permanente mutação, resulta em grande parte desta cadeia de mediadores
pesquisadores, acadêmicos, etc. Mais do que isso, esta cadeia atua de forma sincrônica e
contradições, como se verá. Ao mesmo tempo, seu discurso é usado por praticamente
todos os escritos sobre o choro da segunda metade do século XX para validar e para
músicos ao longo do século XX. Como introdução a este tema, faço uma pequena
do século XX, incluindo os autores “clássicos” das décadas de 1940 a 1960 e as novas
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foco minha análise na historiografia específica sobre o choro, procurando entender de
que forma foram construídas diversas representações históricas sobre este termo e quais
os diferentes papéis que a obra de Gonçalves Pinto assumiu neste processo. Esta revisão
bibliográfica, que inclui também a literatura acadêmica mais recente, nos aponta
caminhos possíveis que vão além de uma “história-social” do choro, como se verá. No
segundo tópico do capítulo discuto o modelo metodológico que será adotado ao longo
do trabalho.
do século XIX, como a modinha e o lundu, é somente a partir da década de 1930 que
musical brasileira – a discussão sobre a música popular urbana está totalmente ausente
Sem o aval dos intelectuais, este movimento acaba por partir de escritores
Francisco Guimarães (por alcunha o “Vagalume”) e Orestes Barbosa – autores dos dois
primeiros livros sobre a música que se tornaria o símbolo nacional por excelência: Na
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roda de samba e Samba, respectivamente, ambos lançados em 1933. Ou ainda de
músicos populares, como é o caso do próprio Gonçalves Pinto, cuja obra é o alvo deste
“oculares” e até certo ponto participativas destas práticas. No entanto, seus discursos
disco e o rádio), por exemplo, Vagalume era um verdadeiro opositor daquilo que ele
defende o rádio como o mais importante meio de difusão do samba e exalta as “novas”
figuras como Noel Rosa e Lamartine Babo (tal tema é alvo de discussão de diversos
trabalhos recentes como por exemplo Sandroni 2001, Napolitano 2000 e Moraes 2006).
ambíguo a estes dois outros escritores, por um lado criticando, por outro enaltecendo os
cultural na década de 1930 – o rádio e o disco principalmente – que fazem com que as
música popular brasileira. Instituição complexa, que envolvia não só a prática sonora,
“polifônica”, que trazia em seu bojo uma série de discursos muitas vezes antagônicos,
15
Como conseqüência deste processo de historicização, surgem, a partir da
Formados por especialistas que eram também muitas vezes “atores” da música popular,
Mozart Araújo, Jota Efegê e Lúcio Rangel, tais acervos tinham como principal objetivo
esta história, mas que determinassem com pretensões científicas as “verdades dos fatos”
da música popular: o que incluía temas como suas “origens”, o estabelecimento de uma
linha evolutiva desta música, questões de autoria (as célebres discussões sobre a autoria
de músicas como Pelo Telefone e Luar do Sertão, por exemplo) e outros fatores, todos
muitas questões. Por um lado, os escritos desta geração1 são apontados como tendo
compositores (ver a este respeito Contier, 1988). Ainda que considerados importantes
épocas” (Braga, 2002: 4), este corpus permaneceria de certa forma na categoria de obras
1
Poderíamos apontar como exemplos destes escritos obras como No tempo de Noel Rosa, de Almirante,
Sambistas e Chorões de Lúcio Rangel e Figuras e coisas da música popular de Jota Efegê.
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intelectual da época (notadamente no de Mário de Andrade) um apoio para estabelecer
uma tradição reconhecida e legítima do samba como eixo central da música popular
“folclorismo urbano” subjaz sem dúvida a ideia de folclore como uma atividade
uma filiação – ainda que controversa – com o pensamento nacionalista que norteou os
cerne deste processo estaria a “crença na existência de uma força interna a cada povo,
palavras, as classes que tinham menos contato com a “civilização” e o contexto urbano
“identidade” como povo, e que, portanto, deveria ser “recuperado” pelo homem urbano
17
termos genéricos, a orientação subjacente aos trabalhos de Mário de Andrade (1934,
1939), Renato Almeida (1926), Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1939, 1950, 1954),
O documento folclórico, na sua prática, pode durar apenas uns poucos anos e
desaparecer totalmente, esquecido da maioria dos cantadores. Mas isto não impede
que ele guarde sempre, por sua natureza, a condição de sua tradicionalidade. Ele
continua sempre excluindo de si a noção da moda, e o seu elemento de
transitoriedade no tempo. Ele foi esquecido, mas isto não implica que tenha
passado. E se revivido pela memória dum cantador, ninguém reage folcloricamente
contra ele. Ao passo que o documento popularesco, pelo seu semi-eruditismo,
implica civilização, implica progresso, e com isso, a transitoriedade, a velhice, a
moda. O documento folclórico, por prescindir do tempo, se torna eterno e sempre
utilizável. (Andrade In: Coli, 1998:178-179)
aos gêneros populares urbanos foros de autenticidade que ao mesmo tempo os livrasse
do estigma de transitoriedade subjacente ao modo com que eram disseminados (ou seja,
representativas da nação?
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historicidade aos gêneros populares urbanos, ligando-os às mesmas “raízes” apontadas
desde autores como Vagalume e Gonçalves Pinto (como veremos), passando por
Almirante, Jota Efegê, Mozart de Araújo e outros, como já fartamente demonstrado pela
produzidas fora de contexto urbano – para explicar as gêneses destes mesmos gêneros.
Um exemplo bastante claro é o livro No tempo de Noel Rosa de Almirante (citado por
Napolitano e Wasserman, 2000), em que o autor inicia sua biografia sobre o compositor
de Vila Isabel traçando uma linha que liga o samba às tradições musicais nordestinas
trazidas para a cidade por músicos e “personalidades” como João Pernambuco e Catulo
música popular das décadas de 1960 em diante – notadamente Ary Vasconcelos e José
das músicas veiculadas através do disco e da rádio. Este processo se deu na contramão
samba e o choro eram absorvidos pela indústria cultural em expansão – sendo a epítome
deste discurso o já citado livro do “adorniano” Vagalume (ver p. ex. Sandroni 2000,
Braga, 2002, entre outros), para quem as instâncias originárias do samba, as “rodas” e o
2
No primeiro capítulo do livro, significativamente intitulado “Antecedentes Folclóricos”, o autor inicia
seu texto citando autores “clássicos” do estudo de folclore do início do século como Silvio Romero, Melo
Morais Filho, Pereira da Costa, entre outros.
19
dos gêneros “nacionais” através da grande indústria cultural, dois fatores podem ser
apontados: o primeiro reside no fato de muitos de seus cultores serem eles mesmos
parceiro de nomes como Noel Rosa e Silvio Caldas em clássicos como Positivismo e
Almirante, por sua vez, orientará toda a sua carreira radiofônica para a função
nacionalidade e que por isso mesmo estariam fora da transitoriedade inerente aos
modismos e à velocidade com que novos gêneros musicais eram lançados pela indústria.
Para que se alcançasse este objetivo era necessário validar a música popular urbana
Há quem pense, com um partidarismo absurdo, que toda e qualquer música popular
não presta, e que só as grandes obras clássicas, as sinfonias, os quartetos, as sonatas,
etc. etc., que prestam. Pois estão redondamente enganados. Há muita obra de grande
autor considerada até legítima droga. Por outro lado, sabemos também que boa
parte da música popular também não vale grande coisa, mas em compensação, há
no gênero legítimas obras-primas, que como perfeição, como expressão de arte,
nada ficam a dever às obras tidas como clássicas no repertório musical de todo o
mundo (Almirante, texto do programa O Pessoal da Velha Guarda transmitido em
17/03/1948; grifo meu).
20
intérpretes que conteriam, da mesma forma que a música “folclórica e pura”, os
acervos com material histórico e sonoro que os validassem de forma “científica”, como
já dissemos. É neste sentido que podemos entender a constituição das coleções como as
outros.
Certamente há pontos comuns entre estas duas vertentes de pesquisa, a ponto de haver
de Mário de Andrade. Como apontei em trabalho anterior (Aragão, 2006: 69-80), surge
congregava intelectuais como Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Marisa Lira, Joaquim
Ribeiro, Brasilio Itiberê e Renato Almeida; seu objetivo era a formatação de uma equipe
carioca, como a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, de onde Mariza Lira,
21
enfoque extremamente crítico da divulgação destes mesmos gêneros através do rádio e
O povo irá ter a compreensão do que é folclore e talvez se apague essa crença, que
os menos avisados do rádio têm espalhado, que folclore é música popular e que
folclorista é o artista de rádio ou colecionador de trovas. O folclore cada vez mais
alarga o âmbito de suas investigações e a música, o canto e as danças populares são
partes deles (Lira, 1953:17, grifo meu).
A crítica velada parece ter como alvo o radialista Almirante, que, na época,
carioca num concerto organizado, em 1940, por Mariza Lira, nos estúdios da Rádio
Mayrink Veiga”, a foto traz entre as figuras de Mário de Andrade, Pixinguinha, Mariza
Lira, o cantor Ciro Monteiro, Luiz Heitor, Carleton Sprague Smith, diretor da seção de
acabavam usando dos mesmos meios de comunicação para divulgar suas ideias e
1960 acabarão por unir figuras oriundas do folclore e da música popular urbana na
defesa de gêneros musicais brasileiros, contra o que era percebido como influência
22
Popular3, comandada por Lúcio Rangel, que reunia artigos tanto de nomes como Marisa
Uma nova vertente de estudos sobre música popular nasce na década de 1960
a partir da obra de autores como José Ramos Tinhorão. Embora contendo ainda
anterior, suas obras têm por bases as metodologias da história social e do materialismo
histórico comuns a este período. Fatos históricos e políticos da nação brasileira passam
a ser entendidos como “estruturas” definidoras das condições sociais e artísticas que são
determinada pelas condições econômicas e políticas da nação; mais do que isso, ela
cultural, por oposição a outros grupos sociais que se afastariam, por injunções
raízes folclóricas rurais percebidas como “matrizes” deste grupo. Por outro lado, à
3
A Revista de Música Popular teve 14 edições entre 1954 e 1956. (Napolitano e Wasserman, 2000)
23
promovidas por este grupo e recebe influências de instrumentos de “dominação
cultural” como o rádio e posteriormente a televisão, ela perderia seu caráter original e
nacional:
Uma das mais importantes obras do autor, sua História Social da Música
Colônia, Brasil Império, Brasil República, O Estado Novo, O Pós Guerra, e Regime
Militar de 1964 –, o livro tem como eixo central a dicotomia entre apropriação e
segundo o autor, o país estaria condicionado desde o período de colonização até os dias
atuais. Com extensa pesquisa documental – muito embora não fiquem muitas vezes
claras, para o leitor, as procedências das informações citadas pelo autor – o livro é sem
balanço completo dos estudos acadêmicos deste período, mas de um modo geral
24
podemos apontar algumas destas novas diretrizes pesquisas – o que nos ajudará a situar
nosso próprio trabalho. Em primeiro lugar, houve um deslocamento do eixo central dos
identidade nacional, passou-se a uma postura crítica dos estudos sobre a origem. Tal
como substrato para uma “música artística”, bem como o próprio questionamento destas
categorias previamente dadas, tais como “música folclórica”, “artística” e “popular” (v.
identificado por estes como sons musicais por oposição aos sons da natureza e aos
século XX em suas diversas teias sociais. No dizer de Zan (2001), a indústria cultural
não pode ser encarada como uma estrutura fechada, mas como “um processo de
produção e consumo de bens culturais cujos efeitos devem ser analisados como
termo que resulta em parte da visão de Adorno sobre o objeto de arte como “elemento
25
ligada a hábitos cognitivos, formas de consciência e desenvolvimentos históricos da
substituídas por leituras mais focadas em recortes temporais e temáticos mais reduzidos
entre música, cultura e sociedade, sob uma variedade de prismas metodológicos que
envolvem etnografia, história, estudos de crítica literária, entre outros. Este tema será
que tange à música popular urbana carioca, a grande maioria dos trabalhos publicados
versa sobre o samba e sua consolidação como símbolo da música nacional. Neste
processo, é dado ao choro uma espécie de papel coadjuvante, quase que uma etapa na
“linha evolutiva” do samba. Obviamente, foge ao objetivo desta tese fazer uma análise
de que forma o choro é representado nestes trabalhos mais recentes sobre o samba?
décadas do século XX, através de um complexo jogo social que envolve intelectuais
culminarão com o Estado Novo em 1937 além de instâncias da indústria cultural, como
o rádio e o gramofone, tudo isso tendo por pano de fundo um mosaico de diferentes
práticas musicais populares, advindas de diferentes regiões da cidade. Para o autor este
4
Originalmente a expressão “biombos culturais” foi cunhada por Roberto Moura em seu livro Tia Ciata e
a Pequena Àfrica no Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultural, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural,
Divisão de Editoração, 1995.
26
camadas sociais. Tomando como base a estrutura física da casa da Tia Ciata, a célebre
Wisnik cria uma espécie de leque de espaços culturais que iam do plano “erudito” (sala
salão de baile, o quintal do samba, etc. Estes diferentes “espaços”, separados por
“biombos” (ou seja, dividindo o território mas ao mesmo tempo permitindo trocas e
dominante e culturas do povo buscam referendar-se num espelhamento” (op. cit. 160).
Tal painel se tornaria ainda mais complexo por dois fatores: a ideologia cívico-
2000). O samba seria então o ponto de encontro entre estas duas forças divergentes, a
entre o samba, o salão e o sarau” por conter um duplo significado: ao mesmo tempo em
palavras, o choro seria uma espécie de “coringa” musical, podendo se configurar como
uma música apta a ser tocada tanto nos “grandes salões” quanto na mítica casa de Tia
Ciata. Um exemplo claro disso seria dado pelo chorão Sátiro Bilhar, violonista e
funcionário da Estrada de Ferro Central, que, segundo depoimento de Donga, citado por
27
Wisnik, “estilizava a mesma composição (entre as poucas que tinha), conforme as
Sandroni (2001). O trabalho de Vianna é definido pelo próprio autor como um estudo
das relações entre cultura popular e construção da identidade nacional através da análise
do que o autor denomina o “mistério do samba”, que poderia ser expresso da seguinte
forma: por que motivo um gênero musical apontado pela bibliografia como
“perseguido”, isto é, reprimido pelas elites como “música espúria” (Efegê, 1980: 24) se
torna de uma hora para outra música símbolo da nacionalidade? Para Vianna este seria
“o grande mistério da história do samba: nenhum autor tenta explicar como se deu essa
certa forma oficial” (Vianna: 2007: 29). Assim, o objetivo do autor é mostrar como a
transformação do samba em música nacional não foi um processo repentino, como quer
a bibliografia, mas sim o “coroamento de uma tradição secular de contatos (...) entre
ou ‘tapadas’ pela repressão, mas sim como o processo de invenção e valorização dessa
autenticidade sambista” (op. cit: 35). Vianna cita ainda o conceito de hibridismo de
Canclini, para afirmar que não considera a cultura popular invenção de um único grupo
social – ou seja, o samba não seria apenas a criação de grupos “negros pobres
28
Canclini “o popular se constitui em processos híbridos e complexos, usando como
seja, como “herança negra” previamente dada, já existente nas “noites de senzala”, nos
trabalhos de Arthur Ramos, Oneyda Alvarenga e Sérgio Cabral, Jota Efegê, entre
outros), já é questionada, ainda que isoladamente, desde pelo menos finais da década de
Fica claro neste texto do radialista a crítica à ideia do samba como uma criação
“autêntica” dos morros cariocas; é também muito interessante notar a crítica aos
29
barbarismo” à música popular. Almirante continua sua fala apontando a origem do
samba como uma espécie de instância mediadora surgida a partir do encontro entre as
tendo “origem no morro”, mas note-se que, ao fazê-lo, ele já aponta para o samba como
representada pelas práticas musicais ligadas aos candomblés das tias bahianas; por
outro, a mediação de compositores urbanos que teriam propagado o gênero musical para
além das quatro paredes das casas das bahianas, alterando, entretanto, sua forma
original. Note-se que não há nenhuma menção às instâncias repressoras do samba neste
processo.
30
Em segundo lugar, conforme salientado por Sandroni, a utilização do termo
“invenção de tradição” aplicada ao samba tenderia a esvaziar o termo de toda sua carga
etnicidades” (op. cit: 114-115). Ou seja, Vianna tenderia a acentuar o extremo oposto da
bibliografia tradicional: o samba não é mais visto como uma “herança afro-bahiana” em
essência, mas se converteria em uma construção artificial inventada por diversas classes
sociais do Rio de Janeiro. Apesar disso, o próprio autor acaba por cair em contradição
ao afirmar que, embora o samba não possa ser considerado “criação de grupos de
negros”, as participações de outras classes, raças e nações se deram pelo menos como
“relação exterior” ao “mundo do samba”, o que acaba por reificar a noção de mundo do
Sandroni.
Visto sob o prisma de estudos mais recentes sobre memória social (veja-se p.
ex. Peralta, 2007), a teoria da “invenção das tradições”, ainda que válida na medida em
não se pode por outro lado ignorar outras instâncias de memórias “espacialmente
5
Para uma abordagem crítica do conceito de “invenção das tradições” veja-se também Burke 2008:111.
31
Finalmente, poderíamos problematizar também a aplicabilidade do conceito de
tomadas de empréstimo aos campos das ciências naturais (como biologia e agricultura),
análise poder-se-ia argumentar que o conceito de hibridismo como artefato cultural que
de que grande parte das discussões a respeito do samba são também, a meu ver,
são também tênues, pelo menos durante um largo período da história da música popular
urbana carioca; não por acaso os dois personagens principais - pelo lado dos músicos
Donga, músicos que se dedicavam tanto ao choro como ao samba. O que se pode
apontar é o fato de que, no fundo estas duas categorias “samba” e “choro”, ainda não
estavam separadas de forma estanque nas duas primeiras décadas do século XX – algo
que iria acontecer somente a partir da década de 1930, conforme veremos. Certamente
havia várias grandes correntes de práticas musicais no período: uma ligada à tradição
em grande parte das danças européias (polcas, schottischs, valsas, etc), formadas por
agrupamentos instrumentais que se chamavam choros e com uma relação forte com os
32
corrente seria representada pela comunidade afro-bahiana da Cidade Nova, como suas
samba: as chulas, partidos, cânticos de candomblé, etc. Some-se a isso outras correntes
nordestinas, no Rio de Janeiro, que teria representantes ilustres como João Pernambuco
jazz-band que se constituiu como uma verdadeira febre em todo o Brasil nas duas
uma matriz “popular”, subentendida como “inculta”. Ora, Pixinguinha e Donga eram
acima e neste sentido poderíamos dizer que estavam também imersos em uma tradição
“culta” musical: ambos sabiam “ler e escrever” música, eram detentores de acervos de
da década de 1920 com o advento de um novo paradigma rítmico que ficaria associado
ao bairro do Estácio, calcado em forte tendência contramétrica: este seria o samba que
próprio autor classifica como de “etnografia histórica”, Sandroni realiza uma revisão da
33
as falsas premissas dos escritos sobre gêneros vistos como antecessores do samba, como
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: ele servirá como referência para o terceiro
Também deve ser ressaltado o fato de que Sandroni talvez seja o autor que
realiza de forma mais aprofundada uma análise da relação entre o samba e o choro,
Silva e Oliveira Filho, 1989), entre o choro como prática semiculta da baixa classe
média (Cidade Nova) em oposição ao samba como música “primitiva” dos descendentes
de africanos (Estácio). Para o autor, as relações entre música e classe social seriam mais
interpenetrações entre estas diferentes práticas musicais são ressaltadas, assim como a
Entretanto, ainda que não seja esta a intenção do autor, a análise histórica de
todos os gêneros que “antecederam” o samba do Estácio acaba por levar o leitor
samba do final da década de 1920. Neste sentido o choro fica implicitamente colocado
samba.
34
de sua inserção na indústria do disco e da rádio é que: a) o choro teve papel decisivo nas
como Benedito Lacerda (figura pouco lembrada na bibliografia tradicional sobre samba
mas que teve, a meu ver, papel decisivo na configuração e divulgação deste novo
símbolo do Estácio. Não por acaso os primeiros arranjos do “novo samba” que
do maxixe foram feitos por Pixinguinha; também não por acaso o conjunto regional
com maior atuação nas gravações do novo samba desde o final da década de 1920 até
Gonçalves Pinto
Neste tópico faço uma análise dos diversos discursos formadores das
“histórias” sobre o gênero choro. Meu objetivo principal é identificar de que modo um
entender as razões pelas quais este livro exerceu e ainda exerce tamanho fascínio em
35
diferentes gerações de pesquisadores e músicos. Obviamente esta análise não pode ser
feita sem que se realize uma revisão bibliográfica sobre os escritos sobre o choro.
décadas de 1940 a 1960 (com reflexos até os dias atuais, diga-se de passagem) são
que diz respeito às origens etimológicas do nome as interpretações variam entre cinco
termo xolo, identificado como designação africana para “bailes de negros realizados em
Lange (1980), que aponta para uma possível incorporação do termo alemão chöre,
utilizado para designar grupos corais e instrumentais do sul do país que teriam se
instrumentais.
o choro nasceria como um jeito de se tocar as danças européias, sendo que este jeito
pressupunha sempre algo ligado à sincopação tida como africana. Assim, para Lira, o
36
não eram os desenhos que traçava com a melodia, nem o ritmo, tão pouco as
variações do contra canto; era tudo isso, repousando numa preguiça, indecisão
propositada, espécie de ‘ganha tempo’. Não se percebia bem se era soluço ou
pretexto transformado em síncopa. Síncopa original, preparo de modulações que se
emaranhavam num sussurro, caricioso ou num cascatear álacre (Lira, 1940-41:
211)
Esta sincopação de origem indefinida seria vista por alguns como herança dos
“Por volta de 1870 – ano em que termina a Guerra do Paraguai – surge, no Rio de
Janeiro, o choro, inicialmente não propriamente um gênero, mas um conjunto
instrumental e logo um jeito brasileiro de se tocar a música européia da época (...)
Aos grupos instrumentais, geralmente formados de dois violões e um cavaquinho –
uma evolução da “música dos barbeiros” – superpõe-se, agora, geralmente a flauta
(...) Com o decorrer do tempo, essa composição de instrumentos passa a variar,
mas sempre sobre a mesma estrutura básica. O gênero, ou melhor, o repertório, vai
sendo enriquecido com a colaboração de novos músicos-compositores”
(Vasconcelos, 1977: 13-14, grifo meu)
salienta esta origem do choro, fazendo uma relação com o que ele denomina “nossos
antepassados africanos” e a música dos barbeiros. O que se pode concluir destas buscas
por etnogêneses é o fato de que não há como dissociá-las de categorias de discursos que
musicólogos e acadêmicos, como os listados acima, mas também pela própria tradição
37
oral do choro, da qual nosso carteiro é um dos porta-vozes. O fato da filiação do choro
da década de 1930 como Gonçalves Pinto, é algo bastante simbólico, que a meu ver
salienta o quanto estes discursos de origem são “realimentados” por uma cadeia que
identificarmos de que forma nosso objeto de estudos foi ele mesmo objeto de partida
detalhada sobre o livro seja o fichamento elaborado por Jacob Pick Bittencourt, o Jacob
1960, Jacob foi também um destacado pesquisador da música brasileira, podendo ser
em tópico anterior. Tendo iniciado sua carreira tocando na Rádio Mauá em 1947, Jacob
logo ganha um programa exclusivo como solista, onde atende inclusive a pedidos de
ouvintes. Sua correspondência revela que muitos destes ouvintes lhe enviavam
partituras de autores antigos, o que fez com que Jacob iniciasse a constituição de um
acervo de partituras que é hoje uma das maiores coleções do gênero, principalmente no
que diz respeito ao século XIX e às primeiras décadas do século XX (analisaremos com
38
Pesquisas por mim realizadas em seu acervo, hoje parte do Museu da Imagem
índice onomástico, Jacob elabora listagens com tópicos diversos, como a relação de
década de 1960: uma das folhas utilizadas como rascunho manuscrito por Jacob é de
permaneceu inédito até os dias atuais, mas ele é particularmente importante por dois
motivos: em primeiro lugar, o fichamento nos permite ter uma “visão panorâmica” dos
dados propiciados pelo livro, informações que ficam dispersas pela estrutura
fragmentada da narrativa. Em segundo lugar, abre caminho para uma série de estudos
sociais.
uma página
39
Este trabalho de fichamento será analisado com maiores detalhes no próximo
capítulo: por ora pretendo apenas oferecer uma “visão panorâmica” das categorias
utilizadas por ele. A tabela 1 foi elaborada por mim justamente com este propósito: o de
delas. Saliente-se novamente que Jacob relacionava cada pessoa citada no livro à
categoria em questão: assim, sabemos que são 29 os bairros citados ao longo da obra, e
temos o nome de cada uma das pessoas que habitavam cada bairro (ver fig. 1). Através
da listagem sabemos que são citados bairros de todas as regiões da cidade, incluindo as
partes “nobres” (como Botafogo, Copacabana e Gávea), passando pelo centro e região
portuária (Cidade Nova, Gamboa e Saúde), zonas norte e oeste (Vila Isabel, Andaraí,
40
Jacarepaguá) e subúrbios (Piedade, Engenho de Dentro, etc). A categoria “bandas,
clubes, etc” inclui tanto bandas militares e civis (como a banda do Corpo de Bombeiros
“Pragas do Egito”, este último fundado pelo próprio Gonçalves Pinto, etc.).
Ministério da Guerra, etc. Nem sempre fica claro no texto de Gonçalves Pinto qual a
hierarquias funcionais daqueles empregados nos Correios, sem dúvida por ser ele
mesmo carteiro. A outra categoria, “profissões”, parece estar ligada a atividades liberais
Festas, pontos de encontro etc.”, em que são arrolados 46 itens que determinam espaços
casas de pessoas. Há outra categoria que de certa forma se confunde com esta: é a
denominada “Ponto dos chorões”. Ao contrário das outras categorias anteriores, que
foram nomeadas por Jacob e cujos itens se encontram de forma esparsa através do livro,
esta categoria é original do autor: na página 95 do livro, sob o título “Ponto dos
Chorões”, o autor estabelece uma listagem dos lugares onde “os grandes chorões” eram
41
Bairros 29
Cemitérios 2
Atores 12
Instrumentistas - Cavaquinho 38
Instrumentistas - Violão 72
Instrumentistas - Bandolim 7
Instrumentistas - Banjo 1
Instrumentistas - Bombardão 6
Instrumentistas - Bombardino 13
Instrumentistas – Cítara 2
Instrumentistas - Clarinete 11
Instrumentistas – Contrabaixo 1
42
Instrumentistas - Fagote 1
Instrumentistas – Guitarra ? 1
Instrumentistas – Oficleide 22
Instrumentistas - Oboé 2
Instrumentistas - Ocarina 1
Instrumentistas - Órgão 1
Instrumentistas - Piano 19
Instrumentistas - Piston 14
Instrumentistas - Pandeiro 1
Instrumentistas - Requinta 4
Instrumentistas - Saxofone 10
Instrumentistas - Trombone 18
Instrumentistas - Violino 9
Instrumentistas - Violoncelo 1
Instrumentistas – Viola 1
cavaquinho (38), mas também se pode observar a grande quantidade de cantores, o que
sugere que as práticas musicais do choro sempre envolveram o canto e seus gêneros
profissionais, que tinham carreira no rádio na década de 1930, como Carmen Miranda e
Francisco Alves, como instrumentistas de choro que também cantavam nas festas.
43
forma significativa na listagem, por oposição a instrumentos exóticos como ocarina (1
Como dito, este trabalho de fichamento elaborado por Jacob será analisado de
forma detalhada ao longo da tese. Por ora, cumpre apenas assinalar que este foi o
primeiro trabalho sistemático que encontrei a respeito do livro; aliás, tudo indica que foi
a primeira abordagem sobre o livro após o seu lançamento em 1936. Minhas pesquisas
em fontes primárias (jornais, revistas etc.) sobre a recepção da obra nas duas décadas
veremos no segundo tópico deste capítulo, neste sentido o livro pode ser caracterizado,
pelo menos até a década de 1960, como uma obra de “contramemória”. Escrito por um
Catulo da Paixão Cearense, ele terá pouca repercussão até a década de 1970, quando,
“memória oficial do choro” – processo que será analisado com maior profundidade no
Ora, ainda que se possa dizer que o fichamento de Jacob inaugura de alguma
forma este processo de “recuperação” do livro, ele ficou também restrito ao acervo
redescoberta da obra será o jornalista e pesquisador Ary Vasconcelos, não apenas pelo
fato de ter sido o responsável pela reedição do livro em 1978 pela FUNARTE, mas
porque se serviu dele como base e inspiração para uma linha de estudos que se
estendem por uma série de livros de sua autoria como Panorama da Música Popular
44
estudos previa o estabelecimento de uma espécie de catálogo histórico e biográfico de
uma história dos músicos populares situados à margem da história da música brasileira,
em uma perspectiva que foi sem dúvida aberta pelo livro O Choro, ainda que
Foi realmente lamentável que tantos vultos históricos importantes não tivessem
encontrado, a tempo e a hora, o seu biógrafo, ou, pelo menos, quem deixasse
indicações precisas aos que, no futuro, quisessem fixar essas vidas. Que pena que
Alexandre Gonçalves Pinto, por exemplo, não estivesse culturalmente equipado
para a tarefa a que, com tanto amor e dedicação, se lançou! (Vasconcelos, 1977:
28-29).
dados biográficos dos músicos retratados em O Choro, muitas vezes a única fonte de
informação sobre estes. Este processo envolvia buscas nem sempre bem-sucedidas a
outras fontes que pudessem complementar as informações do “Animal”, que aliás são
Não me restou outro recurso, com os poucos elementos disponíveis, do que fazer
corresponder a cada nome – ou fragmento de nome, apelido, diminutivo – uma data
aproximada, um local possível de nascimento e morte, naturalmente, nesses casos,
colocando sempre um ponto de interrogação (op. cit. 28)
45
A ideia, em outras palavras, era “arrumar a casa”, no sentido de não deixar que
residia mais nas informações biográficas sobre os “atores musicais” do que em análises
históricas e sociais minuciosas sobre música popular - embora o autor não se furtasse a
periodizações históricas da música popular (sendo uma das mais importantes a proposta
deste quebra-cabeça, o autor agia na perspectiva de que seus estudos pudessem ser
amealhados entre seus leitores (familiares ou amigos dos músicos antigos, etc.).
obra deste pesquisador é baseada na premissa aberta pelo livro do carteiro. É a partir
dele que se abre a perspectiva de um rico filão de estudos sobre a música popular: o
46
1.2.2) Tinhorão e a história social do choro
Importante contribuição ao estudo do choro foi dada por José Ramos Tinhorão
em seus textos publicados a partir da década de 1970 tendo por diretriz uma história
particularmente pelo fato de que neles o livro de Gonçalves Pinto funciona como
verdadeira “chave” para que o autor possa analisar as condições históricas e sociais do
lado seria “um livro de uma enorme ingenuidade”, mas ao mesmo tempo –
47
leitor a ideia de que não se pode levar o livro e nem o seu autor muito a sério; fica
subentendido o fato de que ambos, livro e autor, são ingênuos, ou pelo menos, “bons
dizer que o texto em si não importa muito, mas sim as entrelinhas desveladas pela
análise.
apontado por Hennion (2002: 126): a interrupção da relação sujeito-objeto artístico por
uma espécie de “tela social” necessária para que o leitor compreenda esta projeção
quais os fazemos aparecer” (id., ib.). O que importa então não é o “livrinho” ingênuo do
“bom Alexandre” mas sim as condições históricas e sociais, desveladas pela análise, que
obrigatórias nos trabalhos acadêmicos sobre o choro a partir da década de 1990. O autor
estavam o telégrafo (1852), as primeiras linhas da estrada de ferro entre Rio e Petrópolis
48
(1855), o sistema de bondes puxados a burros em 1859, o gasômetro para iluminação da
que o choro, segundo Tinhorão, se desenvolveria: sem contar com um espaço próprio no
acanhado quadro social herdado do império – representado pela antiga divisão entre
senhores e escravos –, estas novas camadas sociais tiveram que criar espaços próprios
de participação na vida social, o que incluía certamente novas formas de lazer. Assim,
diversão nos bailes familiares produzidos por músicos amadores que tocavam
a produção de discos ainda era incipiente e a rádio ainda não existia, estes
49
Ora, todo este quadro social é, sem dúvida, corroborado pelo livro de
Gonçalves Pinto, e Tinhorão utiliza o texto para comprová-lo. Assim, o analista destaca,
com precisão estatística, que dos cento e vinte e oito músicos com profissão definida no
livro, cento e vinte e dois músicos eram funcionários públicos de diversas instituições
provenientes dos Correios e Telégrafos. É ressaltado ainda o fato de que, em sua quase
totalidade, estes músicos não eram remunerados nos bailes populares em que tocavam
comes e bebes tão largamente citados no livro de Pinto, como se verá no segundo
noturnas, só eram possíveis graças à “relativa suavidade” dos empregos públicos, com
sobre a relação entre as práticas musicais do choro e questão “racial”: após constatar
que o choro não era acessível à maior parte da população de mais baixa renda,
representada em grande parte por negros recém-libertos, o autor afirma que não teria
existido “qualquer preconceito de cor” entre estes primeiros chorões, pelo fato de que o
“mestiçamento” aparecia em grande escala nestas camadas médias que seriam o habitat
natural do choro. E para comprovar este fato o autor usa uma passagem do texto de
Gonçalves Pinto em que este, descrevendo um músico negro, se referiria à cor da pele
50
apenas para acrescentar “mais um dado à figura do biografado”. A descrição de
nela que nos permita fazer a afirmação generalizante de que não havia “preconceito de
cor” entre os músicos de choro. Este trecho exemplifica, aliás, um dos problemas
recorrentes nas análises sobre o livro de Gonçalves Pinto: como procurarei demonstrar
social, como rivalidades e críticas. Esta não será a postura de outros cronistas da época,
como Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, que não hesitará em formular descrições
críticas dos instrumentistas da época, como será mostrado no terceiro capítulo deste
trabalho.
que este é um fato corroborado por diversas fontes históricas, inclusive o livro de
Gonçalves Pinto, fartamente usado como prova dos esquemas sociais citados nas
análises. Entretanto, o que pode ser apontado como crítico na análise de Tinhorão e no
seu uso da narrativa de Pinto? Alguns fatores podem ser apontados. Em primeiro lugar,
as relações entre música e classes sociais são apresentadas ao leitor como “dados”
51
totalmente claros. O choro surge no vácuo de uma classe social recém-formada que não
dispunha de opções de lazer em um quadro social recém implantado pela república: não
tendo opções musicais para o seu divertimento, esta nova classe procura imitar as
práticas musicais das elites “ao som da música mais comodamente posta ao seu alcance:
cavaquinho” (op. cit: 195). Ou seja, seria uma espécie de apropriação particular da
música de uma classe alta por uma classe média: entretanto não há maiores informações
sobre como se dá este processo. Ilações sobre as relações entre músicos e classes sociais
são por vezes feitas a partir de dados “ocultos” ou não compreensíveis para os leitores,
situado entre as elites e as camadas mais pobres da população em uma espécie de limbo
cultural; sem ter, por um lado, acesso à alta cultura dos teatros e dos concertos de ópera
e nem mesmo aos espetáculos de classe média alta dos cabarés que apresentavam
música ligeira européia (como era o caso do Alcazar Lyrique da Rua da Vala, citado por
Tinhorão como local de apresentação das lorettes francesas) e sem terem sido, por outro
lado, influenciados por uma indústria cultural que ainda não existia (no caso do rádio)
ou ainda era por demais incipiente (no caso do disco), este grupo social cria, numa
espécie de passe de mágica, a música mestiça que seria considerada nacional por
torna uma espécie de “povo puro”, como aqueles míticos povos idealizados pelos
52
folcloristas: sem dúvida é esta a leitura que Tinhorão faz do “bom” (por ser uma mescla
condições históricas e sociais responsáveis, segundo ele, pelo fim deste período que
poderia ser caracterizado como o “choro antigo”. Para o autor, a partir da década 1920,
fizeram que os músicos chorões percebessem que “seu tempo havia passado” (Tinhorão,
jazz-band como “um primeiro sinal de alienação forçada pela realidade da dominação
musicais do choro estavam ligadas a músicos diletantes (que tocavam em festas, bailes,
casamentos, etc., mas que tinham efetivamente outras profissões) para um período de
maior representante. Não há dúvida que o livro de Gonçalves Pinto será em parte uma
espécie de pranto de saudade por este período passado; entretanto é preciso assinalar
point da história do choro; por um lado haveria uma espécie de “choro antigo”, o choro
do século XIX até fins da década de 1920, caracterizado pelo diletantismo acima
fusão com elementos “estranhos” como a jazz-band, o rádio, o disco, fusões com outros
“puro”: ele representaria uma fusão positiva (porque fora do eixo da indústria cultural)
53
das influências européias e de influências “rurais” (como a música dos barbeiros); este
dos textos citados. Tinhorão se apropria então do texto de Gonçalves Pinto para
caracterizá-lo como uma espécie de “bom primitivo” que pranteia este “tempo perdido”;
entretanto, o discurso do carteiro, como se verá ao longo deste trabalho, pode ser
caracterizado como uma via de mão dupla: em parte pranteia o tempo passado e em
parte saúda o advento do rádio e aplaude os músicos de choro que fazem sucesso pelo
rádio; ele é, em última análise, um discurso mediador entre os dois períodos do choro.
profissionalização do choro e continua até hoje; este fato pode ser comprovado através
mantidos em muitos casos por não-profissionais –, além das rodas de choros mantidas
até hoje por não-profissionais. Por outro lado, o diletantismo destas primeiras gerações
sofisticada” (Garcia 1997: 99), no que se refere ao seu conteúdo musical. Esta é uma
espécie de “linha evolutiva” do gênero, que identificaria gerações mais modernas como
De tudo o que foi dito acima em nossa análise dos textos de Tinhorão podemos
54
compreensão de práticas musicais, esta ferramenta não está isenta de estabelecer
analistas como Tinhorão, seriam as únicas causas de seu aparecimento (tanto das
práticas musicais quanto dos mediadores). Em última análise, pode-se perguntar: como
analisar a paixão de Gonçalves Pinto e seus parceiros pelas práticas sonoras por ele
Resta-nos agora fazer uma análise das teses acadêmicas sobre o choro, em sua
Gonçalves Pinto foi utilizado e interpretado por estes trabalhos. Pesquisa no banco de
de doutorado sobre o gênero ou afins. Boa parte destes trabalhos versa sobre
gênero em educação musical. Foge ao objetivo desta tese fazer uma análise exaustiva de
todo este material, mas apontaremos de forma sucinta os principais trabalhos que têm
das biografias e obras de três compositores das primeiras gerações do choro (Joaquim
6
Pesquisa realizada em 30/4/2010 no site da Capes http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses
55
Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth) o autor realiza uma “confrontação de
suas obras como choros, mas sim através das designações de gêneros da música
européia como polca, schottischs, quadrilhas etc; e que a designação “choro” teria sido
uma revisão de autores como Mozart de Araújo, Luís da Câmara Cascudo, Ary
sobre a palavra – tema já citado em tópico anterior, e que será também recorrente nas
teses acadêmicas sobre o choro, conforme veremos. Após constatar que, ainda que a
definição etimológica seja controversa, a maioria dos autores classifica o choro como
bastante propriedade, qual seria a substância musical deste “jeito de tocar que
composições eram classificadas por seus próprios autores como “choros”. Certamente
citado, até a década de 1920, pelo menos – e é difícil precisar uma data exata desta
56
autor em nenhum momento apresenta dados concretos que comprovem esta prática. Da
grande parte, mais em suposições do autor do que em análises de fatos históricos que as
comprovem. Assim, Nazareth é apontado como um compositor que não teria tido
consideradas “difíceis” pelo autor, como sol sustenido menor, o colocaria “numa
posição mais próxima dos compositores de formação acadêmica” (op. cit 71).
história da “prática de performance”, algo que constituiria, segundo o autor, uma lacuna
57
Assim, na introdução o autor reafirma o conceito clássico do choro como sendo
música africana e os gostos locais” (Garcia, 1997: 6). Entretanto, sua análise neste
afirmações errôneas, como a de que os escravos no Brasil (ao contrário de outros países,
do choro. No primeiro o autor faz uma revisão histórica de gêneros que poderiam ser
que começaria com o lundu e a modinha, passaria por influências européias como a
polca e o schottisch e terminaria com a nacionalização destes gêneros, que é visto como
um processo de reação ou resistência à dominação européia (op. cit: 6). O autor não cita,
viés. Em seguida há mais uma vez uma discussão sobre as origens etimológicas da
transmissão oral por excelência; esta particularidade é repetida diversas vezes ao longo
do trabalho: “Muitos dos melhores chorões, particularmente das primeiras gerações, não
podiam ler música e baseavam-se unicamente na transmissão oral para aprender” (op.
cit: 86); “músicos das primeiras gerações do choro (...) usualmente não podiam ler
música, mas apesar disso desenvolveram a habilidade de improvisar “de ouvido”. (op.
