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DISCIPLINA: MÍDIA, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO SOCIAL (PPGMC/UFF)

AULA 4: A MÍDIA E O CONCEITO DE VERDADE

RELAÇÃO COM A TEMÁTICA “REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE”


O conceito de verdade – umas das temáticas centrais do pensamento filosófico desde seu
princípio, na Grécia Antiga – se relaciona diretamente às questões relacionadas à identidade
pós-moderna e à representação, dado que nos dias atuais temos, nos meios de comunicação e
nos mídias sociais, o questionamento do princípio da veracidade, o que transparece em debates
atuais como: a produção de Fake News; a criação e uso perfis falsos de Internet; as identidades
que adotamos nas redes sociais; e o termo pós-verdade, que, em 2016, foi eleito pelo
departamento Oxford Dictionaires, responsável pelos dicionários da Universidade de Oxford,
como a palavra do ano na língua inglesa (pos-truth). O termo diz respeito a circunstâncias nas
quais fatos objetivos têm menos importância do que crenças pessoais, ou seja, a “verdade” de
cada um se torna preponderante em relação aos fatos objetivos. Veremos, adiante, que o
conceito de verdade também se relaciona diretamente ao poder, e é nele que se baseiam as
construções do discurso midiático.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, organização e tradução de Roberto Machado, Rio de


Janeiro: Ed. Graal, 1979. (Introdução (Por uma genealogia do Poder) e cap. 1 (Verdade e Poder),
e 4 (Os intelectuais e o Poder)
SOBRE O AUTOR:
Michel Foucault (1926-1984) foi um filosofo francês, que exerceu grande influência sobre os
intelectuais contemporâneos. Graduado em filosofia e em psicologia, lecionou em universidades
francesas e obteve a cátedra com o tema "História dos Sistemas de Pensamento" no Collège de
France.
Aos 28 anos, publicou o seu primeiro livro, "Doença Mental e Personalidade" (1954). Mas o seu
grande clássico foi “História da Loucura na Idade Média” (1961), escrito para a obtenção de seu
doutorado na Sorbonne. Nessa obra, Foucault analisou o desprezo que as pessoas tinham no
século 19 pelos doentes mentais. Publicou ainda: “Nascimento da Clínica” (1966), “As Palavras
e as Coisas” e “Arqueologia do Saber" (1969). Ainda deixou inacabado o livro “História da
Sexualidade”.
Nos anos 60, Foucault estava incluso no rol dos pensadores estruturalistas, como Claude Lévi-
Strauss, Roland Barthes e Jacques Derrida, embora alguns autores não o considerem parte dessa
escola de pensamento.
Michel Foucault acreditava que a prisão, mesmo que fosse exercida por meios legais, era uma
forma de controle e dominação burguesa no intuito de fragilizar os meios de cooperação e a
solidariedade do proletariado. O filósofo ainda criticava a psiquiatria e psicanálise tradicionais,
no seu modo de ver, instrumentos de controle e dominação ideológica.
Michel Foucault morreu em consequência das complicações da AIDS, em Paris, França, no dia
26 de junho de 1984. (Fonte https://www.ebiografia.com/michel_foucault, por Dilva Frazão)

SOBRE A OBRA:
Microfísica do Poder, publicado pela primeira vez em 1979, é uma reunião de diversos artigos,
entrevistas e conferências de Foucault, que têm como temática central a questão do poder nas
sociedades capitalistas, sua natureza, seu exercício em instituições, sua relação com a produção

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da verdade e as resistências que suscita. O método genealógico de Foucault desenvolvido por
Foucault evidencia a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele
articuladas e indispensáveis à sua sustentação e atuação eficaz.

