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Questões controvertidas: da resistência e da

desobediência em face do flagrante delito


facultativo e do favorecimento pessoal na
prisão em domicílio
Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas e
Carlos Maria Gambaro

Sumário
1. Introdução. 2. Da resistência. 3. Da deso-
bediência. 4. Do favorecimento pessoal. 5. Ques-
tões controvertidas. 6. Considerações finais.

1. Introdução
Os delitos de resistência (CP, art. 329),
desobediência (CP, art. 330) e favorecimen-
to pessoal (CP, art. 348) mostram-se, à pri-
meira vista, simples, e os fatos que os confi-
guram, de fácil percepção e enquadramento
no tipo penal. Contudo, certas situações se
colocam no dia-a-dia que fogem às triviali-
dades da lei, colocando o jurista, e, princi-
palmente, o juiz e o advogado em contato
com situações anômalas, ou controvertidas.
No presente artigo, ponderar-se-á exata-
mente sobre essas situações que, a despeito
de serem raras, não são de todo impossíveis.
Inicialmente se discutirá a respeito da
configuração ou não dos delitos de resis-
tência e desobediência nos casos de prisão
em flagrante quando esta é realizada por
particular. Em um segundo momento, tece-
remos considerações sobre os direitos do
morador que alberga indivíduo procurado
pela polícia, analisando se o impedimento
à entrada da polícia em sua moradia confi-
guraria o crime de favorecimento pessoal.
Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas é
Antes de mais nada, porém, verifica-se a
professora assistente da FHDSS – Unesp, dou- necessidade de se proceder a um estudo pré-
toranda em Direito pela FHDSS – Unesp. vio de alguns aspectos dos delitos acima
Carlos Maria Gambaro é mestrando em Di- elencados, seus elementos e requisitos de
reito Internacional pela FHDSS – Unesp. configuração, para somente então enfrentar
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as situações as quais nos propusemos a tra- tancial, isto é, quanto à natureza do ato, não
tar, uma vez que a consumação, ou não, dos podendo contrariar as normas do Direito, nem
mesmos está diretamente ligada aos even- violar as garantias fundamentais do indiví-
tos, ações, circunstâncias e fatos ideados. duo, como também formal, ou seja, deve seguir
Desde já, esclarece-se que não se deseja à risca todas as formalidades impostas pela
esgotar as questões tratadas, mas apenas lei para a execução válida do ato.
contribuir para o enriquecimento jurídico do Outro requisito para a configuração do
estudo penal. delito em estudo é que o funcionário que rea-
liza o ato deve ser competente para a práti-
2. Da resistência ca do mesmo, dando-se a atipicidade caso
este não tenha atribuição ou competência
O art. 329 do Código Penal dispõe a res-
para sua execução1.
peito do delito:
A violência a que se refere o artigo é aque-
“Art. 329. Opor-se à execução de
la cometida contra a pessoa, não tipifican-
ato legal, mediante violência ou amea-
do a conduta a violência voltada a coisa2.
ça a funcionário competente para exe-
Inexiste esse delito, portanto, quando, p. ex.,
cutá-lo ou a quem lhe esteja prestan-
alguém, notificado por oficial de justiça,
do auxílio:
amassa ou rasga a contrafé oferecida na fren-
Pena – detenção de 2 (dois) meses
te deste3. Além disso, a resistência passiva
a 2 (dois) anos.
tampouco tipifica o ato4, pois a atitude do
…”
sujeito ativo do delito deve ser atuante e po-
Esse artigo protege diretamente a autori-
sitiva. Para que se configure crime, a resis-
dade e o prestígio da função pública, indis-
tência deve ser ativa, traduzindo-se na vio-
pensáveis à liberdade de ação do poder es-
lência física (vis corporalis) voltada ao agen-
tatal e à execução da própria vontade, e se- te público que pratica o ato ou ao seu auxi-
cundariamente a própria Administração liar. Por outro lado, a resistência passiva
Pública. pode caracterizar o delito de desobediência.
Sujeito ativo desse delito pode ser qual- O caput do art. 329 fala também em amea-
quer pessoa que se oponha à execução do ça a funcionário, a qual, ao lado da violên-
ato legal, não importando seja exatamente cia, constitui-se elemento que deverá ser ana-
aquela contra a qual se dirige a atuação do lisado objetivamente quando da verificação
agente público, podendo responder pelo da ocorrência do delito.
delito um terceiro. É o que ocorre no caso em “Ao contrário de outros tipos pe-
que os “amigos” do interpelado pela nais, aqui não se exige que a ameaça
autoridade pública procuram frustar sua [vis compulsiva] seja grave, bastando
diligência. que se prenuncie à vítima a prática de
Sujeitos passivos serão o Estado e, ao seu um mal. Pode ela ser feita por escrito
lado, o agente ou quem lhe presta auxílio ou verbalmente. Dessa forma, confor-
para a execução do ato legal. me o meio executivo, não se exige a
A conduta típica consiste em opor-se o presença do funcionário (p. ex.: amea-
sujeito à execução, por agente competente, ça por bilhete)”5.
de ato legal ou funcional. A resistência deve ser contemporânea ao
Observa-se, portanto, que o delito somen- ato do funcionário público, não se caracte-
te se configura quando se dá a oposição a rizando o delito se esta for anterior ou pos-
ato legal, de forma que, se o ato praticado terior ao mesmo.
pelo agente público for ilegal, não se pode O uso de palavras ultrajantes, palavras
falar em delito de resistência, sendo atípica de baixo calão, a negativa em acompanhar
a conduta. Essa legalidade deve ser tanto subs- o policial, em abrir a porta para o ingresso

