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EUNICE RIBEIRO DURHAM

Assistimos hoje, no Brasil, com a ca, da Ásia e da Oceania participaram


ocupação da Amazônia, ao fim da "fron- da última guerra mundial e das guerras
teira", isto é, daqueles grandes vazios de independência que se lhe seguiram,
demográficos e econômicos que consti- enfrentando hoje o problema de se cons-
tuíram, no passado, a reserva territorial tituírem em Estados nacionais politica-
para expansão da sociedade nacional. mente autônomos.
De um lado, esse processo aguça o No Brasil, a questão com que nos de-
conflito entre os grandes proprietários e frontamos é definir um lugar para o índio
a massa agrária de despossuídos que já na sociedade nacional. O problema cer-
não têm mais para onde ir em busca de tamente não é novo. Nasceu com a for-
terra "livre". mação da colônia e vem sendo recoloca-
De outro lado, a ocupação desses imen- do até hoje, de modo sempre um pouco
sos espaços vazios por posseiros sem diferente, mas também sem encontrar
terra, ou sua apropriação em escala gi- nunca uma solução. Inspirou, desde o
gantesca pelas grandes empresas capita- passado remoto, inúmeros debates can-
listas, ou ainda a ação crescente do Es- dentes que permitiram, a nível puramente
tado na abertura de estradas e na im- ideológico, enfrentamentos radicais. A
plantação de projetos de mineração ou imagem do índio foi exaltada ou dene-
hidroelétricos, estão expondo ao contato grida, servindo, simultaneamente, como
com a "civilização" dezenas de grupos metáfora de liberdade natural e como
indígenas que até agora haviam conse- protótipo do atraso a ser superado no
guido sobreviver no que era longínquo processo civilizatório de construção da
sertão. Desse modo, ao lado do grave nação. Os defensores dos índios têm
conflito entre pequenos posseiros e lati- vencido brilhantemente a batalha ideo-
fundiários, renasce no Brasil o problema lógica e seus inimigos têm vencido a
indígena. O destino desses povos, sua guerra real que se trava na sociedade
resistência, sua "pacificação" e a possi- brasileira contra os grupos indígenas,
bilidade de sua destruição ocupam man- destruindo sua cultura, despojando-os de
chetes na imprensa contemporânea. seus territórios e mesmo exterminando-
De certo modo, é estranho ter um os fisicamente. É tempo de transferir a
problema indígena em pleno final do sé- luta do campo puramente ideológico
culo XX, ter que pensar em sociedades para tentar alcançar alguma eficácia po-
tribais isoladas quando, no resto do mun- lítica. Precisamos portanto definir o cam-
do, a expansão do capitalismo destruiu po político no qual pode-se inserir a
há muito sua viabilidade; quando as p o - questão indígena.
p u la ç õ e s c h a m a d a s " p rim itiv a s " d a Á fri- C om e c em o s c o m o E stad o. O E stad o

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O LUGAR DO ÍNDIO

moderno se define propriamente como o instrumental teórico para guiar a ação relações de
Estado-Nação, no qual o domínio sobre e a reflexão.
Retomemos, portanto, o problema do
classe e
um território é consubstanciado na idéia
da existência de uma "comunidade na- índio em face do Estado. Em primeiro minorias
cional". Ora, a Nação, isto é, a popula- lugar, há que considerar o estranho fato étnicas
ção de um território unida pela cultura de que uma sociedade secularmente res-
e pela tradição, pressuposto legitimador ponsável pelo extermínio sistemático da
do Estado, foi, em toda parte, pelo me- população indígena tenha sempre, em ní-
nos de início, uma ficção criada pelo vel do Estado, elaborado leis específicas
próprio Estado. Os Estados modernos de proteção aos silvícolas — e isso desde
se constituíram todos sobre uma diversi- o passado mais remoto. Basta lembrar
dade étnica preexistente, num processo as tentativas da Coroa portuguesa de
de unificação territorial marcado pela coibir a escravização indígena, que se
violência. A comunidade nacional foi prolongaram no Império com a benevo-
criada posteriormente pela opressão: a lência esclarecida de José Bonifácio e que
cultura comum foi imposta pela repres- culminaram na República com a criação
são às manifestações étnicas minoritá- do SPI e a codificação de uma ideologia
rias e a tradição coletiva foi gerada na protecionista no Estatuto do índio.