58
cit.92); “em sua maior parte, entretanto, o choro das primeiras gerações não era escrito,
poderia esperar deste jogo de ‘telefone sem fio’ musical” (pg 137). Conforme veremos
no capítulo quatro, esta noção do choro como gênero de tradição oral por excelência
precisa ser relativizada: veremos como o livro de Gonçalves Pinto nos ajuda a situar os
denomina early choro (“choro antigo”) como uma etapa “primitiva” em uma linha
sofisticada em ritmo, harmonia, melodia e forma” (op. cit 159) e nomes como Callado e
de um corpus de repertório das primeiras gerações do choro que era bastante comum até
mínimo questionáveis:
O livro de Gonçalves Pinto é mais uma vez visto sob um duplo aspecto;
embora o autor reconheça que o livro “traz um grande número de informações”, críticas
são feitas à “prosa desconexa” e à “falta de coesão gramatical”. Mais uma vez é
enfatizada a importância da narrativa como “história social” mais do que como fonte de
59
O livro de Pinto é, entretanto, válido como uma história social, mais do que como
discussão sobre a música. Embora o autor dê informações a respeito de
instrumentos e grupos de performance (assim como de habilidades de intérpretes
individuais) pouca informação é oferecida sobre a ‘música em si’ (op. cit.: 138:
tradução minha).
Janeiro, Brazil (1973-1995) traz uma perspectiva diferente das teses anteriores. O
abordado com um duplo objetivo: demonstrar de que maneira a música funciona como
recurso chave para ações sociais e instrumento político, e realizar uma análise
a função deste fenômeno típico do século XX, apontado ao mesmo tempo como produto
etnomusicológico (2001), apresenta talvez pela primeira vez um estudo do gênero sob o
parte de seu trabalho, o autor procura problematizar as diferentes escritas do que ele
afirma ser “uma história oficial do choro”, realizando uma leitura crítica dos textos de
Cazes (1998), Vasconcelos (1977) e Verzoni (2000), bem como depoimentos como o de
Jacob do Bandolim. Apontando diferenças em cada discurso, Oliveira constata que uma
60
famílias do choro, cada qual procurando legitimar suas respectivas práticas (Oliveira,
2001: 172). O autor cunha o termo capital acústico, que se inscreveria dentro do
também perante outras famílias de chorões: entre estas instâncias estariam domínio de
maior (e certamente o trabalho não se propunha a isso) sobre sua possível influência no
Contudo, a caracterização do choro como uma prática plural, que abrigaria em seu
sonoros e verbais sobre o choro são, a meu ver, contribuições importantes para a
caberia pensar de que forma o trabalho seria lido pelos próprios “nativos” do choro,
conteste ou corrobore este quadro específico, o que nos leva, de forma mais ampla, ao
problema das premissas da autoridade etnográfica tal como discutidas por Clifford
(1998).
trabalho de grande importância para o presente estudo, uma vez que uma parte
61
significativa é dedicada ao estudo da obra de Gonçalves Pinto, e constitui um dos mais
completos trabalhos sobre a obra do carteiro que pude encontrar na literatura acadêmica.
Várias das questões desenvolvidas ao longo dos próximos capítulos foram delineadas na
tese de Braga, que tem como foco a invenção da música popular brasileira. Para o autor,
em torno da invenção de uma tradição artística” que viabilizasse a música urbana como
fator identitário da nação. Este processo envolvia, obviamente, tensões com outros
cultural, que o autor identifica como “indispensável a todo o estudo de cultura popular”:
à memória da música popular urbana do Rio de Janeiro, é o que mais nos interessa para
o presente estudo: através de uma análise das obras de Francisco Vagalume, Orestes
Barbosa e Alexandre Gonçalves Pinto, Braga procura salientar de que forma cada um
destes três autores procurou “moldar” uma construção sobre memória privilegiando
62
processo que envolvia escolhas que evidenciavam os “valores de época em relação aos
autores e músicos dessa música urbana de que falam.” (Braga, 2002: 165).
sociais distintos (id. 199); a relação aparentemente ambígua do carteiro com a indústria
outro não perdendo a oportunidade de louvar suas aparições nos novos ambientes de
mídia (id. 200); a discussão sobre as origens da música, presente no verbete “Alvorada
da música”, que Braga identifica como uma filiação que o carteiro estabelece entre o
choro e as tradições de festas populares animadas em grande parte por bandas formadas
por escravos negros (id. 211-212); e finalmente, e talvez mais importante, o aspecto de
principal do livro (id. 196). Por todos estes aspectos, trata-se de um texto de grande
importância, com o qual procurarei dialogar com mais intensidade ao longo do trabalho,
teóricas para uma análise do livro de Gonçalves Pinto que nos leve além das discussões
gênero (ainda que, como se verá, estas discussões não deixem de ser abordadas ao longo
63
do trabalho). Como ponto de partida, parte-se da dupla premissa etnomusicológica da
compreensão plural de música como “resultado das práticas que um grupo social
particular define como ‘musicais’” por um lado, e pela aposta na inteligibilidade entre
verbal, de outro” (Travassos; 2006). Este quadro se torna ainda mais complexo pela
a uma análise que se desenvolve em períodos de tempos mais largos, como apontado
antropológicos (v. por ex. Sahlins, 2008). Voltaremos a este tópico posteriormente.
tempo, que tais signos não estavam restritos a uma única camada social, como nos quer
cultural7. Não se pode ver, portanto, o livro de Gonçalves Pinto como simplesmente um
representante da classe dos carteiros da época; ele o é, sem dúvida, mas seu discurso
de) ideias sobre as origens da música, política, nacionalismo, relação entre danças,
fonográfica, como se verá ao longo deste trabalho. Em todos estes conceitos, suas
memórias refletem sua própria visão de mundo, mas também a de outros segmentos da
sociedade da época; veremos ao longo dos capítulos dois e três como instâncias
7
Neste sentido este trabalho se insere na linha de estudos sobre cultura popular que utilizam o conceito de
circularidade cultural para justificar trocas entre classes sociais como Burke, 1989; Ginzburg, 2006 e
Bakhtin, 1987.
64
diversas, como o linguajar dos folhetins, as crônicas publicadas em jornais dos ranchos
Filho influenciarão a escrita do carteiro. Para fundamentar esta análise faremos neste
tópico uma breve revisão bibliográfica de textos sobre: a) nexos entre signos culturais e
Como relacionar música, cultura e sociedade? Este é sem dúvida um dos temas
de uma forma mais ampla), história, sociologia e antropologia. Para De Nora (2000), a
música e sociedade foi feita por Theodor Adorno. Dedicado a explorar a hipótese de que
a música como formativa de uma consciência social. Neste sentido, sua obra
(op. cit. 2). Sem dúvida esta ideia teve reflexos em estudos musicológicos e
(que De Nora denomina “grand approachs”) que procurassem englobar em larga escala
65
Um exemplo claro na etnomusicologia seria dado por John Blacking que
cunhou o termo “grupos sonoros” (sound groups) para designar um grupo de pessoas
que compartilham uma linguagem musical comum, assim como ideias comuns sobre a
música e seus usos. Tais “grupos sonoros” independeriam de fatores como constituição
social, nacionalidade, idioma para a obtenção de uma identidade. (Blacking, 1995). Este
conceito pode ser considerado um pouco vago em sua estrutura, particularmente num
estejam expostas a uma diversidade imensa de gêneros musicais. Na base deste preceito
está a ideia do símbolo musical como constituidor de uma estrutura social, no sentido de
Se a música pode ser uma força ativa na constituição social, devemos procurar as
evidências que mostrem como o uso de símbolos musicais ajudam a construir,
assim como refletir, padrões culturais e sociais. Isso deve ser feito, entretanto, sem
que se caia no simplismo da relação causa e efeito e levando-se em conta a
possibilidade de que símbolos musicais podem ser transformados em outros
símbolos, e vice-versa, sem a mediação da convenção social (Blacking, 1995).
modo preciso o processo pelo qual signos musicais podem formatar estruturas sociais,
sem que se caia em conceitos reificados como “cultura” e “sociedade” (op. cit. pg 3).
Em outras palavras, se a demonstração clara do processo que cria nexos entre práticas
sonoras e sociais não pode ser feita, então a análise periga, nas palavras da autora,
de ‘visível’” (id. Ib). Dessa forma, a sociologia da música muitas vezes estaria vagando
em uma espécie de espaço vazio entre duas paralelas: símbolos sonoros versus símbolos
sociais.
66
De que modo, então, poder-se-ia estabelecer uma análise focada no processo
que forneça nexos palpáveis entre estas duas paralelas? Richard Middleton, a partir
uma releitura de Gramsci, utiliza o que ele denomina “princípio da articulação”. Neste
diferentes para os mesmos elementos (Middleton, 1990). Como afirma Pablo Vila, “a
ideológicos, mas também insiste que os padrões combinatórios mediatizam padrões que
do sentido.” (Vila, 1995). Ou seja, haveria uma via de mão dupla em que elementos
sonoros podem gerar identidades sociais, mas fatores sociais também moldam
Sem querer negar a validade do princípio de articulação, Pablo Vila sugere que
a discussão sobre identidades sonoras passa necessariamente por uma instância na qual
epistemológica que foi tradicionalmente confundida com um gênero literário, mas que
seria um dos esquemas cognoscitivos mais importantes do ser humano (Vila, 1995).
sonora. Além disso, Vila chama a atenção para o fato de que a música popular não se
expressa somente através do som, mas também através do que se diz a respeito dela.
É certamente claro que palavras sobre música — não apenas a descrição analítica,
mas também a crítica, o comentário jornalístico e mesmo a conversa casual —
67
afetam seu significado. Os significados sobre ragtime, rock’n’roll ou punk rock não
podem ser separados dos discursos que os rodeiam (Middleton, 1990:221)
muitas vezes contraditórias, sobre determinada prática musical, estaria na base desta
“célula orgânica” que seria a identidade sonora. Esta definição parece bastante
atenção para o fato de que a narrativa representa também uma forma de ordenamento e
sentido a uma situação do presente, é necessário que se lance mão de uma narrativa que
68
que se deve, a meu ver, interpretar um texto como o de Alexandre Gonçalves Pinto,
análise que comporta duas instâncias: em um primeiro momento temos o próprio autor
“reordenando” suas memórias e dando sua visão pessoal sobre a música que se fazia no
Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX e início do XX. Tal visão, como já
Pinto deve ser entendida como uma das vozes que formam uma polifonia de discursos
da época, cada qual procurando legitimar e validar uma visão pessoal. Na outra ponta
acadêmicos, músicos, etc) que “reconfiguram” tal narrativa sob diferentes perspectivas,
anteriores.
Nora (2000) e Hennion (2002) apontam (de forma bastante congruente com o
conceituam a música em sua vida social. Assim, ao invés de estudos que estabeleçam
do que os próprios atores sociais definem como nexo entre significações musicais e
sociais.
Isso significa uma mudança de foco dos objetos estéticos e seus conteúdos
(processo estático) para as práticas culturais através das quais materiais estéticos
são apropriados e usados para produzir vida social (processo dinâmico) (De Nora,
2000).
Desta forma, a etnografia teria papel chave neste processo: aplicado ao nosso
69
realidade analisada com os instrumentos de análise” (Hennion, 2002); em outras
mediações, sem convertê-lo por um lado em mera história social e sem, por outro lado,
cair na tentação de estabelecer conexões que vão além do que o texto quer nos dizer,
como numa espécie de “truque divino” acadêmico (De Nora, 2000: 3). Ou seja, é
preciso ouvir as diferentes vozes que emergem do texto do “Animal” sob uma
trata como um “bom primitivo” - e ao mesmo tempo sem cair no extremo oposto de
perspectiva da etnografia podem servir como ferramentas para uma análise do livro de
Gonçalves Pinto que não o transforme em um mero apanhado de fontes primárias e nem
o reduza a uma coletânea de fatos bases para uma história social, como já
suficientemente apontado.
construção coletiva, e, portanto, como objeto de estudos das ciências sociais (Peralta,
70
promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base no seu
passado coletivo, conferindo-lhes uma ilusão de imutabilidade, ao mesmo tempo
em que cristaliza os valores e as acepções predominantes do grupo ao qual as
memórias se referem. (...) Holbwachs considera, assim, que a memória coletiva é o
locus de ancoragem de identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no
tempo e no espaço (op. cit.).
mas também em grande parte na memória coletiva que se formou entre estes músicos.
Isso fica claro nas referências que Pinto faz a músicos que ele não conheceu, mas cuja
caso de Joaquim Callado, por exemplo. A descrição sobre Callado é inteiramente feita
“Contavam alguns daquelles tempos que tambem já dormem o somno dos justos, que
Callado foi chamado para um concerto (...)”, ou “Diziam os musicos daquelle tempo que
Callado, na sua maviosa flauta (...)” (Pinto, 1978: 12, 87). Callado talvez seja o exemplo
Amorosa” que vai se tornar uma espécie de símbolo de antiguidade do choro): sua
“mito” do choro. Esta é uma construção coletiva baseada em uma cadeia de mediadores:
para boa parte da geração de Gonçalves Pinto, que não conviveu com Callado, sua
histórias míticas de sua habilidade como instrumentista, histórias que eram recontadas
71
certamente através da tradição oral e escrita (como é o caso da própria descrição que
Gonçalves Pinto faz de Callado em seu livro). Para as gerações de músicos atuantes na
memória coletiva para redigir alguns dos perfis biográficos do livro. É o caso do
De saudosa memória foi carteiro, flautista dos bons. Dizia o que sentia em seu
instrumento. Apesar de não o ter conhecido pessoalmente pude pegar algumas
pequenas informações, sabendo que elle privou com os grandes flautas da
antiguidade; sua morte causou grande claro entre seus amigos daquella época.(op.
cit. 17, grifo meu).
um passado que o carteiro não conheceu pessoalmente, mas que vivia ainda na memória
de vários dos músicos de sua época. Assim, em alguns casos, não é possível estabelecer
com precisão se o carteiro descreve seu biografado com base no seu conhecimento
Mais uma vez a menção aos “antigos chorões do seu tempo” parece indicar
que Gonçalves Pinto não conheceu Bacury pessoalmente, mas que o descreve com base
na lembrança de outros, embora isso não fique completamente claro na passagem citada.
72
Ainda que a percepção de que lembranças individuais e coletivas se fundem na redação
semelhanças passam para o primeiro plano. No momento em que examina seu passado,
o grupo nota que continua o mesmo e toma consciência de sua identidade através do
tempo.” (Halbwachs, 2006: 108). Apresentar o grupo social do choro como um grupo
homogêneo será sem dúvida um dos objetivos mais importantes do livro de Gonçalves
Pinto, conforme veremos com mais detalhes nos capítulos dois e três. Através do
músicos e apreciadores das práticas musicais que depois se identificariam como “choro”
e do rádio tão bem demonstrados por Tinhorão). Isso implica dizer que a percepção de
com relativa facilidade que Gonçalves Pinto teria contribuído de forma decisiva para a
construção do choro como gênero nacional; mas há que se fazer certas ressalvas para
que fique claro que ele não foi, obviamente, a única instância deste processo. Não há
73
consolidava como música-símbolo nacional. No entanto ele é apenas um elemento em
uma cadeia de mediadores que procurarão moldar, cada qual à sua maneira, sua
representação histórica do gênero; além disso, seu discurso é em última análise uma
mediação de visões de mundo da época. É por isso que ao longo do livro há, ao mesmo
tempo, críticas e elogios aos novos meios de comunicação como o rádio, de acordo com
o perfil do “personagem” biografado por seu autor; alguns dos retratados espelham
Pinto critica o samba no verbete em que descreve Catulo, mas tece elogios gerais ao
gênero quando trata de Donga, por exemplo). Em suma, há uma escrita polifônica com
objetivos vários, um dos quais (mas não o único), o de legitimar o choro como prática
samba se delineava como música nacional, ganhando cada vez mais espaço no rádio, no
disco e na imprensa (sem contar os livros “inaugurais” sobre a música popular urbana
por incorporar em sua representação do passado a voz daqueles que foram silenciados
ou marginalizados pelo discurso dominante. Ao escrever seu livro três anos após o
lançamento das obras de Barbosa e Vagalume, Gonçalves Pinto se coloca de certa forma
populares para quem as práticas musicais do choro poderiam ser caracterizadas, tanto
como o samba, como música nacional. “A polca é como o samba, uma tradição
74
brasileira”, dirá o carteiro em meio ao livro. (Esta é outra frase fundamental para nossa
análise das representações do passado deve incluir a relação existente entre a ordem
rádio e do disco, (e de forma ainda incipiente, mas com cada vez mais força, de
musicais (tanto da “alta cultura” – os livros sobre a “grande música” européia – quanto
(como Mello Moraes Filho, Visconde de Ouro Preto e Villa Lobos) quanto músicos
Gonçalves Pinto como uma narrativa etnográfica. No entanto é preciso ainda fazer uma
quando observamos que o livro teve aparentemente pouca ou nenhuma repercussão nos
75
em conta o fato de que Alexandre Gonçalves Pinto era um completo anônimo quando
comparado a outras “personalidades” que também editaram livros sobre música, como
lançamento do livro; também não foi possível encontrar nenhuma referência a ele nas
décadas de 1940 e 1950, o que indica que a obra teria permanecido no esquecimento até
pelo menos a década de 1960, quando foi alvo do fichamento elaborado por Jacob do
memória” o livro se tornará, através da cadeia de mediadores que o adotarão como fonte
Analisaremos este processo com maiores detalhes ao longo da tese; por ora cumpre
apenas enfatizar que o livro permaneceu como “contra-memória” até pelo menos a
década de 1970.
(Clifford, 1998) da ideia de etnografia como conceito mais amplo (e mais antigo
8
A pesquisa é dificultada pelo fato de não termos a referência exata do mês em que a obra foi lançada. Na
parte final do livro, Gonçalves Pinto afirma que o livro deveria ter sido lançado “muito antes do
carnaval”, mas que problemas na gráfica onde ia ser impresso o levaram a lançá-lo “só agora”. Este “só
agora” implica sem dúvida uma data depois do carnaval, mas não há mais nenhuma informação concreta
que nos indique o mês exato.
76
etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia e traduzia os costumes, e aquele que era
o construtor das teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos”. Esta
etnografia da música como uma descrição verbal daquilo que um grupo social define
como “musical” não implica em ausência de caráter interpretativo, uma vez que
como o mundo não pode ser apreendido diretamente, ele é sempre inferido a partir de
análise da estrutura do “todo cultural” através das suas partes, uma das condições
A observação participante serve como uma fórmula para o contínuo vaivém entre o
‘interior’ e o ‘exterior’ dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de
ocorrências e gestos específicos, através da empatia; de outro, dá um passo atrás,
para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos
singulares, assim, adquirem uma significação mais profunda, ou mais geral, regras
estruturais, e assim por diante. (op. cit., 33 e 34)
77
Do que se viu até aqui, fica claro que o livro de Gonçalves Pinto pertence à
categoria de etnografia “não acadêmica”, o que não implica em afirmar que sua obra
tenha um papel meramente descritivo. Ela é sem dúvida resultado não apenas de uma
que o “passo atrás” da etnografia escrita pelo carteiro é dada não pelo afastamento físico
costumes que permite ao autor definir com precisão grupos sociais que se unem em
torno de determinadas práticas musicais: “Foi por isso bom amigo leitor, que
pensamento escrever algo sobre os chorões da antiga e nova guarda” (207, grifo meu).
Neste sentido, a obra de Gonçalves Pinto pode ser entendida em parte como uma
“etnografia histórica”, já que o autor não escreve apenas sobre o “presente etnográfico”,
1983), têm sido cada vez mais utilizados em trabalhos recentes nos campos das ciências
sociais. Conforme assinalado por Castro e Cunha (2005), ainda que exista entre o senso
78
vários, enfoque normalmente associado ao historiador ou ao arquivista. Desta forma, o
É esta também a perspectiva adotada por Coelho (2009:182) em sua tese sobre
as viagens dos Oito Batutas à América Latina na década de 1920. Para o autor, a relação
entre a antropologia e a questão dos arquivos pode ser vista sob um duplo aspecto: na
indagação sobre qual o estatuto dos arquivos como fontes de dados para o trabalho
aspecto estaria ligado à crise no interior da disciplina surgida a partir da década de 1980,
quando críticas cada vez mais contundentes colocaram em xeque diversas premissas da
antropólogo (cf. Clifford, 1998:17-59). Não creio que seja preciso, no âmbito deste
trabalho, aprofundar este ponto já bastante repisado por estudos recentes: no entanto, ele
informações e narrativas que nos chegam do passado sob um viés antropológico? Para
79
Coelho, fontes primárias como jornais e periódicos não podem ser lidos apenas como
uma simples página de jornal do passado representaria um campo de forças regido por
uma relação dialética entre vários “personagens” e instituições9. Desta forma a trajetória
polifônica das notícias de jornal que nem sempre apresentavam visões unívocas sobre o
conjunto. Visão bastante semelhante é apresentada por Renata Gonçalves (2007) em seu
estudo sobre os ranchos cariocas, pesquisa baseada, nas palavras da própria autora, em
Brasil. O jornal é aqui também analisado como um espaço de mediação entre diversas
instâncias que muitas vezes atribuíam diferentes significações às práticas dos ranchos de
carnaval:
segundo capítulo, havia uma intensa ligação entre os ranchos carnavalescos e os chorões
retratados pelo “Animal”, sendo ele mesmo diretor de um rancho de nome Pragas do
por cronistas carnavalescos e pelos jornais editados pelos próprios ranchos (como era o
9
Coelho inspira-se no pensamento do teórico francês Maurice Moulliaud, para quem o jornal pertenceria
a uma rede de informações em perpétua modificação. Neste sentido, o jornal seria parte de uma rede que
não impõe ao mundo “apenas uma interpretação hegemônica dos acontecimentos, mas a própria forma do
acontecimento” (Moulliaud apud Coelho, 2009: 185)
80
caso do Ameno Resedá, um dos ranchos mais importantes da época) na linguagem de
Gonçalves Pinto.
recente que traz como foco a questão da etnografia histórica: o livro do sociólogo José
um grupo de operárias.
grupos sociais de referência nesta análise, grupos vicinais e de trabalho, dos quais fiz
parte, e não como estranho, que é o que normalmente ocorre com o pesquisador”
etnográfo seriam dadas, segundo Martins, por dois fatores: o primeiro seria o de que sua
estudo (cerca de trinta anos) conferiria não apenas um simples distanciamento, mas uma
81
verdadeira “alternação biográfica”10: o autor deixara há muito de pertencer às esferas
Voltando ao nosso objeto de estudos, poderíamos dizer que sem dúvida nosso
amador” das experiências sociais do seu tempo, como na citação acima. Mas seria
carteiro das primeiras décadas do século XX? Não nos é possível saber com certeza:
mas podemos obviamente afirmar que, pelo próprio caráter da profissão, um carteiro
tem grande mobilidade pelas diferentes “regiões sociais” da cidade; e Gonçalves Pinto
certamente se vale desta mobilidade como ferramenta para a sua narrativa etnográfica.
conhecimento de pessoas e situações sociais descritas. Assim, para citar apenas dois
exemplos, Pinto conhece o violonista Vicente Sabonete e sua “distincta família” graças
ao seu trabalho “como carteiro na Rua Lavradio” onde a família residia (pg. 129); sobre
10
O termo “alternação biográfica” é do sociólogo Peter Berger, e refere-se às alterações de contextos
sociais através do tempo de vida de um indivíduo.
82
a viúva de Carlos Espíndola ele rememora: “Não sei de certo, se a sua viúva ainda
existe, o que faço votos que sim, pois, quando carteiro que fazia entrega na rua do
Lavradio encontrei-a, uma ocasião, morando no Hotel Nacional” (pg. 22). Por outro
lado, também não creio ser possível falar em “alternação biográfica” no caso de
Gonçalves Pinto: ainda que as condições sociais da época em que ele escrevia fossem já
muito diferentes daquelas descritas em sua narrativa, não há como inferir que sua
Pinto pode ser analisado como uma etnografia “nativa”, na medida em que temos pela
insider. Ao mesmo tempo, sua escrita nos permite “ouvir” a polifonia de discursos da
etc. (veremos com mais detalhes estes aspectos no capítulo dois). Feita esta constatação
passamos a outra questão: como analisar um texto etnográfico do passado sob uma
descortinado por nosso carteiro? Obviamente, para desespero do autor destas linhas, o
“Animal” está completamente surdo aos meus questionamentos; entretanto, seu texto
restitui em parte sua própria voz e as daqueles que ele descreve. Um trabalho
comparativo entre fontes de época também nos permite evocar e “entrevistar” outras
vozes do passado que por vezes apóiam, por vezes se contrapõem ao discurso de
Gonçalves Pinto. Além de livros como os dos citados Catulo, Vagalume, Orestes
Barbosa e Mello Moraes Filho, os periódicos do rancho Ameno Resedá (que serão
83
nossos estudos no capítulo quatro) foram valiosos elementos que nos ajudaram neste
Por outro lado, entrevistas com músicos de choro mais antigos, que iniciaram
suas trajetórias musicais na década de 1950, nos permitem realizar uma espécie de
“abordagem indireta” com o universo descrito por Pinto. Alguns destes músicos, como
foi possível também conhecer e entrevistar uma neta de Alexandre Gonçalves Pinto, que
pôde fornecer elementos importantes para nossa análise. Todos estes elementos serão
analisados com maior profundidade ao longo dos próximos capítulos. E, por fim, e
talvez mais importante, nossa etnografia nos conduz a músicos e amantes do choro da
atualidade que tiveram suas relações com esta(s) música(s) modificada(s) pela leitura do
livro. De que forma uma narrativa do passado altera nossa concepção do presente é a
russo Mikhail Bakhtin. Estes conceitos nos serão úteis em nossa análise do texto de
comparação. Por outro lado, Bakhtin também nos fornecerá a chave de uma das
questões centrais do livro, que pode ser resumida da seguinte forma: como analisar um
84
linguisticamente “impuro”, advindo de um membro das classes populares do Rio de
Janeiro das primeiras décadas do século XX? Para responder a esta questão utilizaremos
respectivamente.
aplicá-los ao nosso objeto de estudo. Obviamente fugiria aos limites desta tese realizar
aqui é apenas delinear os principais conceitos que podem ser utilizados como
Bakhtin (1992), a enunciação seria resultado da interação entre pelo menos dois
dependentes da posição social dos locutores, onde cada um deles teria “um horizonte
11
Este, aliás, é um dos primeiros aspectos da “descoberta” do pensamento de Bakhtin pelo mundo
ocidental, particularmente por pensadores franceses da década de 1960. Em um contexto dominado pelo
pensamento estruturalista, os estudos da lingüística (particulamente aqueles ligados ao pensamento de
Ferdinand Saussure) eram vistos como “fatos lingüísticos” dominados por antíteses – língua e palavra,
denotação e conotação, signo e significado – sempre anteriores ao sujeito e ao contexto histórico e social
em que se davam. O pensamento de Bakthin surge, portanto, como um contraponto ao pensamento
estruturalista: a partir dele a linguagem passa a ser entendida como algo imanentemente social, imersa no
sujeito e na história, “nas práticas cotidianas, nas ações intersubjetivas, ou seja, na inexorabilidade
85
Assim, nas enunciações, há tantos sentidos quanto os diversos contextos em que
elas aparecem. Por isso, o sentido ou tema pode ser investigado nas formas
lingüísticas e nos elementos não verbais da enunciação, ou seja, a apreciação, a
entonação, o contexto, o conteúdo ideológico etc. (Rachdan, 2003)
lugar de seu ouvinte.” (id, ib.). Assim, o conceito de diálogo amplia-se de forma muita
mais complexa do que o tradicional conceito de interação verbal entre duas pessoas
(Bakhtin, 1992: 123). De forma geral todo o discurso seria dialógico, mesmo quando
é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser
apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no
quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas,
que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas,
que exercem influência sobre trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala
sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na
mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele
decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo
de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante
de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa,
refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.
(Bakhtin, 1992: 127, grifo meu).
dialógico, espelhando sempre “relações que ocorrem entre interlocutores, em uma ação
86
O conceito de polifonia não deve ser confundido com o de dialogismo. Se o
sendo “resolvidas” pelo emissor do discurso. Originalmente o conceito foi aplicado por
(ou seja, embora os vários personagens destes romances pudessem apresentar posições
ideológicas diferentes, eles estariam todos subordinados a uma visão unívoca do autor)
de um único autor: seria como se o romance apresentasse vários autores “cada qual
apresentando sua visão de mundo” (Soerensen, 2009). Como o texto não é “fechado”, o
ao admitir que toda a linguagem traz em seu bojo, em uma espécie de jogo dialético,
sociais, profissões, etc. Assim, toda a linguagem “oficial” seria o resultado de uma
Para Ribeiro e Sacramento (2010: 19) o conceito de heteroglossia sugerido por Bakhtin
87
se referenciando histórica e socialmente; para usar os termos de Saussure, a langue seria
Gonçalves Pinto, os conceitos que nos serão chaves na obra de Bakhtin para o
ingênuo” como nos quer fazer ver a história social – serão os de intertextualidade e o de
(Araújo, 2005). Retrabalhado pelo historiador Carlo Ginzburg (um dos pioneiros da
processos de reapropriação e trocas entre diferentes classes sociais (id. ib). Vejamos
as ideias de um moleiro da Idade Média condenado pela Inquisição. Para este autor, o
através do termo “cultura primitiva” cunhado pelo folclore e pela antropologia social é
que “se chegou de fato a se reconhecer que aqueles indivíduos outrora definidos de
forma paternalista como ‘camadas inferiores dos povos civilizados’ possuíam cultura.”
(Ginzburg, 1976) Mesmo assim, ainda segundo este autor, durante boa parte do século
88
das classes subalternas” nada mais seriam do que “um acúmulo inorgânico de
que teriam sido “mal digeridas” pelas ditas classes inferiores (idem).
classes subalternas e das classes dominantes, tema abordado por Bakhtin em A cultura
Bakhtin analisa os fundamentos da cultura popular na Idade Média tendo como ponto
nexo e sem “ordem”, seria possível o entendimento do livro de Rabelais. Desta forma,
se por um lado haveria uma dicotomia entre as culturas das classes dominantes e
influxo recíproco entre tais classes, que faria com que camponeses e artesãos nos
primeiro lugar seria “universal” por atingir todas as pessoas da comunidade: “o mundo
89
inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre
relativismo” (Bakhtin, 1987: 10). Esta é a razão pela qual mesmo os clérigos (incluindo
escrevendo “tratados mais ou menos paródicos e obras cômicas em latim”12 (id. 11). Em
segundo lugar seria “ambivalente” pelo fato de que sua finalidade não é apenas cômica,
regeneravam e renovavam” (id. 15). Neste processo as “linguagens não oficiais” tinham
sentidos, etc.
A palavra de dupla tonalidade permitiu ao povo que ria, e que não tinha o
menor interesse em que se estabilizassem o regime existente e o quadro do
mundo dominante (impostos pela verdade oficial), captar o todo do mundo em
devir, a alegre relatividade de todas essas verdades limitadas de classe, o estado
de não-acabamento constante do mundo, a fusão permanente da mentira e da
verdade, do mal e do bem, das trevas e da claridade, da maldade e da gentileza,
da morte e da vida (Bakhtin, 1987: 380).
oficial, ligada à fartura, à satisfação das necessidades vitais básicas como o comer, o
beber e cópula. Diferentemente da vida cotidiana em que o comer era frugal, no período
carnavalesca, ela traz em seu bojo o satírico popular (que ironiza a todos, sem excluir o
12
O exemplo talvez mais importante de uma destas obras, citadas por Bakhtin, é O Elogio da Loucura do
clérigo Erasmo de Rotterdan, obra satírica onde a “deusa Loucura” tece, em linguagem burlesca, críticas
severas a diversas camadas da sociedade da época, incluindo a Igreja. A obra funcionou como estopim
para a reforma protestante de Martinho Lutero.
90
próprio autor), a gíria, fórmulas de oralidade, inúmeras referências ao comer e ao beber
(as descrições dos banquetes beiram o pantagruélico) associadas às festas, tudo isso
estas fontes que servirão de “empréstimo” para a linguagem do Animal: neste sentido
publicados pelo Ameno Resedá que constituíram fontes preciosas para minha análise:
91
Capítulo 2
Vida festiva, malandragem e folhetim
Pinto. Munido das ferramentas teóricas analisadas no primeiro capítulo meus objetivos
são vários: entender a estrutura do livro, analisar sua linguagem multifacetada, entender
a vida cotidiana (representada pelas relações de família tão presentes no livro) e a vida
em que se baseia este trabalho. Para que fique mais claro o modo como congrego meu
referencial teórico, creio que seja de bom alvitre explicar um pouco do processo de
pesquisa que norteou este capítulo. Desde o início compreendi que precisaria encontrar
outras fontes que funcionassem como base de comparação para minha análise do texto
de Gonçalves Pinto: neste sentido iniciei meus trabalhos procurando fontes populares de
época que pudessem me fornecer parâmetros. Dentro deste panorama, um dos possíveis
itens a serem analisados seria o das literaturas de folhetins. Uma escolha natural foi o
sobre esta obra, pude fazer relações entre as diferentes “ordens” do legal e do ilegal, do
cotidiano e do festivo que de certa forma são comuns às duas obras. Embora importante,
este material ainda era claramente insuficiente: era preciso encontrar referências mais
concretas sobre o tipo de leitura que o carteiro tinha à mão e sobre as linguagens que o
circundavam. Uma outra escolha mais ou menos óbvia era a literatura sobre os ranchos
carnavalescos, pelo fato de que, como ressaltado ao final do primeiro capítulo, muitos
recorrente esta manifestação ao longo de seu livro. Neste sentido foram fundamentais os
estudos de Araújo (2005) e Gonçalves (2007), sendo que este último era particularmente
útil por se utilizar das matérias de jornal da época sobre os ranchos. Mesmo assim eu
precisava me aproximar ainda mais das vozes que emanavam destas manifestações
século – para poder compará-las ao meu objeto de estudos. Partindo do ponto de vista
da pesquisa etnográfica procurei por um lado entrevistar pessoas que pudessem ter tido
contato com Gonçalves Pinto, como músicos de choro mais antigos e possíveis
membros da família, como expliquei no capítulo anterior. Esperava que estes contatos
sua casa assistindo ao processo de digitalização dos discos 78 rpm do acervo Dulce
filho de Alexandre Gonçalves Pinto, àquela época também já falecido, conhecido pela
Xandico teria afirmado a Francheschi que o acervo de partituras de seu pai teria sido
93
doado a Jacob do Bandolim; entretanto Francheschi não tinha informações mais
Como a análise dos acervos de partitura de choro já fazia parte do meu objeto
de estudos, rumei para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, onde está
campo” que durou alguns meses. O foco eram as partituras que pudessem ser
pesquisa será tema do quarto capítulo deste trabalho. Entretanto ao longo da pesquisa
encontrei outros materiais que me foram de extrema valia, como o fichamento sobre o
livro “O Choro” elaborado por Jacob, visto em parte no primeiro capítulo. Já nos
últimos meses de trabalho da tese, em uma das minhas últimas visitas ao Museu,
deparei-me com uma pasta intitulada “Ameno Resedá”, também parte integrante do
Nela encontrei exemplares do jornal editado por este rancho entre os anos de
1912 e 1920. Embora soubesse pela literatura acadêmica (principalmente por Efegê,
1965) que existiram de fato publicações editadas por estas agremiações carnavalescas
eu jamais havia tido contato com elas, e nem sabia de qualquer escrito que as citassem.
Esta descoberta foi um elo fundamental para minha pesquisa: os jornais editados pelo
“carnavalesca” que remetia diretamente ao livro de Gonçalves Pinto. Mais ainda, vários
dos “biografados” pelo carteiro estavam lá, vistos sob outros prismas.
94
Desta forma, os jornais do Ameno Resedá me forneceram a chave para o
seu livro. Em ambos os casos esta linguagem pode ser definida no dizer de Tinhorão
(2000:15):
Com seu comedido espírito de crítica, sua jeitosa irreverência, seu leve tom
fescenino e, muitas vezes, com a tendência à grosseria e à chulice disfarçadas por
recursos como o do jogo de palavras, a linguagem dos jornais carnavalescos
brasileiros viria a revelar, em sua tradição de mais de um século, um curioso
exemplo de conciliação literária entre a desbragada liberdade da fala popular das
ruas e o sentido da boa moral das camadas burguesas urbanas1
não acrescentem muito aos modelos clássicos de formas cômicas de expressão escrita da
do conceito de carnavalização, tão em voga desde seu lançamento pelo russo Mikhail
Tinhorão). O autor cita alguns exemplos que comprovam a sua tese, como a do O
1
É curioso observar que o próprio Tinhorão, autor de um estudo fundamental sobre a linguagem cômica
na imprensa carnavalesca de meados do século XIX e início do XX (Tinhorão, 2000), de onde foi tirada
esta citação, não tenha aplicado o mesmo conceito de carnavalização em sua análise do livro de
Gonçalves Pinto, como visto no primeiro capítulo. No entanto, a aproximação é evidente, como espero
mostrar ao longo deste capítulo: Alexandre Gonçalves Pinto era ele mesmo diretor de um rancho
carnavalesco, o Pragas do Egipto, e descreve em seu livro diversos membros de outros ranchos, como
vimos no primeiro capítulo.
95
achado conceitual de Bakhtin: ‘Descarnavalizemos a República e Republicanizemos o
Muito embora Tinhorão não cite em seu estudo os jornais do rancho Ameno
os tempos da antiguidade” salienta: “Já houve tempo em que os papas se viram forçados
a advertir os clérigos e o restante do pessoal das igrejas para que não se metessem em
mascaradas, tanto era o empenho deles em rir e troçar nas vésperas do jejum quaresmal”
(Jornal Ameno Resedá, 1920). Da mesma forma, como veremos ao longo do capítulo,
encontramos em quase todos os periódicos do Ameno colunas satíricas que tinham por
fito o “riso popular e coletivo” bakhtiniano, onde o próprio autor da sátira estava imerso
na mesma.
importância para este capítulo: ela funcionou por um lado como elemento comparativo
para a análise do texto do “Animal” e por outro como mais um dos campos por onde
“rancho”, a análise dos jornais do Ameno nos restitui em parte as vozes dos próprios
biografados por Gonçalves Pinto. É por esta razão que as citações destes jornais serão
abundantes ao longo do capítulo: elas funcionam como mais um corpo de vozes que
compõem nossa etnografia histórica. Feitas estas considerações, iniciamos nossa análise
96
2.1) Estrutura do livro
“chorões” como uma coletividade que se desdobra através do tempo: assim, o autor
deixa claro que descreverá tanto os chorões da velha guarda como “grande parte dos
chorões d’agora”. Veremos adiante como o autor conceitua o termo “velha-guarda” que
primeira edição – “10.000 exemplares”. Este foi um dado que sempre me intrigou,
na década de 1930 verifiquei que uma tiragem de dez mil exemplares nesta época era
pela rede pública de ensino (Hallewell, 2005). Além disso, um escritor de grande
popularidade na década de 1930 como Monteiro Lobato, tinha uma tiragem média de
oito mil livros por edição2. A indicação dos dez mil exemplares no início da obra era
2
Fonte: Cruz, Maria Alice da. “Fábulas Fabulosas”, Jornal da UNICAMP, Ano XXIV, n. 468. Campinas,
12 de julho a 1º de agosto de 2010.
97
realmente uma informação correta ou teria havido um erro tipográfico? Minha primeira
hipótese foi a de que por erro tipográfico (aliás muito abundantes no livro) acrescentou-
se mais um zero à cifra. Se uma tiragem de dez mil exemplares era algo relativamente
raro na época, presumi que os custos financeiros para realizá-la seriam naturalmente
Tinhorão (1998B) apontasse para o fato de que o livro traz em sua última página um
anúncio publicitário - o das “Balas Busi” -, não acreditava que apenas aquela
publicidade pudesse ter dado conta de todos os custos da impressão. Também não
consegui encontrar qualquer dado sobre a tipografia Glória, onde o livro foi impresso.
Logo após a segunda capa o autor nos apresenta, como uma espécie de
primeiro retrata o próprio Gonçalves Pinto e o segundo tem como alvo “os chorões”,
intelectuais da época como autêntico “poeta popular”, tendo publicado diversos livros
“padrão” exigido pela incipiente indústria cultural da época (Carvalho, 2006: 6).