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de policiais, esperneio no momento da exe- minações legais expedidas por funcionário
cução do ato, fuga6 ou outros casos de in- público”8.
disciplina não têm sido entendidos como Tratando-se de crime comum, qualquer
configuradores da resistência, uma vez que, do povo poderá ser seu sujeito ativo. Sendo
nessas horas, o sentimento de liberdade é funcionário público9, deve o objeto da or-
colocado em perigo, o que torna o indivíduo dem desobedecida não estar ligado às suas
mais irascível7. Contudo, pode caracterizar atribuições como funcionário, pois, nesse
os delitos de desacato ou desobediência. caso, poderá haver a configuração do delito
Além do agente, funcionário público, de prevaricação (Código Penal, art. 319).
pode ser sujeito passivo do delito de resis- Por sujeito passivo, deve-se entender,
tência o terceiro particular que auxilia o pri- primeiramente, o Estado, titular da Admi-
meiro na execução do ato. nistração Pública e, secundariamente, o fun-
O dolo constitui o elemento subjetivo do cionário do qual emanou a ordem.
delito. Este deve ser tanto o denominado O ofendido deve ser funcionário compe-
dolo genérico, que é a vontade livre e cons- tente para emitir ordem legal, ou seja, fun-
ciente de agir de forma contrária ao Orde- cionário cujo conceito é dado pelo direito
namento Jurídico como um todo, no caso em administrativo, não tendo agora aplicação
tela, vontade livre e consciente de empregar o art. 327 do Código Penal10, lembrando-se
violência contra funcionário público ou ter- que, para o Estatuto dos Funcionários Pú-
ceiro, ou ameaçá-los, como o dolo específi- blicos Civis da União (Lei nº 8.112, de 11 de
co, ou seja, impedir a realização do ato fun- dezembro de 1990, atualizada pela Lei nº
cional. Sem a presença deste último, fica des- 9.527, de 10 de dezembro de 1997, art. 2º),
caracterizada a resistência. “servidor é pessoa legalmente investida em
A resistência é um crime formal, o que cargo público”, sendo este criado por lei, com
implica a não-necessidade de que o agente denominação própria, em número certo e
consiga alcançar o resultado pretendido, pago pelos cofres públicos. Ainda nesse sen-
qual seja, a não-realização (execução) do ato tido, Nélson Hungria11 afirma que o sujeito
legal para sua configuração. Ela se caracte- passivo, isto é, o expedidor ou executor da
riza com a simples prática da violência ou ordem, há de ser funcionário público, mas
ameaça, e, caso o agente público deixe de este, na espécie, entende-se aquele que o é
executar o ato legal, responderá o responsá- no estrito sentido do Direito Administrati-
vel pelo delito em sua forma qualificada.
vo, já que o critério amplitativo do art. 327
do Código Penal somente diz respeito ao
3. Da desobediência funcionário como sujeito ativo de delito in-
O art. 330 do Código Penal regula esse tra officium, e não para os casos em que figu-
delito nos seguintes termos: ra no pólo passivo.
“Art. 330. Desobedecer a ordem A doutrina, por outro lado, criou a figu-
legal de funcionário público: ra do agente público de fato12, o qual, em deter-
Pena – detenção, de 15 (quinze) minados casos extremos (incêndios, guer-
dias a 6 (seis) meses, e multa”. ras, calamidades públicas, epidemias, en-
Inserido no Título XI – Dos crimes con- chentes, prisão de criminoso etc.), investir-
tra a Administração Pública, no “Capítulo se-ia temporariamente dos poderes e prer-
II – Dos crimes praticados por particular rogativas da Administração Pública para
contra a administração em geral”, esse artigo realizar o ato que caberia ao funcionário pú-
tem por objeto de tutela a Administração Pú- blico strictu sensu.
blica, assegurando “o prestígio e a dignida- Como se observa, esse agente de fato não
de da máquina estatal administrativa, no é investido de acordo com as formalidades
que diz respeito ao cumprimento de deter- exigidas para o preenchimento do cargo pú-

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blico; ele não possui vínculo laboral com a do para caracterizar o crime a desatenção a
Administração Pública (ou qualquer outra simples pedido ou solicitação, ou, ainda, se
instituição concessionária de serviço públi- ilegal tal ordem. Essa ordem deve ser dire-
co) e tampouco recebe dos cofres públicos. ta14 e dirigida expressamente ao destinatá-
Dessa forma, não se poderia considerá-lo rio, isto é, a quem tenha o dever jurídico de
um servidor público na acepção formal da obedecê-la, sob forma verbal ou escrita15.
palavra, tendo em vista que o formalismo Ocorre, contudo, tratar-se o art. 330 de
adquire importância superlativa no campo uma norma penal em branco, uma vez que o
administrativo. Ao que parece, essa defini- preceito foi somente emanado em parte, ne-
ção foi criada pelos teóricos administrati- cessitando de norma futura que o complete
vistas como forma de enquadrar esse indi- e esclareça. O dispositivo diz, apenas, “de-
víduo que age nos momentos de exaspera- sobedecer a ordem legal”, mas não determi-
ção em alguma categoria jurídica, determi- na qual seja essa ordem. É preceito que en-
nando-lhe, por conseguinte, a natureza ju- cerra disposição vaga que será completada
rídica, tornando mais fácil a compreensão por disposição futura, constante de outra
acadêmica dessa figura. norma, regulamento ou ainda em face do
Nada obstando contra a classificação caso concreto.
adotada pelo ramo administrativo, ela, con- A desobediência, delito de mera conduta
tudo, não pode ser aplicada no âmbito pe- que é, pode dar-se de forma comissiva ou
nal, cujos conceitos e definições são mais omissiva, dependendo do conteúdo da
restritos e precisos. Dessa maneira, não se ordem, se positiva ou negativa; isto é, se a
pode utilizar essa classificação doutrinária ordem exige que se faça algo, a desobediên-
de um dos ramos do Direito para conferir cia dar-se-á com o não-cumprimento desta;
poderes a alguém, capaz de interferir de for- de outro lado, se a ordem proíbe alguma
ma negativa no âmbito jurídico de terceiros. prática, o crime se caracteriza com a prática
Em outras palavras, o entendimento de fun- do ato.
cionário público no ramo penal deve ser fei- O dolo, nesse caso, é o chamado genéri-
to o mais restritivamente possível, toda vez co16. Assim, o agente deve ter a vontade livre
que venha a causar, de qualquer modo, gra- e consciente de desobedecer à ordem do
vame à pessoa. Nesse sentido, a hermenêu- funcionário público17, desde que saiba e
tica jurídica da norma será sempre restrita e reconheça a legalidade18 da mesma, além da
exaustiva13. obrigatoriedade de seu cumprimento19.
Não basta, portanto, que a ordem seja Importante nesse ponto é diferenciar o
legal no sentido formal e material, ela deve delito de resistência do de desobediência, uma
ser expedida por funcionário público, devi- vez que ambos possuem características bem
damente investido na função, dentro de suas próximas. Na resistência, o crime é cometido
atribuições e com observância das determi- por meio de ato de violência e de ameaça,
nações legais, sendo atípico, por exemplo, enquanto na desobediência ele se reveste de
deixar de atender voz de prisão emitida por uma resistência passiva, apenas deixa-se de
funcionário de autarquia. Aqui a ordem fazer, sem qualquer violência ou ameaça20.
emana de funcionário público strictu sensu,
mas este não tem, entre suas funções, a prer- 4. Do favorecimento pessoal
rogativa de prender alguém. O art. 348 do Código Penal dispõe:
O comportamento tipificado se verifica “Art. 348. Auxiliar a subtrair-se à
no verbo núcleo do artigo desobedecer, isto ação de autoridade pública autor de
é, desatender, não cumprir. crime a que é cominada pena de
Além disso, essa desobediência deve reclusão:
estar ligada a uma ordem legal, não bastan- …