Introdução: Por uma genealogia do Poder


(por Roberto Machado)
“A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de Foucault. Surgiu
em um determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação de objetivos
teóricos e políticos que, se não estavam ausentes nos primeiros livros, ao menos não eram
explicitamente colocados, complementando o exercício de uma arqueologia do saber pelo
projeto de uma genealogia do poder.” (p. VII)
“Não existe em Foucault uma teoria geral do poder. O que significa dizer que suas análises não
consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele
procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado
poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder
não é um objeto natural, não é uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída
historicamente. Esta razão, no entanto, não é suficiente, pois na realidade sempre deixa aberta
a possibilidade de se procurar reduzir a multiplicidade e a dispersão das práticas de poder
através de uma teoria global que subordine a variedade e a descontinuidade a um conceito
universal.” (p. X)
“Foucault não tematiza o poder como um conceito universal, como nunca tematizou nenhum
de seus objetos, porque ele acredita que toda teoria é provisória, acidental, depende de um
estado do desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade,
formulando conceitos que clarificam os dados – organizando-os, explicitando suas interrelações,
desenvolvendo implicações – mas que em seguida são revistos, reformulados, substituídos a
partir de novo material trabalhado.“ (p. XI)
“No entanto, apesar de não serem definitivas, as análises genealógicas do poder – como as
propostas por Foucault – produziram um importante deslocamento com relação à ciência
política, que limita ao Estado o fundamental de sua investigação sobre o poder.” (p. XI)
“Aparece como evidente a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a
ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive à sua sustentação eficaz.”
(p. XI)
“A valorização de um tipo específico de poder formulou-se através de uma distinção, de uma
dicotomia entre uma situação central ou periférica e um nível macro ou micro, os quais
distinguem as GRANDES TRANSFORMAÇÕES DO SISTEMA ESTATAL, as mudanças de regime
político ao nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e a MECÂNICA DE PODER que
se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo
em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação.” (p. XI)
“Este poder intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu
corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida
cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.” (p. XII)
“O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da
análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na medida
em que a consideração de poder em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus
últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder
que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos,
hábitos, discursos.” (p.XII) [grifo nosso]

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“Os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de
Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado. Nem, se nasceram fora dele, foram
inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central.” (p.XII)
“Os poderes se exercem em níveis variados e pontos diferentes da rede social e neste complexo
os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado.” (p.XII)
“O importante é que essa relativa independência ou autonomia da periferia com relação ao
centro significa que as transformações ao nível capilar, minúsculo, do poder não estão
necessariamente ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do Estado. Isso pode acontecer ou
não, e não pode ser postulado aprioristicamente.“ (p.XII)
“Foucault não tentou minimizar o papel do Estado, mas utilizou um método que visava a
demonstrar a falibilidade da ideia do Estado como o órgão central e único de poder. Ou a ideia
de que a inegável rede de poderes da sociedade moderna seria uma extensão dos efeitos do
Estado, um simples prolongamento ou uma simples difusão do seu modo de ação, o que seria
destruir a especificidade dos poderes que sua análise pretendia focalizar.” (p. XIII)
“O poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou
não. Não existe um lado dos que têm o poder e o outro dos que não têm. Rigorosamente
falando, o poder não existe. Existem práticas ou relações de poder. Os poderes não estão
localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de
dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível,
limites ou fronteiras.” (p. XIV) [grifo nosso]
“O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. Funciona como uma maquinaria,
como uma máquina social que não está localizada em nenhum lugar privilegiado ou exclusivo,
mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. E
esse caráter relacional implica que as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas
de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder.” (p. XIV-XV)
“E onde há poder há sempre resistência. Não é uma relação unívoca, unilateral; nessa disputa
se ganha ou se perde.” (p. XIV-XV)
“É impossível caracterizar o poder como um fenômeno que diga respeito à lei ou à repressão.
Por isso Foucault irá desenvolver uma concepção não-jurídica de poder”. (p. XV)
“Ele quer demonstrar que as relações de poder não se passam nem no nível do direito, nem da
violência. O poder não se caracteriza somente pelo seu aspecto negativo, mas principalmente
por sua eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade.” (p. XV)
“Deste ponto de vista, o indivíduo é uma produção do poder e do saber.” (p. XV)
“Atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar
faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo emerge como alvo de
poder.” (p. XVI) [grifo nosso]
“A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a
normalização do prazer, a interpretação do discurso, com o objetivo de separar, comparar,
distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que apareça pela primeira vez na história esta
figura singular, individualizada, o homem, como produção do poder.” (p. XX)
“Mas também, e ao mesmo tempo, como objeto do saber. Das técnicas disciplinares, que são
técnicas de individualização, nasce um tipo específico de saber: as ciências humanas.” (p. XX)
“Uma grande novidade que essa pesquisa atual tem apresentado é de não procurar as condições
de possibilidades históricas das ciências humanas nas condições de produção, na infra-estrutura
material, situando-as como uma resultante superestrutural, um epifenômeno, um efeito
ideológico. A questão não é a de relacionar o saber – considerado como ideia, pensamento,

