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O Projeto de Lei do Senado no 156, de

2009, que institui novo Código de Processo


Penal e os crimes praticados contra
indígenas ou por indígenas

Ela Wiecko Volkmer de Castilho e


Paula Bajer Fernandes Martins da Costa

Sumário
Introdução. 1. O Projeto e a regra de com-
petência da Justiça Federal para julgamento
de indígena. 2. As lacunas do Projeto. 3. O
paradigma da plurietnicidade. 4. A capacidade
civil do indígena. 5. A imputabilidade penal
do indígena. 6. Obstáculos à igualdade étnica
no processo penal. 7. As normas processuais
da proposta do Estatuto dos Povos Indígenas.
Conclusão.

Introdução
Este artigo se ocupa do art. 95, § 1o,
inserido no Título VI do Projeto de Lei do
Senado n. 156, de 2009, que regula a ma-
téria de competência. O art. 95, caput e o
seu § 2o esclarecem o que se deve entender
por infrações penais em detrimento dos
interesses da União, autarquias, empresas
públicas, bem como em detrimento dos
serviços federais. O §1o, objeto específico
de nossa atenção, dispõe que “inclui-se na
competência jurisdicional federal a infração
penal que tenha por fundamento a disputa
sobre direitos indígenas, ou quando prati-
cada pelo índio”.
Ela Wiecko Volkmer de Castilho é Subpro- O Projeto de Lei em exame vem em boa
curadora-Geral da República, Professora da
Universidade de Brasília, Doutora em Direito
hora. O atual Código de Processo Penal,
pela Universidade Federal de Santa Catarina. Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de
Paula Bajer Fernandes Martins da Costa é 1941, é anterior ao fim da Segunda Guerra
Procuradora Regional da República, Mestre e e da Declaração Universal dos Direitos
Doutora em Direito Processual Penal pela USP. Humanos, proclamada pela Organização

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das Nações Unidas em 1948. A lembrança transformaram em leis. Vale recordar os
da antiguidade da lei mostra que o modelo Anteprojetos Hélio Tornaghi (1963), Frede-
de persecução penal nela estabelecido está rico Marques (1975), o Projeto de Reforma
mais do que ultrapassado. no 1655 (1983). Outras Comissões foram
Embora o Código de Processo Penal constituídas para a reforma no decorrer
tenha sido alterado mais de trinta vezes e a dos anos, comissões essas que elaboraram
Constituição de 1988 tenha conferido novo anteprojetos de lei específicos e separados
enfoque a muitos dos seus dispositivos, para situações e momentos processuais
concretizando o contraditório no desenro- diversos.
lar procedimental, é importante a edição de No contexto histórico, é extremamente
novo regramento. relevante que a última comissão, presidida
O estatuto processual que regulamenta pelo Ministro Hamilton Carvalhido, do
a forma como o poder de punir é exercido – Superior Tribunal de Justiça, e na qual foi
em todas as etapas de apuração da infração relator o Procurador Regional da República
penal e de sua autoria – revela o comprome- Eugênio Pacelli de Oliveira, tenha con-
timento do Estado Democrático de Direito cluído modelo único de persecução penal
com a prestação jurisdicional. O processo delineado no Projeto de Lei do Senado no
penal, hoje, é regulamentado em diversas 156, de 2009.
leis, nem sempre coerentes e harmônicas.
Há lei para situações de crime organizado, 1. O Projeto e a regra de
para interceptações telefônicas, para crimes competência da Justiça Federal
hediondos e assemelhados, para infrações
para julgamento de indígena
penais relacionadas a drogas, todas elas in-
dependentes do Código de Processo Penal, É a primeira vez que um Código de Pro-
mas que precisam estar adequadas às regras cesso Penal no Brasil faz menção expressa
gerais previstas no art. 5o da Constituição, a indígenas1. Embora o Projeto não traga
que estabelece, com precisão, direitos e qualquer outra disposição que regule de
garantias individuais, entre eles o direito forma diferenciada, por exemplo, a citação
ao devido processo legal (art. 5o, LIV). do indígena acusado, a intimação e a inqui-
Com a edição de novo estatuto, ter-se-á rição do indígena testemunha ou vítima, o
um único modelo de persecução penal, estabelecimento de regra de competência é
pensado e estruturado para ser aplicado muito importante.
quando praticadas condutas definidas O Projeto de Código de Processo Penal
como crime pela lei penal. A segurança traz, nas regras de competência, dispositivo
jurídica será maior, na medida em que se direcionado às comunidades indígenas:
conhecerá, previamente, qual a função de “Art. 95. Considera-se praticada em
cada agente da persecução no processo e detrimento dos interesses da União,
quais atos constritivos poderá realizar. O autarquias e empresas públicas, além
poder de perseguir, que existe em função das hipóteses expressamente previs-
do poder de punir, deve ser preciso e li- tas em lei, a infração penal lesiva a
mitado pela lei. Um Código de Processo bens ou recursos que, por lei ou por
Penal coerente e atualizado com as trans- contrato, estejam sob administração,
formações da sociedade é imprescindível
ao Estado brasileiro. 1
No texto será utilizado preferencialmente o ter-
O Brasil teve, já, alguns anteprojetos mo indígena , conforme opção expressa pela Comissão
Nacional de Política Indigenista que redigiu a propos-
de código de processo penal que, embora ta do Estatuto dos Povos Indígenas, encaminhado pelo
tenham sido importantes e ainda propor- Governo, em agosto de 2009, ao Congresso Nacional
cionem estudos em processo penal, não se para ser apreciado com o PL no 2057/91.