história da dominação de um povo sobre Um dos elementos importantes que
outro. certamente contribuíram para esse pa-
Isto que é verdade para os Estados ternalismo estatal reside no fato de a
europeus, cuja tradição nacional está, até população indígena brasileira, ao contrá-
hoje, marcada pela luta contra regiona- rio do que ocorreu na América espanho-
lismos separatistas, caracteriza igualmen- la, não ter constituído um recurso in-
te os Estados americanos. O processo dispensável, como mão-de-obra, para a
de conquista das populações indígenas, construção do sistema econômico colo-
tão nítido na fase de constituição das nial. A mão-de-obra indígena foi impor-
colônias, foi entretanto mascarado, du- tante apenas nos setores marginais da
rante as lutas de independência, pela economia (como na província de São
idéia de povo, na afirmação da unidade Paulo), ou em tarefas específicas como
fictícia entre descendentes de coloniza- o desbravamento do território e o extra-
dores e colonizados. No Brasil, como em tivismo florestal. Nos setores dinâmicos
outros países, a existência não só de ín- da economia foi a importação de escra-
dios, como também de escravos negros vos africanos (mais tarde de imigrantes
(e depois, de seus descendentes) foi um europeus e, atualmente, a migração in-
problema permanente, que restringiu se- terna) que constituiu o pilar da explora-
veramente (pelo menos para os domina- ção econômica. Para os interesses priva-
dos) a credibilidade do conceito de povo dos que organizaram a economia e a so-
brasileiro. Por isso mesmo, talvez, em- ciedade, o índio, ao contrário de um
bora tenha sido elemento retórico im- recurso, foi um obstáculo à expansão da
portante no discurso dos grupos domi- empresa mercantil primeiro, da capitalista
nantes, raramente foi utilizado como ban- depois e, tanto em um como em outro
deira libertária de minorias oprimidas. momento, da população despossuída que
Do ponto de vista prático, portanto, se instalara nas margens e nos interstí-
as minorias étnicas, dentro do Estado- cios do sistema. Menos que o Estado,
Nação, jamais foram legitimadas pelo po- foram esses segmentos da sociedade civil,
der, cuja constituição implicou a destrui- atuando em grande parte como agentes
ção de particularismos culturais para privados, que se defrontaram com o índio
criar a unidade nacional. Também do e o perseguiram e destruíram.
ponto de vista teórico, a questão jamais A verdade é que, do ponto de vista
foi tratada adequadamente. Se a Socio- do Estado, o índio ocupou sempre uma
logia e a Ciência Política desenvolveram posição muito ambígua. Como ocupante
uma formulação operante quanto às re- original do país e, neste sentido, seu
lações de classe, sempre relegaram o pro- possuidor, precisou ser incorporado, se
blema das minorias étnicas a uma posi- não como cidadão, pelo menos como sú-
ção secundária, ou o trataram como epi- dito, para legitimar o domínio territorial
fenômeno. do Estado, que se quer representante da
Assim, nos defrontamos hoje com a nação. Na ideologia da nacionalidade o
necessidade de atuar em relação ao pro- índio possui um valor simbólico muito o índio e a
blema indígena e de refletir sobre ele grande. Significa, simultaneamente, a a u - legitimidade
se m te r ne m os m e c a nism os p olític os n e m t o n o m i a e a n a t u r a l i d a d e e , n e s t e s e n - do Estado

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tido, constitui uma imagem que permite não podem dispensar. Deste modo, o Es-
representar como "natural" a relação do tado se coloca, para eles, simultaneamen-
povo brasileiro (em abstrato e, portanto, te como instituição alheia à sua tradição
do Estado) com seu território. cultural, como expressão do jugo estran-
De outro lado, constituindo sempre geiro e como única instância de prote-
um obstáculo aos interesses privados, re- ção em face da sociedade que ameaça
presentados no Estado, que estão empe- destruí-los.
nhados na realização de um projeto de A inserção da população indígena no
exploração econômica, foi considerado a Estado brasileiro se dá, assim, contradi-
negação do progresso e do desenvolvi- tória mas inevitavelmente.
mento, que são apresentados como pro- Inseridos no Estado, que espaço en-
jeto da nação. tretanto podem ocupar dentro dele en-
No caso dos índios, a legislação prote- quanto índios?