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fenômeno da consciência – diretamente com a economia, situando a consciência dos homens
como reflexo e expressão das condições econômicas. O que faz a genealogia é considerar o saber
– compreendido como materialidade, como prática, como acontecimento – como peça de um
dispositivo político que, enquanto dispositivo, se articula com a estrutura econômica. Ou, mais
especificamente, a questão tem sido a de como se formaram domínios de saber, que foram
chamados de ciências humanas – a partir de práticas políticas disciplinares.” (p. XXI)
“Outra importante novidade dessas investigações é não considerar pertinente para as análises
a distinção entre ciência e ideologia. Foi justamente a opção de não estabelecer ou procurar
critérios de demarcação entre uma e outra que fez Foucault, desde suas primeiras investigações,
situar a arqueologia como uma história do saber. O objetivo é neutralizar a idéia que faz da
ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares
de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia um
conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida,
velada pelas condições de existência. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só
pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o
sujeito quanto os domínios de saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de
conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que a constituem. Não há saber
neutro. Todo saber é político. E isso não porque cai nas malhas do Estado, é apropriado por ele,
que dele se serve como instrumento de dominação, descaracterizando seu núcleo essencial.
Mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder.” (p. XXI)
“O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de
poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber
constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um
lugar de formação de saber.” (p.XXI)
“É assim que o hospital não é apenas local de cura, “máquina de curar”, mas também
instrumento de produção, acúmulo e transmissão do saber. Do mesmo modo que a escola está
na origem da pedagogia, a prisão da criminologia, o hospício da psiquiatria. E, em contrapartida,
todo saber assegura o exercício de um poder. Cada vez mais se impõe a necessidade do poder
se tornar competente. Vivemos cada vez sob o domínio do perito. Mais especificamente, a partir
do séc. XIX, todo agente do poder vai ser um agente de constituição do saber, devendo enviar
aos que lhe delegaram um poder, um determinado saber correlativo ao poder que exerce. É
assim que se forma um saber experimental ou observacional. Mas a relação é ainda mais
intrínseca: é o saber enquanto tal que se encontra dotado estatutariamente, institucionalmente,
de determinado poder. O saber funciona na sociedade dotado de poder. É enquanto é saber que
tem poder.” (p. XXII)

Cap. I - Verdade e Poder


“Meu problema não foi absolutamente dizer: viva a descontinuidade, estamos nela e nela
ficamos; mas de colocar aí a questão: como é possível que se tenha em certos momentos e em
certas ordens de saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolução, estas
transformações que não correspondem à imagem tranqüila e continuista que normalmente se
faz? Mas o importante em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitude, ou
melhor, esta rapidez e amplitude são sinais de outras coisas: uma modificação nas regras de
formação dos enunciados que são aceitos como cientificamente verdadeiros. [...] Em suma,
problema de regime, de política do enunciado científico. Neste nível, não se trata de saber qual
é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de poder circulam entre os
enunciados científicos, qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos
momentos ele se modifica de forma global. (p.3-4)

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Genealogia
“É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da
constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios do objeto, etc., sem ter que se referir a
um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo
sua identidade vazia ao longo da história. (p. 7)