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§ 2º Se quem presta o auxílio é as- ou requisição ministerial, estas não
cendente, descendente, cônjuge ou ir- forem oferecidas”23.
mão do criminoso, fica isento de O dolo, nesse delito, é o genérico, auxi-
pena”. liando criminoso, buscando livrá-lo da atu-
O bem jurídico tutelado por esse dispo- ação da autoridade pública24. O indivíduo
sitivo é a administração da justiça, impon- que auxilia deve ter conhecimento, mesmo
do-se o dever de o sujeito não colocar obstá- que superficial, de que o auxiliado é autor
culos à ação judiciária em sua cruzada con- de crime. Não havendo esse conhecimento,
tra a criminalidade. excluído estará o dolo, sendo que, de acor-
O sujeito ativo desse delito pode ser qual- do com a doutrina, a dúvida caracteriza dolo
quer pessoa, exceto o co-autor ou o partíci- eventual.
pe de crime anterior, desde que a este seja “O crime consuma-se no momento em
cominada pena de reclusão. Dessa forma, que o beneficiado, em razão do auxílio do
se o indivíduo prometeu auxílio ao crimi- sujeito, consegue subtrair-se, ainda que por
noso, antes ou durante a prática do delito breves instantes, da ação da autoridade
punido com reclusão, ele não poderá ser pública”25. Não é necessário, portanto, que
incurso no delito tipificado no art. 348, pois seja definitiva a subtração do favorecido à
se tratará de partícipe daquele. Para que se ação de autoridade pública, basta o retar-
configure o favorecimento pessoal, o auxí- damento, ainda que breve, da captura ou
lio deve ser prestado somente após a práti- retenção. Trata-se de delito comissivo, sen-
ca delitiva. do impossível a prática por omissão.
Em lição de Damásio Evangelista de Tendo em atenção os laços de especial
Jesus, afeto que ligam os membros de uma mesma
“não há auto-favorecimento. No con- família, o legislador viu por bem isentar de
curso de agentes, se o partícipe pres- pena o sujeito ativo que se enquadre em al-
tar auxílio aos outros, beneficiando- guma das situações previstas no § 2º do re-
se também, não responde por este de- ferido artigo. Tal enumeração, contudo, é
lito. Somente há crime quando benefi- taxativa, não podendo ser ampliada ao
ciar apenas os comparsas”21. parentesco afim.
Pune-se a conduta de quem auxilia, fa- Para que se configure o delito de favore-
vorece, autor de crime22 – doloso, culposo cimento pessoal, é irrelevante a existência,
ou preterdoloso; consumado ou tentado – a ou não, de prisão em flagrante, prisão
subtrair-se, isto é, escapar, esquivar-se à preventiva decretada, perseguição ou
ação da autoridade pública, por meio do procura ao criminoso, uma vez que a
emprego de meios para fuga, promovendo o conduta descrita no delito do art. 348
engano da polícia, ocultando o autor do procura exatamente impedir a ocorrência
delito, proporcionando asilo etc. Não existe dessas conseqüências.
favorecimento pessoal no auxílio ao autor
de ilícito contravencional. 5. Questões controvertidas
Não há que se falar em favorecimento Uma vez traçadas as considerações
pessoal se no delito principal houve gerais acerca desses delitos que, eventual-
“extinção da punibilidade, exclusão mente, podem ocorrer nas espécies de
da ilicitude, irresponsabilidade ou situações a que nos propusemos tratar e
inimputabilidade penal, imunidade estudados os elementos que auxiliarão na
penal absoluta. Igualmente, se o cri- resolução das questões apresentadas, pode-
me precedente for de ação privada e se, finalmente, enfrentar tais problemas de
não houver queixa, ou sendo a ação forma mais clara.
pública condicionada à representação As situações a seguir apresentadas