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gestão ou fiscalização destas enti- estar com a União porque ela já detém a
dades. competência para julgamento das disputas
§ 1o Inclui-se na competência juris- sobre direitos indígenas (art. 109, XI). Todo
dicional federal a infração penal que ato praticado pelo índigena definido em lei
tenha por fundamento a disputa como crime merece ser apurado sob regras
sobre direitos indígenas, ou quando concentradas em garantir respeito aos
praticada pelo índio. direitos indígenas. Isso porque a própria
§ 2o Considera-se praticada em detri- Constituição reconhece aos índios organi-
mento dos serviços federais, a infra- zações, costumes, línguas e tradições pró-
ção penal dirigida diretamente contra prias. Não poderá o indígena ser julgado
o regular exercício de atividade ad- em contexto afastado de suas tradições e de
ministrativa da União, autarquias e seus costumes. A Justiça Federal, designada
empresas públicas federais”.2 pela Constituição para julgar os conflitos
O dispositivo não permitirá dúvida al- indígenas, está preparada, ou deve estar, e
guma. Sempre que indígena aparecer como estará cada vez mais, para julgar condutas
investigado ou acusado em persecução cometidas por membro de comunidade
penal, a competência para apuração oficial indígena definida em lei como crime.
da verdade, processo e julgamento será da Observa Manoel Castilho (2003, p. 11)
Justiça Federal. A Súmula 140 do Superior que, quando se trata dos direitos indígenas,
Tribunal de Justiça, que afirma caber à “ressalvado o interesse da União, a compe-
“Justiça Comum Estadual processar e julgar tência se define tão só pela existência de
crime em que o indígena figure como autor disputa sobre eles e esta é uma circunstância
ou vítima”, não terá, portanto, qualquer decisiva”. Afirma que “a jurisprudência
aplicação. Não será necessário, para fixação tem sido generosa na definição de causa
da competência federal, verificar ofensa a e de crime para os efeitos da definição da
interesses da coletividade indígena. Vale competência de jurisdição, mas não tem
ressaltar que os precedentes dessa súmula sido suficientemente cuidadosa em assentar
se referem a julgamentos proferidos sob a o conteúdo preciso do conceito de disputa”.
vigência da Constituição anterior, a qual Entende que a expressão abrange direitos
não possuía regra semelhante ao atual art. ou interesses indígenas, que devem ser
109, XI da CF 88. entendidos na perspectiva do art. 231 da
O dispositivo está adequado à Cons- CF, em toda a sua extensão, não se restrin-
tituição, que estabelece, no art. 231: “São gindo a conflitos que envolvam pretensões
reconhecidos aos índios sua organização sobre terras.
social, costumes, línguas, crenças e tradi- O Supremo Tribunal Federal, no jul-
ções, e os direitos originários sobre as terras gamento do RE 419.528/PR, Relator para
que tradicionalmente ocupam, competindo o acórdão o Min. Cezar Peluso, assentou,
à União demarcá-las, proteger e fazer res- por maioria, que os direitos indígenas
peitar todos os seus bens”. mencionados nos arts. 109, XI e 231 são
A competência para a persecução em aqueles coletivos relativos à organização
infração penal praticada pelo indígena deve social, costumes, línguas, crenças, tradições
e os direitos originários sobre terras. O
2
A proposta da Comissão Nacional de Política que ainda não tem sido visto com clareza
Indigenista traz diversas normas de caráter proces- é que não há como dissociar a conduta
sual penal, entre elas a seguinte, sobre a competência praticada por indígena ou contra indígenas
jurisdicional: Aos juízes federais compete julgar a
disputa sobre direitos indígenas, assim considerada,
da dimensão necessariamente coletiva da
na esfera criminal, as ações em que o indígena figure organização social dos povos e comunida-
como autor ou réu . des indígenas.

