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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

exclui a culpabilidade70. A questão poderia ser assim formulada: se o


ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento conforme ao
Capítulo 10
dever jurídico, então a inexigibilidade exclui o próprio tipo de injusto; Antijuridicidade e Justificação
se o ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento ade-
quado às suas condições pessoais, então a inexigibilidade exclui apenas
a culpabilidade71.
I. Teoria da antijuridicidade

1. Introdução

Juridicidade e antijuridicidade são os conceitos mais gerais do


ordenamento jurídico porque indicam conformidade e contradição
ao Direito, respectivamente. Em Direito Penal, a antijuridicidade é
representada pelo tipo de injusto, como contradição entre a ação
humana (realizada ou omitida) e o ordenamento jurídico no conjunto
de suas proibições e permissões: as proibições são os tipos legais, como
descrição de ações realizadas ou omitidas, que indicam os elementos
positivos do tipo de injusto; as permissões são as justificações legais
e supralegais, como situações concretas que excluem as proibições
– portanto, definem os elementos negativos do tipo de injusto. O
conceito de antijuridicidade precisa ser examinado sob dois pontos
de vista: primeiro, em relação ao conceito de tipicidade; segundo, em
relação ao conceito de injusto.
1.1. Antijuridicidade e tipicidade. A relação entre antijuridicidade e
tipicidade depende da natureza bipartida ou tripartida do conceito de
fato punível: a) para o conceito bipartido de fato punível, tipicidade e
antijuridicidade constituem o conceito unitário do tipo de injusto: o
tipo representa os elementos positivos, as justificações representam os
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 59, VIII, 3, p. 635.
70
elementos negativos do tipo de injusto – logo, uma ação justificada
Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 9, IV, 3, n. 102-103, p. 170. No Brasil,
71

TAVARES, As controvérsias acerca dos crimes omissivos, 1996, p. 100-103, considera a


é uma ação atípica porque os elementos negativos excluem os ele­
inexigibilidade como cláusula geral de exculpação nos delitos de omissão de ação. mentos positivos do tipo de injusto; b) para o conceito tripartido