Chegado ao Rio de Janeiro em 1880, logo travou contato com o ambiente musical,
aprendendo a tocar violão e compondo letras para músicas de inúmeros chorões, como
Anacleto de Medeiros, Irineu de Almeida, entre outros. É sem dúvida uma referência
para o carteiro que era, além de amigo pessoal, um leitor entusiasta da obra de Catulo,
98
da qual cita em O Choro pelo menos um livro, Mata Iluminada. Este livro de poesias
traz uma descrição de chorões das últimas décadas do século XX e foi uma influência
clara na obra de Gonçalves Pinto. Portanto nada mais natural que este solicitasse a
alegando não poder ser útil na “correção dos erros, porque só uma revisão geral poderia
afirmando que os leitores se “deliciariam com sua leitura, fechando os olhos aos
desmantelos gramaticais”; ao mesmo tempo promete ajudá-lo nas correções para uma
segunda edição. Como salienta Braga (2002: 195) trata-se sem dúvida de uma resposta
carinhosa, motivada pelo real interesse em ver o livro publicado: “Só mesmo tu, com o
seu grande coração, seria capaz de uma obra tão saudosa para os que, como eu, viveram
prefácio para sua obra: entretanto, a título de preâmbulo, publica a carta de Catulo na
íntegra. Este fato, classificado por Tinhorão (1998b: 94) como mais uma prova da
dialógico do livro. Longe de se constituir como algo ingênuo, interpreto o ato como
uma estratégia de validação da obra. Abrir o livro com uma carta de Catulo da Paixão
Cearense, um dos mais populares poetas da década de 1930 era uma forma de
credenciar o autor, mero carteiro anônimo, perante o grande público. Ainda que
e apresentava Gonçalves Pinto como parte do círculo de chorões, que lhe ficariam
99
Catulo, como se depreende do final do documento: “E, para terminar, recebe o abraço
do amigo velho, que não se cansará de felicitar-te pela lembrança feliz deste formoso,
carinhoso e saudoso breviário dos dias da nossa festiva, alegre e rumorosa mocidade.”
cumplicidade com Catulo, por indicar um passado comum. Portanto, apresentar a carta
como preâmbulo do livro funcionava como uma espécie de chancela por parte de um
escritor reconhecido para com um autor anônimo: ainda que apontasse as falhas
capítulo anterior sobre o caráter dialógico inerente a todo o livro impresso: no caso do
Animal, o importante a ser ressaltado é o fato de que ele sabia exatamente qual seria o
seu público leitor, e antevê, ao longo do livro, possíveis críticas ao seu trabalho: o uso
Logo após a carta de Catulo, seguem-se dois perfis poéticos, assinados por
dos poucos documentos que nos permitem vislumbrar a personalidade de nosso autor –
Pinto pouco fala, ao longo do livro, sobre sua trajetória pessoal ou detalhes de sua
própria biografia –, razão pelo qual este soneto sempre citado nos poucos estudos que
100
Conhecedor de toda gyria da cidade
E' o prototypo extremo da bondade:
Eis aqui traçado o perfil do "ANIMAL".
Este soneto “de pé quebrado”, conforme afirma Tinhorão (1998b: 94), nos dá
uma amostra do “tipo de humor que presidia as relações entre elementos da baixa classe
“Animal”. Através do perfil poético de Max-Mar, ficamos sabendo que Gonçalves Pinto
tocava violão e cavaquinho, era um dedicado chefe de família, apesar das inclinações
livro – veremos em um tópico posterior que a dualidade entre a vida familiar e a “vida
festiva” era uma característica dos instrumentistas classificados por ele como “heróis do
choro” – além de ser “estimado por todos”. A alcunha “Animal” certamente deve ser
creditada ao fato de que Gonçalves Pinto seria um “grande general” para comer e beber,
como, aliás, boa parte dos seus biografados. Outro dado digno de nota no soneto é a
menção ao fato Gonçalves Pinto ser “conhecedor de toda a gíria da cidade”. Este é um
oralidade da época para escrever seu relato. Veremos em um tópico posterior neste
capítulo de que forma seu discurso é permeado por gírias e fórmulas da oralidade da
época e de que forma estes elementos também são colocados, por assim dizer, na “boca”
de seus biografados.
reforçar o fator identitário do grupo sobre o qual o autor procura construir uma memória
social. Ele se inicia reforçando a ideia de tradição, apontando para um passado comum
101
Conjuncto de flautas maviosas,
Chorões de cavaquinhos e violões !
Tereis neste livro as vossas rosas
E do antigo tempo: as tradições. (8, grifo meu)
lamento pela perda da geração dos chorões mais antigos. Estes dois fatores são
recorrentes na prosa de Alexandre. Fórmulas como “Fulano era como um cometa que
passa de cem em cem anos”, e “fulano ainda hoje é lembrado e chorado no círculo dos
leitor a ideia de um grupo unido por um passado comum (não por acaso ambas as
fórmulas aparecem, com pequenas variações, logo no primeiro “verbete” do livro, que
versa sobre Callado). No poema estes dois elementos também aparecem, como pode ser
exemplificado nos quartetos abaixo. O primeiro cita os chorões como “astros fulgentes”
102
Ora, distinguir “em cada um a qualidade” de modo a compor um cenário
os chorões é exatamente o que o autor procurará fazer ao longo de todo o livro. Desta
forma os dois poemas funcionam como uma espécie de pórtico da obra, descrevendo
seu autor e o grupo sobre o qual ele escreve. A linguagem e o estilo utilizados refletem
um misto do arroubo parnasiano e do estilo “empolado” que estão em total acordo com
entretanto, uma pergunta a ser respondida: quem seria este Max-Mar, colocado por
autor?
Braga (2002: 196), mostrou que com toda a probabilidade este pseudônimo
Pinto ao longo do livro. Conhecido pela alcunha de “Seu Velho”, Maximiano é citado
como intermediário em um episódio onde Pinto tenta arrumar emprego para um boêmio
chamado Leite Alves (daí o fato de Maximiano classificar Pinto como “pistolão” em seu
Maximiano. Este foi um dos pontos que consegui desvendar graças aos jornais
publicados pelo rancho Ameno Resedá. Analisando alguns exemplares constatei que o
Carnavalesca” do rancho; mais do que isso, Maximiano Martins era editor do jornal e
uma das figuras principais do rancho, conforme deixam entrever as várias descrições
sobre ele em exemplares diversos. Conhecido também pela alcunha de “Lord Fita”, seu
103
Fig. 2 - Maximiano Martins (“Max-Mar”), editor e fundador do jornal do
Ameno Resedá
104
tidos como simples agrupamentos de indivíduos, sem o culto necessário a
apresentação social, pela maneira exótica com que se apresentavam, a rufarem
ensurdecedoramente os tamborins, (...) (Jornal “Ameno Resedá”, 1917, grifo meu)
O seu velho, o Lord Fita, é o mesmo Pau Ferro de todos os carnavais rijo, de uma
têmpera especial de aço e bronze, resistindo a todas as intempéries, inclusive a
intempérie política! Fala, grita, gesticula, desespera-se, unicamente para cumprir à
risca o grito de carnaval na rua! É o Cacique, é o Aymoré da tribo! (Jornal do
Ameno Resedá, 1917)
de uma tipografia e diretor do rancho, o mais provável é que o jornal tenha sido
impresso em sua tipografia. Interessante é também notar que as edições saíam com
tenha sido o editor e impressor de “O Choro”. O nome da tipografia que consta no livro
entretanto há que se levar em conta que os jornais foram publicados entre 1912 e 1920 e
o livro do “Animal” é de 1936, como sabemos. Neste meio tempo Maximiano pode ter
trocado de tipografia; ou ainda pode ter indicado alguma outra tipografia a seu amigo
Gonçalves Pinto. São fatos dos quais não podemos ter certeza, mas que acrescentam
105
Mais importante do que isso é a constatação de que, de modo semelhante a “O
Choro”, todos os jornais do Ameno Resedá traziam, logo em sua primeira parte, poesias
inclusive assinados pelo próprio), normalmente retratando de forma satírica alguns dos
rapeta:
com que os leitores reconhecessem o “personagem” sem que fosse preciso citar seu
nome. Como este aparecem dezenas de perfis nos jornais do Ameno: eles constituem
uma espécie de “riso coletivo” a que estavam submetidos todos os que se afiliavam às
rancho – e sem dúvida foi um modelo para nosso carteiro, razão pela qual nos
106
ocuparemos dela com mais vagar em um tópico adiante –, salientando sempre as
fosse ele “benfeitor ou contribuinte”, “arara ou turuna” (estas duas gírias parecem
seriam alvo da descrição satírica (ou a borduna, no dizer do autor) da coluna. O fim era
importante do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não
se exclui do mundo em evolução”. Assim, se o riso é coletivo, “não vale dar o cavaco
ou muito menos zangar”, como afirma o colunista: todos estariam imersos no mesmo
processo.
Gonçalves Pinto adquirem nova significação. Elas introduzem, por assim dizer, o
heteroglóssicas (que beiram por vezes o dialetal, com gírias, sátiras, e fórmulas
Diversas das crônicas que Pinto apresenta em seu livro dir-se-iam tiradas das colunas
107
satíricas do jornal do Ameno Resedá: algumas delas até se confundem realmente.
Reutilizo aqui o conceito de dialogismo: embora tenha escrito seu livro também para
que a “posteridade” não olvidasse aquela “plêiade de chorões” (275), Gonçalves Pinto
escreve também para um público específico, o grupo de chorões que ainda permanecia
vivo e que falavam uma linguagem comum: a língua satírica e popular presente não
apenas nos jornais dos ranchos, mas nos folhetins e revistas populares e no cotidiano
geral. De certa forma, ao escrever seu texto povoado de gírias, sátiras e fórmulas de
oralidade ele antevê a leitura e o riso de seus pares, assim como o colunista satírico do
jornal do Ameno Resedá antevia o riso dos que o leriam. E, não por acaso, os dois
temos o “Prefácio”. Aqui importa notar mais uma vez a questão da linguagem: ao
receber a recusa de Catulo, Gonçalves Pinto vê-se na contingência de ter que redigi-lo, e
nosso desafio é tentar imaginar em que modelo nosso carteiro se baseou para realizar
esta tarefa. Porque o que se percebe é que a linguagem utilizada em parte do prefácio é
conceitos pertencentes a um universo “erudito”, que surgem muitas vezes sem qualquer
conexão com o que será apresentado ao longo do livro – talvez pelo fato de que para o
carteiro o prefácio deveria ser algo mais “formal”, daí outra razão para que ele tivesse
análise. Cumpre de início entender que o prefácio pode ser dividido em duas partes: o
primeiro parágrafo, que é praticamente uma justificativa ao leitor pelo que Alexandre,
da obra: “cada um escreve o que pode ou o que sabe”. Ao mesmo tempo ele tenta
108
cooptar o leitor para que este entenda o “ambiente agradável e espontâneo” com que a
Factos occoridos de 1870 para cá. São chronicas do que se respirava no Rio de
Janeiro neste periodo desde o tempo do João Minhoca, da Lanterna Mágica do
Chafariz do Lagarto, dos Guardas Urbanos, dos pedrestes até hoje, com as policias
mais adeantadas actualmente, o autor só teve por fito recordar, que é um novo sentir
e tornar a viver conforme a phrase do poeta, trazendo ao scenario do ambiente
actual a comparação do que foi e do que é actualmente, a Maria Cachucha,
Moquécas Bahianas e os Trinta Botões do theatro antigo até a Cidade Maravilhosa
de hoje, assim como são comparadas as religiões, as sciencias e o credo politico;
são comparados os costumes na vida dos pobres de accôrdo com a evolução,
tivemos por tradição os costumes bahianos que foram trazidos da Africa pelos
nossos queridos antepassados e firmaram os costumes no Brasil, naquilo que é
nosso e que aqui guardamos com a maior veneração dentro de nossos corações. (9)
Como se nota, este trecho apresenta somente duas frases: uma muito curta
(que define todo o tempo histórico do livro: “de 1870 para cá” ou seja de 1870 a 1936) e
tornou muito famoso no Rio de Janeiro na década de 1880, e que inclusive é citado por
João do Rio em uma crônica na Revista Kosmos de 1905. Criado por um tipógrafo
negro chamado João Baptista, a estréia do personagem teria sido feita em um teatro
improvisado nos jardins da Cervejaria Guarda Velha, situada na rua da Guarda Velha,
atual Treze de Maio. Com o sucesso do personagem, Baptista chegou a excursionar por
109
diversas cidades do Brasil e a se apresentar para o imperador D. Pedro II: a história da
Companhia de Teatro João Minhoca foi alvo de estudo da historiadora Susanita Freire
uma caixa óptica de madeira, folha de ferro, cobre ou cartão, de forma cúbica,
esférica ou cilíndrica, que projeta sobre uma tela branca (tecido, parede caiada, ou
mesmo couro branco, no século XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas
sobre uma placa de vidro (Mannoni, Laurent. 2003 apud Miranda, 2008) .
entre as classes populares, sendo freqüente sua exibição em lugares públicos, como o
citado Chafariz do Lagarto, situado na rua Frei Caneca, centro do Rio (Miranda, 2008)
Os “Trinta botões do theatro antigo” parece ser uma referência a uma peça teatral de
grande sucesso na época intitulada “Os trinta botões”, de autoria do português Eduardo
que se difundiu nas cidades e vilas do Brasil desde a segunda década do século XIX”
(EMB, 2000).
Estas citações parecem ter a única função de mostrar algumas das referências
das últimas décadas do século XIX, já que não há, ao longo do livro, qualquer outra
referência a estes mesmos fatos — João Minhoca, Maria Cachucha, etc. No entanto,
eles são aqui citados, para que, segundo o autor, fossem comparados com os tempos
110
Tal como Ginzburg em seu já citado estudo sobre o moleiro Menoccio,
poderíamos nos perguntar de onde o carteiro Alexandre Gonçalves Pinto teria tirado
nossas tradições, segundo Pinto, seriam os “costumes baianos” que teriam sido trazidos
pelos nossos “queridos antepassados africanos”. Esta confusa relação entre Bahia e
África como “fontes” e “origens” das tradições brasileiras sem dúvida já estava presente
artistas negros ou mulatos, como Anacleto de Medeiros, Eduardo das Neves, Baiano,
entre outros (id, Ib.). É neste contexto de intensa troca entre o pensamento de
sobre as origens e sobre a tradição. Um exemplo muito importante que ilustra esta
relação é a citação, no livro O Choro, do escritor e intelectual Mello Moraes Filho como
um dos “personagens” ativos das rodas de choro da época, conforme assinalado por
111
intertextualidade entre as obras de Mello Moraes e o texto Gonçalves Pinto no capítulo
três.
biográficos e temáticos que compõem a obra. São ao todo 350 “entradas” de verbetes
biográficos (sendo que em alguns casos um único verbete funciona como mote para que
o autor discorra sobre vários “biografados”) e 25 “não biográficos”. A ordem com que
estes verbetes são escritos não segue qualquer lógica aparente: o “Animal” escrevia “à
proporção que vou [ia] lembrando”, sempre reiterando que o fazia “com muita
dificuldade”, já que pelo “peso dos anos” era difícil conservar “a mesma memória de 40
anos passados” (15). Os 25 verbetes “não biográficos” têm diferentes funções: eles são
referida linguagem “carnavalesca” dos jornais dos ranchos; mencionam lugares, pontos
biográficos no item 2.3 (“O etnógrafo do choro”) deste capítulo. Por ora, o que nos
e influências utilizadas pelo carteiro em seu processo de escrita. A tabela abaixo nos
112
Tabela 2 – Estrutura Geral do Livro
Texto Observações
Para finalizar este tópico, só nos resta analisar o epílogo do livro. Sua linguagem
nítida presença de fórmulas e frases feitas presentes na linguagem dos periódicos dos
ranchos como o do Ameno Resedá e finalmente a procura por certo tom grandiloqüente,
certamente fruto de uma ideia pré-concebida de epílogo como algo que fazia parte da
estrutura “erudita” de um livro. Além disso, ele nos traz mais uma vez a ideia de
construção de memória, vista agora como resultado de uma “imposição divina”, não
113
Ao finalizar este livro que era os meus sonhos dourados, perpetúo estes musicistas
descritos, mal ou bem de acordo com os meus obscuros conhecimentos. Mas o que
fazer bons leitores? Agi como se fosse impulsionado por uma missão que me
parecia ser ditada pelo poder Supremo de todas as cousas, que muitas vezes faz-nos
esmorecer quando temos uma vontade unida a fé (...) Não foi fácil a minha tarefa,
lutei como um náufrago que agarrado ao batel da Esperança, luta sulcando o mar
revolto da descrença. (207)
também era bastante comum nas publicações carnavalescas da época. Batel, esperança,
esforço, descrença, bonança: todos estes termos faziam parte do universo de metáforas
soneto publicado no jornal do rancho Ameno Resedá de 1914 assinado por Lord
Colibri:
entretanto, é o caráter de missão do livro, que o autor identifica agora como uma
114
imposição “ditada pelo Ser Supremo”. Como apontado no primeiro capítulo, um dos
desafios desta tese é o de tentar “ouvir” as vozes que emergem do texto de Gonçalves
Pinto e, na medida do possível, tentar extrair de seu texto o maior número de respostas
às questões que me surgiam à medida que o trabalho avançava. Neste sentido, o epílogo
da obra é precioso, por nos fornecer elementos chaves que nos auxiliam a responder a
O epílogo é um dos poucos trechos do livro em que o autor não é porta voz de
outros personagens; sua função agora é não mais a de descrever e fazer ressoar as vozes
escrita. As dificuldades são muitas e Gonçalves Pinto está cônscio de ter escrito “um
livro pobre de literatura, cheio de erros gramaticais” (207), que o fazem sentir “como
um náufrago”, na linguagem popular dos periódicos dos ranchos. Apesar disso, entrevê-
fantasias que com o correr dos tempos se desmoronavam como as bolhas de sabão”
utilização da norma culta, tinham o poder de fazer “ressurgir das trevas uma grande
parte das celebridades que dormiam no esquecimento”. Esquecimento que não era
apenas decorrente da passagem do tempo, mas também do fato de que a maior parte
construção de memória
para que as gerações d'agora e futuras saibam que existiu essa grande phalange de
chorões que elevaram e inalteceram as musicas genuinamente Brasileiras, muzicas
essas que jamais poderão desapparecer dos grandes ou pequenos archivos dos bons
collecionadores
115
2.2) O “choro”, a “roda” e a “velha-guarda”
utilizado no livro. De forma geral a bibliografia (como Tinhorão 1998b) salienta o fato
de que Gonçalves Pinto designa como “choro” o agrupamento instrumental formado por
instrumentos populares que tocavam gêneros como polcas, valsas, schottichs, etc. Para
“choro” ao longo do livro, e pude verificar que há na realidade pelo menos três acepções
utilizadas pelo autor para designar a palavra: 1) choro como agrupamento instrumental;
2) choro como sinônimo de festa ou do lugar físico onde se praticava esta música e 3)
choro como uma “peça” ou um “gênero” musical. As duas primeiras acepções são mais
comuns, mas a terceira também aparece de forma significativa, ao contrário do que nos
nossa atenção: “choros moles” (12, 37,47,68, 142, 189) e “choros americanos” (194).
Como vimos, logo após o prefácio Gonçalves Pinto escreve um pequeno texto
intitulado “Os choros”. Vejamos agora o que podemos extrair do seu texto:
Quem não conhece este nome? [ou seja, “os choros”] Só mesmo quem nunca deu
naqueles tempos uma festa em casa. Hoje ainda este nome não perdeu de todo o
seu prestigio, apesar de os chôros de hoje não serem como os de antigamente, pois
os verdadeiros choros eram constituidos de flauta, violões e cavaquinhos, entrando
muitas vezes o sempre lembrado ophicleide e trombone, o que constituía o
verdadeiro choro dos antigos chorões. (11)
apontado por Tinhorão, de que este agrupamento instrumental tinha uma função social
fornecer música para festas e ocasiões especiais. A menção ao fato de que o termo choro
“ainda hoje” (ou seja, na década de 1930) não perdera “de todo o seu prestígio” sinaliza
116
que de alguma forma a “função social” cumprida por este agrupamento já não cumpria o
mesmo papel, sem dúvida pelo aparecimento de outras formas cada vez mais populares
abundam no livro citações do mesmo como sinônimo de festas ou de lugares onde esta
música se dava. Assim, “Pedrinho [o flautista Pedro Galdino] raras vezes dizia não aos
seus camaradas fosse onde fosse o choro” (20); o também flautista Jupyaçara “apesar
dos seus janeiros ainda não deixa de ir ás festas, chôros e reuniões de amigos com a
sua linda flauta toda de prata” (23). Guilherme Dias, na sua flauta, “sabia dizer o que
sentia e assim tocamos muito nestes chôros na cidade nova e no morro do Pinto” (29);
Léo Vianna, irmão de Pixinguinha dava “choros em sua casa” que eram de “arrepiar os
cabelos” (44).
Junto com estas duas acepções aparece uma terceira: “choro” como sinônimo
de uma “peça” ou “gênero” musical. Assim, “nenhum dos antigos musicos escreveu
tanta quantidade de chôros como Candinho Silva tem escripto” (16); Bacury era “flauta
músico para tocar de primeira vista, como também para compor qualquer chôro de
improviso (12); “a belleza e os sentimentos dos chôros que elle escreveu [refere-se ao
flautista Juca Kallut], com arte e bom gosto que tinha pela musica, muito o elevaram no
117
“Quando pedia-se para tocar um chôro, não se fazia de rogada” (42); “Lá pelas tantas
situações mais antigas? Em outras palavras, o fato de Gonçalves Pinto afirmar que
Callado compunha “choros de improviso” indica que o próprio designava assim suas
composições ou trata-se de uma apropriação do termo pelo carteiro? Ora, sabemos pela
as composições dos chorões mais antigos eram designadas como polcas, schottischs,
pelo menos desde a primeira década do século XX, o termo “choro” como designação
geral para estes gêneros originalmente europeus tocados por instrumentistas populares e
que essa tendência se acentuou a partir da década de 1920. Tal afirmativa é respaldada
pela mais antiga fonte que pude encontrar a respeito, o livro Lyra Brasileira, de Catulo
choro”: esta afirmação de 1908 sugere que já se usava coloquialmente o termo para
abarcar as músicas tocadas pelos chorões. Este fragmento de discurso ecoa também no
texto do carteiro, como uma manifestação coloquial vinda do passado, que se confunde
118
com a tendência cada vez mais acentuada a partir das décadas de 1920 e 1930 de
nomear aquelas práticas musicais como “choro” – algo que será utilizado de forma
Estas três acepções por vezes se misturam em uma mesma frase do texto de
Gonçalves Pinto. Ao descrever o flautista Alberto Martins, por exemplo, ele afirma:
“No choro em que às vezes toca encanta com a sua melodia, dando o maior prazer aos
circunstantes. Conhece todos os chôros dos seus collegas musicos como elle antigos e
modernos” (40). Na primeira frase o termo “choro” se refere aos lugares ou às festas
onde o flautista tocava; na segunda o termo designa as peças musicais que compunham
seu repertório. Da mesma forma, sobre o chorão Olavo Pinheiro, que residia em Niterói
com seu pai, Gonçalves Pinto afirma: “O seu pae era um distincto advogado, que dava
em sua casa chôros agradabilíssimos. Indo daqui da Capital, o competente chôro, que
eram: Henriquinho, de flautim; Lica, de bombardão (...)”. Na primeira frase “dar choros
em casa” significava “dar festas” onde a música do choro era tocada. Na segunda frase,
Tambem foram grandes flautas nesta época os irmãos Marreco e Jorge, que faziam
suas serenatas em São Christovão quasi sempre na Quinta Imperial, em casa de
Maria Prata, que dava pagodes quasi todas as semanas alegrando os seus habitantes
com os chôros moles deste tempo (12).
oralidade da época que temos que tentar desvendar. Aparentemente o termo “mole”
“malemolente” ou propícia aos requebros da dança. Veja-se por exemplo, este outro
119
quasi todo Botafogo conhece-o como chorão de facto, pois quando melodiava na
sua flauta naquelles choros molles que é commum nelle, as mulatas ficavam todas
dengosas, dizendo bravo, seu Bahia (37, grifo meu)
do choro:
estaria no ápice, em seu momento de maior animação. Finalmente, temos no texto uma
nossos com grande facilidade” (194). Estaria o carteiro se referindo ao repertório típico
toda a forma, nosso objetivo ao realizar este fichamento das diferentes acepções e
(Middleton, 1990).
Um outro termo importante a ser analisado, e que, tal como o “choro” também
pode ser considerado “polifônico” é o conceito de “roda”. Para tal realizamos mais uma
vez um fichamento extensivo das situações em que a palavra aparece no livro e suas
acepções. Cumpre de início uma explicação: o termo “roda de choro” é utilizado nos
120
dias atuais para designar o momento de encontro dos instrumentistas de choro: ir para a
“roda de choro”, portanto, significa ir para o lugar onde os músicos se reunirão para
praticar esta música. Ora, vimos que, nos tempos de Gonçalves Pinto, a própria palavra
“choro” servia para designar também o lugar onde este encontro se daria. Assim,
veremos que, na maioria dos casos, o termo “roda” é utilizado no livro com um viés
diferente do atual.
casos (34 ocorrências) ela é utilizada para se referir à comunidade dos instrumentistas e
não ao lugar onde tocavam. Desta forma, o que aparece com muito mais freqüência é a
menção à “roda dos chorões” (ou “roda dos tocadores”), como forma de designação
flauta”, “conhecido na roda dos chorões por ‘Bico de Ferro’" (19). Quintiliano Pinto,
irmão de Alexandre, era um chorão “de nome na roda dos que tocavam ou não”. Lulu
Cavaquinho “foi da turma dos bons, ainda hoje o seu nome é lembrado e commentado
na roda dos chorões” (158). Reforce-se aqui a ideia de identidade entre o grupo de
afirmado que Gonçalves Pinto enumerava seus biografados sem nenhuma ordem
aparente, é bastante nítido que a escolha de Callado como primeiro “retratado” do livro
é visto como uma espécie de “pai” dos flautistas, conforme já assinalamos. Da mesma
forma, um nome “ilustre” (mesmo para o leitor de meados da década de 1930) como
Pixinguinha é descrito mais em função de seu pai, o também flautista Afredo da Rocha
121
Vianna, do que de seus próprios feitos: “é um filho que sabe honrar a tradição de seu
práticas sonoras e sociais e também por um passado, uma tradição em comum: assim,
origem do termo:
Sei que muitos de vocês andaram fazendo conjecturas sobre o que poderia eu vir a
apresentar com esse título. É uma coisa muito simples: a expressão “velha guarda”
que é, pode-se dizer, tradicional, no Brasil, indica imediatamente que aqui serão
tratadas coisas dos tempos passados. É lógico. A expressão, porém, tem uma
origem curiosa: ela – vê-se logo – é a inversão de um nome que foi muito popular
nesta cidade há muitos e muitos anos: Guarda Velha. Guarda Velha foi o antigo
nome da atual rua 13 de Maio. Antigamente, aquela rua vinha até a esquina da rua
de São José. E justamente ali, na esquina, onde hoje existe um refúgio triangular
onde os passageiros da Tijuca têm um ponto de ônibus, havia um quartel, instalado
no tempo da Bobadela. Era o quartel onde ficava a guarda encarregada de manter a
ordem entre os escravos e galós que iam buscar água no famoso chafariz da
Carioca, que era defronte. Aquele quartel se chamava Guarda Velha. Com o tempo,
o título foi se invertendo, passando a designar coisas do passado. E, curiosamente,
foi-se chegando aos assuntos musicais, especialmente àqueles que tratavam da
nossa música popular e dos seus intérpretes, cantores ou instrumentistas (apud
Anna Paes, 2010)
O livro de Gonçalves Pinto nos dá outro dado que de certa forma complementa
122
fabricada justamente na rua da Guarda-Velha3 e tinha como proprietário um certo
rua, do quartel ou da cerveja é coisa que não podemos aferir com total certeza: de toda a
forma, como diz Almirante, sua inversão (“velha-guarda”) passou a ser utilizada para
Gonçalves Pinto, e já aparece, como vimos, no subtítulo, onde o autor explicita que a
obra conteria “o perfil de todos os chorões da velha-guarda e grande parte dos chorões
duas utilizações básicas: a primeira seria para nominar todos aqueles instrumentistas de
gerações anteriores a Gonçalves Pinto, muitos dos quais ele não conheceu, mas cuja
outros flautistas igualmente “famosos” por suas composições: Viriato Figueira da Silva,
Capitão Rangel, entre outros. Boa parte destes instrumentistas já havia falecido no
começo do século XX, embora suas composições ainda circulassem no meio dos
instrumentistas da geração do próprio Animal (ou um pouco mais velhos do que ele
apenas), que, assim como ele, estavam no final da vida em meados da década de 1930.
Em alguns casos nem o próprio autor sabia se os biografados ainda viviam: [Sobre o
flautista Porto Cascata] “Qual o chorão da Velha Guarda, que o não conheceu ? (...) A
muito não o vejo, nem noticia tenho, não sabendo se será vivo ou não” [Pinto, 39];
3
O Almanak Laemmert de 1873 trazia a seguinte observação: “A Fábrica de Cerveja Guarda Velha, de
Bartholomeu Correa da Silva, situada na Rua da Guarda Velha junto ao Circo Olímpico, passa a ter como
responsável Joaquim José Rodrigues Machado” (fonte: http://www.crl.edu/content/almanak2.htm.
Consulta realizada em 2 de outubro de 2009)
123
[Sobre Aníbal, professor, músico, amigo de Mello Morais e ensaiador do bumba-meu-
boi organizado por este]: “Tambem grande professor de musica. Não sei se ainda vive
pois a muitos annos que não tenho delle noticias” (89). Há casos em que as duas
geral o carteiro não se preocupa em estabelecer cronologias nem muito menos em fixar
datas. Assim, para a maior parte dos biografados listados como pertencentes a “velha
Mais importante do que a cronologia, entretanto, parece ser o fato de que, mais do que
Gonçalves Pinto. Para isso nos valeremos em grande parte do fichamento elaborado por
identificar de que forma o livro pode ser lido como um discurso etnográfico: partindo-se
perspectivas teóricas, mas por uma abordagem descritiva que “vai além da transcrição
musical dos sons para uma escrita de como os sons são concebidos, gerados, apreciados
124
1992:89), como visto no primeiro capítulo, procuraremos entender de que forma o
imbricadas nas teias de relações sociais (e ao mesmo tempo eram responsáveis por elas),
Jacob do Bandolim: ele servirá como ponto de partida para que possamos ter uma visão
que há cerca de quatrocentos nomes citados ao longo do livro: são em sua maioria
parte é citada apenas pelo apelido: Benigno Lustrador, Capitão Braguinha, Leopoldo
Pé-de-Mesa, Gonzaga da E.F.C.B., Arthur Virou Bode. Estes são em sua maioria
instrumentistas das classes populares e o mais provável é que nem o próprio Alexandre
soubesse seus nomes completos. Por outro lado, “personalidades” das classes mais altas
(intelectuais, músicos famosos, políticos e até mesmo nobres) são citadas pelo
identificada pelo carteiro. São em sua maioria baixos funcionários públicos como já
Jacob do Bandolim, nos mostram com precisão este “painel profissional” dos
biografados do livro. A tabela três lista os locais de trabalho, em sua maioria instâncias
125
públicas como repartições federais (Correios, Telégrafos, Ministérios, Casa da Moeda,
etc.) e forças armadas, mas também aparecem, em número bem menor, entidades
126
Artur Martins - clarinete
Binoca (Sabino Malaquias de Siqueira) –
violão, canto, trombone
Capitão Alamiro Cabral - violão
Carlinhos - flauta
Chico Borges – violão, cavaco
Deodato Mata - trombone
Desidério Pinto Machado – violão, canto
Estanislau Costa - piston
Ferreira Dias “Sinfonia” - violino
Geraldo dos Santos “Bico de Ferro” -
flauta
Guilherme Candido Dias - flauta
Heitor Ribeiro - violão
Hernandes de Figueiredo - violão
Horacio Theberge – violão, canto
Ismael Brasil “Banza” – trombone,
bombardino
João Bruno - flauta
João Hilário Xavier - flauta
João Salgado – flauta, oficleide e fagote
Josino Facão - oficleide
Juca Kallut - flauta
Leonardo de Menezes - canto
Lobinho (Carlos de Souza Lobo) - piano
Luiz Brandão – cavaco, canto, violão
Mondego – bombardino, regente
Olegário - flauta
Olimpio de Oliveira “Conde de
Leopoldina” – canto, violão
Oscar de Almeida – violão, canto, poeta
Paula Freire – clarinete, contramestre
Paulo Esteves – flauta, oficleide
Pedro Itaboraí - violão
Porto Cascata - flauta
Quincas Freire - canto
Ricardo de Almeida - sax
Salustiano - trombone
Salvador Marins - flauta
Verçoza – violão, canto
Vicente Sabonete – violão, canto, ocarina
EFCB
Benildo
Costinha - piano
Escobar – piano, declamador
Gonzaga (carregador) – oficleide, piston
Guerra – canto, violão
João Lima - canto
João Tomaz – violão, canto
127
José Celestino - violão
Luiz Brandão – cavaco, canto, violão
Samuel Leite – violão, canto
Sátiro Bilhar – violão, piano, canto
Uriel Lourival “Casa Cheia” – canto,
poesia
Veloso – violão, canto
Venancinho - flauta
Fábrica de Tecidos Vila Isabel
Macario - requinta
Pedrinho (Pedro Galdino) - flauta
Fazenda
Caninha (José Morais) – canto, violão
Frederico Rocha - canto
Guilherme “Manguinho” - canto
Honório - flauta
Leite Alves - flauta
Romeu – violão, canto
Guarda Nacional
Braguinha (Capitão Braguinha)- flauta
Coelho Grey – sax, violão, regente
Raimundo Conceição – violão
Imprensa Nacional
Alma de Maçon
André Corrêa “Periquito” – clarinete, sax
Bahia - canto
Lúcio Reis - canto
Jornal do Comércio
Bilu (Elpídio Borges) – violão, canto
Chico Careca (Francisco Galvão) –
trombone, oboé
Justiça
Carneiro - violão
João Pinheiro “Zinho” - flauta
João dos Santos – canto, violão, poeta
Olegário - flauta
Light
Crispim - Oficleide
Juca Tenente - flauta
Loló - Flauta
Marinha
Tomazinho - flauta
Ministério da Agricultura
José Cavaquinho (José Rabelo da Silva) –
cavaco, flauta, violão
Ministério da Guerra
Suntum Alves - oficleide
Oeste (?)
Camas - canto
128
Polícia
Henrique Rosa “Casaquinha” - violão
José Conceição - violão
Macário - requinta
Nenê Mário – violão, cavaco, canto
Prefeitura
Bacury - flauta
Cabral - violão
Carlos Espíndola - flauta
Coelho Grey – sax, violão, regente
Eduardo de Castro – violão
Gracinha – canto, violão
João Carlos Cabral
Narciso Gomes Barcelos – violão, cavaco
Neco – violão, canto
Paulino - canto
Quincas Laranjeiras - violão
Torres - oficleide
Saúde Pública
Agenor - flauta
Telégrafos
Antonico - oficleide
Chico Borges – violão, cavaco
Chico Neto – bandolim, violão, violino,
cavaco
Cícero Teles de Menezes - flauta
Ismael Brail “Banza” – trombone,
bombardino
Madeira - flauta
Menezes – cavaco, violão
Souto
Teotônio Machado - oficleide
Tribunal de Contas
Ademar Vieira - violão
4
Em números exatos temos 11 funcionários da Alfândega, 4 do Arsenal de Guerra, 5 do Arsenal da
Marinha, 1da Brigada Policial, 4 da Casa da Moeda, 1 da Comissão Rondon, 1 do Corpo de Marinheiros,
41 dos Correios, 14 da EFCB, 2 da Fábrica de Tecidos Vila Isabel, 6 da Fazenda, 3 da Guarda Nacional, 4
da Imprensa Nacional, 2 do Jornal do Commércio, 4 da Justiça, 3 da Light, 1 da Marinha, 1 do Ministério
da Agricultura, 1do Ministério da Guerra, 1 do Oeste, 4 da Polícia, 12 da Prefeitura, 1 da Saúde Pública, 9
dos Telégrafos, 1 do Tribunal de Contas.
129
Prefeitura, Saúde Pública, Telégrafos e Tribunal de Contas). Destas, os Correios
aparecem com o maior número de funcionários, fato natural quando se leva em conta
que o autor do livro era ele mesmo um carteiro. As Forças Armadas (Marinha, Exército,
empregavam sete nomes (Fábrica de Tecidos Vila Isabel, Jornal do Commércio, Light).
Note-se que na lista não aparecem músicos por profissão: estes eram em sua maioria
ligados a bandas militares e no fichamento elaborado por Jacob do Bandolim foram alvo
Arsenal da Guerra
João Salgado – flauta, oficleide, fagote
João dos Santos - clarinete
Justiniano - flauta
Santos Bocot – regente, requinta
Brigada Policial
Camargo - flauta
Major Rocha – oficleide e regente
Pedro da Mota - bombardino
Corpo de Bombeiros
Anacleto de Medeiros – sax, mestre
Carramona – piston – c/ mestre, 2º tenente
Geraldino - bombardino
Irineu de Almeida – bombardino,
oficleide, trombone, regente
Irineu Pianinho - flauta
João Mulatinho – bombardino – c/ mestre
Lica – bombardão, flauta
Luiz de Souza – piston, regente
Nhonhô Soares - bombardino
Pedro Augusto – clarinete, contramestre
Tuti – pratos, violão, bandolim
Corpo de Fuzileiros Navais
Gonzaga da Hora - bombardão
Corpo de Marinheiros
Malaquias - bombardão
Corpo Militar de Polícia da Corte
Godinho – flautim, mestre Alferes
Major Rocha – oficleide- mestre
130
Corpo Policial da Província do Rio de
Janeiro
Damasio Porcino de Oliveira
Gil
João Elias da Cunha
Juca Marques
Juca Rezende
7ª infantaria
Salustiano – 1º trombone
10ª infantaria
Paula Freire – contramestre, clarinete
23ª infantaria
Luiz de Souza – piston, regente
primeira tocava instrumentos que não pertenciam, via de regra, às bandas militares,
como violão, cavaquinho e flauta (esta última era na maioria das vezes preterida pelo
flautim nas bandas). Finalmente, nosso “painel” das profissões arroladas no livro se
Cocheiro
João Quadros
José Sinhá
Engenheiro
Júlio Barbosa
Industrial
João de Oliveira - flauta
Jornalista
Francisco Guimarãs – “Vagalume”
Médico
Francisco Magalhães
Militar
Antonio Madeira
Ernesto Pestana
Godinho
General Gasparino
131
João Flautim
Marques Porto
Major Mascarenhas
Major Rocha
Sargento Veloso
Tomazinho –f lauta
Tenente Castro
Vicente Franco
Camargo Flauta
Major Santana
Alferes Cecílio de Santana
Operários
Benigno Lustrador
Leal Careca
Lica Bombardão
Manduca de Catumbi
Menezes
Neco Violão
Pedrinho
Pedro da Harmônica
Raimundo Conceição
Raul Flautim
Videira
João dos Santos - clarineta
Antenor de Oliveira
João de Brito
José Celestio
Benildo
Palhaço
Júlio de Assunção
Polidoro
Tipógrafo
João Capelani
João Carlos Cabral
citados entre os funcionários públicos isto se deve mais ao fato de ser ele mesmo um
carteiro do que à constatação haveria mais instrumentistas entre esta classe e não nas
outras. Apesar disso, quando consideramos as listagens sob este prisma específico – a
132
de um retrato de uma “rede social” estabelecida por um carteiro das primeiras décadas
do século XX – elas adquirem outro peso e creio que podemos utilizá-las para tirar
funcionários públicos que eram também instrumentistas; por outro lado elas também
nos mostram um número não desprezível (embora muito menor proporcionalmente aos
mestres de seus instrumentos. Videira, por exemplo, cigarreiro de uma tabacaria da rua
do Ouvidor, foi um dos mestres de Alexandre Gonçalves Pinto (veremos com mais
como o nome indica era lustrador de móveis, era um “eximio acompanhador de violão”
visto. Este também era o caso de Leal Careca, sapateiro e oficleidista residente no bairro
“cabeleira partida ao meio e a tradicional sobrecasaca” bem como vários anéis de latão
nos dedos, de modo que quando tocava “chamava a attenção dos assistentes pelo brilho
das pedras falsas focalizadas pelo reflexo da luz do lampeão” (53). Entretanto, talvez o
na Casa Edison, junto com o seu grupo intitulado “O Pessoal do Bloco”, ligado ao bloco
133
Também é digno de nota que as listagens de profissão do fichamento
tidas como “nobres” como engenheiros, advogados, médicos etc. Entre estes se
“valsas lentas de escritores alemães”; João Pinheiro, flautista e dono de uma pequena
fábrica de charutos na rua do Ouvidor “que lhe dava o necessário para viver” (89) – e
por isso classificado por Jacob do Bandolim como “industrial” – e finalmente apenas
Este último dado pode nos levar ao pensamento errôneo de que as práticas
fichamento de Jacob nos permite relativizar este pensamento: a listagem dos bairros em
Aldeia Campista
Agenor - flauta
João Sampaio - flauta
Juca - piston
Andaraí
João Maia – clarinete- regente
Julio de Assunção – violão – canto - palhaço
Bonsucesso
Luiz Brandão – cavaco – canto - violão
Botafogo
Ademar Casaca – violão – trombone- canto
Animal – violão –cavaco - canto
Benedito Bahia - flauta
Menezes – cavaco - violão
134
Ricardo de Almeida - sax
Salvador Marins - flauta
Catete
Ismael Brasil “Banza” – trombone – bombardino
João Bruno - flauta
Catumbi (Bairro do
Agrião)
Felipe – trombone - bombardino
Manduca do Catumbi - violão
Centro
Frutuoso - harmônio
Vicente Sabonete – violão, canto, ocarina
Videira - flauta
Cidade Nova
Geraldo dos Santos “Bico de Ferro” - flauta
Guilherme Candido Dias - flauta
Júlio Barbosa - piano
Sociedade Dansante Adamastor
Engenho de Dentro
José Celestino - violão
José Monteiro – canto, cavaco
Romeu – violão, canto
Engenho Velho
Jorge Guerreiro – violão, canto
Estácio
Alberto Leão - violão
Animal – violão- canto-cavaco
Bailly
Benildo Manoel dos Santos
Carlos Espíndola - flauta
Club Independencia Musical
Coimbra - trombone
Cupertino - flauta
Cupido (Manoel Teixeira) - flauta
Gedeão - flauta
Gelo
João Maia – clarinete - regente
João Quadros – canto, violão
José Sinhá
Juca Flauta
Juca Mãosinha – violão, canto, cavaco
Juca Mulatinho – violão, canto, cavaco
Leal Careca - oficleide
Mário do Estácio – violão, canto, cavaco
Nascimento
Nenem Mário – violão, canto, cavaco
Porfirio Lefever - bombardão
Gávea
Edgard Bulhões de Freitas - flauta
135
Henrique - flauta
Sociedade Flor da Gávea
Zé Russinho ou Zé da Gávea – violão, canto
Ilha do Governador
Julinho Ferramenta - violão
Jacarepaguá
Barão da Taquara
Juca Kallut - flauta
Capitão Alamiro Cabral - violão
Grey (Família...)