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2. As lacunas do Projeto se ao acusado que sua verdade aparecesse
no desenrolar procedimental com opor-
O Projeto de Código de Processo Penal tunidade de ser reconhecida na sentença.
poderia ter avançado mais. Poderia ter in- As regras teriam dupla função: respeito às
corporado ao estatuto processual penal re- culturas indígenas e realização do devido
gras que garantissem, ao indígena acusado, processo legal.
intérprete em interrogatórios e audiências,
regras que estabelecessem formas específi-
3. O paradigma da plurietnicidade
cas para a prisão cautelar, como estabelece,
aliás, atualmente, o Estatuto do Índio (Lei Johnson (1997, p. 100) explica que etnici-
no 6001/73, arts. 56 e 57)3. O Projeto de Lei dade é “um conceito que se refere a uma cul-
poderia conter regras que garantissem a tura e estilo de vida comuns, especialmente
obrigatoriedade de produção de estudos da forma refletida na linguagem, maneiras
antropológicos que examinassem a con- de agir, formas institucionais religiosas e de
duta praticada sob enfoque de costumes outros tipos, na cultura material, como rou-
e tradições. pas e alimento, e produtos culturais como
A proposta do Estatuto dos Povos Indí- música, literatura e arte.” A etnicidade está
genas, encaminhada em agosto de 2009 pelo associada ao conceito de identidade étnica/
Ministro da Justiça Tarso Genro à Câmara identidade cultural. O conjunto de pessoas
dos Deputados, fruto de discussão ampla que têm em comum a etnicidade é frequen-
na Comissão Nacional de Política Indige- temente denominado de grupo étnico.
nista, incorpora todas essas disposições à Visando contextualizar a necessidade de
persecução penal. O Projeto de Código de o Código de Processo Penal a ser editado
Processo Penal poderia ter aproveitado a alcançar os objetivos da Constituição da Re-
oportunidade de reunir, em um mesmo pública de 1988 impõe-se, ainda que breve,
documento, disposições respeitantes a di- a exposição sobre o paradigma da plurietni-
versas peculiaridades da persecução penal cidade nela adotado e as consequências dele
se tivesse incorporado, no texto, dispositi- nos temas da capacidade civil do indígena,
vos semelhantes que serão, ao longo deste bem como de sua imputabilidade penal.
artigo, explicitados. Após, serão apontadas várias situações em
A consolidação de regras protetivas que a lei processual penal, formada no pa-
das tradições e costumes indígenas no drão étnico eurocêntrico, viola o exercício
processo penal contribuiria para o respeito da identidade étnica/cultural dos indíge-
aos direitos culturais das etnias e teriam a nas ao não prever regramentos específicos
função de realizar o devido processo legal para os indígenas nas diversas posições
em sua inteireza e plenitude, garantindo- em que podem assumir no processo. Nes-
3
É importante transcrever , no contexto, os disposi-
se sentido ver-se-á que a lei configura um
tivos do Estatuto do Índio em vigor: Art. 56. No caso de obstáculo à igualdade reconhecida pela
condenação de índio por infração penal, a pena deverá Constituição aos diversos grupos étnicos
ser atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também formadores da identidade nacional. Daí,
ao grau de integração do silvícola. Parágrafo Único. a necessidade de refletir sobre a edição de
As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas,
se possível, em regime especial de semiliberdade, no normas que propiciem respeito à identida-
local de funcionamento do órgão federal de assistência de e à igualdade étnica.
aos índios mais próximo da habitação do condenado. A Constituição de 1988 garante a todos
Art.57. Será tolerada aplicação, pelos grupos tribais, de o pleno exercício dos direitos culturais, sem
acordo com as instituições próprias, de sanções penais
ou disciplinares contra os seus membros, desde que
enunciar quais são (art. 215), falha que é
não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em superada pela aplicação dos instrumentos
qualquer caso a pena de morte. internacionais incorporados à legislação

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interna, como o Pacto Internacional de da plurietnicidade, que foi incorporado
Direitos Civis e Políticos e Pacto Interna- na Constituição Brasileira antes mesmo da
cional de Direitos Econômicos, Sociais e Convenção no 169, da OIT, que, no plano
Culturais, na forma do art. 5o, §2o. O seu internacional, o estabelece como norma.
conceito de cultura abrange as manifes- Os direitos culturais ainda formam um
tações das “culturas populares, indígenas campo heterogêneo que carece de desen-
e afro-brasileiras, e das de outros grupos volvimento teórico e sobretudo prático, no
participantes do processo civilizatório sentido de que os conteúdos que já foram
nacional” (art. 215, §1o), como tais conside- detalhados precisam ser levados às últimas
radas as formas de expressão; os modos de consequências. Assim, o direito de cada
criar, fazer e viver; as criações científicas, grupo humano a produzir cultura e a viver
artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, conforme essa cultura, denominado direito
documentos, edificações e outros espaços; à identidade cultural, exige o repensar de
os conjuntos urbanos e sítios de valor his- todas as intervenções estatais. Isso ficará
tórico, paisagístico, artístico, arqueológico, um pouco mais evidenciado nos itens
paleontológico, ecológico e científico (art. seguintes.
216). A proteção dos direitos culturais dos
povos indígenas é objeto de regulamenta- 4. A capacidade civil do indígena
ção específica (Capítulo VIII).
Por isso se diz que a Constituição de De acordo com o Código Civil de 2000,
1988 configurou a República Federativa do “a capacidade dos índios será regulada
Brasil como um Estado nacional pluriétnico por legislação especial” (par. ún. do art.
e multicultural. Explica Duprat (2007, p. 4o). A legislação especial em vigor é a Lei
9) que “a princípio resultado de exercício no 6.001, de 19.12.73, editada no contexto
hermenêutico, tal compreensão, na atuali- da Constituição de 1967, com a redação
dade, está reforçada por vários documentos dada pela Emenda no 1/69. Essa lei faz
internacionais dos quais o Brasil é signatá- uma classificação dos índios conforme seu
rio, merecendo destaque a Convenção 169, grau de contato com a sociedade nacional,
da OIT, a Convenção sobre a Proteção e a distinguindo-os em isolados, em vias de
Promoção da Diversidade das Expressões integração e integrados. Os primeiros e os
Culturais, ambas já integrantes do ordena- segundos têm uma restrição em sua capa-
mento jurídico interno, e , mais recentemen- cidade civil, devendo ser assistidos pelo
te, a Declaração das Nações Unidas sobre órgão indigenista. Entretanto, essa classi-
os Direitos dos Povos Indígenas”. ficação é incompatível com a Constituição
Nesse contexto, entende-se que “a iden- Federal de 1988. Enquanto não for editada
tidade cultural de um grupo não é estática e uma nova lei, deve-se interpretar no sentido
tem constituição heterogênea. A identidade de que os indígenas sujeitam-se às mesmas
é fluida e tem um processo de reconstrução regras sobre capacidade civil aplicáveis aos
e revalorização dinâmico, resultado de con- demais cidadãos. A tutela exercida pelo
tínuas discussões internas ou de contatos e órgão indigenista não tem mais o sentido de
influência de outras culturas” (CHIRIBO- representação, de direito privado, mas de
GA, 2006, p. 45) O que não se admite é a assistência, no âmbito do direito público.
assimilação forçada de outra cultura.
Essa perspectiva diverge do chamado 5. A imputabilidade penal do indígena
paradigma assimilacionista ou integracio-
nista, representado normativamente pela Renomados manuais de Direito Penal
Convenção no 107 da OIT, e corresponde ainda dão como exemplo de desenvolvi-
ao paradigma da diversidade cultural e mento mental incompleto e retardado os