Ideologia
“A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A primeira é que, queira-
se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio
que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso revela da cientificidade e
da verdade e o que revelaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem
efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si verdadeiros nem falsos. Segundo
inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está
em posição secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como
infraestrutura ou determinação econômica, material, etc.” (p. 7) [grifo nosso]

Repressão e poder
“A noção de repressão é mais pérfida. Em todo caso, tive mais dificuldade em me livrar dela na
medida em que parece se adaptar bem a uma série de fenômenos que dizem respeito aos
efeitos do poder. [...] me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar
conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder
pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o
poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma
noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o
poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita
que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito e simplesmente
que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas,
induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva
que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir. (p.7-8) [grifo nosso]

Verdade
“O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não
obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos
espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A
verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de
verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a
maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro.” (p.12) [grifo nosso]
“Em nossa sociedade, a “economia política” da verdade tem cinco características historicamente
importantes: a “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o
produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de
verdade tanto para a produção econômica quanto para o poder político); é objeto, de várias
formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação

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ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas
limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante,
de alguns grandes aparelhos políticos e econômicos (universidades, exército, escritura, meios
de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas
“ideológicas”). (p.13)
“Verdade, portanto, seria “o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do
falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não
se trata de um combate “em favor” da verdade [travado pelos intelectuais], mas em torno do
estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. (p.13)

Cap. IV - Os intelectuais e o poder


Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze
Foucault: “Parece-me que a politização de um intelectual tradicionalmente se fazia a partir de
duas coisas: em primeiro lugar, sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de
produção capitalista, na ideologia que ela produz ou impõe (ser reduzido à miséria, rejeitado,
“maldito”, acusado de subversão, de imoralidade, etc.); em segundo lugar, seu próprio discurso
enquanto revelava uma determinada verdade, descobria relações políticas onde normalmente
elas não eram percebidas. Estas duas formas de politização não eram estranhas uma em relação
à outra. [...] O intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles
que não podiam dizê-la: consciência e eloquência.” (p.70-71)
Foucault: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam
deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o
dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e
esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que
penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios
intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da
“consciência” e do discurso também faz parte deste sistema. O papel do intelectual não é mais
o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos;
é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto
e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso.” (p. 71) [grifo
nosso]
Delleuze: “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante. É
preciso que sirva, que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a
começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o
momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas.
[...] A teoria não totaliza, a teoria se multiplica e multiplica. É o poder que por natureza opera
totalizações e você diz exatamente que a teoria por natureza é contra o poder. Desde que uma
teoria penetra em determinado ponto, ela se choca com a impossibilidade de ter a menor
consequência prática sem que se produza uma explosão, se necessário em um ponto totalmente
diferente. Por este motivo, a noção de reforma é tão estúpida e hipócrita. Ou a reforma é
elaborada por pessoas que se pretendem representativas e têm como ocupação falar pelos
outros, em nome dos outros, e é uma reorganização do poder, uma distribuição do poder que
se acompanha de uma repressão crescente. Ou é uma reforma reivindicada, exigida por aqueles
a quem ela diz respeito, e aí deixa de ser uma reforma, é uma ação revolucionária que por seu
caráter parcial está decidida a colocar em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia.
Isso é evidente nas prisões: a menor, a mais modesta reivindicação dos prisioneiros basta para
esvaziar a pseudo-reforma Pleven. Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou
simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante
para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na verdade, esse sistema em que vivemos nada
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pode suportar: daí sua fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força global
de repressão. A meu ver, você [Foucault] foi o primeiro a nos ensinar – tanto em seus livros
quanto no domínio da prática – algo de fundamental: a indignidade de falar pelos outros, Quero
dizer que se ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a
consequência dessa conversão “teórica”, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela
concerne falassem por elas próprias”. (p. 71)
Foucault: “E quando os prisioneiros começaram a falar, viu-se que eles tinham uma teoria da
prisão, da penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, esse contra-discurso
expresso pelos prisioneiros, ou por aqueles que são chamados de delinquentes, é que é o
fundamental, e não uma teoria sobre a delinquência”. (p.72)
Foucault: “A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não
esgota o campo de exercício e de funcionamento do poder. Existe atualmente um grande
desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos,
quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o
poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. Mas a noções de “classe
dirigente” nem é muito clara nem muito elaborada. “Dominar”, “dirigir”, “governar”, “grupo no
poder”, “aparelhos de Estado”, etc. é todo um conjunto de noções que exige análise. Além disso,
seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que
instâncias, frequentemente ínfimas de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde
há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre
se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo
quem o detém; mas se sabe quem não o possui.” (p. 75)
Foucault: “Como você [Delleuze] diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais
complexas do que geralmente se acredita e não são necessariamente os que exercem o poder
que têm interesse em exercê-lo, os que têm interesse em exercê-lo não o exercem e o desejo
de poder estabelece uma relação ainda mais singular entre o poder e o interesse. Acontece que
as massas, no momento do facismo, desejam que alguns exerçam o poder, alguns que, no
entanto, não se confundem com elas, visto que o poder se exercerá sobre elas e em detrimento
delas, até a morte, o sacrifício e o massacre delas; e, no entanto, elas desejam este poder,
desejam que esse poder seja exercido. Esta relação entre o desejo, o poder e o interesse ainda
é pouco conhecida. Foi preciso muito tempo para saber o que era a exploração. E o desejo foi,
e ainda é, um grande desconhecido. É possível que as lutas que se realizam agora e as teorias
locais, regionais, descontínuas, que estão se elaborando nestas lutas e fazem parte delas, sejam
o começo de uma descoberta do modo como se exerce o poder.” (p. 75)
Foucault: “Mas se é contra o poder que se luta, então todos aqueles sobre quem o poder se
exerce como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável, podem começar a luta
onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria. E iniciando esta luta –
que é a luta deles – de que conhecem perfeitamente o alvo e de que podem determinar o
método, eles entram no processo revolucionário. Evidentemente como aliado do proletariado
pois, se o poder se exerce como ele se exerce, é para manter a exploração capitalista. Eles
servem realmente à causa da revolução proletária lutando precisamente onde a opressão se
exerce sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os
homossexuais iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de
controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento
revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem
tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular.” (p.77-78)