Juca Gonçalves “Bita” - flauta
Mauricio – violão, canto
Pimenta - bombardão
Jardim Botânico
Antonio Xavier – violão - viola
Chiquinho
Lapa
Eldorado
Plácida dos Santos - canto
Meier
Carneiro - violão
João Carlos Cabral
Lobinho - piano
Morro do Pinto
Juca Gonçalves “Bita” - flauta
Leopoldo Pé de Mesa - flauta
Niterói
Artur Martins - clarinete
Benedito Monte – piano, regente
Cipriano - violão
João Capelani - cavaco
João Pinheiro “Zinho” - flauta
João dos Santos – canto, violão, poeta
José Aimoré – cavaco, flauta
Juca Marques – oficleide, bombardino, regente
Justiniano - flauta
Justo Vargas - flauta
Olavo Pinheiro - violão
Salustiano - trombone
Tabacão – violão, canto
Paquetá
Anacleto de Medeiros
Freire Júnior
Hermes Fontes
Piedade
Álvaro Nunes – canto
Juca Mamede
Leandro Ferreira “Rouxinol” – canto, violão
136
Lica – bombardão, flauta
Luiz Caixeirinho - pandeiro
Manoel Viana - violão
Mário Ramos
Oscar Cabral - flauta
Tabacão – violão, canto
Praça Onze
João da Harmônica – harmônica, violão
Raimundo Conceição - violão
Ramos
Corte Real
Rocha
Machadinho (Machado Breguedim)- flauta
São Cristóvão
Candinho Ramos - violão
Desidério Pinto Machado – violão, canto
Jorge - flauta
Juca Tenente - flauta
Maria Prata
Mariquinhas Duas Covas
Marreco - flauta
Mello Morais Filho
Saúde
Juca Flauta
Tijuca
Bilau - cavaco
Gilberto - bombardino
Juca Afonso – requinta, poeta
Juca Mamede
Major Mascarenhas – canto, violão
Maria da Piedade
Marques Porto – flauta, violão, piano, órgão, canto
Loló - flauta
Paulo Vieira da Costa - flauta
Romualdo Caboclo - violão
Sociedade Dansante Carnavalesca Pragas do Egito
Sociedade Musical Santa Cecília
Todos os Santos
Zé Russinho ou Zé da Gávea
Vila Isabel
Artur Pequeno - violão
Carlinhos - flauta
Carlos Furtado – flauta, trombone
Eurico – cavaco - trombone
Francisco Magalhães
Honório - flauta
Sociedade Musical Dansante “Os Africanos”
137
No total 28 bairros (afora a cidade de Niterói), sendo 18 da zona norte da
cidade, 4 da zona sul (Botafogo, Catete, Gávea e Jardim Botânico), 1 da zona oeste
fichamento, é citado duas vezes ao longo do livro como lugar onde aconteciam
cidade. O primeiro é o de que ele remete ao Rio de Janeiro do Império e das primeiras
partir da década de 1930. Assim, regiões que hoje seriam consideradas “nobres”, como,
por exemplo, o Jardim Botânico e a Gávea, eram muito pouco habitadas à época do
final do Império. Este último bairro, por exemplo, se converteria ao longo das duas
primeiras décadas do século XX em uma das regiões mais industriais do Rio pela
presença de diversas fábricas de tecido e, portanto, “de população operária mais densa”
(Gerson, 2000: 308). O segundo fator importante a ser levado em conta é o de que a
associação entre classes sociais, bairros e práticas musicais é sempre mais complexa do
que podemos supor; apesar disso este enfoque sempre fez parte da historiografia
cantas e direi de que bairro és” (Figura 3). Três classes sociais são representadas no
musical” das camadas mais modestas da população moradoras dos bairros da Gamboa,
acompanhamento de piano e percebe-se maior apuro nas vestimentas dos ouvintes: esta
138
seria a representação da classe média moradora de “São Cristóvão, Vila Isabel e
trabalho de Francisco Vagalume, - que em seu livro Na roda de samba traça uma
propaga de forma geral pela segunda metade do século XX, em estudos de variados
autores importantes como Tinhorão (1998a), Máximo e Didier (1990), e Silva e Oliveira
Estácio” surgido a partir de 1928, esta abordagem é utilizada por alguns textos de forma
139
bastante incisiva, calcada em uma polarização entre as práticas musicais da Cidade
Nova versus o bairro do Estácio. Máximo e Didier (1990), por exemplo, apontam o
fato de existirem ali “músicos treinados” aptos a tocarem este gênero derivado em
grande parte da polca européia; por oposição, o Estácio de Sá não teria estes mesmos
abordagem, criticada por Sandroni (2001: 139) como reducionista, não se restringe a
este texto, e fez parte do imaginário da população desde as primeiras décadas do século
Entretanto, o fichamento de seu livro nos mostra mais uma vez o quão
sem que se façam reflexões mais aprofundadas sobre o tema. Vemos na listagem
bairro do Estácio desde o início do século, o que já nos leva a questionar a polarização
5
Podemos citar como outros exemplos a caricatura de Kalixto Cordeiro datada de 1910 e retratando a
diferença entre bailes realizados em áreas “nobres” como Botafogo e “áreas populares” como a Cidade
Nova e os Folhetins de França Jr., onde o autor traz um perfil dos bailes de “primeira, segunda e terceira
classes” no Rio de Janeiro (citado por Sandroni, 2001: 69).
140
proposta por Máximo e Didier. O “Animal” indica com precisão “sociedades dançantes”
deste bairro, como o “Club Independência Musical” do qual era regente o clarinetista
João Maia e casas de chorões, como o violonista Gedeão, que funcionavam como
das áreas da cidade é o de que ele não leva em conta a mobilidade das práticas musicais,
Pedro Galdino] “Pedrinho, raras vezes dizia não aos seus camaradas fosse onde fosse o
choro” [20, grifo meu]; [Sobre Lica, tocador de bombardão] “Elle ia longe à procura de
o “Alma de Maçon”]: “farejava um chôro como quem num sabbado do meiado do mez
corre atraz dos dinheiros para o ‘Boi com abobora’ do domingo” [67]. O próprio
Gonçalves Pinto nos dá alguns saborosos relatos pessoais de seus deslocamentos pela
cidade em busca dos choros. Em um deles ele já mostra a dificuldade de locomoção por
transportes públicos que sempre fez parte das mazelas dos habitantes da cidade:
públicos, entretanto, não eram o único empecilho para os músicos do choro: havia
141
“facções” criminosas ligadas ao tráfico de drogas da atualidade. Abordaremos este
diversas regiões da cidade era também de uma forma de mobilidade social: o livro
Visconde de Ouro Preto (13) e o Barão da Taquara (94-95), em ambientes ligados aos
ambientes típicos da baixa classe média da época, como as casas da mulatas Durvalina
(78) e “Mariquinhas Duas Covas” (122), figuras muitos populares pela hospitalidade e
fartura com que recebiam os chorões (“na sua casa os chorões eram aos cardumes, pois
nunca o gato estava no fogão”, ou seja, não havia falta de comida e bebida, nos diz
vimos como informações aparentemente dispersas ao longo do livro nos apontam para
musicais do choro: analisamos assim como estas práticas se relacionam com aspectos da
vida profissional dos biografados e com a complexa relação entre regiões da cidade,
classes sociais e “gêneros” musicais. Cumpre agora nos determos nos próprios verbetes
142
linguagens “não-oficiais”, características de classes e situações sociais, profissões, etc.,
que a “linguagem oficial” traria em seu bojo, em uma espécie de jogo dialético.
periódicos do rancho Ameno Resedá nos dava as chaves para o entendimento dos
completos, datas, etc –, que fizeram com que Ary Vasconcelos lamentasse o fato de
Gonçalves Pinto não estar “culturalmente equipado” para a tarefa que se lançou, os
verbetes biográficos escritos pelo carteiro são dominados pelos elementos expostos
acima. Sua escrita fragmentada registra oralidades, gírias, frases feitas e visões de
mundo que faziam parte da linguagem específica dos grupos sociais que se reuniam em
grupo social que descreve, estes elementos estão naturalmente colocados em sua escrita:
sendo “conhecedor de toda a gíria da cidade” como nos diz o soneto de Max-mar, os
verbetes biográficos do carteiro primam muito mais pelo registro destes elementos
descritos.
sentido bakthiniano de “riso popular” que incluía a todos, mesmo os próprios autores
das sátiras – presentes nos periódicos dos ranchos. Vimos anteriormente que um
dos jornais a que tivemos acesso (1913, 1914, 1916, 1917 e 1920). Todas as colunas
tinham por objetivo a sátira aos membros do rancho, e são exemplos claros da utilização
143
das gírias e fórmulas de oralidade que compunham a linguagem específica desta
Salve leitor amigo! Venha de lá o abraço, mais uma vez contigo, enceto a proeza
que traço, graças a padroeira do Ameno Resedá, minha pena mesureira, mais uma
prosa te dá; mas francamente leitor, com toda a sinceridade, este ano é um horror, a
tal de intimidade, por isso deves estranhar o estilo capadócio mas... não me sujeito
a apanhar e disfarço mais o negócio, porque d’esta coluna o fim é meter o pau na
negrada e quase sempre há chinfrim, quando não dá em barulho; e, no entanto aqui
não encaixo, tudo que a mente dita é mão em cima mão em baixo, como diz o Lord
Fita, logo!... castigat ridendo mores! É da língua mater o tempero, inda que no
íntimo tu cores, não deves dar desespero; mas o fim do ano passado, foi de arrelia e
de azar, ainda tem bagre arrancado, mas eu não devo contar, a indiscrição não faz
parte da lista dos meus defeitos, e se eu fizer o encarte, quem garante seus efeitos.
Por isso leitor caluda! Muito zinho oculto agora, e assim fica a cousa muda e não se
sabe cá fora, mas... vamos tratar do assunto, que cultiva esta seção, pode me fugir o
bestunto e não dou conta da missão. (Jornal do Ameno Resedá, 1917)
linguagem quase dialetal, repleta de rimas, fórmulas orais e frases feitas que eram parte
legibilidade do texto para quem não fazia parte do mesmo. “Mão em cima mão
embaixo”, “bagre arrancado”, “zinho oculto”, “fugir o bestunto”, são expressões cujos
significados não podemos definir com certeza – podemos apenas inferi-los de maneira
satírica dos ranchistas, muitas das quais registravam fórmulas de oralidade típicas de
cada um:
144
Gonzaga da Hora – Toque nesses ossos seu Gonzaga, olhe que o sr. me obrigou a
procurar uma palmatória, velho legado de meu pai e um chinelo também com que
me castigavam quando eu fazia manha!
Adão – É o único Resedá que tem a propriedade da Cordite, por qualquer coisa se
aborrece, um dito, uma pilhéria é motivo de zanga! Quem sabe se a pessoa que o
propôs, não lhe disse que o Ameno era Associação Funerária ou Beneficente?”
(Jornal do Ameno Resedá, 1916 e 1917)
“chorões” descritos por Gonçalves Pinto. Assim, Napoleão de Oliveira é citado como
mavioso e científico”. Desta “cultura fina” fazia parte também uma veia poética que é
expressa na coluna pela menção ao fato de Napoleão ser “apologista dos sonetos
interessante notar que Gonçalves Pinto cita este mesmo poema em seu livro, mais uma
prova da circularidade cultural das práticas artísticas da época (conforme salientado por
Braga, 2002: 205). Já Gonzaga da Hora era o tocador de bombardino Luiz Gonzaga da
guarda”.
grupo: era parte fundamental deste processo a fixação dos elementos de oralidade que
em várias colunas satirizado pelo seu falar gago; Adão é conhecido pelo seu mau-
humor, que leva o cronista a perguntar se ele teria confundido o rancho com uma
associação funerária. Em alguns casos não é mais possível precisar qual o sentido
“Comigo não tem chichi, meu bem você vem cá” usado por Almeida para resolver todas
145
Ora, esse é um dos elementos mais utilizados pelo “Animal” na descrição de
informações precisas sobre dados empíricos (datas, nomes completos, etc) dos
personagens.
indica, foi convidado certo dia para um choro na casa de “um seu compadre, onde se
realizava um batizado”. Sendo devoto de Santa Rita, antes de sair para a festa ajoelhou-
se diante da imagem da santa, “pedindo que não o deixasse beber”, pois quando bebia
podia deixar de ser” havia farto banquete e muitas bebidas: não podendo resistir,
começou logo a comer e a beber, e “às paginas tantas já não soletrava ‘Cascadura’”;
bebeu tanto que, na hora de voltar para casa, seu compadre, “que era Guarda
Municipal”, teve que chamar um “carregador para carregá-lo até sua residência”. O final
Na hora da sahida sua comadre entregou ao dito carregador uma duzia de ovos para
sua senhora depois de muito custo chegou em casa o Coimbra, tomando das mãos
do carregador a duzia de ovos, foi direito ao quarto onde estava, jogando todos os
ovos na Santa, blasfemando por não ter sido attendido no seu pedido (96).
Outro exemplo curioso, dos muitos que poderiam ser citados, é o de Ismael
sua vida e carreira, ainda que no final predomine a intenção satírica novamente. Ismael
146
Brasil era filho de “D. Antonica, exímia modista das mais distintas famílias do bairro do
Catete”; excelente tocador de trombone e bombardino, razão pela qual era “disputado
pelos chorões”, iniciou sua carreira profissional como estafeta dos Telégrafos, até ser
nomeado carteiro do Correio Geral, “lugar este em que occupou com muito esmero e
capricho, pois primava por apresentar-se sempre asseiado” (71). No aspecto físico era
de “estatura alta”, tinha no rosto “sinais de bexiga” e um “modo moleirão” – razão pela
estimado na roda dos chorões”. Certa feita, em um “pagode” em Niterói, percebeu que
em profusão. Focamos até agora nossa análise nos aspectos satíricos dos verbetes: em
boa parte destes casos, fórmulas de oralidade, como gírias e frases feitas, estão
sempre com intenção cômica. Cumpre agora analisarmos verbetes onde o carteiro se
esmera em fixar frases, ditos e visões de mundo de seus biografados, sem que
147
Um dos verbetes que pode ser citado como exemplo neste sentido é o do
violonista Sátiro Bilhar (1869-1927). Figura das mais populares do choro no período da
belle époque, autor da polca “Tira Poeira”, até hoje muito tocada no ambiente das rodas,
seu verbete é singular pelo fato de que, em meio à descrição do “personagem”, a prosa
Parece-me estar ouvindo ainda elle dizer: "Tu és uma estrella de primeira
grandeza"! (tá doido Ave Maria) o que palpita lá palpita cá; minha familia é minha
vida inteira ! e viva São João p'ro anno, tá errado com o velho Bilhar, gosto de ti
porque gosto porque meu gosto é gostar, no rio o caudal da vida que tem por
margem a descrença, as ondas são anjos que dormem no mar, porque vejo em teus
olhos um luzeiro que me guia, eram estes os dictados e as modinhas do repertorio
de 40 annos do velho Bilhar, com o seu tradicional pince-nez, pois os grandes
chorões ainda não conseguiram imital-o e reconhecem que Bilhar foi o rei dos
accordes [53]
sentido para o leitor atual e que é preciso “destrinchar” de alguma forma: as primeiras
frases parecem ser parte do repertório de ditados e frases feitas usadas por Bilhar: “Tu
és uma estrela de primeira grandeza!”, “Tá doido, Ave Maria”, “O que palpita lá palpita
cá”, “Minha família é minha vida inteira!”, “E viva São João pr’o ano”, “Tá errado com
Bilhar, algumas das quais conseguimos identificar: “As ondas são anjos que dormem no
mar” e “Gosto por ti porque gosto”, por exemplo, são títulos de modinhas feitas em
parceria com Catullo. Ao registrar estas fórmulas de oralidade, Gonçalves Pinto está
fundamental frisar que, ao misturar ditados, frases feitas e letras de modinhas, o carteiro
nos mostra que todos estes elementos estavam imersos em um mesmo “perfil”: em
outras palavras, não seria possível fazer uma separação do que Bilhar “falava” e do que
148
memória. Seu repertório de ditados e frases feitas eram fator de identidade tão fortes
quanto seu repertório musical, e o carteiro os usa não só para evocar o ambiente afetivo
aspectos diversos como, por exemplo, o modo com que as pessoas estabeleciam
profissionais. Assim, Cantalice, chorão ao violino, dizia que “a música é como a morte,
precisa fazer tristeza para ter effeito” (105); Lica, tocador de bombardão e tipógrafo
“tinha verdadeiro amor e devotamento à arte musical, nos choros em que fazia parte e
dispunha de liberdade pedia sempre a palavra em louvor de Santa Cecília, tal era o seu
parte do rancho Pragas do Egito, assim como Gonçalves Pinto – dizia que “ter juizo,
trezentos e sesenta e dois dias, não é pouco, é justo que nos três dias de carnaval se seja
louco” (131); Gonzaga da E.F.C.B., era, como o nome diz, funcionário da estrada de
muitos lhe perguntavam a razão pela qual, sendo ele um “músico tão afamado”,
com a maior naturalidade, dizendo que a sua estrella nunca brilhou e por isso vivia
no abandono, pois nunca encontrou um amigo que lhe désse a mão. Pois apesar de
seu preparo, viu-se obrigado a sugeitar-se a ser carregador, se queria comer e beber
(82)
Como se nota nos trechos citados, a prosa do carteiro revela, ainda que de
forma fragmentada e difusa, parte do pensamento e das vozes destas figuras populares.
Veremos ao longo dos capítulos três e quatro, como estas visões de mundo englobavam
149
também pensamentos muitas vezes díspares sobre temas como a relação dos
nos detivéssemos agora nos verbetes em que Gonçalves Pinto se volta para a descrição
Modinha” (121). É nestes verbetes que se percebe, de modo ainda mais patente, a
sonoros não podem ser separados dos discursos, gestualidades, conceitos e idéias sobre
os sons (Middleton, 1990: 221; Vila, 1995). Da mesma forma, aquilo que identificamos
usualmente como “gênero musical” seria mais propriamente definido como um feixe de
discursos e idéias sobre determinadas práticas do que simplesmente por uma definição
que os verbetes sobre “polca”, “quadrilha” e “modinha” escritos por nosso carteiro se
Comecemos pela quadrilha: segundo José Ramos Tinhorão esta seria uma
150
De meados do século XIX até o início do século XX, a quadrilha seria uma
dança muito popular nas grandes cidades – e no Rio de Janeiro, particularmente, muito
usual entre chorões descritos por Gonçalves Pinto; ao decorrer do século XX,
entretanto, cairia em desuso nos grandes centros urbanos, sendo absorvida pelas classes
rurais, passando a receber diferentes nomes em todo o país — quadrilha caipira em São
A quadrilha era uma dansa figurada com cadencia de seis por oito e dois por quatro
no compasso. Os seus melhores escriptores foram o inesquecível Barata, o sempre
lembrado Silveira, o Saudoso Metra o inolvidavel Anacleto, o immortal maestro
Mesquita e muitos outros (115)
Gonçalves Pinto já aponta para o fato de que, em 1936, data de lançamento do livro, a
quadrilha (pelo menos como dança dos grandes centros urbanos, e em particular, dança
é em grande parte endereçada aos leitores que certamente desconheciam esta dança. Em
seguida o carteiro passa a descrever a dança e as fórmulas de oralidade que eram parte
indissociável da quadrilha:
Esse estylo de dansa, traz saudades das marcações: "Travessê"! "Balancê"! "Tour"!
"Anavancatre"! "Marcantes anavan"! "Caminhos da roça"! "Volta gente que está
chovendo"! Na quadrilha, era que o dansarino mostrava as suas habilidades e o seu
devotamento, a "Terpesychore". Por exemplo: no "Travessê!" muita gente boiava
151
quando um cavalheiro pulava do seu logar e ia figurar ao lado de uma dama que se
achava distante. O "tocert", era as vezes obrigado a um "doublé", para a frente ou a
retaguarda conforme a vez a "marcante".
músicos do choro que acompanhavam o baile também são alvos de curiosa descrição:
Para ser "marcante", era preciso conhecer todas as evoluções da "quadrilha", e estar
muito attento ao desenrolar da musica. Os dansarinos sempre gostaram da
"quadrilha", porque era a dansa mais divertida e a que mais enthusiasmava, não só
pelas suas passagens comicas, como tambem pelas demonstrações de agilidade a
que os "pacholas" eram obrigados. E quando o "marchante" se enganava ? Eram
um "suicidio-moral"... E quando elle, se descuidava e bradava: "Chê de dama"! e a
musica parava ? Era um destes "fiascos" que custava grossas gargalhadas e que
ficavam registrados na sua fé de officio (...). Succedia muitas vezes que o
"marcante" se enthusiasmava e se esquecia da dar signal para acabar uma parte o
"chôro" parava deixando em meio uma evolução. Era motivo de gargalhadas
geraes, e de "estrillo" do "marcante". Outras vezes este dava signal para parar,
quando a musica não o permittia. Era outros "fiasco". Succedia, ainda, que o
"mestre do chôro", por "malha ou tralhas", não gostasse do "marcante": anthipatia,
inimizade pessoal, revalidade, "dôr de cotovello" e então sujeitava-o ás mais
desconcertantes borracheiras em plena "salão".
baile: como se vê pela descrição, era necessário que houvesse um perfeito entendimento
importante do verbete diz respeito ao fato de que ele aponta para um mapeamento das
Havia uma grande diferença na quadrilha dançada num rico salão de Botafogo e
Tijuca e da que era desengonçada na Cidade Nova e Jacarepaguá. Os ricos, metidos
na sua casaca, sobrecasaca, do fraque e as damas de vestidos decotados,
observavam rigorosamente a pronúncia francesa e a orquestra só parava quando o
‘marcante’ dava o sinal. Na roda do povo de ‘bongalafumenga’ o pessoal se
apresentava como podia e os que melhor trajavam ostentava a calça boca de sino,
ou a bombacha, e as damas que se apresentavam com os vestido de merino, eram
consideradas de ‘elite’, porque a maioria pegava mesmo o seu vestidinho de chita.
A marcação era ‘gosada’ porque sendo feita num francês macarrônico tinha uns
enxertos conforme a festividade do marcante.
152
A enorme popularidade da quadrilha no período da belle époque é atestada
manuscritos de choros ainda do século XIX e inícios do XX, conforme veremos com
maiores detalhes no capítulo quatro. A descrição de Gonçalves Pinto nos mostra que ela
fazia, tanto quanto a polca, o schottisch e a valsa, parte do ambiente do choro nas festas
uma forma ou de outra na “tradição oral” do choro durante a segunda metade do século
XX, a quadrilha foi praticamente extinta, até ser “redescoberta” nos finais dos anos de
1990 e regravada por músicos ligados a gravadora Acari. Veremos mais sobre este
década de 1930, a polca e a modinha ainda gozavam de alguma popularidade nos meios
Neste sentido, os verbetes que Gonçalves Pinto dedica à polca e à modinha são eivados
de forte cunho ideológico: o carteiro procura associar estas músicas à “alma nacional”,
dos “grandes cantores de modinha”: dividida em dois períodos distintos, o primeiro dedicado
àqueles “já falecidos” e o segundo aos que “ainda estavam em atividade”, a listagem é singular
153
por misturar indistintamente as figuras praticamente anônimas descritas pelo Animal (Vicente
Sabonete, Oscar de Almeida, Creoula, etc.) com grandes nomes do rádio, como Francisco
Alves, Silvio Caldas, Aurora Miranda e Almirante. Note-se que ao mencionar o nome dos
grandes cantores do rádio, Gonçalves Pinto aponta para a aceitação do rádio como grande
divulgador da música nacional: como veremos com mais detalhes no capítulo três, onde
salientará a importância dos novos intérpretes do choro que então surgiam neste meio (como
Benedito Lacerda, Luperce Miranda, Pixinguinha, por exemplo), identificando-os como uma
A polka é como o samba, – um tradição brasileira. Só nós o que Deus permitiu que
nascessem debaixo da constelação do Cruzeiro do Sul, a sabemos dansar, a
cultivamos com carinho e amor. A polka é a unica dansa que encerra os nossos
costumes, a unica que tem brasilidade. Do mesmo modo que os argentinos
cultivam o tango e os portuguezes não deixam morrer a "canna verde", nós os
brasileiros havemos de agüentar a polka, havemos de mantel-a atravéz dos seculos,
como tradição dos nossos costumes, como recordação dos nossos antepassados e
como herança ás gerações vindouras (115)
A polca é como o samba – uma tradição brasileira: eis aqui uma afirmativa
práticas sonoras e os discursos sobre as mesmas. Dança que tem origem no leste
europeu (para muitos dicionários e livros de referência teria surgido mais precisamente
1840, ganhando logo grande popularidade entre diversas camadas da população. Sua
154
“terceira categorias” no Rio de Janeiro, França Júnior apresenta um retrato bastante
referência aos “requebros” que seriam mais característicos da dança do maxixe do que
da polca. Esta visão do maxixe como uma forma “requebrada” de dançar a polca
também aparece no verbete de Gonçalves Pinto. Para o carteiro, a polca seria “música
utilizada – “às vezes” – nos mostra que havia, na verdade, diferentes tipos de polca, que
repuchos do maxixe”, havia também polcas “cadenciadas”, que eram tocadas ao final
quadrilha, uma dança mais romântica, propícia aos “derriços dos namorados”:
“Quantas vezes dois entes que se querem, mas, que se acham separados, aproveitam a
155
cadencia de uma polka, para os segredinhos da pacificação”, também nos aponta o
Assim como a quadrilha, a popularidade das polcas nos bailes de baixa classe
média da época é comprovada pelo grande número de músicas qualificadas sob este
schottisch” também são utilizadas pelos copistas destes cadernos para registrar o que
“gênero musical” é mais complexo do que podemos supor à primeira vista; o carteiro
nos mostra como uma simples palavra, “polca”, pode servir não só para designar
práticas sonoras diversas (haveria polcas propícias aos “requebros do maxixe”, polcas
propícias aos “derriços dos namorados”, entre outras), como situações sociais
ainda feixes de discursos e idéias que relacionam este “todo-complexo” da polca com
atravéz dos seculos, como tradição dos nossos costumes”; “a polka é a unica dansa que
encerra os nossos costumes, a unica que tem brasilidade”, são exemplos destes feixes de
discursos). Em segundo lugar, nota-se que a comparação com o samba não é gratuita:
em uma década em que o samba se consolida como a música nacional, o carteiro será
156
expressão máxima do que era entendido como “música nacional”. Em outras palavras,
Lacerda, Pixinguinha, Luiz Americano, Jacob do Bandolim, entre outros –, formada por
este processo com mais detalhes no capítulo três – os chorões “da velha guarda”
descritos por Gonçalves Pinto continuarão a eleger os padrões rítmicos da polca como
1970, ainda se reunindo em rodas de choro nas quais a polca permaneceria como
tinham vez. Este é o caso, por exemplo, do Retiro da Velha Guarda, reunião semanal de
elementos do livro é que é constituído justamente pela dimensão festiva da vida: festas,
rodas de choro e pagodes, como muitas vezes o Animal assinala. É este o verdadeiro
157
funcionários públicos, periodicamente entravam em outra dimensão e “se esqueciam de
tudo”, abandonando famílias e empregos por dias e dias por causa de um bom choro.
aparecem em grande quantidade na narrativa: Paulo Esteves, por exemplo “era chorão
viciado, não podia ver defunto que não chorasse. Chegava a indagar onde existia um
choro, para ele meter os peitos”. Apesar de carteiro por profissão, “acabou sendo
exonerado por abandono de emprego, pois o choro fez esquecer os seus deveres” (163).
Ou ainda Ernesto Pestana, “praça de polícia” que o autor julgava “nunca ter galgado
posto algum”, por ser “de um gênio folgazão e inveterado farrista, andando quase
quando uma cadeia” (187). De modo similar, Antonio Joaquim Marques Porto, descrito
como sendo pertencente a uma “distinta família baiana”, era um soldado do Corpo
Militar que também não chegara a galgar posto algum, por ser “de um gênio estourado,
metia-se em farras noites e noites”. Apesar disso “era de uma fina educação” e
encantava as famílias da “Velha Tijuca” pois “cantava muitas modinhas com uma voz
maviosa de fazer encantar” além do que “tocava flauta com grande maestria” e no
boêmio que era e não ligando à sociedade, acabou o herói do choro (...) em uma
enxerga na Santa Casa de Misericórdia. Contava-me ele que sua boníssima mãe
mandava-lhe dinheiro para seu regresso à Bahia, porém, com seu espírito boêmio,
nunca lá foi, gastando todo [o dinheiro] em farras e patuscadas. E assim lá se foi
para vida eterna um herói, que pelo seu saber e cultura podia hoje seu nome estar
esculpido em uma estátua para glória do porvir (35, grifos meus).
Mas não era apenas por abandono de emprego ou pelo “gênio estourado” que
158
realmente pantagruélicas. Assim, Salvador Marins é descrito como “um grande
flautista” que nunca negava o convite para ir a um choro, mas logo perguntava pelo
“pirão, nome que se dava nos pagodes quando tinha boa mesa e bebidas com fartura”
(idem: 15). Leopoldo Pé de Meza “não era músico de assombro”, “pois com a sua flauta
de cinco chaves já muito velha, presa com elásticos, só tocava músicas fáceis”. Apesar
Gostava de uma abrideira antes de entrar nos pirões, e depois se atolava na cerveja,
no vinho ou em qualquer outras bebidas que viesse, era dos tais que cada vez que
chimpava um gole da boa estalava a língua, e quando numa mesa via um Qui-Qui
(porco) com a competente batata na boca e azeitona nos olhos não tinha mais
vontade de levantar-se, e quando isso fazia ia dizendo: hoje comi para um mês,
estou empanturrado, já não posso mais. Se pela madrugada vinha um chocolate com
biscoitos não rejeitava a parada e tomava mais de uma xícara (18).
que o autor julgava já mortos pelo “muito o que comeram e beberam nesta vida”.
nome. É morto. Amigo de Irineu. O maior comedor que até hoje veio ao mundo”.
cultura da Idade Média, por outro nos possibilita uma aproximação com o conceito de
malandragem proposta por Antônio Cândido em sua magistral análise sobre o romance
creio ser possível apontar, ainda que com óbvias ressalvas, algumas associações entre o
É claro que entre as diversas ressalvas que se impõe a esta última associação,
três saltam aos olhos de pronto: primeiro, o fato de as Memórias serem uma obra de
ficção, enquanto o Choro é uma obra memorialística. Segundo, o fato dos tempos
159
históricos serem diferentes: um se passa no “tempo do rei”, isto é, nas duas primeiras
décadas do século XIX (muito embora tendo sido escrito entre 1852 e 1853), e o outro
características cômicas das camadas populares, o que fez com que inúmeros críticos
espanhol6. No livro de Gonçalves Pinto esta visão “de fora” não existe: exatamente
como no pensamento de Bakhtin, citado no primeiro tópico deste capítulo, não há aqui
Leonardo, seria “o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo
certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil.” (Cândido, 1970: 78). Ao
mesmo tempo em que estaria identificado com uma espécie de “corrente universal” de
brasileiro), Leonardo seria fruto de uma condição social muito específica da sociedade
brasileira do século XIX, marcada pela relação dialética e difusa entre a ordem e a
a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva, não tanto por causa das
descrições de festejos ou indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num
6
O romance picaresco é normalmente entendido como um romance sem enredo geral ou “grande trama”,
normalmente tendo como figura principal um personagem que se apresenta como “anti-herói” à margem
da sociedade, e que se apresenta em uma série de aventuras e desventuras normalmente ambientadas nas
classes mais populares.
160
plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem,
funcionando como correlativo do que se manifestava na sociedade daquele tempo.
Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma
desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões
fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os
outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos
expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo (...) Ficou o ar de jogo
dessa organização bruxuleante fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos
personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que
é o outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade
que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das
reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. (id., ib.)
mas inúmeras vezes “desce” aos círculos da desordem: ao se envolver com a saloia
descendo ao nível da desordem ao ceder aos encantos de uma mulher de “vida fácil”,
Sem dúvida esta mesma tensão entre o lícito e o ilícito permeia a narrativa e os
descritos por ele — soldados, policiais, funcionários públicos etc, — estavam sempre no
chefe de contabilidade de um banco, descrito por Gonçalves Pinto como uma pessoa
161
“tigre que fazia tremer de susto” os seus subordinados, entre estes o contínuo José
Pavão, tocador de violão e figura popular nas rodas de choro — razão pela qual era
sempre advertido pelo senhor Amaral, tendo sido finalmente exonerado de seu cargo.
Porém, como reverso da medalha, o senhor Amaral era, em seu ambiente familiar, “um
galo capão governado pela sogra D. Catharina”, uma verdadeira megera que “farejava
sua roupa e sua papelada, dava-lhe vomitórios, fazia inquéritos constantes” para tentar
descobrir qualquer desvio de conduta do genro. A esposa do senhor Amaral era também
uma mulher extremamente ciumenta e histérica, que “dava meia dúzia de ataques
bom choro”, resolveu comemorar seu aniversário chamando diversos chorões para uma
(referência a figura da sogra): os nomes dos personagens são diferentes, mas a história é
162
de crônica satírica, normalmente assinada por pseudônimo, onde a tônica é dada pela
página aparecem as letras das músicas a serem cantadas pelo rancho naquele ano.
7
Esta inversão da ordem abarcava também a esfera sexual: em um dos jornais de 1912 do rancho Ameno
Resedá, uma coluna satírica intitulada “O Dominó Amarelo” relata a história de um certo “Juca
Trombone”, malandro que vivia de biscates e sempre atrasava o pagamento do aluguel, até que o seu
senhorio resolve se travestir de mulher no carnaval para “seduzir” o malandro Juca e arrancar-lhe
finalmente o aluguel devido. O efeito cômico é obtido pelo farto uso de gírias e pela revelação, ao final da
crônica, de que a “sedutora” senhora fantasiada de “dominó amarelo” é na verdade o senhorio.
163
Assim, vemos como o ambiente de trabalho e o ambiente “festivo” se
graças aos encantos de uma mulher de “vida fácil”, o temido senhor Amaral acaba
submetido a uma completa inversão de ordem em sua hierarquia ao ter que aceitar José
Pavão como “pessoa grata de sua família”, graças à intervenção enérgica de sua megera
seja nos “causos” relatados no livro de Pinto ou nas crônicas satíricas do rancho. Tutto
nel mondo è burla, como diz Cândido em seu artigo, parafraseando Verdi: na complexa
164
Capítulo 3
possíveis influências na obra do carteiro. O presente capítulo terá como foco uma
mútuas e também, naturalmente, contradições entre estes discursos. E mais do que tudo,
entender a escrita de Gonçalves Pinto sob dois aspectos: como uma das vozes que
ela mesma um repositório de vozes, conceitos e idéias dos músicos de choro do início
do século XX. Sob ambos os aspectos temos que considerar outras narrativas
importantes da época: para isto tomarei como base alguns trabalhos de pesquisadores
Carvalho (Carvalho, 2006) que em sua dissertação de mestrado procura fazer uma
sobre práticas musicais nos escritos de Catullo e de seus contemporâneos. Para o autor,
identificar nas memórias deixadas por esses sujeitos o confronto entre os diferentes
significados, visões e concepções sobre as práticas musicais ditas populares desse
período, permite compreender quais eram e como se davam os conflitos no interior
das relações sócio-culturais das classes populares da sociedade carioca (Carvalho,
2006:21).
em carnaval, tendo lançado em 1933 o seu famoso livro Na Roda de Samba, espécie de
reunião de crônicas sobre o samba. O livro tem como foco principal o ataque à crescente
industrialização do samba por oposição ao que seria o samba “puro” dos morros
cariocas. Nomes como Sinhô, João da Bahiana, Caninha e Eduardo das Neves são vistos
como os “catedráticos”, ou seja, aqueles que conheciam realmente a roda de samba, por
“falseadores” da tradição, como Francisco Alves (alvo dos maiores ataques), Ary
Barroso e Lamartine Babo (Sandroni, 2001:135). Sua narrativa, como afirma Moraes,
“transita pelos diversos focos narrativos, isto é, entre as memórias do autor, a crítica
Moraes (2006:122), sua carreira tinha um viés muito mais “intelectual” do que a de
166
Brasileira de Letras em 1922. Foi poeta e letrista, parceiro de Noel Rosa e Silvio Caldas
em diversas composições ainda hoje clássicas da música popular. Seu livro Samba: sua
história, seus poetas, seus músicos e seus cantores de 1933 faz, ainda segundo
industrializado.
forma tais autores e textos podem ser relacionados, primeiramente delimitando pontos
em comum entre as obras. Começamos por resumir alguns pontos levantados por
das diversas formas de registros sobre a música urbana, no momento em que ela surgia
como fato cultural e social” (Moraes, 2006: 120); 2) por serem tais memorialistas
credenciamento automático para definir a seleção dos ‘fatos dignos’ de registro, sua
veracidade e a ordenação causal e temporal dos eventos (id., 121). Tal grupo de fatores
‘origens, características e linha evolutiva’ da música popular (...) nas primeiras décadas
do século XX (id, ib.); e o segundo seria o de que, ao realizar um discurso baseado nas
vivências de rodas, festas, serestas etc, a narrativa que prevalece entre tais
167
A partir destas características fundamentais, focarei minha análise no livro de
Começarei com o último ponto citado: a narrativa fragmentada. Vimos nos capítulos
época. Esta estrutura parece ter sido em parte inspirada pelo livro de Vagalume: no
Da mesma forma, Gonçalves Pinto afirma que sua narrativa “não tem a
apenas em uma série de “crônicas do que se respirava no Rio de Janeiro [de 1870 para
cá]”. Podemos ainda apontar outros pontos em comum entre as duas obras: ambos os
autores deixam claro o fato de que, ainda que à custa de imenso esforço (que os
Para Gonçalves Pinto a conclusão de seu livro era “seu sonho dourado” (207),
apesar das dificuldades que também o levam a se comparar a um náufrago, como vimos
168
no capítulo dois. Além destas imagens metafóricas comuns, é possível encontrar nos
“Índio das Neves é hoje o maior vulto no gênero de modinhas de alto estilo. Na
atualidade, ele é o primus inter-pares da modinha brasileira” (id: 84). “O poeta Catullo
da Paixão Cearense é um astro de primeira grandeza, pois suas produções aí estão para
nossa admiração” (Pinto, 1978: 132). “João Pernambuco é o violão nortista primus
inter-pares dos seus congêneres.” (id. 124). Ainda que tais expressões fossem correntes
nos meios jornalísticos da época, creio que podemos afirmar que Gonçalves Pinto foi
descrever o jornalista como um autêntico “chorão” e a citar sua obra, lançada três anos
antes de O Choro:
Vou aqui fazer uma justa homenagem a este jornalista amigo de todos os chorões, e
assim também é um chorão. Este cronista carnavalesco, considerado e respeitado
por todos os foliões e colegas do mesmo ofício, tal a sua capacidade intelectual.