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buscam esclarecer pontos controvertidos em poder do preso desde que relaciona-
relação à configuração, ou não, dos delitos das com a prova do crime e da auto-
em estudo, por meio da aplicação da teoria ria”27 (grifo nosso).
a supostos fatos reais, em que se confronta- Trata-se do flagrante facultativo, pois o
rão os direitos assegurados e restrições particular tem a faculdade de, em queren-
impostas pelo Direito, quando envolvem do, proceder à prisão em flagrante; diferen-
particulares, utilizando-se, para tanto, o te dos agentes públicos, os quais têm o de-
método analítico. ver de prender, sob pena de responderem
administrativa e penalmente por sua omis-
I – Negativa à ordem de prisão em flagrante são. Por outro lado, o particular que se omi-
por particular te à prática do flagrante não estará submeti-
A primeira situação a ser analisada bus- do a nenhum tipo de sanção, uma vez que
ca verificar a ocorrência dos delitos de re- não é função primordial deste zelar, de for-
sistência ou desobediência, na hipótese de, ma ostensiva e direta, pela obediência aos
sendo o agente delituoso surpreendido em preceitos da Administração Pública.
flagrante por particular que lhe dá voz de O art. 329 do Código Penal tipifica a re-
prisão, negar-se a acompanhá-lo, de modo sistência procurando proteger o bem jurídi-
ativo ou passivo. co autoridade e prestígio da função pública, in-
A prisão em flagrante inclui-se entre as dispensáveis à liberdade de ação do poder
prisões cautelares de natureza processual. estatal e à execução da própria vontade, e,
É uma espécie de autodefesa do próprio or- secundariamente, a própria Administração
denamento jurídico. Pública. Assim sendo, observa-se que essa
Segundo Fernando da Costa Tourinho autoridade e prestígio da função pública di-
Filho26, zem respeito apenas aos atos de funcioná-
“A prisão em flagrante, a rigor, é rios públicos strictu sensu, pois, quando é o
mero ato administrativo, levado a particular que realiza a prisão, não está ele
cabo, grosso modo, pela Polícia Judi- impondo respeito àqueles, já que ele próprio,
ciária, incumbida que é de zelar pela particular, não possui tais prerrogativas. Na
ordem pública. Mesmo quando leva- verdade, o particular, ao dar a voz de pri-
da a cabo por particulares ou pelo pró- são, está agindo de acordo com os desíg-
prio Juiz, não perde o caráter de ato nios da Administração Pública, quais sejam,
administrativo”. procurar fazer com que todo aquele que pra-
Dispõe o art. 301 do Código de Processo tica crime responda por seus atos perante o
Penal que “qualquer do povo poderá e as Poder Judiciário. Mas, ao agir assim, não
autoridades policiais e seus agentes deve- incorpora ele as prerrogativas próprias do
rão prender quem quer que seja encontrado funcionário público devidamente investido,
em flagrante delito”. segundo a lei.
Existe, portanto, a possibilidade, fran- Ademais, o art. 329 é claro ao dispor que
queada pela lei, de que qualquer do povo cometerá o delito de resistência aquele que
capture alguém em flagrante delito. se insurgir contra o funcionário público ou
“Trata-se de um caso especial de seu auxiliar, particular, mas que não age de
exercício de função pública transitória forma autônoma, apenas ajuda o executor
exercida por particular, em caráter público em sua tarefa. Quem dirige o ato aqui
facultativo e, portanto, de exercício é o agente público devidamente investido
regular de direito. Embora a lei não em suas funções, exercendo o particular
seja expressa, admite-se que o parti- simples papel de colaborador. Nesse senti-
cular, autor da prisão, que pode ser o do, são esclarecedoras as palavras dos céle-
ofendido, possa apreender coisas em bres Alberto Silva Franco, José Silva Júnior,

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Luiz Carlos Betanho, Rui Stoco, Sebastião aplica quando o exercente de função
Oscar Feltrin, Vicente Celso da Rocha Guas- pública se faz, em tal qualidade (isto
tini e Wilson Ninno28, ao afirmarem que é, ‘intra officium’), sujeito ativo do cri-
“é também sujeito passivo, ainda ex- me. Em tal caso, a violência física ou
pressamente dito pela lei, o terceiro coação moral empregada em resistên-
que auxilia o funcionário na execu- cia terá enquadramento fora da órbita
ção do ato legal. Pouco importa a ma- dos crimes contra a Administração
neira por que foi dada a ajuda (pedi- Pública” (grifo nosso).
do do funcionário, requisição, ofereci- Observa-se, pois, que todo o ato de parti-
mento com aceitação dele etc.). É neces- cular deve estar jungido ao ato do funcioná-
sário, entretanto, que sua ação seja rio público, sendo até mesmo necessária a
supletiva, isto é, junte-se à do funcio- aceitação por parte deste no caso em que o
nário; ao contrário, se for única e exclu- primeiro se oferece livremente para ajudá-
siva (como a do particular que prende lo, para que se tenha o indivíduo como auxi-
em flagrante delito – Código de Pro- liar e potencial sujeito passivo do crime de
cesso Penal, art. 301), a oposição a ela resistência.
não configurará o delito em questão, Poder-se-ia, por outro lado, argumentar
mas outro, pois não é feita contra ato que o agente privado, ao proceder à prisão
legal de funcionário. Não há delito con- em flagrante, estaria exercendo função pú-
tra a Administração Pública (E. Ma- blica, mesmo que transitoriamente, prerro-
galhães Noronha, Direito Penal, 8ª ed., gativa que lhe é dada pela própria lei, in-
vol 4º/318, Saraiva, 1976). vestindo-se, portanto, de todas as faculda-
Sobre o assunto, esclarece Nélson des próprias do funcionário público com-
Hungria que outro dos pressupostos petente para tal ato.
do crime é que o sujeito passivo revis- É bem verdade que o popular pode dar
ta a qualidade de funcionário público voz de prisão e até mesmo usar da força para
ou de assistente deste. Pouco importa conduzir o flagrado à presença da autori-
que o executor do ato seja titular pri- dade competente para conhecer do caso;
mário ou secundário da autoridade contudo, essa maneira de agir não lhe é obri-
pública: o que é essencial é que tenha gatória, podendo este furtar-se à ação sem
competência funcional in concreto. A nenhuma conseqüência. O mesmo não se
especial proteção ampliada ao extra- pode dizer do agente público, que está obri-
neus que presta auxílio ao funcioná- gado a agir. Afigure-se a situação em que
rio vem de que tal assistente represen- existem vários agentes delituosos, cometen-
ta um desdobramento, um delegado do crime no exato instante em que são fla-
ou uma ‘longa manus’ do assistido. grados por um particular; se este, vendo-se
A assistência pode ser prestada me- em menor número e situação desvantajosa,
diante requisição ou a rogo do funcio- retirar-se sem nada fazer, não poderá ser
nário, ou espontaneamente (com assen- responsabilizado. O mesmo não acontece-
timento do funcionário); e pressupõe a rá, v. g., com um policial, que, surpreenden-
presença do assistido. Assim, não é do os criminosos e estando em menor nú-
adequado sujeito passivo de resistên- mero, terá, obrigatoriamente, de agir, seja
cia o ‘quidam de populo’ que, por sua procedendo à prisão em flagrante, seja to-
conta exclusiva, prende alguém sur- mando providências para que ela aconteça,
preendido em flagrante delito. Sem sob pena de responder administrativa e pe-
dúvida, estará ele exercendo uma fun- nalmente por sua eventual omissão. São
ção pública, mas a regra do art. 327, exatamente essas situações que o legislador
como já foi acentuado, somente se procurou abranger, buscando desencorajar