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KELLNER, D. A Cultura da Mídia – estudos culturais, identidade e política, entre o moderno e o
pós-moderno. Bauru, SP, EDUSC, 2001. (Cap. 7, Televisão, propaganda e construção da
identidade pós-moderna)
SOBRE O AUTOR:
Douglas Kellner é norte-americano, professor de Filosofia na Universidade do Texas, Austin.
Nascido em 1943. Sua linha teórica – no campo dos Estudos Culturais – vem da Escola de
Frankfurt. Entre os acadêmicos identificados com a Escola de Frankfurt, são referências mais
marcantes no campo da comunicação Adorno, Marcuse, Habermas, Benjamin.
SOBRE A OBRA:
(orelha): A Cultura da Mídia é um livro que desenvolve métodos e análises da produção
contemporânea de filmes, programas de televisão, música e outros, com o objetivo de discernir
sua natureza e seus efeitos. Sua tese é que na mídia se encontra hoje a forma dominante de
cultura, forma que nos socializa e nos fornece material de identidade, tanto em termos de
reprodução quanto de mudança da sociedade. Por meio de estudos de Reagan e do Rambo, de
filmes de horror e de filmes para a juventude, da música rap e da cultura negra, de Madonna,
da moda, dos noticiosos e dos programas de entretenimento da televisão, da MTV, Beavis and
Butt-Head, da Guerra do Golfo como texto cultura, da ficção cyberpunk e da teoria pós-
moderna, Kellner faz uma série de estudos vivazes que esclarecem a cultura contemporânea e
nos apresentam métodos de análise e crítica.
Recomendação: muito importante ler também a Introdução, na qual Kellner faz um resumo de
sua proposta teórica e metodológica. Sua ideia central é: “A cultura veiculada pela mídia fornece
o material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades
tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global”.