Guimarães é um boêmio de jaça e autor da roda dos sambas! (190, grifo meu)
samba, ao passo que o de Alexandre tem por foco principal a construção da memória de
seus companheiros de choro. Neste sentido, uma obra que pode ter servido de inspiração
1908, citada por Carvalho (2006). No prefácio deste livro, Catulo faz uma descrição
seria, a seu ver, as características mais importantes que um instrumentista deveria ter
prefácio não tenha o mesmo caráter de “verbetes” do livro de Pinto, e seja escrito em
169
prosa corrida, percebem-se em ambos o desejo de perpetuar uma geração de
Catulo não tem o menor pudor em criticar os instrumentistas mais renomados, Pinto tem
instrumentistas. Veja-se por exemplo este trecho de Catulo sobre o renomado violonista
Quincas Laranjeiras:
que seria a essência do choro para Catulo: uma práxis de “acompanhamento” típica da
linguagem do choro, que o poeta define como “acompanhamento dengoso, com todos
que solassem bem, como Quincas Laranjeiras, os verdadeiros chorões seriam aqueles
O meu antigo amigo e companheiro Satyro Bilhar é um primor na sua escola, criado
por si mesmo, carregando atrás de seu mavioso violão um bando de satélites
impertinentes, que não o podem imitar nem de longe. Chico Borges, outro velho
camarada, é o grande acompanhador de flauta e sem dúvida um dos primeiros. É
170
digno rival de Neco, que nada lhe fica devendo, quando geme ao lado de uma
queixosa e soberba flauta, ou de um cavaquinho do quilate de Galdino ou Mário,
dois terríveis que se podem bater, conquanto seja verdade que o Galdino é mais
antigo, e por isso, mais conhecedor desse instrumento, que só pode ser ouvido
quando tocado por um dos dois. Continuando nos violões:
embriagantes de harmonia nas passagens das tonalidades das músicas difíceis, que sem
lisonja só ele sabe fazer” (70). “Bilhar era um chorão que tinha primazia entre outros
chorões nos acordes, nas harmonias, no mecanismo de dedilhação com que manejava
agradavelmente seu violão” (52). “Manduca de Catumby era um chorão solista e bom
acompanhador que pouco se utilizava dos bordões, porém fazia proezas nas cordas de
tripas, sendo por esta razão respeitado e admirado por outros chorões” (53). [Sobre
Chico Borges] “O violão nos seus dedos era um hino de encantar. Fazia no violão coisas
de suplantar. Tocava todos os tons com sublimes acordes, fazendo encantos de admirar”
(107).
primeira diz respeito ao próprio conceito de choro: enquanto Catulo conceituava como
aqueles que apenas “solavam”, mas também os instrumentistas “facões” (gíria da época
171
para os maus tocadores) e todos aqueles que participavam de alguma forma da roda,
fosse promovendo festas, fosse apenas ouvindo e sendo “amigo dos chorões”, caso do
jornalista Vagalume, citado anteriormente. Desta forma é possível afirmar que o seu
conceito de choro abrangia não só a prática musical, mas todo o contexto social em que
a música era realizada, todo o conjunto de “personagens” que rodeavam sua execução,
bem como todos os discursos que rodeavam aquele gênero musical; assim, em última
ponto de Cearense definir o bom músico pela sua capacidade de dominar esta práxis.
Ainda que Gonçalves Pinto tenha uma visão mais ampla sobre este conceito, é nítido o
fato de que o bom acompanhamento “com todos os seus acordes” (frase aliás bastante
recorrente no livro de Pinto e também citada por Catulo) era questão vital para a prática
do choro; assim, são muitas as citações no livro sobre este tema: Heitor Ribeiro,
“com todos os seus acordes” que fez o autor “ficar babado pelo gosto que sentia” (51); o
já citado Chico Borges “tocava todos os tons com sublimes acordes” (107); Zé
trechos: assim, ao ser convidado para uma roda onde não havia cavaquinhista, o autor
foi logo instado a tocar o instrumento, oferecido pelo dono da casa, pois “todos os
chorões sabem que este instrumento é de uma necessidade de grande valor” (50). Da
172
importância que os solistas davam aos bons acompanhadores, a ponto de alguns
Santos, que não o dispensava por cousa alguma; pois só ele conhecia o seu segredo”
roda: Raul Flautin solava “músicas de arrepiar carreira” e também “outras de fácil
constituía como uma práxis bem definida, uma espécie de linguagem falada por aqueles
de tentar definir esta práxis com palavras, daí o freqüente uso de locuções como “me é
ponto de vital importância para os músicos de choro e que normalmente passa ao largo
da bibliografia sobre o tema: este será um ponto abordado de forma mais aprofundada
Pinto diz respeito ao extremo cuidado com que este último se referia aos seus
primeiro. Aliás esta parece ser outra diferença marcante entre O Choro e os escritos de
(Catulo), com críticas ferozes a diversas personalidades da época (ver Carvalho, 2006:
173
44), transparece no livro de Pinto o cuidado de evitar a descrição de qualquer fato ou
Eis aqui a conclusão da segunda parte do meu livro onde descrevi sem o mínimo
ressentimento os personagens de muitos chorões só no intuito de valorizá-los. E se
muitas vezes de passagem toquei nas vidas intimas de algum deles foi tão somente,
relembrando fatos históricos que me ocorreram sem a mínima malícia de ofendê-
los pois me foi necessário assim proceder para dar o cunho real no perfil de cada
um só tendo em mira enaltecer fatos e costumes de todos os chorões dentro do tema
que iniciei e arquitetei em reviver o passado destes distintos companheiros
musicistas que se achavam esquecidos, porém, descrevi-os dentro dos limites da
veneração e do respeito pois não podia eu de modo nenhum descrever um mundo de
saudades sem me intervalinhar com a minha humildade perante as grandezas
artísticas valorizadas nos feitos de cada um destes grandes protagonistas da música.
Com estas minhas toscas linhas pretendo desfazer qualquer um juízo mau que
porventura possa se fazer de mim, ficando deste modo desfeito as maledicências
que, por um acaso possam ser dirigidas irrefletidamente por espíritos malévolos, na
certeza que só primei na elevação de fazer surgir os feitos dos meus saudosos
companheiros inolvidáveis, que se foram, e patentear uma homenagem e um
verdadeiro exemplo de confraternização aos chorões d'agora (112, grifo meu).
escrevendo não apenas para a posteridade, para que as “gerações futuras” soubessem
que “existiu essa grande falange de chorões que elevaram e inalteceram as músicas
companheiros de choro, como já apontado nos dois primeiros capítulos. O fato de haver
- pelo menos entre uma pequena comunidade de chorões contemporâneos do autor e que
ainda eram vivos em 1936 -, certa expectativa em torno do livro a ser publicado é
Venho por meio destas linhas dar uma satisfação aos meus amigos leitores
relativamente a demora da saída do meu livro O "Chôro" que deveria ter saído
muito antes do Carnaval. Assim não aconteceu por motivos muito independente da
minha vontade, pois, o prelo onde tinha que ser impresso quebrou [...] (id. 208,
grifo meu)
174
violonista Juca Russo, que presumivelmente se encontrava doente à época em que Pinto
escrevia, conforme se observa neste trecho: “Da minha mesa de trabalho, faço votos ao
bom Deus que tu fique [sic] completamente bom da tua moléstia, para a minha
Surge daí uma outra questão interessante e que diz respeito à identidade do
A questão poderia então ser colocada da seguinte forma: até que ponto estes
encontros musicais descritos por Gonçalves Pinto não fossem tão harmoniosos como
daria a entender o autor é citada por Carvalho (2006: 39), que exemplifica o fato citando
Os bairros mais prediletos dos chorões eram: Catumby, o bairro do agrião [...]. Os
catumbyenses eram também chamados de “papas-couves”. Os “choros” em
Catumby eram um tanto arriscados, por que ali se abrigavam os maiores valentões
da época, que constituíam os famosos partidos dos Nagôas e Guayamus, que não
raro se coligavam para uma verdadeira guerrilha com um outro partido denominado
“Santa Rita”. Do mesmo modo que os de Catumby se coligavam, também os do
outro bairro de Santa Rita se uniam ao pessoal da Saúde e Saco de Alferes, que
constituíram os bairros de Santo Cristo e Gamboa. Estas “pegadas” eram medonhas
e às vezes envolviam o pessoal da Glória e Catete. Eis a razão porque os “choros”
em Catumby eram um tanto perigosos. (116-117)
“pegadas” em alguns ambientes do choro? Não creio que se possa responder a esta
175
questão pode nos ajudar a entender melhor o processo de inserção do choro em outros
contextos culturais da época. Aliás, esta é sem dúvida uma característica das mais
históricos que não fazem mais parte do “senso comum”, ou que pelo menos não fazem
mais parte do conhecimento do leitor médio do século XXI, é preciso estar sempre
vital importância a menção aos “famosos partidos dos Nagôas e Guayamuns”: o autor se
refere aqui a duas maltas de capoeiras que dividiam o Rio de Janeiro no final do século
XIX. Segundo o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, havia lutas de grupos (ou
paralelos:
Cada freguesia do Rio tinha um grupo diferente. Quando outro invadia seu espaço,
era a senha para o confronto. Havia um controle informal, uma geografia inquieta
semelhante à atual guerra das drogas. Assim como hoje há, no Rio, o Comando
Vermelho e o Terceiro Comando, havia na época nagoas e guaiamus. Os nagoas
dominavam a periferia, são grupos de origem africana, e os guaiamus dominavam o
centro da cidade. Eles estavam disputando espaço o tempo todo e em confronto
constante também com a polícia. A partir de 1870, quando surgem os interesses
políticos, a polícia passa a ser tolhida pelo poder político. A política interfere na
polícia, assim como acontece hoje. E a polícia, ao invés de ser vetor da ordem,
passa a ser vetor da desordem, por conta da corrupção e dos interesses políticos
envolvidos na manutenção dos capoeiras (Soares, entrevista disponível em
http://www.angola-ecap.org/spip.php?article114&id_rubrique=1, consulta realizada
em 26 de agosto de 2008).
por Pinto em dois trechos de seu livro. O primeiro reforça a questão das brigas entres
176
O outro trecho deixa clara a relação entre a capoeira e a política da época:
mesmo tempo pouco estudada. Pela descrição de Pinto no Catumby é possível afirmar
que havia chorões que eram também capoeiristas e membros destas “facções” rivais.
Pinto cita dois ao longo de seu livro: Tadeuzinho, estafeta dos telégrafos, flautista de
cor parda “era um grande atleta no jogo da capoeiragem, de uma agilidade sem nome”,
e nunca havia sido derrubado por nenhum de seus colegas (28). Jorge Guerreiro era
violonista, solava muito bem polcas e valsas, sendo também “um grande capoeira”, que
“jogava no partido Nagô” (202). Uma vez que havia chorões capoeiristas, não há razão
para se supor que os conflitos entre as facções nagoas e guaiamus citados por Pinto não
se estendessem também aos músicos que faziam parte desta interseção entre choro e
capoeira, razão pela qual Carvalho (2006: 40) contesta a afirmativa do “Animal” de que,
em brigas como estas “todo mundo podia dar e apanhar, menos os músicos que eram
Em todo o caso, a não ser pelo fato das disputas entre maltas de capoeiras, o
que o autor se esmera em apresentar ao seu público é uma comunidade que ainda que
comum, a linguagem do choro, presente em bairros tão distintos como Botafogo, Jardim
177
Botânico e Gávea (os bairros até hoje considerados como “nobres” no Rio de Janeiro)
até a Cidade Nova e os subúrbios da Central do Brasil, como vimos no capítulo dois.
afirmamos anteriormente, Catulo guardou ao longo de toda sua vida uma postura hostil
de “cancioneiros” (ou seja, com letras para músicas em voga na época) de grande
sucesso popular nas décadas de 1910 e 1920, lançados em grande parte pela livraria
Quaresma. É muito importante, entretanto, que conceituemos esta modinha: ainda que
com raízes no início do século XIX (ver Sandroni, 2001) a modinha de Catulo é
essencialmente a música dos choros (valsas, schottischs, polcas, etc) com letra. Pelo
livro de Gonçalves Pinto sabemos que ela fazia parte do ambiente do choro da época: há
178
Da mesma forma, Vagalume, embora em uma posição diametralmente oposta
à de Catulo, já que se colocava como ardoroso defensor do samba praticado por alguns
fonográfica da época. Esta intenção fica clara logo no prefácio, onde o autor declara que
Para Carvalho (2006) esta passagem evidencia o fato de que em 1936 Catulo
ultrapassado” (Carvalho, 2006:22). Mais do que isso, entretanto, creio ser possível
afirmar que o trecho citado acima representa uma ressonância do discurso de Catulo na
voz do autor, pois, como veremos, Gonçalves Pinto nem sempre adota o mesmo
discurso ao longo do seu livro. Esta linha de discurso também aparece na descrição de
Zé Gávea estaria “hoje [1936] afastado por não se conformar, de maneira alguma, com
179
obrigado o chorão acima a retirar-se à vida privada” (203). Antonio Maria era também
grande flautista que passou a tocar saxofone “muito a contragosto dos seus inúmeros
[sic] nos fox-americanos” (165). Até que ponto estes discursos representam o
interessante de ser colocada, já que em diversos momentos o autor exalta o maior meio
Assim, logo na primeira parte do livro Gonçalves Pinto afirma que não citará
artistas de rádio, por serem eles já bastante conhecidos do público em geral (42).
Entretanto este aviso não é feito com o mesmo tom de discurso usado na descrição de
Quanto aos artistas do Radio deixo de mencionar seus nomes pois todos elles pode-
se dizer, que são artistas de hoje, e que todos os conhecem os seus feitos, e
gloriosos, através deste aparelho que é a admiração do mundo inteiro. Todos
conhecem bem, o quanto merecem não só pelas suas encantadoras vozes, como
também pelos os instrumentos que os acompanham pois que são de uma
sublimidade impossível de descrever-se.
pernambucano Luperce Miranda, músico com grande atuação nas rádios e nas
suas composições “belíssimas, pois me extasio ouvindo-as no rádio que tenho na minha
180
Francisco Alves, alvo principal de Vagalume, é descrito como “primus interpares dos
cantores da atualidade”, “um farol que ilumina o meio aonde ele é apreciado com
Progrida pois cada vez mais, meu bom Francisco Alves, para que, daqui a meio
século, possa ser descrito, pelos chorões da minha tempera, os teus feitos, fazendo o
estímulo na phalange que pertences, pelo modo e maneiras que cantas, que tocas e
interpreta as músicas genuinamente Brasileiras. (134)
ainda, é como se o autor não visse no rádio uma verdadeira ameaça à existência do
choro, e tivesse muito consciente de que havia uma linha histórica que passava dos
chorões antigos aos chorões “modernos”, estes últimos já imersos na indústria cultural
da época. Assim, é muito significativo que o autor, ao falar sobre a polca, afirme:
Mário Alvarez x Nelson Alves — Gonçalves Pinto traça uma linha histórica dos
prática musical (no caso a polca) não se modificava, ainda que os “modernos”
181
daqueles em que atuavam os “antigos” — os bailes, as serenatas e as rodas de choro.
Fica aqui muito clara esta característica de “historicização” dos gêneros musicais,
apontada por Moraes como uma das características destes primeiros memorialistas da
música popular urbana. Apenas é de se perguntar por que o choro parece ter sofrido
menos com o choque da indústria fonográfica do que o samba, pelo menos quando se
compara as visões de Alexandre Gonçalves Pinto e de Vagalume sobre o tema. Para este
indústria cultural, o samba teria perdido também muito de suas características musicais:
Não queremos este samba dos concursos officiaes, com orchestra de companhia
lyrica...O samba, o tradicional samba, deverá ser executado com todos os seus
instrumentos próprios: a flauta, o violão, o réco-réco, o cavaquinho, o ganzá, o
pandeiro, a cuica ou melhor o omelê e o chocalho. Neste andar, exigirão amanhã
uma prima-dona, uma soprano-leigeiro, um tenor, um barytono e um baixo, com o
respectivo corpo de córos, para cantarem, e umas bailarinas russas para dansarem o
samba. (id: 157)
cultural, tema abordado no trabalho de Paulo Aragão (Aragão, 2003). Para este autor, “o
repertório popular, na forma como praticado por seus agentes originais, parecia revelar
indústria fonográfica.” (id: 29). Tais “defeitos”, é preciso que se entenda, eram na
maioria das vezes aspectos musicais que não se adequavam ao padrão imposto pela
nova indústria: características de emissão vocal, “forma musical”, conteúdo das letras
182
além de estarem ligados frequentemente a idéia de “rudeza” e “primitivismo”,
forma, a figura de arranjadores que “filtrassem” estes elementos “impuros” era de vital
importância para a indústria que nascia: é significativo se notar, por exemplo, como as
primeiras gravações dos sambas do Estácio, realizadas por Francisco Alves com
Este é então um ponto central para entendermos a razão pela qual o choro
parece ter “sofrido” menos no seu processo de incorporação à indústria fonográfica: por
seu próprio caráter instrumental e pelo fato de que suas matrizes (representadas em
grande parte pelas danças européias como a polca, a valsa, etc) estavam mais próximas
dos novos padrões estéticos exigidos pelo rádio e pelo disco, os instrumentistas de
choro foram os verdadeiros alicerces desta nova indústria, muitas vezes funcionando
“regionais”, aparece neste testemunho do músico César Farias, citado por Aragão
(2003)
indústria fonográfica da época parece ser explicada não por uma antinomia entre o
183
discos, mas sim por uma tentativa de estabelecer uma linha de continuidade histórica
entre estes dois universos. Se por um lado o autor apreciava os “novos” intérpretes e os
composições dos chorões de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX ,
Lacerda:
Bem poucos farão o que Benedicto faz, com seu sopro admirável, com uma perfeita
teoria musical, de fazer o mais cético das criatura entusiasmar-se ao ouvi-lo. Daqui
destas toscas linhas, vou fazer um pedido a Benedicto, de dar expansão as musicas
nunca esquecidas dos sempre lembrados e chorados flautas, que foram Callado,
Viriato, Capitão Rangel e Luizinho, todos estes foram planetas, que passam depois
de centenares de annos. Talvez o grande flautista, não executes estes choros, pela
difficuldades em obtel-as, procurando na rua Mattos Rodrigues n. 31, o grande
professor Cupertino, pois tem o mesmo no seu caderno quasi, ou todas as musicas
destes immensos chorões, que os seculos não trarão mais. Tenho assim a plena
certeza, que o bom do Cupertino, cederá pois terá muito prazer em ouvir de um
musico como Benedicto, expandil-a pelo Radio, não só perpetuando a memoria
delles, como fazendo o encanto da população, que pelo Radio se extasiará ao ouvir
esas bellissimas musicas, que muito agradecerá ao Benedicto e o escriptor destas
apoucadas linhas. (148, grifo meu)
diretamente àquele que era sem dúvida um dos maiores expoentes do choro na época
áurea do rádio para solicitar a execução do repertório dos chorões antigos, chegando
partituras de choro. Seus receios não eram infundados, uma vez que realmente boa parte
do repertório do choro do período de final do século XIX e das duas primeiras décadas
Como veremos no capítulo quatro tal ruptura só não foi maior porque alguns poucos
“pioneiros”.
184
Há mais um aspecto importante a ser ressaltado na relação entre os chorões
descritos por Gonçalves Pinto e a “nova” geração “profissional” que integrava os casts
ainda segundo Sandroni, a base do novo paradigma rítmico do samba surgido no bairro
point tanto para o samba como para o choro, muito embora não haja até hoje, a meu
Benedito Lacerda neste processo; entre estas fontes incluem-se discursos de “nativos”,
1
Não há espaço neste trabalho para uma caracterização mais detalhada de estudos sobre cometricidade e
contrametricidade, nem sempre utilizados com o mesmo viés por etnomusicólogos como Kolinski e
Arom, conforme nos aponta Sandroni (2001:27). Utilizo-me da conceituação de contrametricidade de
Sandroni em parte pelo fato de que ela traduz a ideia de “sincopação” presente em discursos de músicos
de choro da atualidade. O “choro-sambado”, surgido a partir da atuação de Benedito Lacerda e,
posteriormente, Jacob do Bandolim, seria aquele baseado em padrões de “batida de tamborim”, com
acentuação na segunda, quarta, sexta e oitava semicolcheias respectivamente.
185
papel de criadores desta nova forma de choro, caracterizado por eles como o “choro-
sambado”:
A geração de meu pai e meu tio [os flautistas Álvaro e Altamiro Carrilho
respectivamente] identificava no Benedito o nascimento de uma nova forma de se
acompanhar o choro, que seria este choro-sambado. Essa forma de se acompanhar
era, de forma geral, baseada na batida do tamborim. A partir do Benedito e seu
regional, qualquer um que não tocasse seguindo este padrão “balançado” era
classificado como ‘quadrado’. Ou seja, quem só tocava no padrão antigo, o padrão
da polca, era considerado ‘quadrado’ (depoimento do violonista e arranjador
Mauricio Carrilho ao autor desta tese, em 10 de janeiro de 2011)
rítmico. Iniciando sua carreira musical no ano de 1930 com o grupo intitulado
no tamborim (Zanardi, 2009: 25) – Benedito iria imprimir, logo em suas primeiras
gravações do conjunto, aliás, são de sambas e não de choros, todos já com o novo
186
Certamente a audição deste disco pelos chorões da “velha-guarda”, incluindo o próprio
este novo estilo de choro, enquanto o padrão de acompanhamento da polca seria, cada
como em seus espaços de sociabilidade, foi certamente uma das principais razões para
propagação do choro.
também o fato de Mello Moraes ser citado ao longo do livro como participante do
ambiente das rodas de choro. Cumpre agora estabelecermos com maior profundidade
aprofundada sobre a forma como o carteiro se refere, ao longo de seu livro, a uma
187
possível ascendência africana. Se no prefácio Gonçalves Pinto se refere aos “costumes
bahianos” que teriam sido trazidos por “nossos queridos antepassados africanos”, há,
Braga (2002: 210) o carteiro procura filiar o choro às bandas de música formadas por
escravos das plantations de cana-de-açúcar e café do século XIX. Mais do que isso, é
possível constatar que Gonçalves Pinto atribui à música destas bandas um fator
O verbete começa com uma pequena explicação geral sobre o caráter destas
As organizações das Bandas de Musicas nas Fazendas, para tocarem nas festas de
Igrejas, nos, arraiaes, longe e perto das antigas villas e freguezias, que são
consideradas hoje, cidades, davam um cunho de verdadeira alegria n'aquelle meio
tristonho, mas, sadio, sem instrucção, sem cultivo onde imperava a soberania dos
fazendeiros, grandes nababos, chefes dos partidos politicos, liberal, e conservador
(110-111, grifo meu).
capoeiras por parte dos “carrascos fazendeiros” para garantir votos à custa da força
física são então enfatizados, para que logo depois o carteiro passe a descrever as bandas
de música como um contraponto a este ambiente dominado por tensões. Ele começa por
enaltecer a qualidade dos músicos escravos, ainda que atribuindo o qualificativo “rude”
188
Logo depois Gonçalves Pinto atribuirá à música produzida pelos barbeiros o
Foi depois destas organisações de Bandas de Musica, que se foi definando as iras
dos Fazendeiros, que afrouxaram as algemas e os grilhões das correntes de
martyrios dos infelizes escravos. Tal foi a magia das notas maviosas da musica que
conseguiu abrandar os duros corações dos grandes escravocratas, transformando
em alvorada de alegria as senzalas, que começaram a serem illuminadas pelo brilho
da estrella da Redempção, e os Abolicionistas, n'uma inspiração divina começaram
a adubar o canteiro do amôr e da igualdade, onde foi plantada a semente da flôr da
Liberdade, regada e cultivada pela mão dos grandes obreiros, esse bella apotheose
que foi a Lei Aurea de 13 de Maio de 1888 (111, grifo meu)
teria o poder de “amaciar” as duras relações entre senhores de engenho e escravos não é
óbvio que esta relação entre música e sociedade não era apontada como uma simples
relação de causa e efeito como no pensamento de Gonçalves Pinto, mas ainda assim
matriz africana seria em parte responsável por uma “suavidade dengosa e açucarada”
O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época [ou seja, a época
colonial], uma acentuação singularmente energética do afetivo, do irracional, do
passional, e uma estagnação, ou antes uma atrofia correspondente das qualidades
ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário
do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente. À
influência dos negros, mais ainda, e sobretudo, como escravos, essa população não
tinha como oferecer obstáculos sérios. Uma suavidade dengosa e açucarada invade,
desde cedo, todas as esferas da vida colonial (...). O gosto do exótico, da
sensualidade brejeira, do chichisbeísmo, dos caprichos sentimentais, parece fornecer-
lhe um providencial terreno de eleição e permite que, atravessando o oceano, vá
exibir-se em Lisboa, com os lundus e modinhas do mulato Caldas Barbosa (Holanda,
1999: 61)
esse “amolecimento” das relações entre senhores e escravos. Ora, o estudo de Sandroni
189
(2001: 39-61) já nos mostrou o quanto há de “construção coletiva” na atribuição de
características puramente africanas a gêneros como lundus e modinhas. Por outro lado,
Holanda na criação de “um espaço que reconhecia e valorizava a presença ativa dos
folclórico, Mello Moraes pode ser visto, segundo Martha Abreu (1998: 186), como um
brasileiras, incluindo aí as de origens negras e indígenas, muito embora sua obra não
deixasse de refletir os conflitos e os preconceitos das elites sobre estas populações. Seu
partes: festas populares, festas religiosas, tradições e tipos de rua — além de ser um
de Mello Moraes no livro de Gonçalves Pinto? Sabemos que Alexandre conheceu Mello
Moraes e que chegou mesmo a freqüentar rodas de choro em sua casa. Ao descrever o
“professor de música” Aníbal, que era “íntimo do sempre chorado, e lembrado dr. Mello
Moraes” (39) o autor afirma ter tido “a felicidade de acompanhá-lo [Aníbal] em muitos
e bons chôros na casa do grande intelectual Mello Moraes, que muito o admirava e o
190
estimava. Annibal, era o ensaiador do célebre Bumba meu boi, que muito gosto e prazer
trabalho de Carvalho (2006:27), que é bastante rico de significações, e por isso creio
que mereça ser desenvolvido aqui. O trecho, intitulado “Bumba meu boi” pode ser
resumido da seguinte forma: levado por seu amigo e também carteiro Candinho Ramos
— que era também compadre de Mello Moraes — para a festa do “Bumba meu boi” que
convidado para representar o papel do boi, “cargo” que exigia alguém de confiança, já
condenável uma vez que o boi “custava muito dinheiro”. Ciente destes cuidados o
“Animal” responde ao seu amigo Candinho: “não tenho receio pois sempre fui
cuidadoso em tudo que assumo responsabilidade!”. Passamos mais uma vez então a
palavra ao autor:
Este é sem dúvida um trecho que nos remete mais uma vez ao jogo dialético
milícias, principalmente pela forma algo cínica com que Gonçalves Pinto responde às
191
críticas de seu amigo Candinho, cinismo que o aproxima do anti-herói Leonardo2. Mais
boi” no Rio de Janeiro daquela época (“era o único que conservava a tradição de todas
estas festas antigas” tendo o bumba-meu-boi desaparecido na cidade após sua morte,
nos diz Pinto) a figura do boi deveria ser reverenciada como um verdadeiro símbolo das
tradições populares, enquanto que para o carteiro Alexandre Gonçalves Pinto o boi “era
para escangalhar, pois (...) dando cabeçadas, coices, etc, o bicho tinha que virar
frangalho!” (14). Em última análise o trecho pode servir de exemplo para evidenciar o
“do lado de fora” como um espectador e zelando para que o artefato cultural (o boi no
caso) fosse preservado. Já a postura de Gonçalves Pinto só pode ser analisada pelo mote
bakhtiniano da festa como possibilidade de abertura para uma outra dimensão da vida,
que não era certamente a “vida real”: assim, ele não estava simplesmente representando
o boi, mas sendo o próprio boi: “pois ia pelas ruas afóra convencido mesmo que era um
boi de verdade bravo, pulando, dando marradas a torto e a direito em todas as pessôas
que passavam e nas que faziam parte da comitiva”. (id., ib. grifo meu)
2
Veja-se por exemplo o trecho do capítulo VI, em que Leonardo, instado pelo padrinho a ser padre, foge
de casa, acompanhando uma procissão onde “esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou”,
acabando por dormir em um acampamento de ciganos (do qual, aliás, Almeida nos dá uma vivíssima
descrição da dança do fado). Voltando a casa no dia seguinte, trava o seguinte diálogo com o padrinho:
“Menino dos trezentos... onde te meteste tu?” “Fui ver um oratório... Não diz que eu hei de ser padre?”
(Almeida, 1977: 21)
192
Moraes e freqüentava-lhe a casa, bem como outros músicos como o próprio Gonçalves
influências da obra de Mello Moraes no livro de Pinto? Mais uma vez, não creio que se
possa dar uma resposta definitiva à questão: o mais que podemos é tecer comentários
autores. É preciso também atentar para as diferenças de datas entre os escritos: Mello
escrito na década de 1930. Dessa forma, uma explicação sobre as “origens” da música
conforme assinala Braga (2002: 210-215), no “verbete” intitulado “As nossas festas” do
livro de Gonçalves Pinto. Assim como no prefácio, temos aqui um grande número de
Moraes são muito mais extensas — há um capítulo para cada uma das festas, enquanto
no livro de Pinto elas são descritas em um único tópico. Terá havido influência de um
autor para outro? É algo difícil de ser respondido, mas julgo pertinente fazer duas
observações: a primeira é notar como o verbete “As nossas festas” aparece de forma
“deslocada” no livro de Pinto: é praticamente a única vez em todo o livro que o autor
cita estas manifestações populares: elas não tornam a aparecer nem como “pano de
fundo” das descrições dos chorões, que ocupam a maior parte do livro (com exceção do
193
constituíam o “ponto de ligação” entre o choro e as festas momescas). Esta constatação
nos leva ao segundo ponto: o de como as descrições das festas do calendário anual tem
Veja-se por exemplo uma das frases iniciais deste tópico: “Quem é capaz de ter no
esquecimento as festas de fim de anno das épocas remotas que começavam pelo Anno
Bom (...)”, e também a citação final: “Eis aqui em pallidas e cinzeladas palavras a
transcripção das grandes festas dos tempos que passaram, festas estas que tinham
Este mesmo caráter saudoso permeia a descrição de Melo Moraes, como se vê neste
trecho, carregado de ironia pela modernização dos costumes: “Mas o Brasil é um país
À parte a questão das festas populares, creio que podemos encontrar em outras
obras de Mello Moraes pontos que poderiam ser mais facilmente comparáveis às idéias
publicado em 1900, onde o autor faz uma veemente defesa da música popular urbana
carioca, tendo a modinha e o violão como tema principais. Este texto é deveras
pelo meio intelectual da época” (Abreu e Dantas, 2007:127). Da mesma forma que
Abreu e Dantas (id), também não pretendo aqui combater estas idéias, nem tampouco
194
afirmar que elas seriam completamente falsas, mas apenas abrir um campo de
incluindo aí o próprio Mello Moraes. De cara nos chama a atenção uma parceria entre
é classificada no livro como “Canção Bahiana”. A letra de Mello Moraes poderia ser
confundida com qualquer letra de samba da década de 1930, pelo caráter de valorização
da mulata:
música brasileira, começando com a música trazida pelos portugueses “nos tempos das
caravelas”, música que iria se alterar ao ser colocada “em frente de outras raças, isto é,
do índio e do negro”. Mais uma vez teríamos aqui a idéia tão presente na historiografia
da música popular a respeito do mito das três raças. Assim, gêneros como o fado
e dos “batuques dos terreiros” (Mello Moraes, 1900: 16). Depois de fazer uma espécie
outros, Caldas Barbosa, José Mauricio e Cândido Inácio da Silva — finalmente o autor
aponta o que teria sido o período mais importante da criação musical brasileira: o
período de 1850 a 1870, quando a modinha brasileira teria “desertado” dos paços e dos
195
salões para “democratizar-se”, passando às esferas das festas populares, das serenatas
justamente aquilo que seria conhecido como o terno do choro: a flauta, o violão e o
ápice da música brasileira tangida por instrumentistas populares que Mello Moraes
conhecidos pelo crisma popular como Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, Manezinho da
Lisboa, o Rangel, o Saturnino, o Luizinho, o Dominguinhos Reis, etc” (id: 26). Ora,
muitos destes nomes são citados também por Gonçalves Pinto e Catulo, o que confirma
mais uma vez a aproximação entre o intelectual e os cronistas populares: mais do que
isso, o ponto central de contato entre Gonçalves Pinto e Moraes parece ser a
identificação da música dos trovadores populares, a música urbana que se fazia com
primeiro identifique esta música como choro e o segundo ora como modinha, ora como
serenatas — talvez pelo fato de que o primeiro termo tenha se consolidado com mais
força apenas nas duas primeiras décadas do século XX. Cito mais um trecho de Moraes:
E nesta Capital, nos dias de festas religiosas ou nacionais, aos sábados ou ao acaso
da semana, na Praia Formosa, na Cadeia Nova, em São Cristóvão, em Botafogo,
etc., as serenatas circulavam incessantes, os trovadores de esquina estropiavam
versos e toadas, de violão a tiraloco, boiando nas ruas aos relentos estivos. Isso,
porém, longe de rebaixar as nossas cantigas, confirmava a soberania das
produções que, caídas de outras alturas, iam ainda ecoar nas profundezas mais
obscuras da alma popular. (id., ib., grifo meu)
196
Talvez possamos arriscar dizer que esta idéia traz elementos da tese
estrangeiros (as produções “caídas de outras alturas”) a modinha não iria se rebaixar,
mas pelo contrário, se legitimaria como uma das mais importantes criações musicais
O autor prossegue o texto afirmando que, ainda que seu período áureo já
tivesse passado (não nos esqueçamos que Mello Moraes escreve no ano de 1900), a
Após citar ainda mais alguns nomes de chorões que também estão presentes no
livro de Pinto, como Sátiro Bilhar, Juca Vale, Cândido Ramos e Eduardo das Neves,
Moraes conclui apoteoticamente: “Como são belas as nossas músicas! Como são suaves
período de 1850 a 1870 — como mais alta criação da música brasileira. Este
sido regra entre os intelectuais da época. Veja-se, por exemplo, Guilherme de Melo,
que, em seu clássico A Música no Brasil, publicado em 1908, praticamente ignora todo
197
música de concerto; b) pelo reconhecimento do papel de compositores que poderiam ser
classificados como “populares urbanos”, tais como Chiquinha Gonzaga, Costa Júnior (a
negro Eduardo das Neves, como maiores representantes desta música por volta do ano
de 1900; c) pela questão da música de mercado: ainda que não dito explicitamente é
próprio fato de ter editado diversos livros com compilações de letras e músicas
também insere o intelectual Mello Moraes neste contexto comercial da época; d) pelo
mantinham à época da virada do século esta “antiga seiva” dos tempos antigos: e
também pelo caráter apologético de quem de certa forma conclama seus leitores a não
deixarem morrer esta música, como se percebe na frase final da introdução: “Fade-nos o
destino que possamos aguardar, ao tom das serenatas e de nativas cantilenas, as auroras
Como se percebe, são questões que nos permitem ver a já citada oposição
entre a intelectualidade e a música popular da chamada belle époque sob outros ângulos.
“manifesto” para que esta música fosse preservada, etc. Talvez possamos concluir
dizendo que nos trabalhos memorialísticos realizados por estes diversos atores sociais
198
da época — o intelectual Mello Moraes, o poeta “semi-erudito” Catulo da Paixão
199
Capítulo 4
A práxis musical em O Choro: aspectos do aprendizado, transmissão
musical e acervos de partituras
frequentemente deixados de lado nos poucos estudos sobre ele e que dizem respeito
exatamente a questões musicológicas que podem ser aferidas através de seu relato. O
primeiro tópico abordará a questão da transmissão musical, ferramenta teórica que será
de repertório era passado e de que modo tais aspectos são enfatizados por Gonçalves
analisar uma faceta ainda pouco explorada nos estudos sobre o choro: a complexa e
primeiras décadas do século XX? Esta será a nossa questão principal, que de certa
forma comporta em si outras questões: de que modo se dava o aprendizado musical dos
utilizado? De que modo o repertório era transmitido? Qual o papel dos registros escritos
estes dois processos? Como inserir neste processo outros suportes como o impresso, o
gravado e o aural?
algo como a opção entre mandar uma mensagem por telefone ou pelo correio, para
utilizar um exemplo do autor. Entretanto, esta aparente dicotomia, que teria sido um
enganosas: por um lado, a noção de “transmissão escrita” teria como pressuposto a ideia
Desta forma, reduzir o complexo fazer musical — que inclui aspectos como alturas
seria algo no mínimo questionável. Por outro lado, a noção de “tradição não escrita”
201
seja, memória) de melodias fixas — noção que excluiria qualquer possibilidade de
entre transmissão “escrita” e “não escrita” não pode ser sustentada na prática: mais
Charles Seeger e Curt Sachs, que já questionavam esta dualidade desde a década de
1950. Para o primeiro, o que havia de mais interessante na tradição oral não era o fato
quando comparado à tradição escrita, mas o fato destas duas formas de transmissão
estarem inextricavelmente ligadas. Já para Curt Sachs, a transmissão cultural não podia
ser reduzida a uma relação dual, e passaria necessariamente por quatro instâncias: a
oral, a escrita (ou manuscrita, mais precisamente), a impressa e a gravada. Estas quatro
o modelo de Sachs, para algumas culturas a tradição oral poderia estar muito mais
próxima do escrito do que o impresso: quando há, por exemplo, uma grande diversidade
tradição oral — pelo simples fato de que o trabalho de cada copista estará condicionado
não só a sua interpretação pessoal da peça musical, como a outros fatores como
202
dos acervos de choro e para a questão da transmissão no gênero: voltaremos a ele
posteriormente.
um nível mais profundo, poderíamos pensar em um repertório não como uma série de
repertório conserva (ou não) estas unidades intactas, e como elas são combinadas e
diferentes culturas (Nettl, 1983: 190). Este conceito também será particularmente útil
Voltando ao nosso objeto de estudo, parece ter sido senso comum entre os
dava através da partitura, esta deveria ser apenas um suporte para a memorização da
estrutura básica da música, a ser “completado” por outros aspectos não escritos como
escrito, pelo menos em seu lugar de práxis, a roda do choro. Veja-se por exemplo, o
depoimento a este respeito dado por Jacob do Bandolim em seu depoimento ao Museu
da Imagem e do Som:
(...) há dois tipos de chorões: há o chorão de estante, que eu repudio que é aquele
que bota o papel pra tocar choro e deixa de ter a sua... perde a sua característica
principal que é a da improvisação; e há o chorão autêntico, o verdadeiro, aquele que
pode decorar a música pelo papel e depois dar-lhe o colorido que bem entender, este
que me parece o verdadeiro, autêntico, honesto chorão (Jacob do Bandolim, 1967).
203
Se isso é verdade em muitos aspectos, não se pode negar por outro lado a
importância que os próprios chorões das primeiras gerações davam ao registro escrito,
em detrimento dos que não liam partitura: Videira, por exemplo, era um grande flautista
“apesar de tocar de ouvido”, ao passo que Braguinha “tocava muito mal e de ouvido”.
Por outro lado, havia bons chorões que não eram capazes de tocar nada sem a partitura.
era chorão de fato, conhecia bem música, mas se fosse convidado para acompanhar
um choro de ouvido, não dava nada. (...) Nos pagodes onde ia tocar, desde que
houvesse parte para ler, [tocava] a música sem pestanejar e às vezes fazendo até
floreados nos intervalos das mesmas. (...) Gilberto gostava muito que os pagodes
fossem até de manhã, pois gostava muito de um chocolate com biscoitos ou pão de
ló (...) Assim findou-se este herói da gastronomia.
“pagodes” onde havia “partes para ler”: o que se infere do trecho citado é que a
presença de músicos lendo partituras em festas era algo relativamente comum, fato que
seria impensável, ou pelo menos condenável, em uma roda de choro a partir da segunda
metade do século XX, como nos mostra o depoimento de Jacob. O que se pode concluir
a partir disto é o fato de que os modos de transmissão oral e escrito parecem estar
presentes desde o nascimento do gênero, e não é por acaso que o tema apareça na obra
1940 a 1960, Jacob do Bandolim. Na comparação entre estes dois podemos perceber
que para os chorões descritos por Pinto a leitura de partitura era algo tão valorizado
como o fato de se tocar “de ouvido”. Assim, se, por um lado, o flautista Videira era um
204
grande chorão, “apesar de tocar de ouvido”, Gilberto Bombardino não deixava de ser
um “chorão de fato” apesar de precisar das “partes pra ler” durante as rodas.
como o oficleide e o bombardino: tais contracantos eram muitas vezes lidos, conforme
demonstra o trecho citado e também o fato de que, como se verá, muitas “partes” de
manuscritos que nos chegaram até os dias atuais (como o acervo do trombonista
desapareceram, sendo a maior parte das vezes improvisadas pelo violão de sete cordas
(nas poucas partes em que o contracanto grave do violão faz parte da música
adiante, existem pouquíssimas partituras nos acervos manuscritos que nos chegaram da
papel destes instrumentos sempre foi descrito como de fundamental importância pelos
relatos da época.
sendo) algo que contemplava apenas alguns aspectos do fazer musical — a melodia, o
205
gênero a que a música pertencia etc.; outros aspectos, como a condução rítmico-
na prática musical. Esta realização pode ser caracterizada como o ato de escolha, no
aquele que ao mesmo tempo dominava ao máximo este vocabulário e que sabia fazer as
todos os seus acordes” de que nos fala Pinto), o acompanhador teria que escolher e
momento da roda. Esta era (e continua sendo) parte fundamental da dinâmica da roda
de choro. O instrumentista de violão e cavaquinho que fazia escolhas erradas, fosse por
da oralidade, temos várias razões para apontar que a transmissão das melodias das
músicas de choro era frequentemente feita através do registro escrito. De fato, a grande
206
quantidade de trechos em que Gonçalves Pinto se refere a acervos manuscritos de
uma rede de cópias manuscritas que funcionava de forma paralela à já intensa indústria
dedicava em grande parte justamente à venda de músicas de gêneros que faziam parte
do universo do choro, como polcas, schottischs, valsas, etc. Neste ponto, podemos fazer
século e com indústria fonográfica a partir da década de 1930: como visto no terceiro
esta crítica venha muitas vezes como “ecos” da visão de jornalistas e músicos da época,
como o já citado Vagalume), na maior parte das vezes sua visão é bastante elogiosa e
entusiasta aos artistas que levavam o choro ao ambiente do rádio, como Luperce
Miranda e Benedito Lacerda. Sua crítica recai somente no fato de que os artistas de
choro do rádio pouco executavam o repertório dos “antigos chorões”, razão que o leva
livro. Assim, enquanto na década de 1930 este repertório dos compositores “antigos”
era tocado pelos chorões que preservavam esta memória musical (vários deles
apontados por Gonçalves Pinto como ainda em atividade neste período, como era o caso
ao repertório de músicas de choro veiculadas pelo rádio (de solistas então em evidência
como os já citados Benedito Lacerda e Luperce Miranda, além de outros como Severino
Rangel, Luiz Americano, etc), podemos dizer que nas primeiras décadas do século as
muitas vezes suprindo lacunas que esta última apresentava principalmente no que
207
concerne a este grupo de instrumentistas populares. Estes aspectos serão aprofundados
décadas do século XX no Rio de Janeiro? Embora não haja uma resposta direta a esta
questão, o livro O Choro de Alexandre Gonçalves Pinto nos fornece alguns elementos
processo multifacetado que passava por instituições de ensino oficiais e não oficiais, por
fazer uma análise um pouco mais aprofundada sobre este complexo processo de
podem ser resumidas no dilema entre a adoção de um esquema de ensino europeu por
1
Em 1937, com o advento do Estado Novo, passou a se chamar Escola Nacional de Música e
posteriormente Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
208
música e de uma identidade brasileiras, meta perseguida tanto pelos nacionalistas como
Gallet (para Nepomuceno, ver Pereira, 1995; para Gallet, ver Bardanachvili, 1995).