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de fato punível, tipicidade e antijuridicidade são conceitos autônomos dico, como qualidade invariável de toda ação típica e antijurídica;
na categoria do tipo de injusto, em que se relacionam como regra e a antijuridicidade material exprime a lesão injusta do bem jurídico,
exceção: a tipicidade da ação indica a antijuridicidade do fato (regra), como dimensão graduável do tipo de injusto. Por exemplo, furto
as justificações excluem a antijuridicidade do fato (exceção)1 – logo, de coisa de pequeno valor possui a mesma antijuridicidade formal de
toda ação típica é antijurídica, exceto as ações típicas justificadas. furto de coisa de grande valor, assim como a realização do tipo básico
Em regra, o legislador descreve nos tipos legais condutas con- de um crime tem a mesma antijuridicidade formal de suas variações
trárias ao Direito, ou seja, ações ou omissões de ação antijurídicas, privilegiadas ou qualificadas porque são ações igualmente contrárias
excepcionalmente permitidas nas situações concretas denominadas ao Direito; mas a extensão variável da lesão de bens jurídicos em cada
justificações, como a legítima defesa, o estado de necessidade etc. Inde- uma dessas hipóteses determina diferentes conteúdos de injusto e, por-
pendentemente da posição sobre a estrutura bipartida ou tripartida do tanto, diversas antijuridicidades materiais: por exemplo, furto de coisa
conceito de crime, a tipicidade parece constituir a própria ratio essendi de grande valor tem maior conteúdo de injusto que furto de coisa de
da antijuridicidade – e não simples ratio cognoscendi da antijuridici- pequeno valor; tipos qualificados possuem conteúdo de injusto maior
dade. Por essa razão, a antijuridicidade da ação típica é determinada que tipos básicos ou privilegiados etc. A distinção é importante por
por um critério negativo: ausência de justificação. A praticidade do várias razões: primeiro, indica diferenças conceituais entre antijuridi-
critério explica sua adoção generalizada: ausente justificação, está cidade (qualidade invariável que existe ou não existe na ação típica)
caracterizada a antijuridicidade; presente justificação, está excluída a e injusto (conteúdo variável da lesão do bem jurídico)3; segundo, por
antijuridicidade2. suas consequências práticas na aplicação da lei penal: a antijuridicidade
abstrata (mera literalidade da lei) pode ser desconsiderada em situações
1.2. Antijuridicidade e injusto. A relação da antijuridicidade com específicas de inexistência ou de insuficiência do injusto concreto,
o injusto é uma relação de diferenciação no mesmo estágio do fato como ocorre nas hipóteses de ações socialmente adequadas e, de modo
punível: a antijuridicidade representa uma qualidade invariável da especial, nos casos de delitos de bagatela abrangidos pelo princípio da
ação típica, expressa na contradição entre a ação ou omissão de ação insignificância – por exemplo, lesões corporais mínimas (arranhões,
e o conjunto das proibições e permissões do ordenamento jurídico; equimoses etc.), furto de coisas de pequeno valor, injúrias no âmbito
ao contrário, o injusto representa a própria ação típica e antijurídica familiar, jogos de azar com valores módicos, doações ou presentes
concreta, como grandeza variável ou graduável da realização não natalinos a funcionários públicos, como carteiros, lixeiros etc.4.
justificada de comportamentos típicos. Os conceitos de antijuridi-
cidade (invariável) e de injusto (variável) estão na base da distinção 1.3. Antijuridicidade e vitimologia. Além disso, modernas
entre antijuridicidade formal e antijuridicidade material: a antijuri- pesquisas vitimológicas destacam a contribuição ou influência
dicidade formal exprime a contradição do comportamento concreto da vítima para o fato criminoso, indicando hipóteses em que o
com o conjunto das proibições e permissões do ordenamento jurí- comportamento da vítima pode descaracterizar a tipicidade ou,

1
Ver, entre outros, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 69. 3
Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 70.
2
CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 49. 4
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 4-8, p. 503-504.