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ainda mais o criminoso que, uma vez sur- Não basta, portanto, que a ordem seja
preendido, mostra-se em situação de supe- legal no sentido formal e material, ela deve
rioridade em face do agente público, o qual ser expedida por funcionário público,
terá o dever de interpelar aquele, não im- devidamente investido na função, dentro de
portando quais sejam as circunstâncias da suas atribuições e com observância das
situação. determinações legais.
Além disso, como já frisado anteriormen- Dessa forma, se o criminoso se recusa a
te, deve o intérprete da norma penal execu- acompanhar o particular que efetuou o fla-
tar suas elucubrações tendo por paradigma grante, ele não estará cometendo crime em
o princípio de hermenêutica que determina questão, já que a desobediência é a resistên-
não se poder interpretar, ou utilizar de ana- cia passiva, ou seja, a simples negativa em
logias, extensivamente aquilo que for gra- obedecer, sem a utilização de violência.
vame em relação à pessoa. Assim sendo, não Do exposto, verifica-se, assim, a impos-
é correto estender-se restrições e prejuízos, sibilidade de configuração dos delitos de re-
como a configuração de delitos, isto é, resis- sistência ou desobediência caso o flagrado
tência ou desobediência, àqueles que agem se recuse a acompanhar o particular que efe-
contrariamente às ordens proferidas por par- tuou o flagrante, mesmo que para tal utili-
ticulares, quando investidos, ou melhor, ze-se aquele de violência ou ameaças, no
auto-investidos, transitoriamente, na função primeiro caso, ou simplesmente não acate a
ordem proferida, no segundo.
pública. Aqui não cabe a figura do agente
É possível, contudo, a configuração de
público de fato, pois esta, existente na doutri-
outros delitos como, v. g., lesões corporais
na administrativa, é simples classificação
ou ameaça, tendo por sujeito passivo o
dada ao particular que age em situações
particular.
extremas para evitar um mal maior em face
da impossibilidade de atuação da Adminis- II – Negativa do morador ao cumprimento de
tração Pública no momento. O particular faz mandado judicial durante o dia
as vezes da Administração, uma vez que, A segunda questão a ser abordada refere-
sendo cidadão, deve também zelar pelo bem se à configuração de delito quando o mora-
estar público; porém, essa atuação supleti- dor nega permissão à entrada da autorida-
va não lhe pode conferir direitos que se tra- de pública, na posse de mandado judicial
duzam em prejuízos para terceiros, já que ordenando prisão de indivíduo, ou em caso
ninguém lhe deu legitimidade de agir, pio- de perseguição, em virtude de flagrante,
rando a situação de seu igual, mas tão- quando este vai abrigar-se durante o dia no
somente para melhorá-la. domicílio daquele.
Quanto à desobediência, dispõe expres- Antes de mais nada, vale lembrar que o
samente o art. 330 do Código Penal que se conceito de domicílio no Direito Penal é
configura o delito quando o agente não diferente do conceito presente no Direito Civil.
acata, discorda por meio de gestos ou pa- Neste, significa residência com ânimo de de-
lavras, menospreza, intencionalmente, or- finitividade, local de irradiação de relações
dem legal provinda de funcionário público jurídicas. No Penal, por sua vez, em virtude
competente. do que estabelece o art. 150, § 4º, do Código
O ofendido deve ser, portanto, funcionário Penal, a expressão casa, entendida como si-
público competente para emitir ordem legal, nônimo de domicílio, compreende: qualquer
ou seja, funcionário cujo conceito é dado pelo compartimento habitado (inc. I); aposento
Direito Administrativo (Lei nº 8.112/90), não ocupado de habitação coletiva (inc. II); com-
tendo agora aplicação o art. 327 do Código partimento não aberto ao público, onde al-
Penal. guém exerce profissão ou atividade (inc. III).

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Dispõe a respeito o art. 293 do Código de exigidos para a consumação do crime. Ini-
Processo Penal: cialmente deve o asilado ter cometido delito
“Art. 293. Se o executor do manda- anterior apenado com reclusão, do qual o
do verificar, com segurança, que o réu morador não teve participação alguma; há
entrou ou se encontra em alguma casa, que se verificar se não se operou extinção de
o morador será intimado a entregá-lo, punibilidade ou outras causas que venham
à vista da ordem de prisão. Se não for a desnaturar a punibilidade do delito; final-
obedecido imediatamente, o executor mente, o morador deve ter conhecimento,
convocará duas testemunhas e, sen- mesmo que superficial, de que o auxiliado é
do dia, entrará à força na casa, arrom- autor de crime e o auxílio visar a subtração
bando as portas, se preciso; sendo à ação da autoridade. Verifica-se, ainda, que,
noite, o executor, depois da intimação mesmo que caracterizado o delito, não so-
ao morador, se não for atendido, fará frerá imposição alguma de pena o morador
guardar todas as saídas, tornando a se auxiliar qualquer das pessoas descritas
casa incomunicável, e, logo que ama- no § 2º do art. 348 do Código Penal.
nheça, arrombará as portas e efetuará b) se o morador, além de negar a permis-
a prisão. são de entrada à autoridade policial, vier a
Parágrafo único. O morador que se agredi-la, física ou moralmente, ou a quem
recusar a entregar o réu oculto em sua a estiver auxiliando quando esta adentrar a
casa será levado à presença da auto- residência, desde que observados os requi-
ridade, para que se proceda contra ele sitos do caput do art. 293, isto é, mandado
como for de direito”. judicial válido e presença de duas testemu-
Encontrando-se o perseguido já alojado nhas, praticará o delito de resistência.
dentro da residência, com o consentimento O crime de desobediência, nesse caso, fi-
do morador29, durante o dia, que a jurispru- cará absorvido pela consumação do delito
dência considera o período contido entre anterior – de resistência.
6:00 e 18:00h, e este se recusando a permitir Quanto ao favorecimento pessoal, estará
a entrada da autoridade pública, poder-se- caracterizado o delito desde que presentes
á ter várias possibilidades: todos os pressupostos: anterioridade do cri-
a) caso o morador apenas negue permis- me principal sem a participação do mora-
são à entrada da autoridade competente, dor, punibilidade do crime principal, conhe-
não lhe abrindo a porta, ou não oferecendo cimento, por parte do morador, de que o au-
resistência quando esta a arromba e entra, xiliado é criminoso e vontade de o auxiliar
atendidos os requisitos do art. 293 do a subtrair-se à atuação pública.
Código de Processo Penal, não estará come- Em qualquer dos casos acima, se a auto-
tendo o delito de resistência, uma vez que este ridade adentrar forçosamente a casa, sem
se traduz no emprego de força física ou haver preenchido previamente todos os re-
ameaça, não sendo suficiente para caracte- quisitos exigidos pelo art. 293 do Código de
rizá-lo a resistência passiva. Processo Penal, estará violando o domicí-
Quanto à desobediência, o delito já estará lio, cometendo o crime de abuso de autori-
consumado antes mesmo do momento da dade consistente em “executar medida pri-
entrada forçada da autoridade, pois esta, em vativa de liberdade individual sem as for-
sendo competente, já terá emanado a ordem malidades legais ou com abuso de poder”
diretamente àquele que está obrigado a obe- (art. 4º, a, da Lei nº 4.898, de 9-12-65). O
decê-la, respondendo, então, o morador pelo morador que se opuser à presença dela
delito. dentro da residência, mesmo mediante o uso
Em relação ao favorecimento pessoal, há de força física ou fazendo ameaças, não
que se verificar se presentes os requisitos responderá por crime algum, pois estará

Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 93


agindo no exercício regular do direito (Código entrada do executor ou executores da ordem
Penal, art. 23, inc. III, 2ª parte), ao preservar a judicial, ou perseguidores do fugitivo sur-
inviolabilidade de seu domicílio, previsto na preendido em flagrante, não poderão estes
Constituição Federal, art. 5º, inc. XI. adentrar a residência e, se acaso o fizerem,
estarão violando o domicílio, cometendo o
III – Negativa do morador ao cumprimento de crime de abuso de autoridade consistente
mandado judicial, durante a noite em “executar medida privativa de liberda-
A última situação a ser analisada diz res- de individual sem as formalidades legais
peito ao cometimento de crime pelo morador ou com abuso de poder” (art. 4º, a, da Lei
que se nega a permitir a entrada da autori- nº 4.898, de 9-12-65). Nesses casos, toda e
dade pública, em posse de mandado judicial qualquer oposição do morador, mesmo que
ordenando prisão de indivíduo, ou em caso violenta, não configurará delito algum, pois
de perseguição, em virtude de flagrante, estará agindo ele no exercício regular do
quando este vai se abrigar, durante a noite, direito (Código Penal, art. 23, inc. III, 2ª
dentro do domicílio daquele. parte), protegido pela Constituição Federal.
A Constituição Federal de 1988 determi- Contudo, não é facultado ao morador
na, em seu art. 5º, inc. XI, que usar de violência excessiva. Sua ação deve-
“a casa é asilo inviolável do indiví- se restringir ao necessário para retirar de
duo, ninguém nela podendo penetrar sua moradia o funcionário que age com abu-
sem consentimento do morador, sal- so de poder. O próprio Código Penal refere-
vo em caso de flagrante delito ou de- se ao exercício regular do direito. Não pode,
sastre, ou para prestar socorro, ou a pretexto de exercer o direito de inviolabili-
durante o dia, por determinação dade de domicílio, causar lesões corporais
judicial” (grifo nosso). graves ou gravíssimas, ou mesmo matar o
Observa-se que o legislador Constitu- executor da ordem judicial. Nesses casos, o
cional determinou taxativamente os eventos morador deixaria de agir acobertado pela
que permitem à autoridade pública adentrar causa de exclusão da ilicitude, configuran-
uma casa sem consentimento de seu mora- do-se o excesso púnivel30, tipificado no pa-
dor, restringindo ainda mais essa entrada no rágrafo único do art. 23. Há uma flagrante
período noturno, que vai das 18:00h às 6:00h. desproporção entre os bens jurídicos tutela-
No mesmo sentido, o Código de Proces- dos, a inviolabilidade da casa, por um lado,
so Penal, em seu art. 293, caput, 2ª parte, afir- e a integridade física ou a vida, de outro.
ma: Dessa forma, ao extrapolar os limites legais
“… sendo noite, o executor, depois da da excludente, o morador cria uma situação
intimação ao morador, se não for em que o funcionário poderá agir em situa-
atendido, fará guardar todas as ção de legítima defesa, afastando agressão
saídas, tornando a casa incomunicá- que, a despeito de ser válida no início,
vel, e, logo que amanheça, arrombará acabou por se tornar injusta.
as portas e efetuará a prisão”. Levantou-se a possibilidade de que, pelo
Verifica-se, pois, que é totalmente vedada fato de a Constituição Federal e o Código de
a entrada da autoridade pública em qualquer Processo Penal permitirem a entrada notur-
casa, durante a noite, sem o consentimento na em residência em caso de flagrante deli-
do seu morador, ressalvadas as permissivas to ou crime, estaria possibilitada “a entrada
constitucionais (art. 5º, inc. XI), devendo este contra o consentimento do morador que es-
aguardar pelo dia seguinte, tomando todas tivesse auxiliando o capturando a subtrair-
as providências de modo a impedir a evasão se à ação da autoridade, pela prática do ilí-
do capturando durante a noite. cito penal previsto no artigo 348 (favoreci-
Em se opondo, portanto, o morador à mento pessoal). Entretanto, tal auxílio não é