Talvez um fato emblemático desta tensão seja constatarmos que no século XIX
Mesquita, Joaquim Callado e Duque Estrada Meyer — todos citados e destacados por
posteriormente a este ponto: por ora cumpre apenas assinalarmos que havia na
segundo Leme (2006: 158), a segunda metade do século XIX teria sido o período em
209
das oficinas de música impressa em funcionamento no Rio de Janeiro: preparadores
de chapas; comerciantes de chapas, prelos, papel e tinta; artistas gravadores;
técnicos em prensagem; copistas de música; compositores que se dedicavam à
música ligeira; professores de piano, canto e outros instrumentos (...)
Almanak Laemmert, publicado entre 1844 e 1889 pelos irmãos Laemmert. Fundadores
autores brasileiros e editaram por décadas este almanaque que é hoje considerado um
período2. Através do Almanak observamos que era grande a oferta de professores para
diversos instrumentos, entre os quais o piano (sem dúvida o mais popular), mas também
para canto, violão, instrumentos de sopro, harpa, entre outros. O Almanak também
volume de 1844 traz em seu índice a categoria geral “Professores de língua, música e
sciências”, o volume de 1847 já traz no índice uma categoria específica que será
aparecem pela primeira vez também neste volume de 1847 — um certo Mariano Brunni,
residente à rua São José n. 60 dava aulas de “harpa e violão”, enquanto que Demétrio
Rivexa, residente à rua do Espírito Santo n. 2 dava aulas de “piano, violão e rabecca”.
2
O Almanak Laemmert foi digitalizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e está disponível para
consulta através do site http://www.crl.edu/content/almanak2.htm. Consulta realizada em 2 de outubro de
2009.
210
São Cristóvão”) e Henrique Alves de Mesquita (“encarrega-se de funções de igrejas,
teóricas e didáticas para diversos instrumentos. Uma das mais importantes casas
editoras do Rio de Janeiro deste período — a Casa Bevilacqua, fundada em 1839 pelo
genovês Isidoro Bevilacqua — teve seu catálogo de 1913 estudado por Leme (2006).
Dentre as mais de 3.500 obras impressas por essa editora no período de 1839 a 1913, há
um número considerável de métodos e obras teóricas. Dentre estas, Leme (2006: 304)
contabiliza 105 métodos para piano, 25 métodos de leitura e solfejo, 24 métodos para
violino, 5 métodos para bandolim, 2 métodos para violão, 7 métodos para diversos
autora salienta que um destes exercícios, intitulado “Escalas para flauta de 1 chave”
que o primeiro tivesse mais popularidade que o segundo, apenas demonstra o quanto o
aprendizado deste último se dava por outros meios que não o impresso. Este desnível se
acentua ainda mais quando comparamos o número de obras musicais editadas para os
dois instrumentos: em todo este período há apenas uma obra editada para violão solo e
três para canto acompanhado de violão, enquanto há centenas de partituras para piano
211
Ainda assim, os métodos e exercícios para violão tinham baixa vendagem,
Uma obra intitulada Escalas para violão, editada pela Bevilacqua, teria vendido entre
1894 e 1918 apenas 374 exemplares, segundo os registros de venda da editora estudado
por Leme (idem: 317). A baixa vendagem fez com que os editores procurassem elaborar
instrumentistas de violão:
tablatura musical, seria cada vez mais popular ao longo do século XX. Feito este
preâmbulo, voltamos agora à nossa questão inicial: de que forma se dava o processo de
do já mencionado flautista Videira, por exemplo, este elemento está presente: Videira
era charuteiro e bom flautista, pois “apesar de tocar de ouvido”, sabia “dizer na sua
flauta o que dizia [sic] os outros, sabendo música”. Sendo grande tocador, tinha um
grave defeito:
212
se qualquer dos instrumentos desse uma nota fora da música, em qualquer
passagem, [Videira] parava a flauta, o que era uma decepção para os convidados, e
então logo perguntava ao que errou: ‘o senhor sabe tocar?’, o que respondia o
interpelado, ‘toco pouco, e a minha prática é quase nenhuma, e depois o senhor toca
com muita dificuldade, o que muito nos atrapalha’. Com esta franqueza Videira
ficava radiante e então ia logo dizendo: ‘agora vou tocar para o senhor não cair’. E
perguntando então: ‘Qual os tons que o senhor confere nos seu instrumento?’o que
respondia: ‘dó maior, sol maior, mi menor e só’. Respondeu Videira: ‘pois bem,
então vamos tocar só nesses tons’ e assim fazia, saindo-se os fracos tocadores bem e
Videira contentíssimo, demonstrando assim a sua maestria, apesar de tocar de
ouvido (24, grifo meu).
Foi esta exatamente a situação vivida por Gonçalves Pinto, segundo sua
S. Diogo, hoje General Pedra”, Pinto e seu companheiro Dinga, “de saudosa memória”,
são informados pelo anfitrião de que o flautista da roda seria ninguém menos que o
Oh, que decepção! Um suor frio desceu-me por todo o corpo, parecia que ia ter uma
síncope, pois sabia por informações o ranzinza que ele [Videira] era! Pois sabia da
decepção que ia passar e meu companheiro [sic], pois os tons que sabia naquela
ocasião eram muito poucos, pois o que sabia era de principiante, que só servia
para distrair, e não para acompanhar. (idem, ibidem, grifo meu).
deixar a festa quando chega o temível Videira em pessoa, “com sua maviosa flauta
embaixo do braço, e que muito sorridente nos cumprimentou, satisfeito talvez, pensando
que fossemos excelentes tocadores”. Ao notar que Pinto e seu companheiro estavam
‘Eu peço aos senhores que não se retirem, pois desta forma ficará a festa toda
estragada’. Então eu [Pinto], muito medroso e nervoso lhe disse que fomos ali só
para cantar modinhas, dentro dos tons que nós conhecíamos e não para
acompanharmos flauta, pois faltava-nos a prática. Videira dando uma gostosa
gargalhada, abraçou-me dizendo-me: ‘menino, não tenha medo do pouco que você
toca: pois eu tocarei tudo dentro das notas que você conhece’. E assim dizendo
pegou-me pela mão e a do Dinga e disse: ‘vamos lá dentro tomar uma boa talagada’
(25, grifo meu).
213
E assim, entre diversas “talagadas” em uma sala onde havia “uma bela mesa,
cheia de assados e as competentes garrafas de vinhos tintos, Porto, cervejas, etc”, a roda
de choro iria até o dia seguinte, tendo Videira tocado somente nos “tons” conhecidos
Daquele dia em diante, comecei a procurar Videira, não só em sua casa como em
uma charutaria na rua do Ouvidor, onde ele trabalhava como cigarreiro. Andando
sempre com ele principiei a tocar violão e cavaquinho, pois ele os conhecia
regularmente, e tornando-me desta forma um violão e cavaquinho respeitado na
roda dos tocadores batutas (...) tornando-me um bamba nos dois instrumentos de
cordas de que fiz uso por muitos anos (26).
Vê-se assim que o aprendizado de Pinto se deu através de uma relação mestre-
discípulo: ainda que Videira não soubesse ler partituras, conhecia “regularmente” o
quase sempre na prática da roda. Era o caso de Gedeão por exemplo, flautista que era
um “sublime artista musical”, cuja casa, na rua Machado Coelho,“perto do Estácio”, era
a “reunião dos chorões, sendo portanto uma grande escola de musicistas, onde o autor
deste livro ia beber naquela fonte sua aprendizagem de violão e cavaquinho” (17). Da
mesma forma, Lily S. Paulo era exímia violonista, “especialista nos acordes”, pois
“sendo uma companheira de choro do sempre lembrado Bilhar, que era o rei dos
acordes, muito com ele aprendeu, de maneira que [quem] escuta Lily, logo diz ali está o
Bilhar” (63).
214
Esta relação de aprendizado “mestre-discípulo” é bastante citada em diversos
podemos fazer uma espécie de categorização de duas situações mais comuns: 1) ensino
qualquer instituição oficial de ensino, mas que, por sua extrema desenvoltura no
Quincas Laranjeiras no violão. Pelo fato de que, como já vimos, o aprendizado desses
instrumentos se dava em grande parte através da transmissão oral, torna-se mais difícil
reconstruir hoje estes processos de aprendizagem: muitas vezes não temos sequer dados
uma espécie de “senso de linhagem” que determinaria uma espécie de “fio condutor” de
instrumentistas desde meados do século XIX até os dias de hoje, como se verá. Estes
instrumentistas-professores são citados não apenas por Pinto em seu livro, mas em
Passemos agora a uma análise mais detalhada dos itens listados acima. Do
215
O GRANDE PROFESSOR DUQUE ESTRADA MEYER
Impossivel me é descrever, a grandeza, e a sublimidade deste grande professor. As
suas glorias foram tantas e tantas, que só com muitas lágrimas pode-se dizer a sua
vida, como immenso maestro que foi o nome acima. Foi um genio na musica,
conhecia theoria como poucos, a sua flauta em seus labios não tocava mas chorava.
Não só conhecia os grandes choros dos immensos flautas já por mim descripto,
como tambem o classico. Tocou em muitas orchestras, sendo admiradissimo, pelos
maestros daquella época. Meyer era um genio alegre, e folgazão, de uma educação
finissima, exemplar pae de familia. No chôro quando tocava as musicas de Callado,
Viriato Silveira, Luizinho, e outros, fazia com alma sentimento e graça. Foi grande
amigo dos chorões acima, mas tinha uma grande predilecção pelo sempre chorado
musico Callado, pois quase sempre tocavam juntos. Callado em attenção a esta
grande e bondoza familia, escreveu uma quadrilha dedicada á mesma, que botou o
nome de Família Meyer que é um primor de arte, e que tenho em meu archivo como
uma joia inesquecivel. (...) (92).
Note-se que, embora não haja menção ao fato de que Meyer era professor do
descrição ficamos sabendo que Meyer era flautista. Ou seja, não obstante o fato de ter
Ressalte-se aqui que Callado havia sido antecessor de Meyer na cadeira de flauta do
este como professor. Outro ponto a ser levantado: de que forma conviviam em Meyer o
ruas do Rio de Janeiro da época? É muito difícil sabermos hoje em dia até que ponto as
práticas populares e as músicas contidas nos cadernos dos “antigos flautas” — isto é, as
músicas de Callado e Viriato, por exemplo, — faziam parte do curriculum dos alunos
216
inesquecido professor Duque Estrada Meyer – Ginásio de Música”. Acima, manuscrito:
recital com aqueles que constam no caderno temos, de um lado, Leoncavallo, Marchetti,
Dubois, entre outros — e do outro Silveira, Callado, Viriato, etc. Ou seja, o mais
dentro do Conservatório e os compositores “de rua”, ainda que Meyer fosse ele mesmo
Outro fator que salta aos olhos é o de que, entre todos os numerosos flautistas
citados no livro, apenas um — o flautista Pedro de Assis (que depois substituiu Meyer
saibamos por outras fontes (ver por exemplo Vasconcelos, 1977: 312-320) que pelo
algumas das primeiras gravações de flauta no Brasil pela Casa Edison —, teve aulas
com ele. Duque Estrada Meyer deixou também algumas composições encontradas em
Há mais quatro professores de flauta citados no livro: João Salgado, que era
“que era um professor de grande mérito e paciência para ensinar a mais rude cabeça”
(19); Felisberto Marques, por alcunha “Maçarico” (provavelmente por ter um sopro de
ferro?) que além de “um bom executor era um exímio professor de flauta” (22); General
(91, o autor não nomeia o cargo) e um certo “Professor Nicanor”, também “professor de
flauta e exímio executor”, grande admirador de Catullo Cearense. Não sabemos se esses
em sociedades musicais da época. O que tiramos disso tudo é o fato de que, dada a
217
grande popularidade da flauta naquela época — 109 flautistas são citados ao longo do
Nacional de Música). Ainda que não saibamos até que ponto esta música era
efetivamente ensinada no Conservatório, o fato é que temos pelo menos três gerações de
os exemplos no livro neste sentido: Mondego, por exemplo, que tocava bombardino e
era carteiro aposentado dos correios, tinha “carta de professor pelo Instituto de Música,
maestros do Instituto” (107). Com o diploma de professor passou a ser “mestre de uma
Sociedade Musical na Estrada Velha da Tijuca onde fez grande quantidade de músicos,
pois a sua proficiência e paciência era de encantar” (id.). Da mesma forma um certo
Resedá, era da Brigada Policial e havia feito seus estudos “no Conservatório de Música,
tornando-se ali um aluno inteligente, recebendo assim o seu diploma de professor” (29).
fichamento feito por Jacob do Bandolim, citado no primeiro capítulo. Uma das
218
variadas como bandas militares, sociedades dançantes, orquestras de ranchos, etc.,
sempre relacionando as pessoas que são citadas ao longo do livro com as instituições
listadas. Na tabela que se segue transcrevo parte deste fichamento, incluindo apenas as
aprendizagem.
Arsenal da Guerra
João Salgado – flauta, oficleide, fagote
João dos Santos - clarinete
Justiniano - flauta
Santos Bocot – regente, requinta
Brigada Policial
Camargo - flauta
Major Rocha – oficleide e regente
Pedro da Mota - bombardino
Colégio dos Meninos Desvalidos
Carramona – piston, regente
Francisco Braga - maestro
Frederico de Barros - flauta
Henrique Martins – trombone, bombardino
Paulino Sacramento – piano, regente
Romeu Silva – sax, regente
Corpo de Bombeiros
Anacleto de Medeiros – sax, mestre
Carramona – piston – c/ mestre, 2º tenente
Geraldino - bombardino
Irineu de Almeida – bombardino, oficleide,
trombone, regente
Irineu Pianinho - flauta
João Mulatinho – bombardino – c/ mestre
Lica – bombardão, flauta
Luiz de Souza – piston, regente
Nhonhô Soares - bombardino
Pedro Augusto – clarinete, contramestre
Tuti – pratos, violão, bandolim
Corpo de Fuzileiros Navais
Gonzaga da Hora - bombardão
Corpo de Marinheiros
Malaquias - bombardão
Corpo Militar de Polícia da Corte
219
Godinho – flautim, mestre Alferes
Major Rocha – oficleide- mestre
Corpo Policial da Província do Rio de Janeiro
Damasio Porcino de Oliveira
Gil
João Elias da Cunha
Juca Marques
Juca Rezende
Fábrica de Tecidos Corcovado (Banda)
Edgar Bulhões de Freitas - flauta
João Elias da Cunha - regente
Fábrica de Tecidos Vila Isabel (Soc.
Dansante)
Macário - requinta
Flor de Santana – Banda (Niterói)
Juca Marques – oficleide, bombardino,
regente
Fortaleza de São João
Luiz de Sousa – piston, regente (menor)
Soares Barbosa – piston mestre
Independência Musical – Club União
(Estácio)
João Maia – clarinete, regente
Juca - piston
Porfírio Levefer - bombardão
Santa Cecília – Sociedade Musical (Tijuca)
Juca Afonso – requinta, poeta
Tijuca – Sociedade Musical da
Juca - piston
Gilberto - bombardino
Mondego – bombardino, regente
Salustiano – 1º trombone
10ª infantaria
Paula Freire – contramestre, clarinete
23ª infantaria
Luiz de Souza – piston, regente
entretenimento, como era o caso das Sociedades Musicais. No livro há citação a duas
que, como citado acima, tinha “carta de professor” pelo Instituto de Música e era
220
carteiro aposentado – e a Sociedade Musical Santa Cecília, que funcionava na rua
Conde de Bonfim em frente à igreja do mesmo nome (180). De modo geral percebe-se
que estas sociedades tinham a função de “cursos livres” de música: funcionavam como
instrução musical primária para leigos que depois poderiam mesmo se especializar.
músicos onde tem se aproveitado grande quantidade de moços e moças que já se acham
diplomados pelo Instituto Nacional de Música” ( 22). Neste caso é curioso notar como a
de uma necessidade de grande valor” (50). Para Vagalume, em seu livro Na roda de
O samba, o tradicional samba, deverá ser executado com todos os seus instrumentos
proprios : a flauta, o violão, o réco-réco, o cavaquinho, o ganzá, o pandeiro, a cuica
ou melhor o omelê e o chocalho. (Guimarães, 1978: 157)
Catulo e Vagalume foram Galdino Barreto e seu discípulo Mário Álvares da Conceição
(este último é citado também por Orestes Barbosa em seu livro Samba). Temos
221
infelizmente poucas informações biográficas sobre ambos. Gonçalves Pinto descreve
Mestre dos mestres, que se celebrizou com o seu aprendiz Mario, cujo discípulo
venceu naquella época todas difficuldades do instrumento transformando a sua
tonalidade de quatro cordas para cinco, enquanto isso Galdino, continuava com o
seu cavaquinho de quatro cordas tirando infinidades de tons e combinações de
acordes que me é aqui difficil de descrever, tal é a magia, e a convicção das notas
vibradas pela palheta encantada de Galdino, este grande artista, inigualável no meio
dos chorões, aonde elle foi o único educador deste instrumento que se chama
cavaquinho. (54)
Já Vagalume cita algumas vezes Galdino em seu livro, sempre como uma
“autêntico”:
A menção a Galdino como “um dos únicos” que poderiam defender o samba
menciona Galdino e Mário Álvares como “dois terríveis que se podem bater, conquanto
seja verdade que o Galdino é mais antigo, e por isso, mais conhecedor desse
instrumento [o cavaquinho], que só pode ser ouvido quando tocado por um dos dois”
(Catulo, 1908). Temos assim a visão de pelo menos três referências da época — Pinto,
Catulo e Vagalume — atestando que Galdino e seu discípulo Mário Álvares formaram
uma espécie de “escola de cavaquinho” que seria passada para outras gerações. Embora
não tenhamos como saber maiores detalhes sobre o método de ensino de Galdino,
temos um forte indício de que sua “escola” teve reflexos até a segunda metade do século
XX, influenciando um dos mais importantes cavaquinhistas do período que vai de 1930
222
Cavaquinho. Canhoto iniciou sua carreira no final da década de 1920, como
cantores representativos da época como Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves,
Baden Powell e Raphael Rabello, entre outros — Dino (Horondino José da Silva) —
centenas de gravações de samba e de choro, com destaque para as realizadas nos dois
primeiros discos lançados por Cartola pela gravadora Marcus Pereira em 1974 e 1976.
em uma espécie de álbum que este último mantinha (e que hoje se encontra em poder de
sua família3) com recortes de jornal da época com “matérias” sobre o Regional do
(Anexo I), elaborada por um certo Heitor Ribeiro, sobre quem não temos maiores
informa que Galdino teria sido “investigador da Ordem Política e Social” e teria
3
No ano de 2007, ao coordenar a edição do Festival Nacional de Choro da Escola Portátil de Música
dedicada ao centenário de Canhoto, travei contato com sua família, que generosamente me autorizou a
copiar o álbum.
223
Galdino, o único sobrevivente é Waldir [sic] Tramontano, que com brilhantismo honra
o mestre”.
segunda metades do século XX. Se Galdino morreu em 1935 “com mais de setenta
anos”, como afirma o documento, sua data de nascimento gira em torno da década de
1860, o que o coloca como contemporâneo dos mais antigos nomes do choro como
Callado, Viriato, entre outros. O fato de Canhoto ter colocado o documento com a
parece ter se desenvolvido no século XIX e primeiras décadas do século XX quase que
exclusivamente através da tradição oral (é possível que tal fato se explique pela própria
função do instrumento, pouco apto para o solo e utilizado basicamente com a função de
o de Carcassi, que como vimos já era editado no Rio de Janeiro desde 1846. Por outro
metade do século XIX o violão está ligado às práticas populares, a ponto de podermos
falar a partir da década de 1870 em uma escola de violão de choro – basicamente uma
escola de acompanhamento dos gêneros que compunha este universo: polcas, valsas,
schottischs, modinhas, etc. Vimos no capítulo três como Catulo diferenciava o “violão
formadas por instrumentistas que privilegiavam o solo. De que forma estas escolas
224
4.3) O Baú do “Animal”: os acervos manuscritos de choro
primeiras décadas do século XX revelado por Alexandre Gonçalves Pinto em seu relato
álbuns manuscritos de partituras e arquivos musicais particulares dos chorões. Pinto faz
questão de enumerar vários títulos de que dispõe no seu próprio acervo e outras
que se observam no livro: “[sobre Alfredo Vianna pai] ...deixou ele um grande arquivo
Pixinguinha”, “[sobre o flautista Oscar Cabral]... tinha um arquivo que muito poucos
possuem não só em número como em beleza”, “ [sobre o flautista João Sampaio] ...
tinha diversos cadernos de choro pelos quais tinha grande zelo. Ninguém arrancava uma
música qualquer para fora, só deixava copiar em sua casa sobre suas vistas.”
precursores do estudo do choro de finais do século XIX, estas coleções só seriam pela
primeira vez estudadas sob um ponto de vista musicológico a partir do trabalho dos
violonistas Mauricio Carrilho e Anna Paes, que durante os anos de 1998 a 1999
4
Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Fundação RioArte. Da seleção deste vasto material foram
editados pela Acari Records em parceria com a EdUERJ cinco cadernos de partituras intitulados
“Princípios do Choro” no ano de 2003.
225
arquivos do Rio de Janeiro, como a coleção Mozart de Araújo, a Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, bem como diversas coleções particulares. Apesar da importância desta
pesquisa, outros acervos permanecem ainda hoje inexplorados, como é o caso do acervo
do Som.
destes acervos, sempre tomando como base o “roteiro” que nos é dado por Alexandre
Pinto e seu livro O Choro. Ainda que não tenha a pretensão de realizar uma análise
exaustiva, algo que fugiria ao âmbito desta tese, creio que poderei aprofundar algumas
mesmo tempo uma das mais ricas e menos exploradas coleções de partituras de choro
do Brasil. Abro aqui um pequeno parêntesis para explicar um pouco sobre o processo de
pesquisa realizado e sobre o meu envolvimento pessoal com este acervo específico.
Como bandolinista e pesquisador de choro sempre tive grande interesse pela obra e pelo
compositor, Jacob teve um papel pioneiro na área de pesquisa em música popular cuja
importância ainda está por ser estudada. Foi talvez o primeiro compositor de choro que
226
preocupando-se em aprender técnicas de catalogação (estudando os modelos utilizados
além de ter feito inúmeras “pesquisas de campo” utilizando um gravador de rolo em que
nordestino” e “pontos de macumba”, por exemplo). Após sua morte em 1969, seu
Imagem e do Som do Rio de Janeiro, onde permanece até hoje (Paz, 1997).
categorias sui generis para dividir o acervo, apresentada na tabela abaixo que explicita
5
“Centro” é o termo usado entre os músicos de choro para designar as fórmulas de acompanhamento
rítmico-harmônico feitas pelo cavaquinho.
6
Esta pesquisa foi realizada com o apoio do Instituto Jacob do Bandolim, do qual faço parte, e com a
colaboração de dois estagiários, Maria Souto de Carvalho e Iuri Lana Bittar. No ano de 2002 um grupo de
músicos e pesquisadores, entre os quais me incluo, resolveu se unir em um instituto que, em parceria com
o referido museu, preservasse e protegesse este acervo, além de promover atividades culturais,
publicações etc, em torno da obra de Jacob. O Instituto Jacob do Bandolim, vem desde então realizando
diversas atividades: lançamento de publicações de partituras, shows, etc. Na área de acervo o IJB foi o
responsável pela recuperação das 122 fitas de rolo de Jacob do Bandolim (citadas anteriormente) projeto
realizado sob a minha coordenação e do pesquisador e cavaquinista Sérgio Prata. Entre os membros do
IJB encontram-se músicos e pesquisadores como Hermínio Bello de Carvalho, Luiz Otávio Braga,
Mauricio Carrilho, Joel Nascimento, Déo Rian, entre outros.
227
Tabela 8: Organização das Partituras do Acervo Jacob do Bandolim
partituras com dimensão de 30 cm por 20 cm. Não é possível entender muito bem o
porquê de haver uma série de “Partituras Manuscritas” somente, já que estas partituras
mesclam papéis de música “na vertical” e “na horizontal”. Talvez tenha sido um critério
que todas estas partituras estão ordenadas aparentemente sem qualquer critério
Focaremos nossa análise nas séries PMH e PMV, que se constituem como
choro, creio que podemos fazer uma pequena digressão bibliográfica para melhor
228
contextualizar seu papel como instrumentista e compositor. Nascido em 1879, no Rio de
Janeiro, Cândido Pereira da Silva foi aluno do célebre Colégio dos Meninos Desvalidos,
em Vila Isabel, instituição que abrigou e formou diversos músicos como Albertino
Fábrica de Tecidos Confiança, também em Vila Isabel, onde fez contatos com outros
músicos de choro como Pedro Galdino (autor da célebre polca Flausina), Eurico Batista,
entre outros. Foi um dos primeiros músicos de choro a gravar discos comerciais nas
delas o Grupo Carioca, com o qual gravou músicas que depois se tornariam clássicos do
gênero, como “Saudações” de Otávio Dias Moreno e “O Nó” de sua própria autoria. A
de Janeiro, onde permaneceu até 1951, quando se aposentou. (EMB: 145). Além de suas
dizer que boa parte do repertório do choro de final do século XIX e das primeiras
décadas do século XX chegou aos dias atuais graças à sua escrita. As centenas de
choro que nos chegaram da primeira metade do século XX: a coleção Jacob do
Bandolim, a coleção Almirante, a coleção Jupyaçara Xavier (que será alvo de análise
dos primeiros manuscritos) até a década de 1950. Aliás, podemos afirmar que graças à
que podemos conhecer pelo menos parte da música e da vida de diversos compositores
populares do Rio de Janeiro da época: autores como Pedro Galdino, Galdino Barreto,
7
A coleção Mozart de Araújo encontra-se hoje depositada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de
Janeiro; a coleção Pixinguinha encontra-se no Instituto Moreira Salles também do Rio de Janeiro.
Pesquisas exploratórias nestes acervos foram realizadas por mim ao longo dos anos de 2008 e 2009.
229
Mário Álvares, Juca Russo, Videira, entre muitos outros, só se salvaram do
Jacob do Bandolim podem ser classificadas em três tipos: a) melodias compostas pelo
região grave (clave de fá) para as melodias acima e d) partituras com cifras para violões
(bem mais raras). Como compositor, Candinho deixou uma obra extensa, formada por
mais de uma centena de músicas, das quais a maioria permanece inédita até os dias de
hoje. Afora alguns clássicos como “O Nó” e “Dança de Urso” (ver anexo II, como
desconhecida. E se boa parte de sua obra foi preservada, sem dúvida podemos creditar
tal fato a Jacob do Bandolim, amigo pessoal do trombonista: há farta documentação que
comprova a amizade entre os dois (fotos, cartas, partituras com dedicatórias, etc). Jacob
coletou e catalogou em seu acervo não apenas uma vasta quantidade de partituras de
Candinho, como também vários documentos pessoais deste (diplomas, cadernos com
anotações, etc), além de ter elaborado uma lista das obras completas do trombonista (ver
anexo III). A relação entre Jacob e Candinho representa um importante elo de ligação
músicas de boa parte dos músicos populares da belle époque e este material acabou
sendo herdado — e, ainda que em pequena medida, gravado — por um dos maiores
que ele escrevesse em seus álbuns de partituras as músicas que mais lhe aprazia tocar:
230
além disso podemos supor que diversos compositores da época procuravam o
Candinho: corrija a seu modo e instrumentize [sic] para compreendermos alguma coisa,
pois eu quero escrever, porém não acho jeito, e por resto pesso [sic] desculpas”.
variados autores (ver anexo IV para exemplo de contraponto grave escrito por
com acompanhamento para o violão: das quase 3000 partituras das séries PMH e PMV
o acompanhamento de violão: as PMH números 562, 900 e 924, esta última com a
Cabeças” (ver anexo V). A cifragem utilizada por Candinho ainda é a cifragem
“antiga”, que perdurará até a década de 1940 pelo menos: ao invés da atual cifragem
231
alfanumérica, os instrumentistas utilizavam uma cifragem baseada sempre nas relações
tonais e preparações8.
quem falaremos mais detalhadamente a seguir. Seus manuscritos situam-se entre 1914 e
1918 e refletem em sua maioria a música dos “antigos flautas”, como se verá: Callado,
Viriato, Silveira, etc (ver anexo VI para exemplo de manuscrito de Quintiliano). Com
uma caligrafia bastante miúda e nem sempre muito legível, Quintiliano deixou uma boa
quantidade de músicas dos autores citados acima, todas escritas para a flauta
(Quintiliano era também flautista como veremos a seguir). Interessante notar já algumas
Arnaldo Corrêa é outro copista também muito presente não apenas na coleção
Pixinguinha9. A maioria das cópias de Arnaldo Corrêa data de 1913 e 1914: não nos foi
possível, até a presente data encontrar qualquer indicação biográfica sobre ele (ver
anexo VIII para exemplo de música manuscrita por Arnaldo Corrêa). Pela escrita das
8
Assim, a 1ª do tom significa a própria tonalidade, a 2ª do tom significa a dominante, etc.
9
Este dado foi verificado por mim em pesquisa exploratória realizada no Instituto Moreira Salles do Rio
de Janeiro, onde está depositado o acervo de Pixinguinha. Como este acervo ainda está por ser
catalogado, não foi possível incluí-lo em detalhes no presente estudo.
232
“Salve! 26 de julho, aniversário do Arnaldo”. Sobre os outros copistas, como Patrocínio
do registro escrito e da rede de troca entre estes músicos: não nos foi possível até o
presente momento averiguar de maneira precisa de que forma Jacob os teria herdado —
233
Caderno 19 – Gustavo Ribeiro – 1946
Caderno 20 – Arlindo Nascimento – 1947
Caderno 21 – Arlindo Nascimento – 1947/48
Caderno 22 – Arlindo Nascimento – 1948
Caderno 23 – Patrocínio Gomes – 1948
Caderno 24 – Arlindo Nascimento – 1948/1959
Caderno 25 – Patrocínio Gomes – 1949
Caderno 26 – Arlindo Nascimento –1950/58
Caderno 27 – Arlindo Nascimento – 1951/1953
Caderno 28 – Arlindo Nascimento/ Manuel Pedro do Nascimento – 1959
Caderno 29 – Arlindo Nascimento – 1960
Caderno 30 – Arlindo Nascimento – 1960
Caderno 31 – Arlindo Nascimento – 1962
Caderno 32 – Arlindo Nascimento – 1963/66
Caderno 33 – Manoel Pedro do Nascimento – sem data
Caderno 34 – Músicas religiosas – sem data
catalogação deste material foi feita pela pesquisadora Anna Paes e serviu como base
para a análise que se segue. O primeiro caderno, datado de 1887, traz na capa a
inscrição “Pertence ao Snr. Nestor Soares Caiuby”, de quem não nos foi possível achar
maiores referências, a não ser o fato de que morava na cidade de Itú, São Paulo,
indicação contida em várias partituras. Contém 43 músicas no total, sendo que 42 não
tem qualquer indicação de autor. Boa parte das músicas são estrangeiras: assim,
“Les femmes du feu” — classificada como “Grande Valsa”, “Les chants des inares du
algo que será comum em outros cadernos da coleção: provavelmente cada caderno
pertencia a um núcleo familiar, tendo um proprietário principal, mas que contava com
uma série de “colaboradores” em sua escrita. Assim, se boa parte das partituras foi
escrita pelo proprietário do caderno, como a “Mazurca” sem indicação de autor, mas
com a inscrição “cópia de Nestor S. Caiuby – Itú – 1-12-87” — várias delas trazem a
indicação de outros copistas. A “Valsa Amorosa” por exemplo, foi “copiada por
234
Antonio Pinto de Almeida Cesar em 15 de outubro de 1887”. Outra música, intitulada
“Banda dos Pausinhos” foi “copiada por Juca T. P. Campos”. Não nos foi possível
estabelecer a ligação destes dois copistas com Nestor Caiuby, mas este fato reforça a
ideia de que o caderno funcionava como uma espécie de álbum de família, onde
parentes e amigos escreviam e copiavam músicas para consumo doméstico. Outro fato
interessante a ser notado é a procedência de São Paulo, o que faz supor que o hábito da
impressas era algo que se repetia em outras partes do o país. Ao contrário do que se
do Rio de Janeiro, como Callado e Videira. Pela escrita das partituras conclui-se que o
seu proprietário não era flautista (a maioria das músicas dos cadernos dos flautistas é
escrita em oitava alta, o que não acontece neste caderno) — pela extensão das partituras
Contém 87 músicas, sendo a maior parte (61) sem indicação de autoria. Neste caderno
segunda parte se transforma em uma polca (ver anexo IX). Tal mescla de gêneros em
uma mesma música não era algo incomum (veja-se por exemplo o dobrado “Pavilhão
transforma em uma polca em 2/4), e mostra como de certa forma estes gêneros
235
acabavam se “amalgamando” dentro de uma linguagem instrumental que depois seria
1935) e 11 (de 1935 a 1936) são de Júnior Soares Caiuby, provavelmente algum parente
— talvez filho — de Nestor Soares. O primeiro deste caderno traz a indicação “Santos,
da chamada “música ligeira” européia, como Franz Léhar e outros menos conhecidos.
Rio Claro, 25-3-1933”. A cítara, instrumento hoje pouco usual, foi um instrumento
presente no ambiente do choro pelo menos até a década de 1980: Pinto cita em seu livro
tais como o de Nestor, grande quantidade de compositores do estado de São Paulo: além
236
Alexandre Gonçalves Pinto, o personagem principal deste trabalho. Quintiliano é
Quintiliano Pinto, irmão do escriptor, um dos velhos chorões e de nome na roda dos
que tocavam ou não. Quando a nossa Mãe morreu, elle apaixonou-se tanto, que
nunca tendo escripto qualquer musica, compoz uma valsa, bastante triste, que botou
o nome de "Minha Mãe", porém apesar de não compor, tocava todas as musicas dos
velhos e novos flautas ou de outro qualquer instrumento. Tocou em muitos bailes,
serenatas e festas, e, tinha muito gosto pela musica, especializando-se das antigas
do seu tempo. Só deixou a flauta, já bastante idoso, e pela moléstia que aos poucos
foi minando o seu organismo, sepultou-se no Cimeterio do Pichincha em
Jacarépaguá proveniente de uma paralysia, e que hoje como seu irmão, ainda choro,
e lastimo a sua morte, pois sempre tocamos juntos, e muitos nos estimavamos. Paz á
sua alma é o que peço a Deus como todos os seus companheiros que com elle
dormem o somno da eternidade (29)
A menção ao fato de Quintiliano ser conhecido “na roda dos que tocavam ou
não” reforça a ideia de que Alexandre abarcava em seu conceito de “chorão” não apenas
aqueles que tocavam, mas os que estavam presentes ao ambiente da roda, como vimos
no capítulo três. Também o fato de que Quintiliano havia se especializado nas “músicas
flautas” por Pinto: Callado, Viriato, Videira, Juca Kallut, entre outros. Passemos agora a
44 músicas, a maioria (13) de Joaquim Callado — sendo que destas 13 músicas, 12 são
quadrilhas, o que comprova a popularidade deste gênero no início do século. Boa parte
das partituras traz a indicação: “Copiada por Quintiliano Pinto em” seguido da data, que
varia dentro do período já citado de 1907 a 1911. Esta inscrição nos permite levantar
uma questão, que aliás é pertinente a todo o material manuscrito aqui analisado: as
237
“roteiro” das fontes primárias das quais estas cópias são resultado? São perguntas
difíceis de serem respondidas de forma absoluta: por um lado, sabemos pelo relato de
Pinto que o ato de copiar álbuns de partituras era relativamente comum na época.
Lembremos a sua descrição, já citada aqui, do flautista João Sampaio que “... tinha
diversos cadernos de choro pelos quais tinha grande zelo. Ninguém arrancava uma
música qualquer para fora, só deixava copiar em sua casa sobre suas vistas.”
manuscritas eram frequentes, ainda que alguns, como João Sampaio, fossem tão zelosos
com o seu material que só permitiam cópias sob “suas vistas”. Por outro lado, é lícito
supormos que muitas destas partituras fossem escritas a partir da percepção da tradição
oral, ou seja, após um aprendizado “de ouvido”. É o caso de partituras que aparecem
épocas, muitas delas recebendo letras de poetas como Catulo da Paixão Cearense, o que
aumentava ainda mais a sua aceitação popular. Deste repertório podemos citar diversos
outras — boa parte deste repertório, inclusive, chegou até os nossos dias através da
tradição oral. Uma análise das diversas cópias destas músicas encontradas nos acervos
manuscritos nos mostra a existência de variações entre elas, algumas até bastante
o que corrobora a teoria de que elas eram muitas vezes escritas a partir do aprendizado
oral. Retomaremos esta questão nas conclusões deste trabalho: voltemos agora à análise
dos cadernos.
238
O caderno de número 3, datado de 1912, contém 22 músicas de variados
1912”. É interessante notar que uma das músicas do caderno, intitulada “Feijoada das
época em que a questão dos direitos autorais ainda era incipiente? Note-se que é a
primeira vez em que uma inscrição como esta aparece em um caderno. Juca Russo é
descrito por Pinto como “um príncipe no violão e no cavaquinho” (195), filho de Juca
Quintiliano nomeia o autor como “Alfredo da Rocha Vianna Filho” e não pelo apelido
que tornaria célebre o autor de “Carinhoso”. Neste caderno encontramos ainda músicas
da tradição oral do choro até o final do século XX e que seriam gravadas por diversos
Biliano de Oliveira — gravada por Jacob do Bandolim e até hoje muito popular em
números 13, 14, 15, 17 e 25 pertenciam ao bandolinista Patrocínio Gomes, autor de pelo
menos uma composição que ficou célebre entre os músicos de choro a partir da década
239
1941, traz na sua primeira página a inscrição: “Caderno de Músicas – Pertence a
Contém 30 músicas, dos mais diversos autores de choro, todas elas copiadas por seu
proprietário, com exceção da valsa “Sonhando” do flautista Dante Santoro, copiada por
a Mano” de Carlos Gardel, entre a série de choros. Esta é aliás uma questão curiosa que
(autor de nada menos do que 56 das composições deste caderno), Pixinguinha e outros,
o caderno 19, datado de 1949, contém uma grande quantidade de partituras de outros
O mesmo fato pode ser observado nos cadernos de Manuel Pedro Nascimento,
volumes. Como característica geral, observa-se que estes cadernos contêm, além de
época. Assim, por exemplo, o caderno de número 16, de Manuel Pedro Nascimento,
1940 e 1950 como Jorge Raposo, José de Freitas, Arlindo Nascimento, entre outros. E,
da época: assim, o caderno 16, de Arlindo Nascimento tem 46 músicas, quase todas
240
transcrições de sambas, canções, foxes, frevos e outras músicas divulgadas pelas rádios
Blues 2 2
Bolero 11
Choro 445 445
Fox 30 5
Frevo 13 13
Gavota 4 4
Habanera 3 3
Marcha 4 18 22
Maxixe 2 1 3
Mazurca 27 2 29
Polca 211 21 232
Quadrilha 18 18
Ragtime 3 3
Rancheira 7 7
Samba 1 21 22
Schottisch 58 6 64
Tango 19 7 26
Valsa 111 206 317
Uma análise geral das designações de gênero usadas pelos próprios copistas
nos cadernos do período aponta para algumas conclusões interessantes. Como vemos na
fins do século XIX até o início da década de 1930: a quadrilha, por exemplo, cai em
total ostracismo a partir desta década. Outros gêneros muito populares no início do
aparece a partir da década de 1930, o que confirma a ideia de que a expressão era usada
241
músicos em determinado lugar para a prática da “roda”. Chama a atenção também o fato
que talvez confirme o fato de que esta designação estava muito mais ligada à dança do
choro do século XIX e início do XX é a coleção do flautista João Jupyaçara Xavier, que
Temos poucas informações biográficas sobre este flautista, sendo que nossa maior
referência é mais uma vez o relato de Gonçalves Pinto, que nos dá de Xavier o seguinte
retrato:
Flauta de outros, e deste tempo para orgulho meu e de seus amigos. Ainda vive,
apesar dos seus janeiros ainda não deixa de ir ás festas, chôros e reuniões de amigos
com a sua linda flauta toda de prata, fazenda as alegrias dos lares. Jupiaçara
conheceu todos os chorões d'aquelle tempo que muito os aprecia e que ainda hoje
tem grandes recordações. Conserva na sua linda vivenda os retratos de quasi todos
os grandes flautistas acima mencionados, pois é uma reliquia que d'alli não se retira
por modo algum.