tora deve ser interpretada como um re-
É necessário começar essa reflexão re-
curso retórico indispensável para legiti-
conhecendo que a resposta a essa questão
mar o caráter nacional do Estado, inte-
envolve uma dinâmica muito específica,
grando o índio como súdito através da
que deriva do fato de a categoria índio
ficção da proteção tutelar. A contradição
ser uma criação da nossa sociedade e da
que isso cria, em relação aos interesses
nossa cultura. As populações indígenas
econômicos efetivamente representados
concretas sempre se pensaram e se defi-
no Estado, tem sido resolvida, na prá-
tica, com o subterfúgio de reconhecer niram como grupos específicos: são, ou
eram, Kamayurá, Suyá, Bororó e não
direitos formais e permitir seu desres-
peito sistemático; ideologicamente, com simplesmente índios. Aprenderam que
eram índios no contato com a sociedade
a elaboração de uma teoria de cristiani-
nacional, espelhados nos olhos do civili-
zação, civilização ou integração que, de-
zado. Construída pelo civilizado, a cate-
fendendo a preservação física dos índios,
goria índio é incorporada pelos grupos
justifica sua destruição enquanto socieda-
tribais como instrumento do processo de
de e enquanto cultura, em nome de um
suposto progresso.
definição de sua posição em face da socieda- minoria em si
d e nacional e do Estado. Ser índio, defi- e para si
Essa ambigüidade que existe na rela-
nir-se como índio, significa reconhecer
ção do Estado com o índio desdobra-se,
sua diferença em relação ao civilizado.
da perspectiva do índio, em ambigüidade
Mas significa também, e cada vez mais,
paralela. As populações indígenas brasi-
a descoberta da semelhança que une cada
leiras estão organizadas em pequenas uni-
grupo a todos os demais grupos indíge-
dades economicamente autônomas e po-
nas, semelhança essa que essencialmente
liticamente independentes, embora pos-
sam fazer parte de grupos culturais mais consiste na distância que os separa a to-
dos do civilizado.
amplos. Não possuem nenhuma organi-
zação estatal própria, mesmo incipiente. Na medida em que os grupos indíge-
Constituindo propriamente nações, do nas se apropriam da categoria índio nes-
ponto de vista social e cultural, estão ses dois sentidos, estão no caminho de
entretanto impossibilitadas, dadas as ca- construir uma nova identidade coletiva e
racterísticas de sua organização política constituir-se efetivamente como minoria
e de sua fraqueza demográfica, de desen- étnica. Para usar uma expressão consa-
volver formas próprias de instituição po- grada, estão deixando de ser "minoria
lítica, que lhes permitam existir como em si" e transformando-se em "minoria
unidades viáveis perante o Estado brasi- para si", emergindo como ator político
leiro. Por outro lado, seus recursos tec- coletivo.
nológicos também não lhes fornecem a Esse caminho parece ser, efetivamen-
base material suficiente para vencer um te, a única alternativa que se apresenta
confronto direto com a sociedade nacio- às populações indígenas. Isso decorre do
nal. Apesar das lutas heróicas que tra- fato de não haver, na sociedade nacio-
varam no passado e continuam a travar nal, outro lugar que possam ocupar sem
no presente, apesar de terem conseguido sofrer um trágico processo de pauperi-
resistir em alguns lugares, por séculos, zação econômica e cultural, transforman-
o confronto levou sempre ao seu exter- do-se, no dizer de Darcy Ribeiro, de ín-
mínio e à sua submissão. Sua única es- dio em indigente. Com efeito, sua incor-
perança de sobrevivência, portanto, está poração direta à economia e à sociedade
na sua inclusão no Estado que criamos a regional que os envolve só se dá enquan-
partir do legado europeu e cuja proteção to peão, individualizado, destribalizado,

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sem terras, sem direitos e sem defesa, podem suprir, contaminados com doen-
no degrau mais baixo da escala social. ças que só os remédios civilizados po-
Como índio, ao contrário, possui pelo dem curar. Parte desse processo é inevi-
menos direitos formais e é como índio tável. Mas não é inevitável que a econo-
que pode reivindicar a posse da terra e mia dos índios seja destruída e sua
a assistência do Estado. Além do mais, é organização política solapada.