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“silvícolas não-integrados” ou “silvícolas mativa. A pessoa pode conhecer a norma,
inadaptados”. Por isso, inimputáveis, con- mas razões culturais impedem que ela aja
soante a norma do art. 26 do CP (PRADO, de modo diverso. Na segunda, a pessoa tem
2002, p. 350; BITENCOURT, 2008, p. 359). conhecimento da proibição e da ausência de
Esse entendimento fazia sentido na vi- permissão legal, mas não se lhe pode exigir
gência do paradigma assimilacionista que sua interiorização. Na justificação putativa
se encontra expresso na Lei no 6.001, já cita- um indígena vê o não-índio como inimigo,
da. De acordo com a teoria constitucional, o que justifica atitudes contrárias ao direito
as disposições de uma lei quando incom- que antecipam a ação inimiga.
patíveis com a Constituição promulgada
posteriormente perdem sua força cogente. 6. Obstáculos à igualdade
Contudo, na prática administrativa e juris- étnica no processo penal
prudencial, as distinções feitas pela Lei no
6001 com o fim integracionista continuam Em nosso país a lei processual penal é
a ser aplicadas. Assim, nos processos em aplicada a integrantes de minorias étnicas
que o indígena é autor de infração penal, sem atenção às diferenças culturais. Análise
costuma-se fazer um juízo inicial do grau feita por Castilho (2005) acerca da aplicação
de interação para declarar se é imputável da lei processual civil pode ser transposta
ou não. para a lei processual penal.
No paradigma da plurietnicidade o Vejamos, por exemplo, o Capítulo V
grau maior de integração do indígena à do Título IV do Código de Processo Civil
sociedade nacional não o descaracteriza (arts. 139-153), que trata dos auxiliares de
como indígena, tampouco exclui a impu- justiça. O art. 139 prevê como auxiliares do
tabilidade penal. “Os índios têm o direito juízo, além de outros, cujas atribuições são
de permanecerem como índios, mesmo que determinadas pelas normas de organização
saiam de seus territórios ou percam parte judiciária, o escrivão, o oficial de justiça, o
de suas características étnicas” (VILLARES, perito, o depositário, o administrador e o
2009, p. 63). É a consequência do reco- intérprete.
nhecimento de que não há uma escala de Quando um integrante de comunidade
desenvolvimento de grupos étnicos. Eles indígena comparece em juízo para depor
apenas são diferentes. como parte ou como testemunha e não se
A inimputabilidade dos indígenas segue expressa na língua portuguesa, o juiz con-
as regras gerais aplicáveis a todas as pessoas sidera necessário nomear um intérprete.
maiores de 18 anos. Todavia, é possível ex- Todavia, para compreender o contexto
cluir a culpabilidade pelo reconhecimento cultural do depoente ou da demanda,
do erro de proibição ou da inexigibilidade quando posta em favor ou contra indígenas,
de conduta diversa. Villares (2009, p. 301) individual ou coletivamente, é necessário o
reporta a doutrina penal latino-americana auxílio de alguém que conheça a organiza-
que desenvolve o conceito de ”erro cultu- ção sociopolítica e cultural do grupo étnico.
ralmente condicionado, que se aplica à não Em geral, será um(a) antropólogo(a)/a com
compreensão do índio sobre a ilicitude de especialização naquele grupo étnico. A au-
suas ações em relação ao sistema de punição sência de profissional capaz de estabelecer
da sociedade não-índia”. Ressalta que Eu- o diálogo intercultural faz com que o siste-
genio Raúl Zaffaroni identifica três formas ma judicial ignore a diversidade cultural e
desse conceito: erro de compreensão, cons- aplique o direito sempre do ponto de vista
ciência dissidente e justificação putativa. étnico/cultural dominante.
Na primeira forma há uma dificuldade Esse profissional a quem ora denomina-
inata para a compreensão da proibição nor- mos de “tradutor cultural” não se confunde