Cap. 7, Televisão, propaganda e construção da identidade pós-moderna

Folclore antropológico e sociológico = nas sociedades tradicionais a identidade era fixa, sólida e
estável // os indivíduos não passavam por crises de identidade. (p.295)
Na modernidade = identidade se torna mais móvel, múltipla, pessoal, reflexiva e sujeita a
mudanças e inovações (identidade pessoal como reconhecimento mútuo/o “eu” pelo “outro”).
Na modernidade, a consciência de si passou a ser reconhecida // identidade passa a ser um
problema pessoal e conceitual, teórico. (p.296)
Também na modernidade, identidade foi ligada à individualidade, ao desenvolvimento de um
eu individual único. (p.297)
Pós-modernidade = identidade cada vez mais instável e frágil (p. 298)
“os discursos da pós-modernidade problematizam a própria noção de identidade, afirmando
que ela é um mito e uma ilusão. É possível ler tanto em teóricos modernos, tais como a Escola
de Frankfurt e Baudrillard, quanto em outros teóricos pós-modernos que o sujeito autônomo e
autoconstituído, realização final do indivíduo moderno, de uma cultura do individualismo, está
se fragmentando e desaparecendo devido aos processos sociais que nivelam as individualidades
na sociedade racionalizada, burocratizada, consumista e dominada pela mídia. Os pós-
estruturalistas, por sua vez, desfecharam um ataque contra a própria noção de sujeito e
identidade, afirmando que a identidade subjetiva em si é um mito, um construto da linguagem
e da sociedade, uma ilusão sobredeterminada de que somos realmente um sujeito substancial,

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de que realmente temos uma identidade fixa (Coward e Ellis, 1977, Jameson, 1983, 1991)”.
(p.298)
Cultura da mídia = lugar da implosão da identidade e da fragmentação do sujeito.

Televisão e pós-modernidade
“A intervenção pós-moderna na televisão é uma reação contra o realismo e o sistema de gêneros
codificados (humorismo, novela, ação/aventura etc.), que definem o sistema de televisão
comercial nos Estados Unidos. Nesse sentido, as intervenções pós-modernas na televisão
reproduzem um ataque sofrido pelo realismo e pela divisão em gêneros que o próprio
modernismo antes fizera. O modernismo nunca “pegou” na televisão, especialmente na
variedade comercial produzida nos Estados Unidos e culturalmente hegemônica em muitos
lugares do mundo. Ao contrário, a televisão comercial é predominantemente regida pela
estética do realismo representacional, de imagens e histórias que fabricam o real e tentam
produzir um efeito de realidade (Kellner, 1980).” (p.301)
Visão de tv tradicional = narração
Visão de tv pós-moderna = imagem (significante foi liberado/imagem com precedência sobre a
narração)
Pós-moderno = “hermenêutica da desconfiança” (Ricouer) e da leitura modernista polissêmica
dos símbolos e dos textos culturais = nada existe por trás da superfície dos textos de que não há
profundidade nem multiplicidade de significados que uma investigação crítica possa descobrir e
explicitar. (p.302)
Dessa visão, surgem análises de uma teoria cultural pós-moderna que deve contentar-se em
descrever as superfícies ou as formas dos textos culturais, em vez de procurar significados ou
significâncias. Kellner não concorda.
Kellner defende um estudo cultural inspirado tanto nas teorias pós-modernas quanto em outras
teorias críticas, a fim de analisar a imagem e o significado, a superfície e a profundidade, a
política e a erótica das produções culturais. Kellner defende uma análise profunda, que
considere a ideologia e os significados polissêmicos. Kellner se opõe a Foucault, Delleuze,
Guattari e Baudrillard ao considerar, portanto, que a crítica da ideologia continua sendo uma
importante e indispensável.
Ele também discorda da visão de Baudrillard que coloca a televisão como buraco negro.
Kellner não nega que a televisão pode ser vivida como “um deserto e unidimensional plano de
imagens superficiais, podendo funcionar também como puro ruído sem referente e
significado.”. No entanto, para ele “as pessoas realmente modelam comportamentos, estilos e
atitudes pelas imagens da televisão”. Ele afirma ainda que a televisão está desempenhando
papel essencial na nova arte de governar. (p.303)
Kellner contrapõe a ideia de “ruído puro” de diversos autores à ideia de “papel fundamental na
reestruturação da identidade contemporânea e na conformação de pensamentos e
comportamentos”.
Mito televisivo resolve contradições sociais assim como o mito tradicional (Lévi-Strauss, Barthes)