como índio que pode, manipulando sua Nesse sistema, a relação entre a Funai
tradição cultural e as imagens e estereó- e os índios se fragmenta nas relações
tipos correntes na sociedade nacional, que cada grupo mantém individualmente
construir para si uma identidade social com o órgão tutelar, de tal modo que
que lhe garanta, pelo menos, o auto-res- "os índios em geral" constituem uma
peito. A legitimidade específica que a categoria global apenas para o Estado,
categoria índio possui como ocupante mas não para os grupos dependentes
original do território constitui o recurso (cada um por si) do auxílio e da prote-
político e jurídico que essas populações ção oficial. A política oficial atua assim
podem explorar para tentar obter para no sentido de impedir, ou pelo menos
si um lugar satisfatório na sociedade bra- dificultar a organização das comunidades
sileira. para uma ação coletiva, processo que
A política indigenista oficial tem ca- ajudaria a superar a sua fragilidade diante
minhado em sentido se não totalmente do poder.
contrário a este, pelo menos contraditó- É no contato dos índios com setores
rio a esse respeito. politizados da sociedade civil que emer-
Reconhecendo o índio como súdito, ge essa alternativa de ação coletiva. E é
o Estado se definiu em relação a ele no contato dos índios entre si, fora e à
como protetor. Cabe ao Estado proteger revelia da ação da Funai, que se cria o
o índio da destruição que pode advir de novo discurso da indianidade e se es-
seu contato com a Sociedade. Deste boça a possibilidade de uma organização
modo, o Estado expressa e legitima a que instrumentalize a luta conjunta. Mas
sua imagem de si mesmo como entidade esse movimento, cuja expressão mais
acima das classes e dos interesses priva- acabada se concretiza na tentativa de
dos. Mas, na medida em que assume essa criar a União das Nações Indígenas e
posição e essa função (que, como sabe- nos congressos que reúnem lideranças de
mos, cumpriu de modo muito parcial), grupos os mais diversos, tem sido consi-
coloca-se numa posição bastante contra- derado pelo Estado como ameaça insu-
ditória em relação ao resto da sociedade, portável à segurança nacional.
para a qual sempre se mostrou incapaz A luta indígena se desenrola assim no
de reconhecer e garantir os direitos dos campo mapeado pelo Estado e pela so-
oprimidos e subordinados. No caso do ciedade civil, beneficiando-se da abertura
índio, a face elitista e autoritária do Es- política, e consiste num processo em que
tado emerge claramente quando o exer- os grupos tribais aprendem que são ín-
cício da função de proteção implica a dios, descobrem que têm direitos e ten-
negação da liberdade e da autodetermi- tam encontrar formas coletivas de con-
nação indígena, considerando os índios cretizar esses direitos.
não como cidadãos, mas como tutelados. Nesse processo, os embates que se tra- o índio na
Com efeito, a análise mesmo superfi- vam no campo puramente ideológico são ideologia da
cial da relação entre o Estado (corporifi- muito importantes, porque é nesse espa- nacionalidade
cado no SPI e na Funai) e os índios ço que se constrói a identidade coletiva,
demonstra claramente que todo o pro- fundamento necessário para a constitui-
cesso de pacificação, atração e confina- ção de um ator político. Nesse plano, os
mento em reservas consiste, basicamen- elementos simbólicos assumem uma re-
te, na destruição da autonomia econô- levância específica.