O único documento que nos dá mais algumas pistas sobre Jupyaçara é uma
Ao prezado Almirante,
10
Esta carta faz parte do acervo Almirante, hoje no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e foi
encontrada pela pesquisadora Anna Paes em pesquisa realizada em julho de 2009.
242
Sou admirador do vosso talento, bem [como] da vossa operosidade, descobrindo
músicas antigas de autores e compositores brasileiros, incentivando no espírito da
mocidade o bom gosto e o conhecimento do que existe de sublime, em se tratando
de lídimos compositores, cultores da dança familiar. O vosso acurado esforço, sem
desfalecimento, é invejável, trazendo para o rádio, sob o impulso do microfone, o
máximo do vosso talento. Sem contestação direi: nunca ninguém teve essa
iniciativa, tarefa aliás difícil. V. Sa. reúne as qualidades que todos reconhecemos.
Fidalguia no trato e quiçá educação e paciência, colecionando músicas de choro
tornando desta arte conhecidos os compositores célebres daquela época, a [sic]
sessenta, setenta anos e mais como o grande flautista e compositor Calado, Viriato,
J. Pereira da Silveira flautista profissional e compositor de lindas contradanças e de
outros gêneros, Inagnacio [sic] Machado exímio flautista, e igualmente compositor,
Luizinho, João Duarte, Saturnino, João Fluminense, José Moura, Chiquinha
Gonzaga, Pedro Galdino, Guilherme Cantalice, o saudoso Albertino Pimentel 2º
tenente regente da Banda de música do Corpo de Bombeiros da Capital Federal,
tendo deixado como insinamento [sic] bagagem enorme de belíssimas composições
para choro. Existe ainda o professor de orquestra Candido Pereira da Silva (o
Candinho) que tem escrito maior número de músicas para choro.
Sou o mais obscuro amador musicista, ainda assim um apaixonado pela música.
Businei um pouco na flauta sem maior habilidade. Tenho predileção pelo
instrumento, tanto assim que, ainda o conservo com carinho há 32 anos sempre bem
conservado quanto a qualidade e feitura. O objetivo destas linhas despretensiosas é
pedir-vos indulgências par o humilde que vos escreve, bem assim, a fineza de
chegar a nossa residência a rua Teles 87 (casa 1) Jacarepaguá, primeiro poste acima
do Largo do Campinho, onde terei maior liberdade [de] demonstrar ao mestre, o
que, acima, venho a expor. Queira, pois, escrever-me, marcando dia e hora que
melhor vos convenha. Possuo 10 cadernos de músicas de choros: belas polcas,
mazurcas, valsas, schottischs, quadrilhas e outros gêneros de músicas. Desejo ouvir
sua opinião abalizada.
Com estima,
J. Jupyaçara Xavier
compositores “antigos” de choro, visto no capítulo três. Transparece aqui uma vez mais
a questão da relação deste gênero musical, e particularmente dos músicos do século XIX
e do início do século XX, com a indústria fonográfica das décadas de 1930 e 1940: esta
parece ser aliás a razão comum que leva Gonçalves Pinto e Jupyaçara, dois
década de 1940, o que situa seu nascimento por volta da década de 1860) a escreverem
243
no final de suas vidas (é verdade que Pinto escreve de forma indireta) para dois grandes
no fato de que, enquanto Lacerda talvez nunca tenha tomado conhecimento dos pedidos
especializar em programas de rádio que alcançariam grande sucesso nacional, tais como
Almirante solicita aos ouvintes que tivessem acervos antigos de partituras ou dados
sobre a vida de compositores importantes, que enviassem o material para a rádio, o que
faz com que em pouco tempo centenas de cartas com farto material cheguem às suas
mãos (EMB, 2000: 20 e Cabral, 1990). É neste contexto que deve ser analisada,
flautista de lhe fazer uma visita e acabou “herdando” os cadernos, material riquíssimo
como Catulo da Paixão Cearense. Os dez cadernos contêm 859 músicas manuscritas no
total: um levantamento das músicas, autores e anotações nas partituras (datas, copistas,
244
etc) foi elaborado por mim ao longo deste trabalho e demonstra alguns fatos
esperar, as músicas dos cadernos não foram escritas por uma pessoa só: ao contrário, há
uma grande diversidade de copistas, principalmente nos primeiros cadernos, o que nos
leva a pensar que pelo menos parte da coleção Jupyaçara é na verdade uma reunião de
que existia de fato uma rede de cópias e de troca destas partituras. Os cadernos também
mais antigo deles é o caderno de número 9: tendo na capa a inscrição “M. Corrêa”, este
caderno traz uma página com a seguinte anotação: “Este caderno tem as músicas
seguintes: 6 quadrilhas/ 6 polcas / 6 valsas. Forão [sic] todas escolhidas para flauta. São
Paulo 13 de abril de 1882 [o último número foi cortado, mas parece ser 2]. A última
folha traz a seguinte inscrição: “2-15-82 São Paulo 1ª Flauta”. É difícil precisar hoje
quem seria este “M. Corrêa” e de que modo Jupyaçara teria “herdado” este caderno,
mas é interessante notar mais uma vez a procedência de São Paulo. No repertório deste
desconhecidos como J.J. Santana e D. Amélia Eliza, autora de uma curiosa “Valsa
Chinesa”: seriam autores paulistas? Não nos foi possível averiguar: entretanto percebe-
se mais uma vez a referência a São Paulo no tango intitulado “O Veludo” de autoria de
um certo João O. Duarte, que dedica a música ao “flautista paulista” de mesmo nome.
Talvez o fato mais importante que resulta da análise deste caderno seja a comprovação
ainda no século XIX em forma de manuscritos por diferentes estados do Brasil e não
245
O segundo caderno em ordem de antiguidade parece ser o de número 1, cuja
data pode-se situar em torno de 1909. Compõe-se de 158 músicas, sendo que destas há
freqüentemente são os de duas copistas mulheres sobre as quais não temos nenhuma
informação — Gilda Mattos (todas com data de 1909) e Ismênia Polly de Amorim
(todas com data de janeiro de 1910). Aparece ainda o já citado Quintiliano Pinto, que
a “ao meu amigo Jupyaçara” em 1909 (Anexo X). A diversidade de copistas escrevendo
em um mesmo caderno também é algo que nos faz pensar: seriam membros da mesma
pessoas, sendo que cada um fazia suas anotações e depois o passava adiante? São
dos dois citados anteriormente, este caderno foi escrito por uma só pessoa: o trompetista
até o século XXI com pelo menos uma música que virou parte da “tradição oral” do
choro: a polca “Coralina” gravada repetidas vezes ao longo do século XX11. Nascido em
1874, Pimentel foi, assim como Candinho Trombone, aluno do Colégio dos Meninos
11
Ary Vasconcelos, em seu livro Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro cita 5 gravações desta
música, a primeira de 1910 com o grupo Morro do Pinto e a última de 1977 com o grupo “Os
carioquinhas no choro”. No entanto desde o lançamento deste livro, na década de 1970, a música já
recebeu diversas outras regravações, com solistas variados, entre eles o bandolinista Joel Nascimento.
246
Desvalidos, em Vila Isabel, onde se iniciou no trompete fazendo parte da banda de
música do referido colégio: diz a lenda biográfica que, tendo se apresentado com a
banda do referido colégio para a princesa Isabel, esta teria ficado impressionada com o
seu desempenho ao trompete, e tendo notado que o menino tinha um olho vazado,
mandou-o ao oculista que lhe colocou um olho de vidro (EMB: 165). O fato é que
verifica é que não há tampouco aqui uma unidade de copistas e de datas dos
manuscritos. O caderno 10, por exemplo, apresenta grande número de músicas copiadas
por Jupyaçara em datas distintas, como 1935, 1936 e 1942 — prova de que o
octogenário flautista escreveu até o fim da vida, portanto. No meio do caderno aparece
Jupyaçara Xavier”.
247
J. Hilário Xavier da Costa”. Tudo indica que este é mais um caderno “herdado” por
Hilário Xavier da Costa sabemos apenas que era compadre de Albertino Pimentel pelo
fato de que este último dedicou-lhe uma música intitulada “Eu e meu compadre”,
Albertino Pimentel e dedicada ao seu compadre João Hilário da Costa”. Pelo tipo de
repertório — composto em grande parte por autores do século XIX como Callado,
conservação das partituras, é razoável presumir-se que este caderno pertence no máximo
suas páginas. Aliás, a única partitura com alguma indicação de data intitula-se
“Recordações dos três amigos” e traz os seguintes dizeres: “Escrita por Guilherme
ambígua: a música foi composta por Julio Bahianinho e escrita por Cantalice — não
Passemos agora a uma pequena análise do repertório dos cadernos: mais uma
vez reafirma-se aqui a popularidade das músicas de Callado — do total citado de 859
músicas da coleção, verifica-se que 89 são de sua autoria, ou seja, mais de 10% do total.
Verifica-se também aqui que há músicas que aparecem em diferentes cópias, o que sem
248
uma em diferentes cadernos. “Cruzes, minha prima” também aparece três vezes ao
longo da coleção, sendo duas vezes no caderno número 1. Curiosamente, a polca que se
tornaria a mais conhecida (e talvez a única a permanecer na tradição oral até o final do
século XX), “A flor amorosa”, aparece apenas uma vez no caderno 8. Mais importante é
constatar que a maior parte destas músicas jamais foram editadas e que chegaram até
Candinho Silva (44 músicas), seguido por Albertino Pimentel (40 músicas), Anacleto de
Medeiros (35 músicas), o flautista Viriato Silveira (26 músicas) e Francisca Gonzaga
(14 músicas). Interessante notar mais uma vez que os últimos cadernos, escritos a partir
de 1930, já contêm uma quantidade significativa de músicas que eram sem dúvida
divulgadas pelas rádios e pelo disco da época: músicas como “Samba de nêgo”, de
Analisadas algumas das mais importantes coleções de choro que nos chegaram
das primeiras décadas do século XX resta-nos agora estabelecer algumas relações entre
elas. A primeira relação diz respeito ao fato de que partituras dos mesmos copistas
Silva aparecem nos álbuns de Jupyaçara e nas partituras avulsas da coleção Jacob do
novamente nas partituras “herdadas” por Jacob. Tal fato comprova o quanto estas
249
tocavam juntos e tinham relações de amizade: esta é comprovada pelo hábito, comum
como Albertino Pimentel, que chega a presentear o flautista com um álbum manuscrito
de suas composições.
1940, quando começa a se interessar pela constituição de um acervo (Paz, 1997), Jacob
Encontramos em centenas de partituras de seu acervo anotações feitas por ele que
Pixinguinha (PMH 043), manuscrita por Jacob, contém as seguintes anotações ao lado
da página: “arq. Candinho”, “arq. Arnaldo Corrêa”, “conf. Candinho” (ver anexo XII).
Ou seja, aquela música estava presente nos arquivos de Candinho e Arnaldo Corrêa: é
mais difícil inferir o que quer dizer a inscrição “conf. Candinho”. Possivelmente queira
Barreto, também manuscrita por Jacob traz a seguinte observação: “Arquivo Candinho,
não sabemos o que quer dizer “Figueiredo a lápis”, talvez uma outra cópia da mesma
250
música feita à lápis? A música “Nogueiredo ou Nogueirita”, de Cantalice, também
PMH 601, por exemplo, manuscrito de Quintiliano para a música “Qualquer coisa” de
C. 39, Conferir MF 11, Conferir MF 39”. Até o presente momento da pesquisa não nos
foi possível averiguar a que se referem as siglas “C” e “MF”: certamente a outras fontes
e/ou arquivos que deveriam servir como referências de comparação com o manuscrito
citado. Outro exemplo é a música Miúda (PMH 746), manuscrito de Arnaldo Corrêa,
ao que tudo indica, o bandolinista teve acesso à coleção através do radialista Almirante,
de quem era amigo pessoal12. São muitas as partituras manuscritas pelo bandolinista
Xavier. Também é fato que o bandolinista copiou músicas de outras fontes que ainda
não conseguimos identificar: por exemplo a música “Hilda” de Mário Álvares (PMH
798) que traz a inscrição: “Cop. Betinho. Ver outra versão no caderno n. 1, 30-06-1907
ou 1917”. Não nos foi possível até o momento verificar quem teria sido o citado
“Betinho” e quais os cadernos pertenceriam a ele. Além das indicações das fontes e das
12
Significativamente, encontra-se no arquivo Almirante no Museu da Imagem e do Som do Rio de
Janeiro um pequeno papel em que o radialista — sempre muito cioso do material que emprestava a
terceiros, conforme nos diz Cabral (1990) — tomou a seguinte nota: “Jacob pede emprestada as partituras
de Jupyaçara” (material encontrado pela pesquisadora Anna Paes em pesquisa realizada no MIS-RJ em
julho de 2009)
251
manuscrito da partitura da polca “Puladora” de Callado (PMH 739) a seguinte
segue e uma entrada para a 3ª parte acima escrita. José Agostinho Macedo chama de
Em suma, este trabalho realizado por Jacob, ainda que de forma pouco
coleções, feito por um músico popular fora do ambiente da academia. Mais do que isso,
aponta para o fato de que, ao longo de sua trajetória de cerca de 150 anos, o choro —
uma história, processo em que o registro escrito teve sempre um papel de grande
dispersos em diversas instituições do Rio de Janeiro fuja ao âmbito e aos objetivos deste
trabalho, creio que algumas conclusões parciais podem ser relatadas. Estas conclusões
ambiente das rodas de choro. Assim, boa parte do repertório dos compositores de choro
deste período jamais foi editado, e a única maneira com que estas músicas circulavam
era através desta rede de manuscritos e cópias entre diferentes instrumentistas. Aliás,
252
podemos dizer que esta espécie de “rede paralela” de cópias de partituras manuscritas
no choro perdura até hoje13; c) a influência da música da rádio e do disco passa a ser
sentida de forma decisiva nos cadernos a partir da década de 1930: esta influência se
refletia não apenas pela música de choro que era tocada nas rádios — com intérpretes
como os já citados Luiz Americano, Luperce Miranda, Pixinguinha, etc — como pela
influência de músicas de outros gêneros que não o choro, como o samba, a marchinha, o
comparação entre esta vasta coleção de manuscritos gerou, a partir do trabalho de Jacob
13
Ainda que a segunda metade do século XX tenha presenciado a edição de diversas coleções de
partituras de choro, a precariedade e a grande quantidade de erros de boa parte destas coleções fez com
que a “rede de manuscritos” continuasse a se fazer necessária. Veja-se por exemplo a popularidade que
apostilas didáticas manuscritas, como as realizadas na Oficina de Choro da Funarte na década de 1980,
escritas pelo bandolinista Afonso Machado e o violonista Luiz Otávio Braga alcançaram, sendo
fotocopiadas por todo o país. É muito importante notar que, atualmente, de modo paralelo às fotocópias
de manuscritos, já há também coleções particulares de partituras digitalizadas (normalmente em
programas de editoração de música como o Finale) sendo trocadas por músicos de choro: uma delas,
talvez a mais famosa no Rio de Janeiro é a do bandolinista Marcilio Lopes, que reúne cerca de 500
partituras de choro e é intitulada “O Baú do Panda”.
253
Capítulo 5
Representações de O Choro na atualidade
atualidade. Como sugerimos no início da tese, a obra de Gonçalves Pinto foi, a partir de
sua “redescoberta” na década de 1970 por Ary Vasconcelos, alvo de uma teia de “re-
forma geral. Assim, a partir de uma questão principal – de que forma uma narrativa do
diversos atores sociais que se reúnem em torno do termo “choro” identificam no livro
um (ou vários) discurso(s) do passado. Como base metodológica para a elaboração deste
editores e agitadores culturais que tem ou tiveram alguma relação com a obra de
Gonçalves Pinto, sob os mais variados aspectos. Assim, o primeiro item é dedicado ao
antigos (ou “da velha-guarda”, como o nome diz), alguns dos quais chegaram ainda a
ser retratados no livro “O Choro”, como Napoleão de Oliveira e Léo Vianna. O “Retiro”
durou até a década de 1970, aproximadamente, e meu principal informante sobre esta
“comunidade” de músicos foi o bandolinista Déo Rian, que, então em início de carreira,
254
freqüentou as reuniões e travou conhecimento com diversos daqueles músicos. Procuro
mantiveram ou não nestes encontros entre antigos músicos até a década de 1970. O
gêneros considerados “de raiz”, como o samba e o choro (ver a este respeito Oliveira,
2001). A revista era editada pelo livreiro Rodrigo Ferrari e pelo designer Egeu Laus, e
continha uma seção dedicada às “Histórias do Animal”. O fito era realizar uma
brincadeira que levasse o leitor a crer que Gonçalves Pinto havia “voltado” aos tempos
choro) por um grupo de músicos ligados a gravadora Acari. A partir de uma pesquisa
cerca de oito mil partituras de choro deste período. Parte deste material foi gravado em
duas séries de Cds lançados pela gravadora Acari, intituladas Princípios do Choro (série
com 15 Cds que contempla os compositores nascidos até 1880) e Choro Carioca,
música do Brasil (série com 9 Cds que contempla compositores de todo o Brasil
nascidos até 1900). Uma série de cinco cadernos de partituras também foi editada,
255
baseada na coleção Princípios do Choro. Em todas estas publicações, o livro de
Gonçalves Pinto funciona não apenas como base para o restabelecimento de biografias
tópico realizei entrevistas com músicos ligados à gravadora, procurando entender de que
forma a leitura do livro por parte de cada um deles modificou ou não seus
Simone Cit, com direção musical de Roberto Gnattali, o livro é uma espécie de paródia
pelo “Animal”, ninguém menos do que o carteiro Gonçalves Pinto. Também aqui me
vali de entrevistas com os autores do livro para entender de que forma nosso objeto de
pesquisa foi “reconfigurado” para servir como base para um livro infantil. Finalmente,
no último tópico apresento uma entrevista com uma neta de Alexandre Gonçalves Pinto,
Antes de entrarmos nestes tópicos, cabe-me agora fazer uma reflexão sobre
meu próprio papel como pesquisador e, ao mesmo tempo, intérprete e músico de choro
ligado, por diferentes maneiras, a vários destes atores sociais citados no parágrafo
anterior. Esta posição, se por um lado facilitou muito o trabalho de entrevistas (pela
proximidade que eu tinha com muitos dos entrevistados), por outro lado levanta a
tradicionalmente de uma pesquisa científica. Tal reflexão está ligada, de maneira mais
premissas da antropologia clássica, tal como apontado por Clifford (1998:17-59). Para
256
este autor, tal crise seria resultado direto do processo de desintegração e redistribuição
do poder colonial nas décadas posteriores a 1950, das repercussões das teorias culturais
radicais dos anos 60 e 70, e da percepção, cada vez mais acentuada nas últimas décadas
do século XX, de que o Ocidente não poderia mais se apresentar como “o único
período que vai de 1900 a 1960) eram calcados na relação entre a figura do antropólogo
etic” (Travassos, 2006), o que acaba por criar o mundo de “etnografia generalizada”
citado por Clifford. Assim, as perspectivas de mediação e análise não mais se limitam à
contrário, soma-se a esta figura uma cadeia de mediadores formada pelos mais diversos
atores sociais, que buscam, continuamente, “traduzir valores e idéias de um grupo social
Aplicada ao presente trabalho, esta reflexão nos ajuda a situar nossas próprias
forma geral – e cada um deles me passou a sua “visão” sobre meu objeto de estudos.
Nem sempre estas visões estavam de acordo com a minha própria concepção sobre o
livro; por outro lado, muitas vezes as entrevistas me fizeram ter novos ângulos de visão
sobre o livro, assim como, tenho certeza, minhas próprias idéias sobre a obra de
interlocutores também estava interessada nos objetivos e nos resultados que eu já tinha
obtido em minhas pesquisas sobre O Choro: assim, em algumas delas eu acabei também
sendo entrevistado. Desta forma, tenho total consciência de que meu próprio trabalho,
longe de se constituir como algo “definitivo” sobre meu objeto de estudos, é mais um
elo nesta cadeia de mediadores. Dentro desta perspectiva, minhas atividades como
instrumentista e músico de choro – em outras palavras, como alguém “de dentro” deste
meio – me conferem peculiaridades que, a meu ver, não invalidam minha capacidade de
Barz e Cooley, 1996), influenciados sem dúvida pela crise da autoridade etnográfica
258
entrevistar músicos de choro mais antigos: procurava, entre outras coisas, saber se eles
teriam tido contato com membros do grupo descrito por Alexandre Gonçalves Pinto e
poderiam prestar mais informações sobre o próprio carteiro. A segunda frente buscava
se seria possível levantar mais dados biográficos sobre meu personagem. E finalmente,
na terceira frente busquei entrevistar atores sociais da atualidade que tivessem sido
influenciados pela leitura do livro, e, mais ainda, que tivessem atuado de alguma forma
entrevistas era o de tentar encontrar músicos que de alguma forma tivessem tido
contato, se não com o próprio, pelo menos com membros do grupo descrito por
Gonçalves Pinto. Como vimos no primeiro capítulo, houve, a partir da década de 1920,
antigos chorões descritos por Gonçalves Pinto. Conforme Tinhorão (1998a), o advento
festas animadas por músicos de choro, mote principal do livro do carteiro. Da mesma
musical, tal como a dos jazz-bands, foxs-trotes, etc., teria, no dizer de Tinhorão,
determinado a percepção de que o “tempo” dos chorões descritos por Pinto já era
“passado”.
Vimos ao longo do capítulo três que esta questão não era tão simples como
quer nos fazer parecer Tinhorão: o próprio Gonçalves Pinto saudava os instrumentistas
259
de choro que se profissionalizavam nas rádios e estabelecia um elo de ligação entre eles
e os instrumentistas do passado. Ao falar sobre a polca, como vimos, ele chega a fazer
Nelson Alves – para reforçar esta linha de continuidade entre o “passado” e o “presente”
do choro. Entretanto, é inegável que, para boa parte daquela comunidade descrita no
presença de músicos, ainda que diletantes, passaram em grande parte a ser animadas ao
som dos discos e rádios; as práticas sociais e musicais em torno dos termos “polca” e
“modinha” passaram a ser cada vez menos populares, em detrimento de novos “gêneros
musicais” como o samba, por exemplo. É certo, entretanto, que pelo menos uma parte
músicos, ainda que certamente mais escassas, até a década de 1960, pelo menos. Tais
reuniões foram muito pouco documentadas até o presente momento, e parte do meu
Boa parte das dificuldades decorria do fato de que as memórias destas reuniões
dos poucos remanescentes do grupo descrito por Gonçalves Pinto eram (e continuam
os escritos de Jota Efegê das décadas de 1960 e 1970: um exemplo é a sua descrição das
(como vimos) do rancho Ameno Resedá e chorão descrito por Gonçalves Pinto em seu
livro. Estas rodas teriam perdurado até a década de 1970, quando da morte de Napoleão,
já na casa dos noventa anos (em 1973, mais especificamente). Em uma crônica datada
de 1976, intitulada “O animado choro terminava com a gostosa sopa do Napoleão”, Jota
260
Efegê nos dá um vívido retrato do que eram estes encontros. O mote da crônica é saudar
a criação, por Mozart de Araújo e “um grupo de gente moça” de um Clube do Choro:
davam “apoio aos novos conjuntos” que surgiam ligados ao gênero, o articulista
guarda” que haviam perdurado até “bem pouco tempo”. Entre eles estava a
dizer de Jota Efegê, músicos como Léo Vianna, irmão de Pixinguinha, ao violão;
Bereta e Neca na flauta; Juvenal e Nascimento no clarinete; Nico e Paes Leme nos
demais músicos, segundo Efegê, estavam na casa dos quarenta anos (com exceção de
Deo Rian, mais novo). O fato de ser o mais velho não impedia Napoleão de “comandar”
261
Naturalmente, o curto artigo de Jota Efegê não nos permite saber com mais
detalhes aspectos que seriam de grande importância no âmbito deste trabalho e que nos
permitiriam fazer possíveis comparações com os ambientes das rodas descritas por
Gonçalves Pinto: dados como o tipo de repertório tocado por estes músicos, a existência
ou não de álbuns de partituras nas rodas, a relação entre os músicos, o grau de destreza
do bandolinista Déo Rian, hoje na casa dos sessenta anos. Nascido em 1944 em
Seu Moacir Arouca era da velha guarda, tocava clarinete pra caramba, foi quem me
ensinou a tocar bandolim, sem tocar bandolim. Ele era tenente do exército, músico.
Tocava pra caramba, lia “de cara”, solfejava, tudo... Chorão de primeiríssima
qualidade. Tocava na gafieira do Méier (idem).
significava apenas que este músico já tinha certa idade (“ele já tinha 60 e poucos anos
nesta época”, diz Déo no decorrer da entrevista), mas principalmente que ele pertencia a
bandolim francês:
262
Eu ia de bicicleta pra casa dele na Taquara. Ele me dava aula no porão, ele estudava
ali. Ele ficava com uma varinha, pegava o método Cristóphal — é um método francês,
traduzido pro português, eram dois volumes. Eu só estudei o primeiro, [quando]
comecei a estudar o segundo ele ficou doente e faleceu. Ele [Moacir] botava o método
e dizia: “faz isso aqui”. Aí eu fazia a lição, não estava boa, ele dizia “não, esta lição
não está boa não, faz novamente, vai fazendo isso aí” Aí ele saía. E eu ficava fazendo.
Se eu errava uma nota, mesmo de longe ele gritava, “não, a nota não é essa aí não”
(idem).
“repertório de choros”, repertório que “seu Moacir” tinha todo manuscrito em cadernos:
Ele tinha tudo em cadernos, aqueles cadernos horizontais, tinha tudo ali. Tanto é que
eu tive um caderno dele, não sei pra quem eu emprestei, era um caderno com vários
choros dele. Eu emprestei pra alguém, não me devolveram e perdi. Ele tinha vários
choros bons (idem).
em Jacarepaguá e nos subúrbios do Rio de Janeiro: entre estas rodas estavam duas que
eram formadas, no dizer do próprio Déo, por “gente da velha guarda”. A primeira era
Este Retiro da Velha Guarda, aí muito mais tarde, eu tinha lá para os meus 14 ou 15
anos, foi um senhor chamado Amorim que me levou pra lá — ele era um seresteiro,
foi até ele quem levou o Jacob pra morar lá em Jacarepaguá. O seu Amorim era um
detetive aposentado. Ele tocava um pouquinho de violão, gostava de cantar... Ele
conhecia a turma toda da Velha Guarda. Eu conheci o seu Amorim em uma roda de
choro em Jacarepaguá, que ele freqüentava aquelas rodas, junto com os chorões de
lá, e coisa tal. Aí eu o conheci e ele gostou muito de mim, ficou meu amigo demais,
e aí me levava pra todos os lugares. Um dia ele chegou pra mim e disse: “Garoto,
vou te levar lá no retiro da Velha Guarda” (idem).
O que era, afinal, o “Retiro da Velha Guarda”? É o próprio Déo quem responde:
O Retiro era uma reunião da turma da Velha Guarda. Era uma reunião aos domingos,
na parte da tarde. Era na casa do senhor João Dormund, um funcionário da casa da
Moeda, um cara fabuloso, espetacular. Ele tocava violão, pouco. Ele quase não
tocava na verdade. Mas adorava aquela música. Tinha um jantar, seu João fazia
um jantar, fazia uma macarronada, um negócio qualquer... Ia até mais ou
menos umas nove ou dez horas da noite e começava por volta de uma ou duas
da tarde (idem).
263
Sobre João Dormund, além do fato de ter sido funcionário da Casa da Moeda,
tocar pouco ou “quase nada” e ter falecido “lá por 1966, 1967”, Déo não pode precisar
esta reunião era denominada pelos próprios como o “Retiro da Velha Guarda”. Antes de
se reunirem na casa de João Dormund, o “Retiro” já existia, como explica Déo, na casa
de um outro violonista chamado Alcebíades Vieira Nunes. Com sua morte “a reunião
passou a ser na casa de João Dormund, sendo que eu não cheguei a freqüentar a casa do
bandolinista relaciona:
de Déo Rian, alguns aspectos podem ser ressaltados, além do próprio fato de que boa
parte de seus membros já beiravam setenta ou oitenta anos. Um deles diz respeito ao
repertório tocado, que era formado quase que exclusivamente por compositores também
identificados como sendo “da velha guarda”, ou seja, os compositores que formavam
uma espécie de cânone do choro – cânone “construído” durante décadas pelas práticas
musicais das rodas e pelos discursos que as acompanhavam, como é o caso do livro “O
contavam histórias sobre eles. O já citado Napoleão de Oliveira, por exemplo, então
com quase noventa anos tinha, segundo depoimento de Déo “sido amigo do Nazareth,
264
conheceu Mário Cavaquinho, contava várias histórias do Mário”. Assim, não há dúvida
que um dos fatores que ligavam aqueles músicos era o conhecimento de um repertório
membro no grupo, e que aparece exemplificado na forma como o próprio Déo relata ter
instrumentista também identificado como “da velha guarda”, o que fez com que Léo
Vianna se virasse para os membros do grupo, chamando atenção para o fato de que o
novo elemento “era aluno do Arouca”. E o segundo, decisivo, foi o fato de Déo ter
tocado “um choro do Antonio Maria Passos”. Antonio Maria Passos era flautista, tendo
além de ter feito parte do “Conjunto Chiquinha Gonzaga” e do grupo “Passos no Choro,
que realizou diversas gravações para a Casa Edison na década de 1910. Em outras
Retiro “ficassem malucos” com aquele jovem bandolinista. A partir daí, Déo passou a
integrar o time de músicos que freqüentava o “Retiro” e se tornou mesmo amigo pessoal
265
muito meu amigo, ele ia lá em casa me buscar [para as reuniões do Retiro]”, diz Déo em
meio ao depoimento.
descrito pelo Animal diz respeito à forte ligação que eles mantinham com os acervos
Jacob do Bandolim, como vimos no quarto capítulo. Da mesma forma que Manuel
Pedro, o próprio João Dormund, em cuja casa se davam as reuniões do “Retiro”, tinha,
cadernos manuscritos, alguns escritos por ele mesmo e outros “herdados” de chorões
mais antigos. Pelo depoimento de Déo, percebe-se que havia uma contínua troca destes
cadernos manuscritos entre os solistas: tal como algumas descrições do livro do Animal,
eram comuns as rodas onde os solistas tocavam lendo e também as cópias de partituras
próprio Déo afirma ter “herdado” alguns dos cadernos de seu mestre Moacir Arouca;
vimos no capítulo anterior que vários dos cadernos de solistas do Retiro foram
266
Finalmente, há outro fator que estabelece uma forte ligação entre a narrativa
do Animal e as rodas do Retiro da Velha Guarda, e que fica patente neste trecho do
Tinha uma coisa curiosa nas rodas do “Retiro”. Sempre que eu ‘mandava’ um
choro mais moderno, do Jacob, do Altamiro ou de outro compositor, eles sempre
acompanhavam como se fosse polca. Podia ser o choro mais “sambado” que
tivesse, o ‘Bole-bole’, por exemplo, o acompanhamento era sempre de polca. Eu
até cheguei a comentar isso com o Jacob, lembro que ele disse: ‘quando eles te
acompanharem assim, você não liga não, é o jeito dos velhos acompanharem’
(idem).
“O jeito dos velhos acompanharem” era, portanto, baseado nas figuras rítmicas
da polca. Vimos, no capítulo três, como figuras rítmicas típicas do samba do Estácio
que envolveu músicos de choro ligados às rádios e ao disco que acompanhavam artistas
de samba de forma geral. A partir desta década este novo padrão rítmico – que poderia
ser caracterizado como “choro-sambado” – seria utilizado em boa parte dos choros
intérpretes como Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Luiz Americano, entre outros. Ora,
como frisado anteriormente, este é sem dúvida uma espécie de turning point do choro:
gêneros tais como schottisch, valsa e quadrilha – sendo que esta última estaria fadada ao
expressão dos chorões “da velha guarda”. “Naquela época tudo era polca”, nos diz
“o jeito dos velhos acompanharem”, nos diz Jacob através do depoimento de Déo.
instrumentistas mais antigos que até a década de 1970 permaneceu infenso aos novos
267
padrões do “choro-sambado” e manteve viva a polca como sua principal forma de
expressão musical. Poderíamos dizer que estes músicos eram, de certa forma,
seria (de acordo com o depoimento de vários músicos, inclusive o de Déo Rian) o
polca (com suas variantes) passaria a ser associado a uma “levada antiga”: a “forma dos
velhos acompanharem”. Ressalte-se que este padrão não deixará de existir no choro da
segunda metade do século XX, mas será sempre associado a uma forma antiga de se
tocar: por outro lado, os instrumentistas mais velhos passam a se identificar como
expressão. Para eles, assim como para nosso velho carteiro, a polca continuava sendo a
Choro” na década de 1990: a revista “Roda de Choro”, surgida em 1995 por iniciativa
do livreiro Rodrigo Ferrari e do designer Egeu Laus. A revista teve cinco números,
editados entre os anos de 1995 e 1998, e recebeu o apoio da Fundação RioArte, órgão
ligado à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Sua finalidade era apresentar artigos,
choro, cartas dos leitores, partituras, etc. Em seu primeiro número, datado de novembro
268
de 1995, um editorial, assinado pelo designer e amante do choro Egeu Laus, explica os
propósitos da revista:
Revista, boletim, informativo, folheto, fanzine. Não sabemos bem como chamar
esta publicação. Sabemos, sim, dos horizontes da nossa viagem: música, hoje.
Tradição e modernidade. (...) De todos os cantos e de todas as épocas, do oficleide
ao sintetizador, da pena de ganso ao Macintosh, perpassando todos os gêneros, sem
atravessar o ritmo, sincretizando Europa e África, juntando pretos, brancos e
bugres: é o brasileiro e centenário som do choro. É nele e com ele que resolvemos
falar. Não um lamento saudosista mas uma roda viva de choro, no tempo e no tom
de 1995, juntando arranjadores, instrumentistas, cantores, pesquisadores, músicos e
poetas, colecionadores, estudantes, produtores, e principalmente você, tarado por
choro mas isolado na sua aldeia (Laus, Egeu, In: Revista Roda de Choro, n. 0,
1998)
mostrar também o lado “histórico” do choro. Não por acaso faziam parte do corpo
269
Desta forma, já no “número zero” da revista aparece a primeira coluna, que é
dedicada a traçar uma breve biografia de Alexandre Gonçalves Pinto para o grande
público. Assinada pelo editor Rodrigo Ferrari, ela procura ressaltar a importância do
Através do Animal é que podemos conhecer um pouco mais dos músicos cariocas
da virada do século, tanto os que depois fariam sucesso quanto os que cairiam no
esquecimento. Ele cita, por exemplo, Alfredo Vianna, melodioso flauta que viria a
ser nada menos que pai de Pixinguinha. Nessa época o Pixinga já havia se exibido
até na Europa com os Oito Batutas, então Alexandre priva-se de fazer muitos
comentários sobre ele, já que todo mundo sabia de quem se tratava. Percebe-se
assim que a preocupação do cronista era mesmo falar dos chorões anônimos,
aqueles que fora das rodas não eram ninguém. Óbvio que ele cita vários
medalhões, como o próprio Catulo, Anacleto de Medeiros, etc, mas o mais
sensacional do livro são as páginas que falam dos desconhecidos amigos do
Animal: figuras fantásticas como Honório do Thesouro, Pedro Sachristão, Luiz
Gonzaga da Hora, João da Harmônica, enfim, chorões sem currículo – na sua
maioria funcionários públicos – que ele reverencia maravilhosamente, traçando
seus perfis musicais, desvendando seus hábitos e manias (Ferrari, Rodrigo In:
Revista Roda de Choro, no. 0, 1995)
270
Figura 5: “Histórias do Animal” na Revista Roda de Choro
A partir do próximo número, vocês ficarão em companhia do Animal. Ele vai contar
histórias do arco da velha apresentando um retrato fiel do Rio de Janeiro do seu
tempo, com seus personagens e a sua música. Nossa equipe de reportagem promete
continuar batalhando, buscando informações e fatos novos sobre nosso ilustre
colaborador. Aqueles que souberem algo a respeito podem contribuir conosco,
enviando carta ou fax para a Coluna do Animal (id.)
A ideia, portanto, era fazer uma brincadeira onde a figura do Animal fosse
“revivida”, e ao mesmo tempo, como se vê pelo trecho acima, tentar amealhar novos
271
dados sobre o carteiro, a partir de uma possível colaboração de leitores que
Desta forma, o próximo número da revista já trará a primeira coluna “escrita pelo
Animal”. Intitulada “A volta do Animal” ela começa com uma pequena explicação onde
Orgulhosíssimo! Assim me senti quando convidado pela Revista Roda de Choro para
fazer parte dessa empreitada. Nunca fui um bamba da gramática nem pensei figurar
entre os colaboradores de qualquer periódico, mas convite tão delicado é difícil
declinar. Prometeram que meus escritos seriam sempre minuciosamente revisados,
sendo os possíveis erros responsabilidade deles, que não corrigiram os meus. Assim,
fico à vontade para contar coisas que eu vivi enquanto estava em plena atividade
entre os vivos – muitas registradas em meu livro “O Choro”, de 1936 – e também as
que presenciei aqui, lugar distante mas com boa vista (id.)
Sempre escrita pelo editor Rodrigo Ferrari, a coluna passará então a recontar
“voltado”. Tal como no livro original, a ideia era satirizar também alguns “casos”
Pinto. Segundo Ferrari, uma das questões que surgiram quando se concebeu a idéia da
272
Me dei a licença de reescrever um pouco a gramática e o português, porque se não
ficaria uma coisa completamente anacrônica, mas eu tentei preservar as expressões e
o caráter geral do texto. Eu só mudei umas coisas que tinham erros que muitas vezes
nem eram do Animal, eram erros de tipografia mesmo, de composição. Porque ali
tem isso: o livro tem muito erro do Animal, muito erro que pode ser creditado a ele,
mas também tem muito erro que é da gráfica, erros de composição de tipos. Então já
na primeira coluna eu coloquei o Animal falando que a revista tinha se
comprometido a revisar os seus textos, uma brincadeira pra explicar um
pouco desta modernização da linguagem (Ferrari, entrevista realizada em 5 de
janeiro de 2011).
Na mesma coluna, o “Animal” ainda parabeniza Ary Vasconcelos pelo seu aniversário
de setenta anos, dizendo-se “sempre agradecido” pelo fato do pesquisador ter sido
responsável por sua “redescoberta” para toda uma geração de “chorões de hoje”. Nos
quatro números que se seguem, as colunas misturam “causos” tirados do livro com
Eu passei a prestar atenção nas histórias que aconteciam em torno do ambiente das
rodas que de certa forma remetessem ao ambiente descrito pelo Animal. Nessa
época da revista nós passamos a fazer muitas rodas, então sobravam histórias. Em
alguns casos eram histórias que eu ouvia de freqüentadores de rodas, como a
história do “molho” que aparece no número três. Em outros casos eu mesmo fui
testemunha ocular destes casos, como a história da “cítara do Avena” que aparece
no número cinco. E aí eu procurava escrever incorporando o “jeito” do Animal
(entrevista com Rodrigo Ferrari, realizada em 5 de janeiro de 2011).
Salvador Marins, flautista que sempre que chegava a uma roda de choro ia primeiro à
cozinha do anfitrião verificar se o “gato estava dormindo no fogão” faz par com outra
história da atualidade, que segundo Ferrari lhe foi contada pelo arquiteto e amante do
273
choro José Leal. É a história de um “penetra” que aparecia rotineiramente em uma casa
de família na hora do almoço ou do jantar para filar a bóia; sendo convidado para a
mesa, fazia antes “mil encenações”, recusando o oferecimento do anfitrião, “uma vez
que não queria incomodar”, mas acabava, após muita insistência, indo sentar-se para
“regalar-se” com os pratos. Até que um dia, depois de muitos almoços e jantares
não mais insistir, sentando-se com a família e ignorando o indesejado elemento, que
ficou na sala “ouvindo o tilintar dos copos e talheres”. Ouvindo alguém à mesa pedir
para que lhe passasse o molho, o “penetra” então grita da outra sala: “Ah! Tem molho?
Então eu quero!”.
Como se vê, são casos que relembram de certa forma as histórias do livro O
coluna, conforme proposta dos editores presente logo no número zero, era o de tentar
amealhar mais dados biográficos sobre Gonçalves Pinto. O leitor de nome Alfredo
Marques, da cidade de Petrópolis, envia então uma carta na qual soma suas próprias
Meu caríssimo Animal: como de regra, passa-se ao animal a tarefa mais penosa,
estafante, duradoura e útil. Veja o caso do bíblico jegue: prestou à humanidade
maiores e melhores serviços que todos os economistas acumulados desde José do
Egito. Coube assim a você o fardo de recriar no imaginário do respeitável público a
dignidade, ingenuidade, solidariedade, sensibilidade, e tantos outros ‘ade’, além do
humor, típicos dos viventes de seu tempo. Santo ofício, árduo, penoso, carga para
Animal mesmo (Marques, Alfredo In: Revista Roda de Choro n. 2).