94 Revista de Informação Legislativa


ilícito, pois, nos termos do artigo 293 do 6. Considerações finais
Código de Processo Penal, não se permite a
O flagrante facultativo tem-se tornado
entrada à noite sem o consentimento do
cada vez mais raro em nossa sociedade,
morador. A lei processual dilatou a garantia
devido, principalmente, ao armamento de
constitucional da inviolabilidade de domi-
que atualmente dispõem os criminosos.
cílio mesmo que seja o caso de executar-se
Restou esse poder de prisão relegado a ape-
mandado de prisão. O morador, portanto,
nas ser utilizado contra “trombadinhas” ou
encontra-se no exercício regular de direito,
pungistas e, mesmo aqui, em número cada
que exclui a ilicitude do fato (art. 23, III, 2ª
vez menor.
parte do Código Penal)”31 (grifo nosso).
A questão é que, como o indivíduo não
A nosso ver, houve uma imprecisão
possui aparelhamento para lutar contra o
analítica por parte do ilustre professor Mi-
poder de fogo dos delinqüentes, esse tipo de
rabete, pois o auxílio que configura o fa-
flagrante, ainda que, na maioria das vezes,
vorecimento pessoal é coisa distinta da
efetivo, somente é utilizado para a repreen-
faculdade de impedir o acesso noturno da
são de delitos de menor ou ínfima monta,
autoridade ao interior da casa. O que o
não contribuindo globalmente para a
legislador constituinte procurou evitar foi
erradicação da violência. Um assaltante de
a possibilidade de o capturando se man-
bancos ou seqüestrador dificilmente será
ter, de forma forçada, no interior da resi-
preso por um particular.
dência ameaçando e pressionando o mo-
Mesmo assim, esse direito do particular
rador a não consentir com a entrada dos
é essencial para uma melhor administração
funcionários públicos, e não a negativa
da justiça e no auxílio ao já bastante
de permissão por sua livre vontade, mes-
desgastado setor de repressão da criminali-
mo que, a priori, esteja cometendo delito
dade e violência da Administração Pública.
naquele exato instante. Mas o morador
Quanto à inviolabilidade do domicílio,
pode não querer, em momento algum, au-
ele é pilar fundamental para a construção
xiliar o fugitivo a subtrair-se à ação da
de uma sociedade pacífica e segura. A
autoridade pública, podendo até mesmo
proteção dada pela Carta Magna é de indu-
querer que o autor do crime seja levado à
bitável importância, pois coloca uma bar-
justiça. Contudo, ele – morador – não ad-
reira de cunho social e íntimo à sede, muitas
mite a entrada do funcionário público em
vezes válida, de cumprimento do dever por
sua residência durante a noite, por quais-
parte da força pública.
quer motivos que sejam. Nesses casos, o
Um particular pode consentir que um
morador não está cometendo crime de fa-
criminoso permaneça em sua casa, proibin-
vorecimento, pois não age dolosamente em
do a entrada da polícia, pelo menos durante
favor do criminoso, apenas está exercen-
a noite, e não cometer qualquer tipo de delito!
do direito constitucional de ter respeita-
Esse poder de freiar a ação persecutória
da a inviolabilidade de sua casa. Por ou-
do Estado traz segurança aos lares de que
tro lado, se o morador tiver o animus de
estes não serão adentrados sem que exista
auxiliar o delinqüente a subtrair-se à ação
policial, sua conduta será típica. O pro- uma permissão expressa, seja legal ou por
blema que aqui se apresenta está ligado à parte de seu ocupante, e que, afora isso, toda
prova das intenções do morador, por- e qualquer entrada forçada é invasão e vio-
quanto, desde já, observa-se ser nitida- lação, o que remonta às barbáries cometi-
mente de foro íntimo o diferencial que ti- das pelos regimes nazista, facista e militar.
pifica a conduta ou não, e sabe-se que a O combate à violência e ao crime é um
prova, nesses casos, é de dificultosa e dos escopos do Estado Moderno; ele possui
duvidosa verificação. legitimidade para tal. Contudo, em uma pers-

Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 95


pectiva social, tal poder-dever do Estado está TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de
voltado somente para atender os anseios do Processo Penal, 17ª ed., Editora Saraiva, São
Paulo, 1995.
povo e seu bem-estar e, sob essa óptica, não TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias
pode vir a prejudicá-lo, ou causar-lhe temor Individuais no Processo Penal Brasileiro, Editora
e inquietação, na busca dessa finalidade. A Saraiva, São Paulo, 1993.
casa é asilo inviolável para todos, um portal Revista dos Tribunais, 324/318, 370/269, 378/235 e
que somente se abre com autorização clara 308, 382/87, 383/216, 396/303, 398/292, 418/
249, 449/431, 462/376, 500/319, 518/350 e 347,
e expressa de seu ocupante ou da lei, e que 523/461, 551/311, 555/374, 671/321.
assim continue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, nº 14,
abril – junho, 1996.