mica e política dos grupos tribais, esta- Já apontamos que o índio, enquanto
belecendo uma dependência direta e total tal, possui em nossa sociedade uma car-
em face do órgão tutelar. Aliás, a mes- ga simbólica muito elevada. Na ideologia
ma política orientou sempre a ação tra- da nacionalidade ele representa a autoc-
dicional das missões religiosas que, nes- tonia e a relação com a natureza. Mais
se sentido, atuaram como verdadeiros ainda, o índio está estreitamente asso-
"aparelhos ideológicos de Estado". Os ciado à idéia de liberdade. No imaginário
índios são atraídos com presentes, esti- popular, o índio é duplamente livre: não
mulados a adquirir necessidades que não tem governo e perambula pelo territó-

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rio, isto é, não está preso nem ao Estado, sados, o que é melhor para eles. Resolver o a dimensão
nem à propriedade. Há toda uma mito- problema indígena também quer dizer, supranacional
logia da nobreza selvagem, mescla de necessariamente, no plano social, aceitar
autonomia, altivez e coragem que é in- como legítimas as diferenças de hábitos da questão
corporada inclusive na história pátria e costumes, tolerar comportamentos até indígena
com a afirmação de sua incompatibilidade agora considerados desviantes e, portan-
constitucional com a escravidão. Há to, contestar a legitimidade da domina-
também conotações menos positivas na ção ideológica que tem sido um baluarte
imagem: o índio é selvagem, isto é, cruel, da opressão das camadas dirigentes sobre
ignorante das leis (não civilizado), pre- a população em geral. Finalmente, há
guiçoso e atrasado (sem os benefícios que lembrar a dimensão supranacional
da tecnologia). Mas até esse lado nega- da questão indígena, que se manifesta
tivo tem uma contrapartida positiva. de dupla maneira. De um lado, como já
mostramos, despertando uma solidarie-
Para os setores da sociedade que pro-
dade internacional que encontra, na
curam contestar o caráter profundamente ONU, um apoio institucional importan-
autoritário e espoliativo da nossa for- te. De outro, porque a construção de
mação social, o desrespeito às leis e a uma identidade indígena supera os limites
preguiça podem ser interpretados como territoriais dos Estados nacionais e
a negação dos valores que as classes do- começa a assumir uma dimensão conti-
minantes, no Brasil, sempre tentaram im- nental com a realização de encontros e
por aos dominados: a diligência e a sub- congressos que reúnem líderes indígenas
missão. O "atraso", por outro lado, tam- de diferentes países. Tanto em um como
bém pode significar a negação do tecni- em outro caso, a questão indígena rompe
cismo opressivo da racionalidade capita- os limites do nacionalismo estreito e
lista. xenófobo que tanto tem servido à opres-
Essa carga simbólica que se cristaliza são das minorias étnicas em muitas par-
ao redor do índio pode ajudar a explicar tes do mundo.
por que tantas pessoas, no Brasil, tenham É neste sentido que a questão indí-
se dedicado com tanta paixão à causa gena adquire, verdadeiramente, uma di-
indígena. Aliás, não só no Brasil. Con- mensão política que não pode ser menos-
vém lembrar que, de todas as lutas polí- prezada, pois constitui, tanto ou mais
ticas que se travam em nossa sociedade, que qualquer outra, uma luta pela demo-
é essa a que possui repercussão interna- cratização plena do regime e da socie-
cional mais imediata e mobiliza, de modo dade.
muito eficaz, uma solidariedade atuante No Brasil, os partidos políticos de
supranacional. oposição têm sido extraordinariamente
Mas a importância política do proble- lentos em captar e capitalizar os focos
ma não reside numa associação puramen- de tensão e contestação gerados na so-
te simbólica, que atribui ao índio um ciedade. Mal começam hoje a acordar
valor libertário apenas no imaginário co- para o movimento feminista e o proble-
letivo. A verdade é que não se pode pro- ma do negro. Assim também o poten-
por, de fato, uma solução satisfatória do cial libertário presente na luta em de-
problema indígena sem colocar imedia- fesa dos povos indígenas tem sido igno-
tamente em pauta a necessidade de alte- rado. Quando muito, os partidos têm se
limitado a repetir a ideologia oficial con-
rar estruturas de dominação profunda-
tida no Estatuto do índio. Talvez a cres-
mente enraizadas na sociedade brasileira
cente movimentação das lideranças in-
e isso não apenas no plano político, ju- dígenas, das entidades de apoio à causa
rídico e econômico mas, também, no ní- indígena e dos setores mais abertos da
vel social e cultural o mais abrangente. Igreja, representados no CIMI, acordem
Resolver o problema indígena implica, as oposiçoes e as levem a incorporar
primeiramente, reconhecer o caráter emi- mais essa luta como bandeira necessária
nentemente social da propriedade da terra ao processo de democratização da socie-
e admitir que é o uso do território para dade.
o bem-estar de uma coletividade que
legitima a sua posse. Em segundo lugar,
resolver o problema indígena exige o Eunice R. Durham é antropóloga e professora do Depar-
tamento de Ciências Sociais da USP.
reconhecimento do direito à auto-
determinação de pequenas unidades po- Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
v. 1, 4, p. 45-49, nov. 82
líticas e da incompetência do Estado em
definir, sem a participação dos interes-

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