Miami Vice e a política da imagem e da identidade (p.304)


Kellner, por meio da análise da série, busca analisar as novas formações de identidade por meio
das narrativas televisivas.

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As imagens da Publicidade (p.317)
O autor irá afirmar que, assim como as narrativas da televisão podem corresponder aos mitos
pós-modernos, a publicidade também põe à disposição alguns equivalentes funcionais aos
mitos.
Propagandas:
= solucionam contradições sociais
= fornecem modelos de identidade
= enaltecem a ordem social vigente
Barthes (1972[1957]) = publicidade fornece um repertório de mitologias contemporâneas/
Posições de sujeito e modelos de identificação carregados de códigos ideológicos
Imagens simbólicas = associam os produtos à características socialmente desejáveis e
significativas = consumo leva à associação (p.318)

Como situar o pós-moderno (p.328)


“a propaganda, a moda, o consumo, a televisão e a cultura da mídia estão constantemente
desestabilizando identidades e contribuindo para produzir outras mais instáveis, fluídas,
mutáveis e variáveis no cenário contemporâneo.” (p.329)
“Nossas análises, portanto, indicam que, numa cultura pós-moderna da imagem, as imagens, as
cenas, as reportagens e os textos culturais da mídia oferecem uma enorme quantidade de
posições do sujeito que, por sua vez, ajudam a estruturar a identidade individual. [...] No
entanto, a esmagadora variedade de possibilidades de identidade existentes na própria cultura
da imagem, sem dúvida, cria identidades extremamente instáveis enquanto vai oferecendo
novas aberturas para a reestruturação da identidade pessoal”. (p.33)
“Na verdade, atualmente, a busca de identidade está mais intensa do que nunca. Está havendo
uma espécie de rebelião contra a produção de identidade apenas como feito individual, dando-
se maior ênfase às formas de identidade tribais, nacionais e grupais, além de outras coletivas.
Em muitos lugares do mundo, houve um retorno ao tribalismo, a formas antigas de identidade
coletiva – nacionais, religiosas ou étnicas - , e é possível reconhecer projetos semelhantes nas
chamadas políticas identitárias, graças às quais os indivíduos obtém identidade participando de
grupos e afirmando uma identidade coletiva (por exemplo, como mulher, como negro, como
gay ou em suas combinações).” (p.331)
No entanto, continua viva a busca de individualidade e do particularismo no que se refere à
aparência, à imagem, ao modo de ser, ao estilo de vida. // Michael Jackson, Madonna, exemplo
de identidades como construto, pode ser constantemente modificada.
Questão: a atual forma de construção da identidade e distintamente pós-moderna, e terá
ocorrido uma mudança fundamental na forma de construção de identidades? (p.332)
“Houve um tempo em que identidade era aquilo que se era, aquilo que se fazia, o tipo de gente
que se era: constituía-se de compromissos, escolhas morais, políticas e existenciais. Hoje em dia,
porém, ela é aquilo que se aparenta, a imagem, o estilo e o jeito como a pessoa se apresenta. E
é a cultura da mídia que cada vez mais fornece material e recursos para a constituição das
identidades.” (p.333)
Pós-moderno = ligado à ideia de mutações de identidades.

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