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com o intérprete, pois este tem a função de Qual a repercussão que tem o fato objeto
tirar dúvidas no entendimento de docu- do processo para um grupo étnico ou para
mento redigido em língua estrangeira ou seus componentes? Afeta suas crenças, tra-
de verter em português as declarações das dições e costumes? Qual o seu significado
partes e das testemunhas que não conhe- religioso, cultural e social para um deter-
cerem o idioma nacional (art. 151, I e II). minado grupo étnico? Ou para o próprio
Também não se confunde com o perito, que indivíduo? Há algum elemento inerente à
auxilia o juiz a esclarecer a prova do fato sua cultura e à sua dinâmica cultural que
que dependa de conhecimento técnico ou possa ter causado ou contribuído para o
científico (art. 145). evento? A diversidade cultural, costumes,
Quando o litígio diz respeito à ocupação tradições, crenças, línguas e organização
no modo tradicional indígena o juiz se vale social restam afetadas nas situações descri-
de antropólogo que, no caso, atuará como tas? Esses questionamentos, entre outros,
perito porque a prova do fato (ocupação tornam evidentemente necessária a análise
indígena) depende de conhecimento an- da complexidade do ambiente sociocultural
tropológico. Quando houver dúvida sobre para ter clareza em tais respostas.
a imputabilidade do indígena, o juiz deve Para compreender o contexto cultural
se valer de exame médico-legal psiquiatra. do grupo ou do indivíduo que o integra,
Mas há outras situações em que a prova do deve ser implementada uma tradução, feita
fato não demanda perícia, mas a aplicação necessariamente pela mediação antropoló-
justa do direito depende de uma visão in- gica, que torna o outro inteligível. A ausên-
tercultural e multicultural. cia de profissional capaz de estabelecer o
A necessidade da figura do tradutor cul- diálogo intercultural faz com que o sistema
tural advém do fato de que a Constituição judicial ignore a diversidade e aplique o
assegura às minorias étnicas o exercício de direito sempre do ponto de vista étnico
seus direitos sem que, para tanto, sejam dominante. Do ponto de vista formal tra-
obrigadas a assimilar os valores e instru- balhos já realizados nesse sentido. Na falta
mentos propiciados pela “comunhão na- de maior debate, têm sido denominados de
cional”, denominação do todo homogêneo laudos periciais. Preferimos as expressões
que pretende ver em si inseridas as partes parecer ou estudo antropológico .
dissidentes, apropriando-lhes os elementos Os juízes costumam pedir perícia an-
diferenciadores. tropológica, laudo antropológico ou exame
Se a eles é outorgado o direito de manter antropológico com vistas a determinar o
suas formas próprias de existência, o rela- grau de aculturação de um indígena, de sua
cionamento com esses grupos, de modo a integração na sociedade, de sua socializa-
garantir seu direito à identidade, pressupõe ção ou ainda de sua imputabilidade 4.
a compreensão e respeito de suas formas Maria Fernanda Paranhos (2003) co-
de conhecer e relacionar-se com o mundo. menta que essa abordagem pressupõe a
Deve-se, assim, revelar o espaço ontológico falsa imagem do índio genérico, no qual
do “outro”, do diferente, antes destituído todos têm a mesma cultura, língua, religião,
de qualquer conteúdo porque subsumido hábitos e relações jurídicas . De outra parte,
ao universal. restringe-se a verificar em que medida os
Se os juízes utilizam técnicos sempre indígenas, com a sua existência atual, po-
que necessário para espancar dúvidas que dem ser enquadrados na categoria índio
fogem do seu conhecimento jurídico, o
4
Já comentamos acerca desse equívoco, decorrente
mesmo raciocínio não pode ser ignorado
do entendimento de que indígenas que não sabem se
na avaliação da diversidade cultural, ga- expressar na língua portuguesa ou que vivem isolados
rantida pela Constituição Federal. possuem desenvolvimento mental incompleto.