Bibliografia
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vol. IV, Editora Losada S/A, Buenos Aires, 1
RF. 296/368 e RT 518/350.
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Em sentido contrário, entendendo que é típica
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cia, Editora Juriscredi Ltda., Minas Gerais, 1971. Comentários ao Código Penal, 1959, IX/412.
BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão em Flagrante, 3ª 3
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ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1986. 4
“Delito não caracterizado – Ausência de
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Editora violência física ou moral – Réu que se limita a se
Saraiva, São Paulo, 1997. opor à prisão agarrando-se ao volante de seu veículo
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, 3ª – “Oposição branca” – Decisão absolutória
ed., Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1991. mantida – Inteligência do art. 329 do Cód. Penal”
FRANCO, Alberto Silva; SILVA JR., José; BETA- (Ac. 1ª Câm. Crim. Trib. Alçada de São Paulo,
NHO, Luiz Carlos; STOCO, Rui; FELTRIN, in RT. 324/318).
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JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,
Rocha; NINNO, Wilson. Código Penal e Sua In- vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 182.
terpretação Jurisprudencial, 5ª ed., Editora Revis- 6
“A simples fuga do infrator, ao ser preso, não
ta dos Tribunais, São Paulo, 1995. configura o delito de resistência, que exige, para
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, vol. sua caraterização, a presença dos requisitos da
I, tomo I, 5ª ed., Editora Max Limonad Ltda., violência ou ameaça contra o funcionário” (TA-
São Paulo, 1980. CRIM-SP – AC – Rel. Mattos Faria – JUTACRIM
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, 4ª 10/249). No mesmo sentido: JUTACRIM 61/326.
ed., São Paulo: Saraiva, 1995. 7
“Não configura o delito de resistência o
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, vol. IV, Editora obstáculo oposto pelo réu, com um movimento
Saraiva, São Paulo, 1988. instintivo de fuga ao flagrante, reflexo de seu desejo
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Bra- de preservar ou garantir sua liberdade” (TARJ –
sileiro, 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 1990. AC – Rel. Erasmo do Couto – RT 523/461).
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, 8
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,
vol. III, 3ª ed., Editora Atlas, São Paulo, 1987. vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 185.
_______. Código de Processo Penal Interpretado, 3ª 9
“O delito de desobediência não é suscetível de
ed., Editora Atlas, São Paulo, 1995. cometimento apenas por particulares. Também o
_______. Processo Penal, 5ª ed., Editora Atlas, São funcionário público pode ser sujeito ativo da
Paulo, 1996. infração” (TACRIM-SP – RHC – Rel. Ricardo Couto
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de – RT 418/249).
Direito Administrativo, 11ª ed., Rio de Janeiro: 10
Contra, entendendo que também nesse caso
Forense, 1998. deve-se considerar a ampliação do art. 327: Julio
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Adminis- Fabrini Mirabete, Manual de Direito Penal, vol. III,
trativo, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 1992. Editora Atlas, São Paulo, 1987, pg. 275 – 9.
PRADO, Luiz Regis; BITENCOURT, Cezar Roberto. 11
Op. cit., pg. 417.
Código Penal Anotado e Legislação Complementar, 12
Denominação adotada por Diogo de Figueireo
Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997. Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo, pg.
TEIXEIRA, Renildo do Carmo. Da Prisão em 202); “funcionário de fato” – denominação utilizada
Flagrante – teoria, prática e jurisprudência, por Diógenes Gasparini (Direito Administrativo,
Editora de Direito, São Paulo, 1997. pg. 47); “gestor de negócios” – denominação dada
96 Revista de Informação Legislativa
por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito 22
A doutrina tem entendido que a expressão
Administrativo, pg. 309). “autor de crime” é empregada no sentido amplo,
13
Esse entendimento conta com o aval de Carlos compreendendo também os co-autores e partícipes.
Maximiliano (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, 23
DELMANTO, Celso. Código Penal Comenta-
1964, pg. 256), que afirma dever ser “estrita a inter- do, 3ª ed., Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1991,
pretação das leis excepcionais, das fiscais e das PU- pg. 537.
NITIVAS” (grifo nosso). 24
“Não caracteriza o delito de favorecimento
14
“Desrespeito a instruções ou a proibições de pessoal previsto no art. 348 do Código Penal o
caráter geral não constitui crime de desobediência” auxílio para iludir as investigações do delito, mas
(Rec. Crim. 3.485, ac. 24.06.52, p. 2.992). apenas e tão-somente o prestado ao agente para
15
“Para os efeitos de interpretação do art. 330 subtrair-se à ação da autoridade pública” (TJSP –
do Código Penal, a ordem legal deve ser expressa, HC – Rel. Dante Busana – RT. 671/321).
real e atual, não podendo ser presumida em nenhum “Favorecimento Pessoal – Delito não caracteri-
caso” (TACRIM – SP – AC – Relator Manoel Pedro zado – Acusado que não ocultou homicida em sua
– RT 370/269). residência, mas apenas permitiu que ali se lavasse,
16
“O dolo específico não é exigível para a confi- retirando-se em seguida – Impronúncia decretada
guração da desobediência, delito que se completa – Recurso provido – Inteligência do art. 348 do CP
com o mero dolo genérico, consistente na vontade – Imprescindível à configuração do delito do art.
consciente e livre de desobedecer” (TJSP – AC – Rel. 348 do CP que se demonstre tenha o acusado pres-
Prestes Barra – in RT. 518/347. tado auxílio a criminoso, homiziando-o para que
17
“Desobedecendo à ordem legal da autoridade não fosse alcançado pela ação da autoridade” (TJSP
e pondo-se em fuga para evitar ser surpreendido – AC – Rel. Nigro Conceição – RT. 500/319).
na prática de infração penal, não comete o acusado 25
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,
o delito do art. 330 do Código Penal, por estar vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 272.
agindo num impulso instintivo de conservar a 26
Prática do Processo Penal, pg. 34.
liberdade” (TJSP – AC – Rel. Cunha Camargo – RT 27
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito
551/311 e RJTJSP. 71/316). No mesmo sentido: RT. Penal, vol. III, Editora Atlas, São Paulo, 1987,
378/235, 383/216, 396/303, 398/292, 462/376, pg. 373.
555/374; e JUTACRIM 1-2/75, 8/182, 12/240-1. 28
Código Penal e sua Interpretação Jurispruden-
18
“Indispensável à caracterização de deso- cial, 5ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Pau-
bediência opor-se o agente à ordem legal, consciente lo, 1995, pg. 3.104 – 5.
da antijuricidade do fato” (TACRIM-SP – AC – 29
Caso contrário, estaria configurado o delito
Rel. Geraldo Ferrari – JUTACRIM 26/158). de violação de domicílio, previsto no art. 150 do
19
Ignorando o agente a qualidade de funcionário, Código Penal, permitindo-se a invasão sem
que não se identifica, não se configura o ilícito. RT. consentimento, em virtude da ocorrência de
449/431. flagrante delito (CF, art. 5º, inc. XI).
20
“Não há confundir os delitos dos arts. 329 e 30
Vários estudiosos e doutrinadores já
330 do Código Penal. A resistência encerra a discorreram a respeito do tema, sendo aqui suficiente
desobediência, enquanto esta representa resistência esclarecer que uma ação legítima tornar-se-á ilegítima
passiva, ou, quando comissiva, desacompanhada ou irregular, configurando o abuso de direito,
de força física ou coação moral” (TACRIM-SP – AC sempre que o exercício deste tenha por finalidade
– Rel. Edmond Acar – Juricrim-Franceschini 1/624). única causar dano a uma pessoa ou coisa. No caso
“Sem que haja violência ou grave ameaça à em tela, o morador, uma vez subjugado o policial
pessoa incumbida do cumprimento da ordem legal, que adentrou a sua casa sem permissão durante a
não há falar em resistência, mas em mera deso- noite (ação legítima), em vez de expulsá-lo do
bediência” (TACRIM-SP – AC – Rel. Gonçalves interior da residência, passa a ofendê-lo com socos
Santana – RT. 382/87). e pontapés (ação ilegítima – abuso).
21
Direito Penal, vol. IV, Editora Saraiva, São 31
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal, 5ª
Paulo, 1988, pg. 271. ed., Editora Atlas, São Paulo, 1996, pg. 359.

Referências bibliográficas conforme original.


Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 97
98 Revista de Informação Legislativa

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