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no setor da antijuridicidade, reduzir o conteúdo de injusto da GUNTHER9, por exemplo, mostram a coexistência contraditória de
antijuridicidade material, ou excluir a própria antijuridicidade juridicidade e de antijuridicidade na mesma ação: o consentimento
formal da ação típica5. Nessa linha, SCHUNEMANN6 destaca presumido de adolescente relativamente incapaz na realização de dano
a perspectiva vitimológica do legislador e da jurisprudência para em objeto de sua propriedade não exclui a antijuridicidade civil e,
definir e interpretar tipos legais e hipóteses de redução do injusto portanto, obriga a indenizar, mas pode justificar a ação típica de dano
ou de exclusão da antijuridicidade do fato típico: por exemplo, a e, portanto, excluir a antijuridicidade penal10.
tipicidade da falsificação de moeda exige fabricação de dinheiro A existência de áreas neutras ou livres em relação à juridicidade/
com aparência de verdadeiro e, portanto, com potencial de viti- antijuridicidade também é controvertida: a teoria dominante nega a
mização na circulação financeira, inexistente em casos de falsifica- existência de áreas jurídicas livres no âmbito das definições legais de
ções grosseiras; o consentimento real do ofendido exclui a própria crimes porque todo comportamento típico é ou antijurídico ou justi-
necessidade de proteção do bem jurídico, como é o caso de lesões ficado, mas estudos recentes indicam a possibilidade de uma terceira
corporais em cirurgias, esportes etc.; a autoexposição a perigo ou a hipótese, em conflitos relacionados com situações de perigo comum ou
exposição consentida a perigo de outrem impedem a atribuição do de colisão de deveres11, por exemplo: o alpinista da parte superior corta
tipo objetivo; enfim, a provocação do agredido pode excluir ou, de a extensão inferior da corda, precipitando o companheiro no abismo,
qualquer modo, influenciar a legítima defesa contra o agressor etc.7. porque a mesma é incapaz de sustentar ambos ao mesmo tempo; o pai
1.4. Unidade e áreas neutras do Direito. Os conceitos opostos de somente pode salvar um dos dois filhos que, simultaneamente, estão
juridicidade e de antijuridicidade relacionam-se a alguns temas gerais, se afogando, morrendo o outro.
como a questão da unidade do ordenamento jurídico e o problema A teoria de áreas livres ou neutras no Direito teria como funda-
da existência de áreas livres ou neutras no Direito. mento o modelo de democracia parlamentar, cuja liberdade do cidadão
A unidade do ordenamento jurídico parece constituir axioma é originária, e não concessão do Estado: o povo é o poder constituinte
do pensamento jurídico moderno: a regra de que a juridicidade ou do Estado, estruturado para o exercício das funções de proteção e de
antijuridicidade de qualquer ação é válida para o Direito, em geral, garantia da liberdade, da paz e do bem-estar geral12. Nessa perspectiva,
excluiria hipóteses de antijuridicidades específicas, eliminando, as- pode-se reconhecer que certas áreas pré-típicas constitui­riam espaços
sim, a possibilidade de contradições no Direito. Entretanto, autores jurídicos livres, mas no âmbito do injusto não existem áreas jurídicas
mais antigos, como ENGISCH8, indicam que essa tese não estaria livres porque o comportamento típico é valorado, alternativamente,
definitivamente demonstrada, e autores contemporâneos, como
9
GUNTHER, Strafrechtswidrigkeit und Strafunrechtsausschluss, 1983.
10
Ver, para mais detalhes, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 30-36, p. 513-516.
5
Ver HASSEMER, Rucksichten auf das Verbrechensopfer, Klug-FS, 1983, p. 217. 11
Nesse sentido, ARTHUR KAUFMANN, Rechtsfreier Raum und eigenverantwortliche
6
SCHUNEMANN, Der Strafrechtliche Schutz von Privatgeheimnissen, ZStW, 90 (1978), Entscheidung – Dargestellt am Problem des Schwangerschaftsabbruchs, Maurach-FS,
p. 11; do mesmo, Methodologische Prolegomena zur Rechtsfindung im Besonderen Teil des 1972, p. 327. No Brasil, ver MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (parte geral),
Strafrechts, Bockelmann-FS, 1979, p. 117. 1998, v. I, t. II, p. 877-878.
7
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 17, p. 508. 12
Assim, HIRSCH, Strafrecht und rechtsfreier Raum, Bockelmann-FS, 1979, p. 89;
8
ENGISCH, Die Einheit der Rechtsordnung, 1935. ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 26, p. 511.

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(a) ou como justificado, (b) ou como antijurídico mas exculpado, defensivo, os princípios da proteção e da proporcionalidade, e no
(c) ou finalmente como antijurídico e culpável13. estado de necessidade agressivo, os princípios da avaliação de bens
e da autonomia19; no consentimento do titular do bem jurídico, o
princípio da ausência de interesse na proteção do bem jurídico20 etc.
2. Fundamento das justificações