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que, apesar de gerada no período colonial desses objetos, para que seus valores sejam
pelos administradores portugueses e es- reconhecidos e os princípios constitucionais
panhóis, com finalidades políticas de dife- do respeito à diferença colocados em prá-
renciar o aliado do inimigo para dominar tica. É uma dimensão complexa. O fato de
e administrar, continua presente no senso ser profano ou sagrado para participantes
comum classificando-os como primitivos, distintos determina de imediato uma va-
selvagens, silvícolas, integrantes de cul- lorização em diferentes planos do objeto.
turas autênticas, exóticas e rudimentares. Por exemplo, o conflito em torno do acesso
A autora salienta que a identidade étnica à terra reveste-se de elementos materiais
de um grupo indígena é resultado da evidentes, mas também de elementos sim-
autoidentificação e da identificação pela bólicos de maior significação social. Por
sociedade envolvente. Portanto, a análise outro lado, a luta por igualdade de direitos
antropológica há de se debruçar sobre o ou pelo reconhecimento de determinadas
processo de construção da identidade em identidades gira em torno de elementos
sociedades indígenas em contato com: a so- simbólicos, mas normalmente implica re-
ciedade nacional e os contextos em que ela sultados materiais expressivos.5
é evocada, como elaboram suas unidades Diante do que foi exposto, resulta evi-
e como constroem suas diferenças. Ainda, dente que o tradutor cultural deveria ser
conforme Paranhos, o contato sociocultural chamado em todos os processos que envol-
não pode ser visto apenas pelo ângulo da vam integrantes de minorias étnicas para
sociedade dominante, deve ser visto com auxiliar na compreensão do modo de fazer,
toda a complexidade de uma realidade so- viver e criar desses grupos, bem como de
ciológica que envolve as instituições sociais, sua interação com a sociedade envolvente.
forças e interesses (...) A etnografia, em situ- Por sua vez, o procedimento processual
ações de conflitos socioculturais, focaliza o deveria proporcionar condições para uma
campo de relações no qual vários segmentos posição de igualdade.
sociais disputam entre si interesses, sejam As regras do Código de Processo Civil,
eles sociais, ambientais ou simbólicos. porém, sobre depoimento pessoal (arts. 342
Salienta a autora ser fundamental o le- a 347), confissão (arts. 348 a 354) e prova
vantamento dos grupos em contato, assim testemunhal (arts. 407-419) ignoram par-
como a investigação de todo o processo de ticularidades nas relações interétnicas e,
enfrentamento, oposição, dominação, sub- especialmente, numa relação de poder. De
missão, resistência que ocorre simultanea- igual modo, as regras do Código de Proces-
mente no plano simbólico e no plano das so Penal vigente e do Projeto em exame.
relações sociais. Os estudos, além da análise É oportuno reportar aos estudos realiza-
da conjuntura política, social e cultural na dos na Austrália a respeito dos problemas
qual o conflito se insere, devem identificar que os povos aborígenes enfrentam no
e analisar a assimetria de poder existente sistema legal daquele país. A discriminação
entre os atores para entendermos melhor é manifesta (atitudes anti-aborígenes dos
o tipo de relações que estabelecem entre policiais ou dos juízes de paz) ou sutil (por
si. A identificação dos atores inclui não só ex., se um aborígene descansar próximo a
a percepção dos distintos interesses, mas 5
Registra Duprat (2007, p. 18) que a mulher yano-
também as diferentes percepções e racio- mami, quando sente que é chegada a hora do parto,
nalidades dentro do conflito. Os objetos vão sozinha para local ermo na floresta, fica de cócoras,
em disputa normalmente são reconhecidos e a criança cai ao chão. Nessa hora, ela decide se a
pega ao colo ou se a deixa ali. Se a coloca nos braços,
por todos os atores. A tarefa então é mos-
dá-se, nesse momento, o nascimento. Se a abandona,
trar, além da dinâmica social, as diversas não houve, na concepção do grupo, infanticídio, pela
leituras e compreensões que os atores têm singela razão de que a vida não se iniciou.

