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Sumário
1. Introdução. 2. Da resistência. 3. Da deso-
bediência. 4. Do favorecimento pessoal. 5. Ques-
tões controvertidas. 6. Considerações finais.
1. Introdução
Os delitos de resistência (CP, art. 329),
desobediência (CP, art. 330) e favorecimen-
to pessoal (CP, art. 348) mostram-se, à pri-
meira vista, simples, e os fatos que os confi-
guram, de fácil percepção e enquadramento
no tipo penal. Contudo, certas situações se
colocam no dia-a-dia que fogem às triviali-
dades da lei, colocando o jurista, e, princi-
palmente, o juiz e o advogado em contato
com situações anômalas, ou controvertidas.
No presente artigo, ponderar-se-á exata-
mente sobre essas situações que, a despeito
de serem raras, não são de todo impossíveis.
Inicialmente se discutirá a respeito da
configuração ou não dos delitos de resis-
tência e desobediência nos casos de prisão
em flagrante quando esta é realizada por
particular. Em um segundo momento, tece-
remos considerações sobre os direitos do
morador que alberga indivíduo procurado
pela polícia, analisando se o impedimento
à entrada da polícia em sua moradia confi-
guraria o crime de favorecimento pessoal.
Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas é
Antes de mais nada, porém, verifica-se a
professora assistente da FHDSS – Unesp, dou- necessidade de se proceder a um estudo pré-
toranda em Direito pela FHDSS – Unesp. vio de alguns aspectos dos delitos acima
Carlos Maria Gambaro é mestrando em Di- elencados, seus elementos e requisitos de
reito Internacional pela FHDSS – Unesp. configuração, para somente então enfrentar
Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 85
as situações as quais nos propusemos a tra- tancial, isto é, quanto à natureza do ato, não
tar, uma vez que a consumação, ou não, dos podendo contrariar as normas do Direito, nem
mesmos está diretamente ligada aos even- violar as garantias fundamentais do indiví-
tos, ações, circunstâncias e fatos ideados. duo, como também formal, ou seja, deve seguir
Desde já, esclarece-se que não se deseja à risca todas as formalidades impostas pela
esgotar as questões tratadas, mas apenas lei para a execução válida do ato.
contribuir para o enriquecimento jurídico do Outro requisito para a configuração do
estudo penal. delito em estudo é que o funcionário que rea-
liza o ato deve ser competente para a práti-
2. Da resistência ca do mesmo, dando-se a atipicidade caso
este não tenha atribuição ou competência
O art. 329 do Código Penal dispõe a res-
para sua execução1.
peito do delito:
A violência a que se refere o artigo é aque-
“Art. 329. Opor-se à execução de
la cometida contra a pessoa, não tipifican-
ato legal, mediante violência ou amea-
do a conduta a violência voltada a coisa2.
ça a funcionário competente para exe-
Inexiste esse delito, portanto, quando, p. ex.,
cutá-lo ou a quem lhe esteja prestan-
alguém, notificado por oficial de justiça,
do auxílio:
amassa ou rasga a contrafé oferecida na fren-
Pena – detenção de 2 (dois) meses
te deste3. Além disso, a resistência passiva
a 2 (dois) anos.
tampouco tipifica o ato4, pois a atitude do
…”
sujeito ativo do delito deve ser atuante e po-
Esse artigo protege diretamente a autori-
sitiva. Para que se configure crime, a resis-
dade e o prestígio da função pública, indis-
tência deve ser ativa, traduzindo-se na vio-
pensáveis à liberdade de ação do poder es-
lência física (vis corporalis) voltada ao agen-
tatal e à execução da própria vontade, e se- te público que pratica o ato ou ao seu auxi-
cundariamente a própria Administração liar. Por outro lado, a resistência passiva
Pública. pode caracterizar o delito de desobediência.
Sujeito ativo desse delito pode ser qual- O caput do art. 329 fala também em amea-
quer pessoa que se oponha à execução do ça a funcionário, a qual, ao lado da violên-
ato legal, não importando seja exatamente cia, constitui-se elemento que deverá ser ana-
aquela contra a qual se dirige a atuação do lisado objetivamente quando da verificação
agente público, podendo responder pelo da ocorrência do delito.
delito um terceiro. É o que ocorre no caso em “Ao contrário de outros tipos pe-
que os “amigos” do interpelado pela nais, aqui não se exige que a ameaça
autoridade pública procuram frustar sua [vis compulsiva] seja grave, bastando
diligência. que se prenuncie à vítima a prática de
Sujeitos passivos serão o Estado e, ao seu um mal. Pode ela ser feita por escrito
lado, o agente ou quem lhe presta auxílio ou verbalmente. Dessa forma, confor-
para a execução do ato legal. me o meio executivo, não se exige a
A conduta típica consiste em opor-se o presença do funcionário (p. ex.: amea-
sujeito à execução, por agente competente, ça por bilhete)”5.