A sistematização das justificações é dificultada por dois problemas 3. Conhecimento e erro nas justificações
correlacionados: a) a multiplicidade dos fundamentos justificantes,
representada por justificações escritas e não escritas; b) a diversidade A necessidade de elementos subjetivos nas justificações de
dos setores do ordenamento jurídico de origem das justificações, não ações típicas dolosas (e na imprudência consciente), negada pela
limitadas pelo Direito Penal. Existem hoje dois grupos principais de dogmática causal e seu conceito objetivo de injusto da primeira
teorias sobre o fundamento das justificações: as teorias monistas e as metade do século XX – e, ainda hoje, por alguns autores isolados,
teorias pluralistas. como SPENDEL21 –, é reconhecida pela literatura e jurisprudência
As teorias monistas apresentam a finalidade como princípio contemporâneas, que discute apenas a natureza desses elementos22. As
unitário fundamentador das justificações, sob diversas modalidades: ações justificadas são constituídas de elementos subjetivos e objetivos
a) a teoria do meio adequado para fins reconhecidos como justos pelo como qualquer outra ação típica: se a unidade subjetiva e objetiva
legislador, de LISZT14; b) a teoria da maior utilidade do que dano, de da ação determina a estrutura subjetiva e objetiva da ação típica,
SAUER15; c) a teoria da ponderação do valor, de NOLL16; d) a teoria então a ação justificada contém, necessariamente, elementos subje-
do interesse preponderante, de MEZGER17. tivos e objetivos23. Existe, assim, como refere HAFT24, uma relação
de simetria entre tipos legais, ou tipos de proibição, e justificações,
As modernas teorias pluralistas identificam o fundamento das
ou tipos de permissão. Como as justificações excluem não somente
justificações em certos princípios sociais subjacentes: na legítima
o desvalor do resultado, mas o próprio desvalor da ação típica, a au-
defesa, o princípio da proteção individual garante a possibilidade de
sência de elementos subjetivos nas justificações significa dolo não
fazer a defesa necessária, e o princípio da afirmação do direito autoriza
justificado de realização do injusto25: a mulher que, pensando atirar
a defesa mesmo na hipótese de meios alternativos de proteção, como
desviar a agressão ou chamar a polícia18; no estado de ne­­cessidade
19
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 41, p. 518-519.
20
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 79.
13
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 27-29, p. 512-513. 21
SPENDEL, Gegen den Verteidigungswillen als Notwehrerfordernis, Bockelmann-FS,
14
LISZT, Strafrecht, 1919, § 3. 1979, p. 245.
15
SAUER, Allgemeine Strafrechtlehre, 1955. 22
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 31, IV, p. 328-331;
16
NOLL, Tatbestand und Rechtswidrigkeit: die Wertabwägung als Prinzip der ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 94-100, p. 539-542.
Rechtfertigung, ZstW, 77 (1965), p. 1. 23
CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 50.
17
MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 240 s. 24
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 77.
18
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 41, p. 518. 25
Ver, entre outros, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 93, p. 539.