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um bar, deduz-se que ele esteja bêbado, que cultural para colher o depoimento pessoal e
já tenha assimilado costumes brancos e te- testemunhal e a avaliar a suposta confissão,
nha sido processado). Há uma outra discri- a fim de salvaguardar no processo civil e
minação que é construída no sistema legal, penal o direito cultural de identidade étni-
nos casos em que o comportamento social ca. Esse auxiliar do juízo não se confunde
e habitual do aborígene está em conflito com o intérprete, obrigatório para o caso
com aspectos do modo de vida europeu, de o acusado ou depoente não se expressar
codificado nas leis. Exemplificando, em seu no idioma português, nem com o perito
comportamento normal, os aborígenes re- chamado para verificar a materialidade da
correm a um conjunto específico de práticas infração ou a imputabilidade do agente.
e estratégias para estabelecer uma interação A carência de tradução cultural, que
ocasional com os europeus de forma segura se constata nos processos penais contra
e bem sucedida; no entanto, alguns aspectos indígenas, tem suscitado requerimentos
desta prática são inadequados para uma de perícia antropológica, que, à míngua de
boa defesa. Liberman (1981) relata que os previsão legal e ao argumento da desneces-
aborígenes descobriram que o método mais sidade no caso concreto, sistematicamente
fácil de lidar com os povos brancos é concor- vêm sendo indeferidos. Para Villares (2009,
dar com tudo que eles desejam em depois, p. 302), o laudo antropológico-cultural de-
continuarem a fazer as coisas a seu modo. veria ser obrigatório porque só ele poderá
Nos tribunais, ao formular perguntas, em demonstrar no caso concreto a inserção de
regra, o homem branco receberá respostas, um valor cultural numa pessoa criada em
calculadas para evitar problemas ou para uma sociedade diversa. Avalia que a juris-
satisfazer o desejo de quem interroga. prudência do Supremo Tribunal Federal,
As conclusões de sociólogos e antropó- que entende desnecessária a perícia an-
logos australianos sobre os problemas de tropológica, chega a dotar uma presunção
comunicação interétnica na administração de responsabilidade ao índio que fala o
da justiça, configurando discriminação, idioma nacional ou possui diploma escolar
extrapolam a situação específica, vez que (idem, p. 303)6. Assevera que o índio pode
há muitas semelhanças nas estratégias de mostrar-se externamente apto a todos os
sobrevivência de todas as populações tra- atos da vida, mas, internamente, sem o
dicionais do mundo. entendimento perfeito do caráter ilícito da
Vale invocar, ainda que não tenha efeito conduta, ou mesmo, entendendo a ilicitude,
vinculante, a Declaração das Nações Uni- não podendo agir diferente por sua cultura
das sobre os Povos Indígenas, aprovada assim o exigir (ibidem, p. 309).
em 13 de setembro de 2007 pela Assem- Portanto, seria bem-vinda uma disposi-
bleia Geral das Nações Unidas. Seu art. 13, ção no Projeto de Lei 156 estabelecendo a
item 2, determina que os Estados adotem obrigatoriedade de parecer/estudo antro-
medidas eficazes para assegurar que os pológico nos inquéritos policiais, termos
Povos Indígenas possam entender e fazer- circunstanciados e ações penais em que o
se entender nas atuações políticas, jurídicas acusado se autodeclarar indígena.
e administrativas, proporcionando-lhes,
quando necessário, serviços de interpreta-
6
Exceção à regra é o julgamento pelo STF do RHC
84308/MA, relator o Min. Sepúlveda Pertence, que
ção ou outros meios adequados (FRANCO, afirmou: A falta de determinação da perícia, quando
2008, p. 47). exigível à vista das circunstâncias do caso concreto,
Portanto, é conveniente a inclusão de constitui nulidade da instrução criminal, não coberta
pela preclusão, se a ausência de requerimento para
uma regra no CPC aplicável subsidiaria-
sua realização somente pode ser atribuída ao Minis-
mente ao CPP, ou no próprio CPP, que obri- tério Público, a quem cabia o ônus de demonstrar a
gue o juiz a requisitar o auxílio de tradutor legitimidade ad causam dos pacientes.