de ato legal ou funcional. A resistência deve ser contemporânea ao
Observa-se, portanto, que o delito somen- ato do funcionário público, não se caracte-
te se configura quando se dá a oposição a rizando o delito se esta for anterior ou pos-
ato legal, de forma que, se o ato praticado terior ao mesmo.
pelo agente público for ilegal, não se pode O uso de palavras ultrajantes, palavras
falar em delito de resistência, sendo atípica de baixo calão, a negativa em acompanhar
a conduta. Essa legalidade deve ser tanto subs- o policial, em abrir a porta para o ingresso
Bibliografia
ASÚA, Luis Jiménez de. Tratado de Derecho Penal, Notas
vol. IV, Editora Losada S/A, Buenos Aires, 1
RF. 296/368 e RT 518/350.
Argentina, 1961. 2
Em sentido contrário, entendendo que é típica
BELTRÂO, Jorge. Desacato, Resistência, Desobediên- a violência contra coisa: Nélson Hungria, in
cia, Editora Juriscredi Ltda., Minas Gerais, 1971. Comentários ao Código Penal, 1959, IX/412.
BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão em Flagrante, 3ª 3
JTACrSP 20/59.
ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1986. 4
“Delito não caracterizado – Ausência de
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Editora violência física ou moral – Réu que se limita a se
Saraiva, São Paulo, 1997. opor à prisão agarrando-se ao volante de seu veículo
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, 3ª – “Oposição branca” – Decisão absolutória
ed., Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1991. mantida – Inteligência do art. 329 do Cód. Penal”
FRANCO, Alberto Silva; SILVA JR., José; BETA- (Ac. 1ª Câm. Crim. Trib. Alçada de São Paulo,
NHO, Luiz Carlos; STOCO, Rui; FELTRIN, in RT. 324/318).
Sebastião Oscar; GUASTINI, Vicente Celso da 5
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,
Rocha; NINNO, Wilson. Código Penal e Sua In- vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 182.
terpretação Jurisprudencial, 5ª ed., Editora Revis- 6
“A simples fuga do infrator, ao ser preso, não
ta dos Tribunais, São Paulo, 1995. configura o delito de resistência, que exige, para
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, vol. sua caraterização, a presença dos requisitos da
I, tomo I, 5ª ed., Editora Max Limonad Ltda., violência ou ameaça contra o funcionário” (TA-
São Paulo, 1980. CRIM-SP – AC – Rel. Mattos Faria – JUTACRIM
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, 4ª 10/249). No mesmo sentido: JUTACRIM 61/326.
ed., São Paulo: Saraiva, 1995. 7
“Não configura o delito de resistência o
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, vol. IV, Editora obstáculo oposto pelo réu, com um movimento
Saraiva, São Paulo, 1988. instintivo de fuga ao flagrante, reflexo de seu desejo
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Bra- de preservar ou garantir sua liberdade” (TARJ –
sileiro, 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 1990. AC – Rel. Erasmo do Couto – RT 523/461).
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, 8
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,
vol. III, 3ª ed., Editora Atlas, São Paulo, 1987. vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 185.
_______. Código de Processo Penal Interpretado, 3ª 9
“O delito de desobediência não é suscetível de
ed., Editora Atlas, São Paulo, 1995. cometimento apenas por particulares. Também o
_______. Processo Penal, 5ª ed., Editora Atlas, São funcionário público pode ser sujeito ativo da
Paulo, 1996. infração” (TACRIM-SP – RHC – Rel. Ricardo Couto
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de – RT 418/249).
Direito Administrativo, 11ª ed., Rio de Janeiro: 10
Contra, entendendo que também nesse caso
Forense, 1998. deve-se considerar a ampliação do art. 327: Julio
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Adminis- Fabrini Mirabete, Manual de Direito Penal, vol. III,
trativo, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 1992. Editora Atlas, São Paulo, 1987, pg. 275 – 9.
PRADO, Luiz Regis; BITENCOURT, Cezar Roberto. 11
Op. cit., pg. 417.
Código Penal Anotado e Legislação Complementar, 12
Denominação adotada por Diogo de Figueireo
Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997. Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo, pg.
TEIXEIRA, Renildo do Carmo. Da Prisão em 202); “funcionário de fato” – denominação utilizada
Flagrante – teoria, prática e jurisprudência, por Diógenes Gasparini (Direito Administrativo,
Editora de Direito, São Paulo, 1997. pg. 47); “gestor de negócios” – denominação dada
96 Revista de Informação Legislativa
por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito 22
A doutrina tem entendido que a expressão
Administrativo, pg. 309). “autor de crime” é empregada no sentido amplo,
13
Esse entendimento conta com o aval de Carlos compreendendo também os co-autores e partícipes.