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no marido que retornava da orgia noturna, atinge o ladrão armado a situação justificante são a teoria limitada da culpabilidade, a teoria
tentando entrar na casa, age com dolo não justificado de homicídio rigorosa da culpabilidade e a teoria das características negativas do tipo,
– no caso, impunível por ausência de desvalor de resultado, segundo a seguir sumariadas.
formulações modernas. A teoria limitada da culpabilidade, amplamente majoritária
Os elementos subjetivos nas justificações têm por objeto a situa­ na dogmática contemporânea e incorporada na vigente legislação
ção justificante (por exemplo, a agressão atual e injusta a bem jurídico, penal brasileira (art. 20, § 1º, CP), distingue entre erro de proibição,
na legítima defesa), e toda discussão consiste em saber se é suficiente incidente sobre a natureza proibida ou permitida do fato, que pode
o conhecimento da situação justificante ou se é necessária também a excluir ou reduzir a culpabilidade, e erro de tipo permissivo, incidente
vontade de defesa, de proteção etc., em conjunto com outros estados psí- sobre a verdade do fato, excludente do dolo. A crítica destaca a clareza
quicos, para a ação justificada: autores como KUHL, OTTO e ROXIN político-criminal da teoria limitada da culpabilidade, que equipara o
afirmam ser suficiente o conhecimento da situação justificante, embora erro de tipo permissivo ao erro de tipo, sob o argumento de que o autor
com sentimentos de medo, raiva ou vingança contra o agressor26; ao quer agir conforme a norma jurídica – e, nessa medida, a representa-
contrário, autores como WELZEL, JESCHECK/WEIGEND e MAU- ção do autor coincide com a representação do legislador –, mas erra
RACH/ZIPF exigem, além do conhecimento da situação justificante, a sobre a verdade do fato: a representação da existência de situação jus-
vontade de defesa ou de proteção, também com sentimentos de raiva ou tificante exclui o dolo, que existiria como conhecimento da existência
vingança contra o agressor27. É possível admitir a suficiência do conhe­ das circunstâncias do tipo legal e da inexistência de circunstâncias
cimento (ou consciência) da situação justificante, como limiar subjetivo justificantes, cuja errônea admissão significa que o autor não sabe o
mínimo das ações justificadas, mas a vontade (de defesa, de proteção que faz – ao contrário do erro de permissão, em que o autor sabe o que
etc.) é, sempre, a energia emocional que mobiliza a ação de defesa ou faz28. A teoria rigorosa (ou extrema) da culpabilidade considera o erro
de proteção, informada pela esfera cognitiva do psiquismo individual. sobre a situação justificante (ou sobre pressupostos objetivos de uma
Por outro lado, o erro constitui fenômeno psíquico em oposição causa de justificação) como erro de proibição, que exclui ou reduz a
diametral ao conhecimento, como sua antítese negativa e, nas justifica- culpabilidade conforme seja inevitável ou evitável, respectivamente –
ções, igualmente tem por objeto a situação justificante, também definida e, assim, equipara erro sobre a realidade a erro sobre a juridicidade do
como pressuposto objetivo das justificações: se a situação justificante é fato29. Finalmente, a excitante teoria das características negativas do
objeto do conhecimento nas justificações, então é, necessariamente, tipo30 resolve o problema do erro sobre a situação justificante como
objeto do erro respectivo porque conhecimento e erro são fenômenos
psíquicos contrários e excludentes. As principais teorias do erro sobre 28
Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 62-68, p. 526-529.
29
Comparar WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, III f, p. 168 s.; ROXIN, Strafrecht,
1997, § 14, n. 63, p. 527.
26
KUHL, Strafrecht, 1997, § 6, n. 11, p. 123; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 8, 30
Ver, entre outros, SCHROTH, Die Annahme und das “Fur-Möglich-Halten” von
n. 52, p. 107; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 93, p. 539. Umständem, die einen anerkannten Rechtfertigungsgrund begrunden, Arthur Kaufmann-
27
WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, I 3, p. 83-4; JESCHECK/WEIGEND, FS, 1993, p. 595; SCHUNEMANN, Die deutschsprachige Strafrechtswissenschaft nach
Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 31, n. IV, p. 328-331; MAURACH/ZIPF, Strafrecht der Strafrechtsreform im Spiegel des Leipziger Kommentars und des Wiener Kommentars,
1, 1992, § 25, V, ns. 24-29, p. 348. 1. Teil: Tatbestands- und Unrechtslehere, GA, 1985, p. 341.

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a teoria limitada da culpabilidade, mas com fundamentos diferen- defesa; b) a ação justificada (de defesa, ou necessária, ou no exercício de
tes: considera os caracteres do tipo legal como elementos positivos e direito, ou em cumprimento de dever legal ou consentida pelo titular
as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por do bem jurídico) contém elementos subjetivos e objetivos – às vezes,
consequência, define o erro sobre a situação justificante como erro de também, elementos normativos, como a permissibilidade da defesa,
tipo, excludente do dolo – e, por extensão, do tipo –, se inevitável, na legítima defesa.
admitindo imprudência, se evitável31 (ver Teorias sobre conhecimento
do injusto e erro de proibição, adiante).
A) Legítima defesa
4. Efeito das justificações A legítima defesa é direito de proteção individual enraizado
na consciência jurídica do povo, explicada por dois princípios: a) o
Ações típicas justificadas são ações conformes ao direito porque princípio da proteção individual para defesa de bens ou interesses e o
(a) excluem a antijuridicidade indicada no tipo legal (teoria triparti- princípio social da afirmação do direito em defesa da ordem jurídica.
da), ou (b) excluem a tipicidade da ação (teoria bipartida), com duas O princípio da proteção individual justifica ações típicas necessárias
consequências necessárias: primeiro, uma ação justificada exclui outra para defesa de bens jurídicos individuais contra agressões antijurídicas,
ação justificada contrária, ou seja, não há justificação contra justifi- atuais ou iminentes33. O princípio da afirmação do direito justifica
cação – exceto no estado de necessidade; segundo, o agressor deve ou defesas necessárias para prevenir ou repelir o injusto e preservar a or-
suportar a ação justificada, ou escapar dela, cessando, de qualquer dem jurídica, independentemente da existência de meios alternativos
modo, a agressão32. de proteção34 porque o direito não precisa ceder ao injusto, nem o
agredido precisa fugir do agressor – excetuados casos de agressões não
dolosas, de lesões insignificantes ou de ações de incapazes, próprias da
legítima defesa com limitações ético-sociais35.
II. Justificações
O estudo das justificações pode ser simplificado pelo método 1. Situação justificante
de organizar seus elementos constitutivos nas categorias de situação
justificante e de ação justificada: a) a situação justificante compreende A situação justificante da legítima defesa caracteriza-se pela
os pressupostos objetivos das justificações – por exemplo, a agressão
injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro, na legítima
33
Ver FRISTER, Die Notwehr im System der Notrechte, GA 1988, p. 291; HAFT,
Strafrecht, 1994, p. 82-84; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 1, p. 550.
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 70, p. 529.
31 34
Ver HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 2, p. 550-551;
Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 79-80; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 104-105,
32 SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/51.
p. 544. 35
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 2, p. 550-1 e n. 49-50, p. 573-574.