274
Logo em seguida, o leitor passa a desfiar suas próprias memórias, que se
Sabe, se eu não tivesse sido um ‘pirralho’ tão cioso de seus próprios negócios, teria
hoje algumas histórias do Animal para contar a você. Quero dizer do próprio Sr.
Alexandre Gonçalves Pinto, companheiro de meu pai no antigo DCT. Meu pai (...)
em 1941 (...) resolveu falar do Animal, sempre se referindo aos excepcionais
conhecimentos de seu amigo nas rodas de choro do início do século (...). Acontece
que eu não levava os adultos muito a sério (...) meus pensamentos divagavam em
paragens absolutamente imprevisíveis como a de recuperar a hegemonia dos ares
perdida para o Valzinho em memorável batalha aérea, falha do meu cerol (...); ou
como recolher o maior número de trapos velhos para o enchimento de uma bola de
meia (...). Assim (...) perdi as histórias do Animal contadas por meu doce pai. (...)
(mas) pode estar certo de que estarei entre os seus mais assíduos e fervorosos
leitores (idem).
dissemos. Embora não revele novos dados biográficos relevantes sobre Gonçalves
Pinto, ela é altamente simbólica pelo fato de posicionar a figura do “Animal” como
mundo específico: o choro antigo. Trata-se de um processo que poderia ser apontado
como uma dupla mediação: de um lado temos o livro onde Gonçalves Pinto constrói
suas memórias ligadas às práticas sonoras e sociais ligadas ao choro para os leitores da
criada pelos editores da revista “Roda de Choro”, funcionando como uma espécie de
275
“recriação” do livro para os leitores da atualidade. Esta última mediação envolve
carnavalesco do carteiro e que são em parte trazidas por pessoas do ambiente do choro
(como foi o caso da história do “molho”, contada originalmente pelo arquiteto, amante
do choro e amigo pessoal de Rodrigo Ferrari, que a recontou na coluna) e em parte fruto
da observação direta do autor da coluna, que passou a “ prestar atenção nas histórias que
depoimento citado. Desta forma, o “Animal” passa a ser, graças à mediação destes
Não foi apenas como personagem histórico que Gonçalves Pinto foi alvo de re-
significações para a atualidade. Seu livro também serviu como ponto de partida para um
Acari Records foi definida por seus criadores como “a primeira gravadora do país
276
especializada em choro”. Como dito no início deste capítulo, boa parte de seu catálogo
é voltado para o registro do repertório do choro do século XIX e inícios do século XX;
Inventário do Choro - que reuniu cerca de oito mil partituras de choro, entre
Gonçalves Pinto traça o perfil de todos os chorões da velha guarda e grande parte
dos chorões de seu tempo com uma narrativa espontânea e despretensiosa. Apesar
dos erros grosseiros de sua escrita, produziu um dos mais legítimos depoimentos da
história da música popular brasileira. Por ser o Animal um músico que viveu e
testemunhou a fase da história da música do Brasil que trazemos à luz nesta coleção,
recorremos aos seus textos ao longo de todo o trabalho e eles são aqui
incansavelmente citados. A existência de vários compositores cujas partituras se
encontram nos cadernos de chorões do século XIX pôde ser confirmada a partir de
seu livro. Seus escritos foram referência e muitas vezes nortearam a pesquisa,
esclarecendo muitos aspectos desconhecidos da vida e da obra dos cinqüenta autores
aqui registrados (Encarte da Coleção Princípios do Choro – Acari/Biscoito Fino,
2002)
Entretanto, uma das questões que procurei formular aos músicos membros da gravadora
e também participantes das gravações foi de que maneira eles tomaram conhecimento
do livro e qual teriam sido suas primeiras impressões de leitura. De modo geral as
277
respostas mostram um estranhamento inicial. É o caso do depoimento do bandolinista
Pedro Amorim, por exemplo, um dos músicos presentes nas gravações da coleção:
Rabello:
Conheci o livro do Animal através de meu irmão e jornalista Ruy Fabiano, que na
época era crítico de música aqui no Rio. Eu tinha 15/16 anos e achei a linguagem
bastante engraçada, curiosa. O que mais estranhei, num primeiro momento, foram os
muitos erros de gramática (Luciana Rabello, depoimento ao autor dessa tese em 20 de
dezembro de 2010).
tempo pelas novas perspectivas que a obra abria. Para Luciana Rabello, o fato de ter
278
O violonista Mauricio Carrilho também relata o seu estranhamento inicial
sobre o livro e chama a atenção, em seu depoimento, para o fato de que a obra de
Ninguém falava desse livro antes do relançamento em 1978, que eu saiba. Nunca
ouvi qualquer menção a ele por parte dos instrumentistas mais velhos. Quando esse
livro foi relançado, eu comprei na Funarte. Comprei orientado pelo Hermínio [Bello
de Carvalho, produtor cultural]. Comprei e li, mas na época eu não entendi a
dimensão que ele tinha. Foi só quando eu reli esse livro há uns quinze anos atrás,
quando eu voltei a ter acesso a este livro – porque o meu eu tinha emprestado, aí
sumiu, eu acabei comprando um outro – aí é que eu vi que era a chave para
desvendar esse buraco negro, esse elo perdido das primeiras gerações do choro. A
gente estava querendo saber quem eram as pessoas, como é que era essa música, e
esse livro mostrava todos os caminhos, todos os ambientes, todas as figuras
principais (Mauricio Carrilho, depoimento realizado em 20 de janeiro de 2010)
Carrilho chama a atenção para o fato de que havia, antes do início do trabalho
choro do século XIX. Segundo seu depoimento houve uma “quebra” de continuidade de
de choro atuantes no ambiente da rádio e do disco, que fez com que a maior parte do
279
compositores e obras deste período. Um desses solistas, apontado por Carrilho, é o
Quem primeiro me chamou a atenção pra dimensão desse repertório mais antigo foi
o Leonardo Miranda. Conheci ele em rodas no final da década de 1980, início da
década de 1990. O Léo começou a tocar um monte de música do Callado, ele
começou a apresentar uma quantidade de músicas desses caras que a gente conhecia
uma ou duas, que eu fiquei impressionado. Várias do Callado, do Anacleto, tudo
coisa que eu não conhecia. Aí eu comecei a perceber que isso era uma mina de ouro,
e que estava inexplorada, estava perdida. Aí eu fiz um projeto [Inventário do Choro]
para fundação Rio Arte pra recuperar esse material; o projeto tinha como norte o
livro do Animal, pelo fato de que ele continha boa parte dos nomes que eu estava
buscando (idem).
gravadora Acari lançou também, em parceria com o Banco do Brasil, uma caixa com a
íntegra das obras de Joaquim Callado encontradas em arquivos dispersos pela cidade,
de “resgate” deste repertório, Carrilho salienta o fato de que as gravações realizadas não
de que a quase totalidade das partituras de compositores do século XIX não tinha
qualquer indicação sobre o acompanhamento rítmico e harmônico que deveria ser dado
280
da música nem as características mais evidentes, mas acrescentamos situações
harmônicas que “lincam” as pessoas de hoje ao repertório do século XIX. O cara
consegue entender a música do século XIX porque ela fica com um acabamento de
sonoridade, de harmonização e de sincronia rítmica; e também um acabamento de
técnica ligada a sonoridade dos instrumentos atuais, às condições modernas de
gravação – todo desenvolvimento técnico e tecnológico dos últimos tempos, enfim –
a gente usou isso pra recriar essa música. Do contrário a gente cairia em uma coisa
que eu acho destestável que é a ‘folclorização’ do choro (idem)
harmônicas e rítmicas das gerações do choro da segunda metade do século XX. Dessa
rítmicas do samba no choro para uma releitura deste repertório antigo. Esse processo
281
na tradição oral e como a gente não tinha acesso, na época, às gravações de
quadrilha do início do século, a gente meio que reinventou a quadrilha. Nas nossas
gravações elas ficaram menos dançantes, e a gente explorou mais a beleza
melódica das quadrilhas. As melodias eram lindas e a gente fez harmonias mais
ricas, com um andamento mais lento. Tudo isso pra virar uma música pra se ouvir,
e não pra se dançar. Porque na época era uma coisa muito funcional e acho que é
justamente por isso que ela parou, por isso que as pessoas pararam de compor. E a
partir desse tratamento que a gente deu, muitas pessoas voltaram a compor
quadrilha na atualidade. Eu acho que quadrilha foi um gênero que a gente
ressuscitou. Assim como outros, como lundu, habanera. Ninguém tocava mais
essas coisas, nem os “velhos” da geração do Meira e do Canhoto (idem).
Percebe-se dessa forma que, se por um lado o livro é um dos elementos (talvez
compositores antigos, sua utilização, conforme fica claro no depoimento acima, nem
quadrilha, em que pese o fato de Gonçalves Pinto realizar uma descrição bastante
mais lento1.
foi o de que a leitura do livro de Gonçalves Pinto não funcionou apenas como estopim
Um dos grandes legados, até mesmo emocionais, trazidos pela leitura do livro é a
maneira despojada, simplória, natural e despretensiosa com que ele descreve essas
personalidades e todo o cenário social da época. Faz-nos entrar em contato com a
verdadeira origem da cultura carioca. Transporta o leitor àquele ambiente. E talvez o
mais importante: prova que o choro nasce como uma forma de expressão coletiva,
uma música de encontro, de congraçamento. E, por acreditar ser esta sua maior
1
Para maiores informações sobre o processo de “recriação” da quadrilha por músicos da Acari Records
remeto o leitor ao meu artigo “Aspectos de mudança e continuidades no choro: o caso da quadrilha”
publicado nos anais da ANPPOM 2009.
282
riqueza, considero o livro do Animal único e importantíssimo documento histórico
(depoimento de Luciana Rabello)
Eu acho que o livro nos mostra principalmente o ambiente onde a música era
tocada e a forma como a música era feita. Aí você começa a fazer a relação com o
que você mesmo viveu, porque a gente pegou um pouco disso ainda. As rodas,
quando eu comecei a tocar, adolescente, tinham essa função ainda. Essa função
social mesmo de juntar pra tocar e beber e comer. Era uma coisa só. Então as festas
em que rolavam rodas eram festas que tinham comida dois dias seguidos. Cansou
de ter festa na minha casa que começava sábado de manhã e seguia direto até
domingo de tarde. Então era bem parecido com as situações descritas no livro
(Mauricio Carrilho, depoimento em 15 de janeiro de 2011).
Por outro lado, processos de ruptura são também identificados. Uma das
questões levantadas por mim durante o processo de entrevistas era de que forma os
A grande diferença do choro ali descrito [no livro do Animal] e o de hoje, reside
exatamente nesse aspecto: os chorões de hoje (ao menos os da minha faixa etária)
pouco se encontram com esse despojamento e pra tocar choro unicamente por
prazer. Talvez pelo fato da nossa geração ser a primeira a ter podido se dedicar
profissionalmente exclusivamente ao choro, esses encontros deixam de ser
relacionados aos momentos de lazer. Naturalmente, há aspectos positivos e
negativos em ambas as épocas. Não fica aqui uma crítica ao momento atual.
Apenas a constatação que os estímulos são diferentes e, por consequência o
comportamento, tendo reflexos na própria linguagem musical. Hoje é comum numa
roda de choro o músico/compositor levar partituras quando pretende mostrar uma
nova composição. Esse chorão contemporâneo tem por desafio não apenas exibir
sua capacidade de acompanhar "de prima", mas mostrar melhor acabamento,
melodias e harmonizações mais ousadas e surpreendentes, em busca de novos
caminhos. É natural que o criador que teve acesso a informações de épocas
posteriores seja motivado a isso. Por termos na nossa cultura musical compositores
283
como Ernesto Nazareth, Pixinguinha e alguns outros, não sei se podemos chamar o
que descrevo acima como um processo de evolução, mas com certeza são
características de um novo tempo (Depoimento de Luciana Rabello)
ligada a ideia de “trabalho”. Por outro lado, o depoimento sugere que a “sofisticação”
apontada como um fator de ruptura com o universo descrito por Gonçalves Pinto, já
onde os solistas levavam seus cadernos manuscritos. No entanto, é preciso frisar que nas
rodas descritas pelo carteiro, assim como no Retiro da Velha Guarda, descrito no tópico
anterior, apenas os solistas liam; o acompanhamento era todo “de ouvido” e o que
qualificava um bom acompanhador era sua capacidade de não “cair” isso é, de não
cometer erros de harmonia. O depoimento de Luciana Rabello aponta para o fato de que
284
a “sofisticação” harmônica das composições atuais teria levado à necessidade de que
Finalmente, outro dado importante presente nas entrevistas por mim realizadas
com os músicos ligados a gravadora Acari aponta para a interpretação do livro não
apenas como um “discurso de origem”, uma narrativa ligada ao passado; mas pelas
às perspectivas do futuro:
Para mim o livro do Animal não só salvou o choro do século XIX mas salvou
também o choro do século XXI. Porque ele foi a referência, a bússola pra gente
fazer vários trabalhos que resultaram em um monte de desdobramentos como é a
própria Acari e como são as diversas oficinas de choro que a gente faz no mundo
todo. A gente tinha no sangue essa música, mas não tínhamos material musical que
fechasse o circuito da relação entre a música do século XIX e a música do século
XX, e a gente só conseguiu chegar a esse material, que é essa coleção imensa de
partituras, por causa do livro do Animal. No fundo é um livro do passado que
modifica o futuro; toda a nossa forma de compor e de tocar foi alterada pelo
conhecimento dessa música do passado, proporcionada pelo livro (entrevista com
Mauricio Carrilho)
Em suma, o livro de Gonçalves Pinto é tomado não apenas como estopim para
como uma narrativa mítica das origens do choro, e por outro, como projeção do futuro,
conforme se percebe por este último depoimento. Creio que caberia aqui uma reflexão
transformado em diretriz para o futuro. Neste sentido, podemos retomar aqui o conceito
musicais passaria necessariamente pelo enfoque da narrativa. Esta seria uma forma de
285
grupos constituem sua identidade do presente e projetam suas expectativas para o
história do choro, o grupo de músicos ligados à gravadora Acari está, de certa forma,
construindo seu próprio passado e escolhendo, entre vários discursos que nos chegam
através da história, aquele que mais convém à situação do presente. Falamos em eleição
de uma narrativa mítica: cumpre salientar que não se sugere com isso que tal narrativa
seja falsa. Como demonstrou Sahlins (2008: 44-52) estruturas míticas e simbólicas estão
dialético. Mais uma vez se percebe aqui uma dupla mediação: o discurso do carteiro
elege uma série de elementos que serão tomados como símbolos da identidade do choro,
o que inclui figuras que se tornarão míticas (como Callado), um repertório específico
serão apontados como paradigmáticas (festas com comida e bebida, encontros entre os
aspectos que configuram identidade e homogeneidade ao grupo. Por outro lado, seu
contexto histórico completamente diverso daquele em que o livro foi escrito, como uma
processo é mais complexo do que parece ser à primeira vista: não se trata de
e sociais que o compõem, aquelas que serão tomadas como pontos de partida para novas
que envolve recriação, seja de práticas musicais do passado que são reconfiguradas,
como é o caso da quadrilha (regravada com andamento mais lento e com uma
286
abordagem harmônica diferente da original), seja de situações sociais específicas que
serão vistas como paradigmáticas, ainda que não tão presentes na atualidade, como o
história infantil. Lançado em 2008 com o patrocínio da Petrobras, ele se insere, segundo
Brasileira para crianças”, que recebeu o prêmio Cultura Viva do Ministério da Cultura
em 2007. Com sua primeira tiragem sendo “quase inteiramente distribuída para
professores”, o livro tem forte apelo pedagógico, apesar de ser considerado por seus
autores mais como uma “obra literária” e não como um livro didático (Cit, 2008: 166).
adaptação da história original que utiliza elementos brasileiros: todos os temas musicais
decorrer da história. Os autores se utilizam em boa parte de choros que tem nomes de
Na história, o menino Pedro vive com sua avó Helena, com quem toma aulas de
música, e alguns bichos de estimação. Ao final de cada aula Pedro ficava “folheando um
livro antigo, presente de um bom amigo de sua avó no passado”, nada menos do que o
287
O curioso escritor do livro que Pedro olhava
tinha um estranho apelido que o deixou intrigado
sem entender o sentido do codinome adotado.
Uma história musical, pelo que a avó tinha dito,
e Pedro achava esquisito que quem a tivesse escrito
fosse por todos chamado de Animal. (Cit, 2008: 28)
O menino vai então pedir explicações à avó sobre o autor e a razão do apelido, o
que faz com que a velha leia a poesia de Max-Mar que abre o livro. Assustado com a
idéia de que um “Animal” havia escrito o livro, Pedro só presta atenção ao primeiro
verso: “Alto, já bem grisalho e urucungado”; mais assustado ainda, o menino decide sair
estimação. No caminho eles se encontram com outros animais que são incorporados ao
grupo; após muitas aventuras, já bem longe de casa e sem ter conseguido encontrar o
“animal” Pedro resolve escrever uma carta para a avó, se utilizando de um carteiro que
encontra pelo caminho, ninguém menos do que o próprio Alexandre Gonçalves Pinto. A
Acredite, pessoal, pois é a mais pura verdade. Sou chamado de Animal e, cá entre
nós amiguinhos, eu acho o apelido legal. Carteiro de profissão nas horas vagas eu
toco cavaquinho e violão. O livro que eu escrevi fala com toda a sinceridade de
gente que conheci tocando pela cidade.” (id.: 145)
O livro se encerra então com uma grande roda de choro com todos os
voltada para o público infantil chama nossa atenção mais uma vez para os processos de
2
Após o relançamento em 1978, O Choro ficou décadas sem reedição, passando a ser um livro de difícil
acesso. Em 2010 a Funarte fez uma segunda edição do livro. O Instituto Moreira Salles publicou em seu
sítio virtual uma versão em pdf.
288
re-significação do livro na atualidade. A autora Simone Cit nos fornece mais elementos
A ideia de Pedro e o Choro surgiu da obra de Prokofiev, em uma aula para crianças.
A partir dessa primeira ideia, passei a pesquisar choros com nomes de bicho para
construir o roteiro. Daí a pensar o Animal como o Lobo da minha história foi só um
pulinho na imaginação, não sei nem precisar o momento. Quando fiz o projeto (...) o
Animal já estava na história, mas eu ainda não tinha escrito o texto. E como ele é
todo rimado, muita coisa aconteceu que eu não havia previsto. Mas a intenção
sempre foi a de que o Animal fosse uma metáfora do conhecimento chorístico. O
choro não é um gênero solitário, longe disso... É a música das rodas, dos encontros.
Ao buscar o Animal, o nosso Pedro conhece choros e chorões... (Simone Cit,
depoimento ao autor, em 22 de janeiro de 2011, grifo meu).
construção de um imaginário do choro como uma música coletiva, “a música das rodas,
dos encontros”.
em primeiro lugar, um pouco das circunstâncias em que estas pesquisas foram feitas. No
ano de 2004, antes, portanto, de iniciar meu doutorado, fui convidado a integrar uma
equipe que reunia as pesquisadoras Anna Paes e Nana Vaz de Castro e que tinha por
Funarte já havia há muito se esgotado. A ideia era fazer uma edição crítica do livro,
e um de nossos primeiros passos foi a de pensar de que forma seria possível localizá-
los, se é que eles efetivamente existiam. O fato de que nem o próprio Ary Vasconcelos
289
conhecia dados sobre a vida pessoal de Gonçalves Pinto, como se depreende da leitura
do prefácio da reedição de 1978 nos fez supor que a edição da FUNARTE havia sido
prosaica possível: procurando em uma lista telefônica online pelo nome de “Alexandre
buscas por aquele telefone. Desta forma localizamos uma neta do “Animal”, D. Cleuza,
então com 79 anos. Conseguimos marcar então uma entrevista com ela, que foi
Cleuza. Cumpre dizer que nosso objetivo principal durante a visita era obter autorização
para uma reedição da obra: ainda assim levamos um gravador para entrevistar D.
Cleuza. Como afirmado anteriormente, na época eu ainda não havia nem sequer
formulado meu projeto de doutorado, e meu interesse na entrevista era o de alguém que
tinha lido o livro e que naturalmente tinha interesse pelo tema, mas que ainda não
tencionava escrever especificamente sobre ele. Transcrevendo a entrevista para esta tese
lamentei o fato de não ter feito algumas perguntas específicas, que teriam sido
que “estava muito esquecida”, lamentando a todo instante não poder nos dar dados
muito precisos sobre o avô. Segundo ela, Alexandre falecera quando ela ainda era
criança, e seu tempo de convivência com ele tinha sido curto, ainda que intenso. Ainda
290
assim, creio que a entrevista revela alguns novos dados sobre o carteiro, ainda que
D. Cleuza – Sou filha de Xandico, Alexandre Gonçalves Pinto Filho, que era
filho do Alexandre Gonçalves Pinto. Meu pai, assim como meu avô, era carteiro e
também tocava cavaquinho. Na minha casa sempre teve música. Na minha casa
freqüentou Jacob do Bandolim, Pixinguinha, o César Faria. O filho dele é o Paulinho
da Viola. Frequentaram minha casa, naquela época a gente fazia cervejinha... O Jacob
tinha uma coisa, quando tocasse todo mundo calava. Se falasse alguém ele parava. Ele
vinha na minha casa.
D. Cleuza – Meu avô teve seis filhos. Tem um que não era da minha avó, era
de outra mulher que ele teve, o nome dele era Otávio. Da minha avó tinha: Julieta,
Sefízia (tudo nome grego), tinha meu pai, que era Alexandre também; e tinha Yolanda.
São seis, não é? O nome da minha avó era Virginia. Tinha outro que era... Antonico.
O Otávio é que era filho dele com outra mulher. Ele vivia com ela, não chegou
a casar não... Foi a paixão da vida dele aquela mulher. Depois ele casou com a minha
avó. Tanto é que ele tinha escrito aqui (aponta o braço) – naquele tempo já se usava
tatuagem – o nome dela. Ele depois quis tirar, depois de muitos anos, mas não
conseguiu. O nome dessa outra mulher parece que era Amélia. Ou Aurélia, alguma
coisa assim.
D. Cleuza – Ah, quando eu não vou lembrar. Sei que ele se criou naquelas
bandas de São Cristóvão, Meier, por aí. Da onde é mesmo eu não me lembro. Quando
eu nasci ele morava no Engenho Novo. Porque o vovô sempre morou por lá. Não,
minto, vovô foi de Vila Isabel. Tem uma tia, esta Yolanda, namorou o Noel Rosa.
Quando eu nasci meus pais moravam em Vila Isabel também, na mesma rua que meu
avô. Os meus pais moravam em uma casa e o meu avô em outra casa, na mesma rua. E
depois viemos para Botafogo. Ele era agarrado com esta filha Julieta, que ele ajudava.
Viemos para São Clemente, Fernando de Guimarães, Arnaldo Quintella
291
desistiu, disse “vocês não estão querendo nada” (risos). Mas a vontade dele era que as
netas todas tocassem música.
Gonçalves Pinto, ainda que, em razão da idade avançada, D. Cleuza não pudesse dar
informações mais precisas. Assim, se não foi possível precisar seu ano e lugar de
nascimento, o depoimento de sua neta nos mostra que ele morou em Vila Isabel, tendo
posteriormente se mudado para Botafogo com a família. Neste bairro teria morado nas
mais provável é que esse contato tenha se dado após a morte de Alexandre; tendo em
292
vista que Jacob do Bandolim iniciou sua carreira em meados da década de 1940, é
pouco provável que o carteiro ainda estivesse vivo por essa época. De qualquer forma, a
entrevista comprova que houve uma efetiva ligação entre Jacob do Bandolim e a família
293
Considerações Finais
atualidade, que recorrem a diferentes fontes de época para tentar montar, cada um a sua
maneira, uma espécie de mosaico histórico deste período que testemunhou o nascimento
também outros atores sociais como jornalistas, músicos, produtores culturais, entidades
Este processo, obviamente, não está infenso a simplificações, reificações e fantasias (em
pró o advento da rádio e do disco, é certamente simplificador reduzir seus relatos a uma
294
No que se refere a Alexandre Gonçalves Pinto, uma das simplificações muito
ingênuo ou “primitivo”, cujo relato serviria apenas como fonte de pesquisa para uma
história social do choro. O “bom” Alexandre, no dizer de Tinhorão, apesar de ter escrito
problematizar esta visão. Conforme espero ter demonstrado, seu livro é um relato
complexo que deve ser estudado e analisado como tal. Como demonstram as muitas
frentes de pesquisa levantadas ao longo dessa tese, a obra do carteiro poderia ser
comparada a uma espécie de novelo em que diversos “fios” podem ser “puxados”, cada
qual apontando para uma frente de pesquisa. Passo agora em revista estas frentes,
salientando os aspectos que, segundo minha visão, podem ser apontados como
extra-acadêmicas que tratam do livro: vimos que, de forma geral, tais obras identificam
(p. ex. Cazes, 1998), ou pelo menos condescendente, identificando seu autor como um
ingênuo ou primitivo, como reforçamos acima. Ora, não há dúvida de que o livro é uma
das mais importantes fontes de época, que nos permite desvelar aspectos históricos e
sociais da época – meu próprio trabalho aborda estes campos de maneira efetiva. Apesar
minha análise; neste sentido, o binômio memória social-etnografia foi fundamental: ele
295
É evidente que o livro é um documento de memória social do choro. Para além
desta constatação, procurei mostrar, ao longo da tese, que esta construção de memória
partiu não apenas do carteiro: ela é resultado, sem dúvida, de uma memória social (ou
coletiva para utilizarmos o conceito de Halbwachs) que foi construída por diferentes
“narrativas míticas” sobre a origem do choro, como, por exemplo, aquele que identifica
Joaquim Callado como formador do primeiro conjunto e “pai dos chorões”. Seus feitos
uma construção coletiva que foi absorvida e repetida por diferentes gerações. Gonçalves
Pinto nada mais faz, em seu livro, do que registrar parte das histórias e feitos míticos
que ouvia da boca de seus companheiros mais antigos do choro, ainda que ele próprio
“memória oficial” do choro. Seu lançamento, em 1936, não obteve quase nenhuma
repercussão – pelo menos, não consegui encontrar nenhum dado sobre ele nos principais
periódicos mais importantes da época. Faço a ressalva de que, por questões de tempo e
de falta de material humano – teria sido necessário uma equipe de trabalho, neste
sentido – não me foi possível realizar uma pesquisa extensiva em todos os jornais de
época, ainda que eu tenha pesquisado nos principais, como o Jornal do Brasil e O
naturalmente as pesquisas. Em todo o caso, creio ser razoável supor que as razões que
296
gramaticais” – possam ter influído de maneira decisiva para que o livro fosse ignorado
Vimos ainda que o livro permaneceu como memória subterrânea até a década de
sobre ele: o fichamento elaborado por Jacob do Bandolim, que serviu como base para
várias leituras propostas na tese. Saliento apenas o fato de que, mesmo neste período o
livro teve muito pouca repercussão entre os instrumentistas de choro: minhas pesquisas
com alguns músicos mais velhos, como César Farias e Carlinhos Leite, ambos
“velha-guarda” que permaneceu até a década de 1960 com alguns dos músicos que
foram “retratados” por Gonçalves Pinto - não foi possível encontrar nenhuma referência
ao livro: como disse Déo ao longo de seu depoimento, nunca houve, pelo menos nas
rodas que ele presenciou, a menor menção a Gonçalves Pinto e a seu livro por parte dos
“memória oficial” do choro. Parte deste processo se deu através dos trabalhos do
da música popular brasileira que tinha por objetivo formar um painel, o mais completo
297
através da adição de novos dados biográficos que pudessem, nas palavras do próprio
Vasconcelos, “organizar a casa”, isto é, determinar com a maior precisão possível dados
A partir da década de 1990, o livro passa a fazer parte de uma teia de re-
diferentes enfoques da atualidade “apreenderam”, por assim dizer, o livro e seu autor,
antigo” e matéria-base para um livro infantil. Neste processo, muitos discursos e idéias
são proferidos por diferentes atores sociais para justificar estas re-significações; em
atribuído por Foucault (1977) - pelo fato de incorporar em sua representação do passado
a voz daqueles que foram silenciados ou marginalizados pelo discurso dominante. Esta
constatação, se por um lado está ligada à recuperação de pelo menos parte das “vozes”
descrito pelo carteiro a memória do choro era, em grande parte, a memória da polca,
“uma tradição brasileira” assim como o samba. Procurei mostrar como o aparecimento
298
samba do Estácio – figuras calcadas na contrametricidade conforme nos demontra
compositores de choro a partir da década de 1930. Assim, o “novo choro” que surge
com muita força neste período, ligado aos instrumentistas da rádio e do disco – e o
apropriação de figuras rítmicas do samba do Estácio ao choro – faz surgir uma cisão
entre o que seria a “velha guarda” e a “nova guarda”. A “velha guarda” seria assim
samba – parte deste grupo, como vimos no capítulo cinco, permanecerá vivo até a
década de 1960, esparso em rodas de choro como as do Retiro da Velha Guarda, da qual
o bandolinista Déo Rian é testemunha. É a memória deste grupo, que seria cada vez
menor a partir da década de 1930, que Gonçalves Pinto busca preservar, fazendo em seu
livro uma defesa veemente da polca como símbolo da música nacional. Suas estratégias
de defesa são, a meu ver, bastante inteligentes: por um lado ele procura estabelecer a
polca como um elo de ligação entre os instrumentistas “da velha” e da “nova guarda”.
novos instrumentistas, uma vez que a memória da polca não foi abruptamente esquecida
pelas novas gerações: entretanto, não há dúvida no fato de que ela deixa de ser a
299
principal forma de acompanhamento para se tornar coadjuvante do “novo choro
sambado”, por assim dizer; mais do que isso, ela passa a ser associada a uma forma
ouvi da boca de alguns instrumentistas da atualidade, como Déo Rian. Neste processo, o
XX: como afirmamos ao longo do trabalho, a maior parte das composições de músicos
ficou praticamente esquecida durante a segunda metade do século XX, sendo preservada
apenas pelos cadernos manuscritos de velhos instrumentistas que chegaram até nós. E é
também contra este esquecimento que o carteiro se insurge ao fazer, em seu livro, um
apelo para que o maior representante do “novo choro” – o flautista Benedito Lacerda –
gravasse também o repertório dos “antigos chorões”. Diga-se, de passagem, que outros
desta memória específica, como é o caso do flautista Jupiaçara Xavier, que escreve a
questionar a idéia, que se consolida a partir das primeiras décadas do século XX, de
300
teórico desta disciplina. Assim, segundo Clifford (1998) uma vez “apropriada” pelo
fiel quanto possível a vida de cada um deles (Lévi-Strauss, 1973:14). A segunda seria a
colônia” e a percepção de que o Ocidente não poderia mais ser considerado o único
na primeira metade do século XX. Desta forma, como apontamos no capítulo cinco, a
condição atual alcançada por um mundo cada vez mais globalizado e, paradoxalmente,
Dentro deste contexto, novas formas de compreensão do que pode ser definido
como um texto etnográfico tornam-se necessárias. Textos escritos sob o ponto de vista
301
portanto de escrita) das descrições culturais estão surgindo”. Esta percepção nos dá a
chave para o entendimento do livro de Gonçalves Pinto sob uma nova ótica: ao invés de
como um nativo escrevendo sobre as práticas culturais de seu grupo; neste processo,
“choro”. O livro nos mostra que esta palavra se constituía como uma célula viva que
incluía relações sociais, práticas sonoras, discursos sobre o som, gestualizações, danças,
termo abarcava também a linguagem falada pelo grupo. O livro nos permite entender de
que forma o grupo construía sua própria história e seus mitos de origem, ao “canonizar”
realizadas pelo grupo. Este processo de “canonização”, aliás, é bem parecido com o que
escolha de suas músicas ou “escolas” como modelos para os outros membros do grupo.
Ao mesmo tempo, histórias míticas sobre seus feitos e proezas são construídas e
Pinto. Como frisado no primeiro capítulo, O Choro retrata, sem distinção, tanto os
302
melhores quanto os piores instrumentistas; tanto amadores quanto profissionais; tanto
pontos culminantes de cada gênero ou estilo musical, o livro nos mostra que amadores,
não era o único fator a ser considerado pelo grupo na avaliação do grau de importância
apenas por ser o “rei dos acordes”, mas também pelo fato de que seu repertório de ditos,
provérbios e frases feitas eram, tanto quanto sua música, parte do fator de identidade do
grupo. Assim, ao reproduzir alguns destes ditos e frases feitas em seu livro, Gonçalves
Pinto nos mostra que, para o grupo, os discursos que rodeavam Bilhar eram tão
outra ótica. Ao invés de procurarmos aquilo que o carteiro não nos dá, ou seja, a norma
linguagem oral utilizada pelo grupo. Aqui há que se ter cuidado: não estou sugerindo
com isso que todos os membros do grupo escrevessem como o carteiro. O grupo
letrados; é possível que mesmo outros carteiros tivessem maior grau de instrução e
parte a linguagem oral que conferia identidade ao grupo; como visto nos capítulos um e
dois, esta linguagem poderia ser definida a partir do conceito de heteroglossia, cunhado
303
por Bakhtin para descrever estratificações linguísticas não-oficiais utilizadas por grupos
específicos no interior da “linguagem oficial”. Havia, assim, uma gíria do choro, uma
Este é outro dos pontos em que o presente trabalho procura fornecer um novo
ângulo de visão sobre nosso objeto de estudos; para analisarmos a linguagem utilizada
como vimos, está ligado a ideia de sublevação, ainda que temporária, das hierarquias e
Idade Média eram sustadas pelo “riso coletivo” das festas populares.
Para que nossa análise fosse realmente efetiva, era necessário realizar um estudo
comparativo com outras fontes populares da época. Neste sentido foi de fundamental
cremos ter permanecido inédita até o presente trabalho, e que integra a Coleção Jacob
dos jornais do rancho nos mostrou uma grande aproximação com a linguagem utilizada
em O Choro, até pelo fato de que, como vimos, boa parte dos chorões descritos por
os casos, a sátira funciona como um passaporte para o “riso coletivo”, onde, conforme
de sátira. Assim, os sonetos satíricos, o uso de expressões populares e gírias, muitas das
304
quais quase incompreensíveis para o leitor médio da atualidade, cumpriam um papel de
“chulices”, mas que, por isso mesmo, representava “um curioso exemplo de conciliação
literária entre a desbragada liberdade da fala popular das ruas e o sentido da boa moral
das camadas burguesas urbanas”. Portanto, qualquer análise da linguagem do livro deve
práticas sociais e sonoras dos ranchos e do choro, afirmamos que esta linguagem
por Antonio Cândido para caracterizar outro documento que retrata extratos populares
305
mangue, etc – Cândido nos aponta para uma sociedade onde as fronteiras entre o lícito e
capítulo, que essa mesma tensão entre o lícito e o ilícito estava presente nas narrativas e
ordem” descritos por ele — soldados, policiais, funcionários públicos etc, — estavam
mesmo exonerados de seus cargos pela incompatibilidade entre as funções que exerciam
acompanhados de farta comida e bebida – tudo isso intermediado pelas práticas sonoras
mesma inversão de valores era freqüente nas crônicas dos jornais do Ameno Resedá.
utilizada por Gonçalves Pinto, procuramos identificar também outros elementos que
fazem parte de sua narrativa; nesse sentido, salientamos o caráter polifônico do texto, ao
Gonçalves Pinto procura traçar uma linha de continuidade entre o choro as práticas
musicais das bandas de escravos, conforme salientado por Braga (2002: 210); mais do
que isso, procura identificar essas bandas de música como fator primordial para o
bandas de música formadas por escravos como responsáveis pelo abrandamento “dos
306
duros corações dos grandes escravocatas”. Da mesma forma, na introdução do livro
Gonçalves Pinto se refere aos “costumes bahianos que foram trazidos da África pelos
nossos queridos nossos antepassados” e que seriam guardados “com o maior carinho em
que esta confusa relação entre Bahia e África como “fontes” e “origens” das tradições
brasileiras sem dúvida já estava presente no imaginário popular e também nas ideias de
intelectuais desde o século XIX, entre os quais o escritor Mello Moraes, citado no livro.
Passamos agora a outra frente de pesquisa que julgo também ser contribuição
importante desta tese: a análise dos aspectos da práxis musical descrita no livro. Ao
estudar e mapear de que forma o autor identifica em sua obra processos de transmissão,
aprendizado e ensino das práticas musicais do choro, procuramos mostrar que o livro
salienta a existência de uma rede de trocas não comerciais e não oficiais que
Conservatório”, como o carteiro faz questão de frisar como garantia de suas habilidades
e proficiências musicais, a grande maioria tinha por mestres instrumentistas que não
eram formalmente ligados a instituições de ensino, mas que de alguma maneira eram
Galdino Barreto, apontado por Gonçalves Pinto e seus contemporâneos como criador de
instrumento” (54). O violão também tinha seus representantes populares, não ligados a
instâncias oficiais, como Sátiro Bilhar e João Pernambuco, ainda que, como nos
307
aprendizagem do instrumento abarcasse também métodos de ensino europeus, como os
de Carcassi e Tárrega.
celebrados de boca em boca - o livro nos mostra que nomes menos conhecidos também
Videira, flautista e operário de uma fábrica de cigarros, responsável por grande parte do
ensino de Gonçalves Pinto. Apesar de “tocar de ouvido”, sabia dizer em sua flauta “o
carteiro teria, em seu próprio dizer, principiado a tocar violão e cavaquinho, tornando-se
classificada por Gonçalves Pinto como “uma grande escola de musicistas, onde o autor
dessas linhas ia ali beber naquela fonte seu aprendizado de violão e cavaquinho” (17).
Gonçalves Pinto abre caminho, a meu ver, para uma frente de estudos muito pouco
popular dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX. Ao mencionar, de forma
acervos particulares, o carteiro nos aponta para a existência de uma rede dinâmica de
impressas: paralela e complementar, poderíamos dizer, uma vez que abrangia corpus de
308
obras de compositores de choro que jamais chegaram a ter suas composições editadas.
Mesmo aqueles que gozavam de grande prestígio popular, como Callado e Anacleto de
Medeiros só tiveram uma pequena parte de suas obras impressas; a maioria de suas
julgo oportunas e que apontam para desdobramentos desta tese. A primeira delas diz
acadêmica mais recente, entre instâncias cultas, ou eruditas versus instâncias populares,
de Burke, 1989 e Ginzburg, 2006), e da teoria e crítica literária (Bakhtin, 1981, 1987) já
nos fornecem ferramentas que nos permitem questionar o que há de reducionista nessa
aparente dicotomia, creio que mesmo importantes estudos mais recentes sobre a música
popular urbana brasileira não escaparam de cair em uma tipologia por vezes
uma vez que Pixinguinha e Donga também imersos em uma tradição “culta” musical:
ambos sabiam “ler e escrever” música e eram detentores de acervos de partituras que
309
Poder-se-ia argumentar que Pixinguinha e Donga talvez devessem ser
de “povo”. Mas eis que Alexandre Gonçalves Pinto nos apresenta em seu livro uma
denominação “choro”. Não estou sugerindo com isso que todos os membros destes
estratos sociais se utilizassem do registro escrito, nem que ele seria a única base de
saberes populares.
manuscritas. Isso nos leva a nossa segunda reflexão, que enunciaremos a partir de um
310
ferramentas podem ser criadas a partir do estudo de características específicas destas
coleções? São questões que permanecem como desafio para trabalhos futuros.
existência de uma rede de copistas de música popular que tinham grande importância no
processo de transmissão do gênero, Alexandre Gonçalves Pinto nos abre caminho, como
dissemos, para uma nova frente de pesquisas ainda por ser desenvolvida. Ao iniciar
meus estudos sobre o livro O Choro, sabia de antemão que um dos capítulos de minha
tese seria focado no mapeamento e análise das práticas musicais abordadas no livro – o
minha “pesquisa de campo” na Coleção Jacob do Bandolim, cedo percebi que o tema,
Tenho então total consciência de que o trabalho de análise deste material, alvo do quarto
capítulo desta tese, pode ser considerado apenas como um “pontapé inicial” no que se
social, história e antropologia para uma análise mais efetiva destes acervos são, a meu
Por outro lado, creio que uma reflexão mais aprofundada sobre o papel destes
está por ser feita. Como vimos no primeiro capítulo, o pensamento acadêmico
311
destes pesquisadores, creio que uma avaliação mais aprofundada de seus papéis passaria
por uma análise extensiva de seus acervos, escritos e ideias, algo que a meu ver ainda
não foi feito. Em parte pelas condições precárias de acessibilidade desses acervos,
muito a ser feito para que possamos avaliar com maior clareza a dimensão desta geração
de pesquisadores.
***
um castelo de memórias. Ao final de nosso “passeio” por sua obra, podemos dizer que o
carteiro não nos fala apenas de memórias: ele nos fala da relação entre discursos
continuidades são percebidas por tais grupos e de que forma articulações políticas – e o
livro não deixa de ser uma manifestação política em prol de uma memória – são
elementos estão imbricados nestes “castelos de fantasia” que o carteiro ergueu em sua
imaginação para compor este que é um documento ímpar da história da música popular
brasileira.
312
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