Maximiliano (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, 23
DELMANTO, Celso. Código Penal Comenta-
1964, pg. 256), que afirma dever ser “estrita a inter- do, 3ª ed., Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1991,
pretação das leis excepcionais, das fiscais e das PU- pg. 537.
NITIVAS” (grifo nosso). 24
“Não caracteriza o delito de favorecimento
14
“Desrespeito a instruções ou a proibições de pessoal previsto no art. 348 do Código Penal o
caráter geral não constitui crime de desobediência” auxílio para iludir as investigações do delito, mas
(Rec. Crim. 3.485, ac. 24.06.52, p. 2.992). apenas e tão-somente o prestado ao agente para
15
“Para os efeitos de interpretação do art. 330 subtrair-se à ação da autoridade pública” (TJSP –
do Código Penal, a ordem legal deve ser expressa, HC – Rel. Dante Busana – RT. 671/321).
real e atual, não podendo ser presumida em nenhum “Favorecimento Pessoal – Delito não caracteri-
caso” (TACRIM – SP – AC – Relator Manoel Pedro zado – Acusado que não ocultou homicida em sua
– RT 370/269). residência, mas apenas permitiu que ali se lavasse,
16
“O dolo específico não é exigível para a confi- retirando-se em seguida – Impronúncia decretada
guração da desobediência, delito que se completa – Recurso provido – Inteligência do art. 348 do CP
com o mero dolo genérico, consistente na vontade – Imprescindível à configuração do delito do art.
consciente e livre de desobedecer” (TJSP – AC – Rel. 348 do CP que se demonstre tenha o acusado pres-
Prestes Barra – in RT. 518/347. tado auxílio a criminoso, homiziando-o para que
17
“Desobedecendo à ordem legal da autoridade não fosse alcançado pela ação da autoridade” (TJSP
e pondo-se em fuga para evitar ser surpreendido – AC – Rel. Nigro Conceição – RT. 500/319).
na prática de infração penal, não comete o acusado 25
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,
o delito do art. 330 do Código Penal, por estar vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 272.
agindo num impulso instintivo de conservar a 26
Prática do Processo Penal, pg. 34.
liberdade” (TJSP – AC – Rel. Cunha Camargo – RT 27
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito
551/311 e RJTJSP. 71/316). No mesmo sentido: RT. Penal, vol. III, Editora Atlas, São Paulo, 1987,
378/235, 383/216, 396/303, 398/292, 462/376, pg. 373.
555/374; e JUTACRIM 1-2/75, 8/182, 12/240-1. 28
Código Penal e sua Interpretação Jurispruden-
18
“Indispensável à caracterização de deso- cial, 5ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Pau-
bediência opor-se o agente à ordem legal, consciente lo, 1995, pg. 3.104 – 5.
da antijuricidade do fato” (TACRIM-SP – AC – 29
Caso contrário, estaria configurado o delito
Rel. Geraldo Ferrari – JUTACRIM 26/158). de violação de domicílio, previsto no art. 150 do
19
Ignorando o agente a qualidade de funcionário, Código Penal, permitindo-se a invasão sem
que não se identifica, não se configura o ilícito. RT. consentimento, em virtude da ocorrência de
449/431. flagrante delito (CF, art. 5º, inc. XI).
20
“Não há confundir os delitos dos arts. 329 e 30
Vários estudiosos e doutrinadores já
330 do Código Penal. A resistência encerra a discorreram a respeito do tema, sendo aqui suficiente
desobediência, enquanto esta representa resistência esclarecer que uma ação legítima tornar-se-á ilegítima
passiva, ou, quando comissiva, desacompanhada ou irregular, configurando o abuso de direito,
de força física ou coação moral” (TACRIM-SP – AC sempre que o exercício deste tenha por finalidade
– Rel. Edmond Acar – Juricrim-Franceschini 1/624). única causar dano a uma pessoa ou coisa. No caso
“Sem que haja violência ou grave ameaça à em tela, o morador, uma vez subjugado o policial
pessoa incumbida do cumprimento da ordem legal, que adentrou a sua casa sem permissão durante a
não há falar em resistência, mas em mera deso- noite (ação legítima), em vez de expulsá-lo do
bediência” (TACRIM-SP – AC – Rel. Gonçalves interior da residência, passa a ofendê-lo com socos
Santana – RT. 382/87). e pontapés (ação ilegítima – abuso).
21
Direito Penal, vol. IV, Editora Saraiva, São 31
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal, 5ª
Paulo, 1988, pg. 271. ed., Editora Atlas, São Paulo, 1996, pg. 359.