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7. As normas processuais da proposta Art. 229. Durante a realização de
do Estatuto dos Povos Indígenas audiência, é direito do indígena ser
assistido por intérprete quando não
Volta à tramitação o Projeto de Lei no falar ou compreender plenamente a
2057/91, agora com proposta encaminhada língua nacional oficial.
pelo governo para o Estatuto dos Povos In- Parágrafo único. O interprete poderá
dígenas que pode, se transformado em lei, ser indicado pelas partes ou nomeado
substituir o Estatuto do Índio. Esta proposta pela autoridade judicial.
contém disposições processuais adequadas Art. 230. A ação penal, nos crimes
à proteção do indígena em processo penal. praticados por indígenas contra in-
É que o processo penal, para que a igual- dígenas, será publica condicionada
dade entre indígenas e não indígenas seja a representação do ofendido.
respeitada, deve acontecer sob garantias Art. 231. O juiz poderá substituir a
específicas de preservação da identidade prisão preventiva pela prisão domici-
cultural do acusado. Transcrevemos dis- liar quando o agente foi indígena.
positivos do proposto Estatuto dos Povos Art. 232. O juiz, ao fixar a pena por
Indígenas que podem ser incorporados, infração cometida por indígena, além
também, com as adaptações necessárias, de observar o disposto no art. 68 do
ao Código de Processo Penal: Decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de
“Art. 227. Serão respeitadas as reso- 1940 Código Penal, deverá considerar
luções de conflitos das comunidades a sanção aplicável pela comunidade
indígenas realizadas entre seus mem- indígena, podendo, inclusive, deixar
bros e de acordo com seus usos, cos- de aplicar pena quando considerar
tumes e tradições, inclusive se resul- que aquela foi suficiente para a re-
tarem em sanções ou absolvições. provação do delito.
Art. 228. Aos juízes federais compete Art. 233. Condenado o indígena por
infração penal o juiz considerará, na
julgar a disputa sobre direitos indí-
aplicação da pena, as peculiaridades
genas, assim considerada, na esfera
culturais do réu e as circunstâncias
criminal, as ações em que o indígena
do cometimento do crime.
figure como autor ou réu.
§1o As penas de reclusão e de de-
Art. Durante o procedimento criminal
tenção serão cumpridas sempre que
instaurado para apurar condutas prati-
possível, em regime aberto, na terra
cadas pelo indígena, o juiz deverá con- indígena ou no local de funcionamen-
siderar suas peculiaridades culturais e to da unidade administrativa do ór-
o respeito a seus usos e costumes. gão indigenista federal mais próxima
§1o As peculiaridades culturais do réu do domicílio do condenado.
e a observância de seus usos e costu- §2o Se o juiz fixar o regime inicial
mes deverão ser aferidas mediante a fechado, o indígena deverá cumprir
realização de perícia antropológica. a pena em estabelecimento distinto
§2o É direito do indígena ter a pre- dos não-indígenas, em respeito aos
sença de representante do órgão seus usos e costumes.
indigenista federal,quando preso em §3o O juiz deverá adequar a pena
flagrante, para a lavratura do auto restritiva de direito aplicada ao in-
respectivo, e nos demais casos, a sua dígena à sua realidade e à cultura de
comunicação expressa. sua comunidade indígena.
§3o Recebida a denúncia, o juiz deverá Art. 234. É isento de pena o indígena
determinar a realização da perícia que pratica o fato em função dos va-
antropológica. lores culturais de seu povo.
64 Revista de Informação Legislativa
Art. 235. A Procuradoria Geral Fede- já que é ele, também, cidadão, deve ter a
ral prestará a assistência jurídica cri- oportunidade de que a sua verdade apareça
minal ao indígena ou comunidades. no processo em contexto adequado à sua
Art. 236. A Procuradoria Geral Fede- cultura. Sua defesa, para que seja concreta,
ral criará câmara de coordenação e e para que produza os mesmos efeitos que
especialização da matéria indígena, a defesa de acusados não indígenas, deve
de modo a formar e manter em seus estar garantida por regras específicas, entre
quadros Procuradores Federais espe- as quais a presença de intérprete, quando ne-
cialistas no assunto. cessário, em todos os atos processuais, a pre-
Parágrafo Único: A câmara de coor- sença de representante do órgão indigenista
denação de que trata o caput poderá federal no momento em que lavrado auto de
convidar advogados indígenas ou prisão em flagrante, o prazo em dobro para
especialistas para acompanhar os manifestação, e o parecer/estudo antropoló-
seus trabalhos. gico que contextualize a conduta no contato
Art. 237. Aplicam-se os prazos em interétnico. Só assim o devido processo legal
dobro para recorrer e em quádruplo poderá acontecer. Em um primeiro momen-
para contestar, nas ações cíveis, e em to, a lei deve prever situações específicas
dobro, para todos os atos, nas ações que garantam ao acusado indígena na per-
penais, quando envolverem interes- secução igualdade relacionada aos demais
ses indígenas, individual ou coletivo, cidadãos acusados. Em segundo momento,
sejam os indígenas defendidos por as garantias previstas na lei serão concreti-
advogado público ou constituído. zadas no processo, dando lugar ao devido
Parágrafo Único. Será pessoal a in- processo legal em seu aspecto formal. Só
timação nas ações a que se refere o assim a exigência constitucional do devido
caput.” processo legal será cumprida, realizando-se
Os dispositivos transcritos nada mais a igualdade de todos no processo penal.
fazem que garantir que o devido processo
penal seja concretizado nos aspectos substan-
cial e formal. Explica Martins da Costa (2001, Referências
p. 60-61): “O ordenamento jurídico brasileiro
exige que também o legislador observe a BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito
igualdade na formulação do Direito. A igual- penal: parte geral 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva.
dade na formulação é atendida quando as CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Processo civil e igual-
discriminações eleitas pela lei são razoáveis dade étnico-racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA.
e estabelecem meios e fins correspondentes Douglas (coord.) Ordem jurídica e igualdade étnico-racial.
e harmonizados com o sentido de justiça”. Brasília: SEPPIR, 2006.
Por sua vez, Tucci e Cruz e Tucci (1996, p. CASTILHO, Manoel Lauro V. de. A competência nos
19) esclarecem que o devido processo penal crimes praticados por ou contra indígenas. Revista da
traduz-se nas garantias de (i) acesso à justiça Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: AJUFERGS, n. 1, p. 11-31, 2003.
penal; (ii) juiz natural; (iii) plenitude de defe-
sa; (iv) publicidade dos atos processuais; (v) CHIRIBOGA, Oswaldo Ruiz. O direito à identidade
motivação dos atos decisórios; (vi) fixação de cultural dos povos indígenas e das minorias nacionais:
um olhar a partir do sistema interamericano. In: revista
prazo razoável de duração do processo. internacional de direitos humanos, ano 3, n. 5, 2006,
p. 43-70,[ ed. em português].
Conclusão DUPRAT. Deborah. O direito sob o marco da plu-
rietnicidade/multuculturalidade. In: ______. (Org.)
O indígena, pertencendo a cultura diver- Pareceres jurídicos: direito dos povos e comunidades
sa, embora julgado como todos os cidadãos, tradicionais. Manaus: UEA.

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FRANCO, Fernanda (Org.). Um olhar indígena sobre étnica. Nota Técnica n. 166 P. Brasília: Ministério
a Declaração das Nações Unidas. Brasília: APOINME: Público Federal 6ª Câmara de Coordenação e Revisão,
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LIBERMAN, Kenneth. Compreendendo os aborígenes VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas.
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TUCCI, Rogério Lauria e CRUZ E TUCCI, José Ro-
247-255, 1981. Society for Applied Anthropology.
gério. Devido processo penal e alguns de seus mais
MARTINS DA COSTA, Paula Bajer Fernandes. importantes corolários. Devido processo legal e tutela
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Paulo: RT, 2001.
http://w.w.w.funai.gov.br
PARANHOS, Maria Fernanda. A interação dos dife-
http://w.w.w.stf.jus.br
rentes grupos sociais e a manutenção da diversidade

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