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existência de agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou 2. Injusta é a agressão imotivada ou não provocada pelo agredido e,
alheio, assim definida na lei penal: nesse sentido, marcada por desvalor de ação e de resultado40, o que
Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando exclui ações conformes ao dever de cuidado ou ao risco permitido
moderadamente dos meios necessários, repele injusta e ações justificadas – não há legítima defesa contra legítima defesa,
agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. embora se admita exculpação supralegal em determinados casos de
provocação da situação justificante41.
O significado dos componentes elementares do conceito de
legítima defesa pode ser assim explicado: 3. Atual é a agressão em realização ou em continuação; iminente é a
agressão de realização imediata – assim, a legítima defesa pressupõe
1. Agressão é toda ação humana de violência real ou ameaçada dirigi- agressão em realização, em continuação ou imediata42. O problema
da contra bens jurídicos do agredido ou de terceiro36. O conceito de é definir os extremos desses conceitos (agressão imediata e em con-
agressão inclui (a) a omissão de ação, porque não há exigência conceitual tinuação) porque o conceito de agressão em realização, situado entre
de um fazer ativo (se a criança está ameaçada de morrer de fome por aqueles limites extremos, não é problemática43. O conceito de imi-
omissão de ação atribuível à mãe, as alternativas são ou alimentar a nência é definido por duas teorias: a) a teoria do começo da tentativa
criança, ou obrigar a mãe a alimentar a criança)37, assim como (b) a de JAKOBS44 pressupõe a maior proximidade possível da consuma-
imprudência, porque o conceito de agressão não é restrito à violência ção – o que pode tornar a defesa ineficaz (muito tarde) ou a eficácia
dolosa (o motorista que insiste em manobras imprudentes do veículo da defesa pode implicar lesões mais graves do agressor; b) a teoria da
em parque repleto de crianças deve suportar a legítima intervenção fase preparatória de SCHMID­HÄUSER45, com problemas na dire-
de terceiro para impedir as manobras e, se for o caso, tomar, tempo- ção contrária: uma agressão anunciada para o dia seguinte pode estar
rariamente, a chave do veículo)38; mas exclui as chamadas não ações: em fase preparatória, mas não é iminente (muito menos atual), nem
lesão de bens jurídicos relacionada a ataques epilépticos ou estados de constitui agressão46. Um critério intermediário proposto por KUHL
inconsciência (sono, desmaio ou embriaguez comatosa) – que podem, e ROXIN47 define iminência como o momento final da preparação,
todavia, fundamentar o estado de necessidade – porque movimentos que integra o critério da defesa eficaz, inseparável do conceito de le-
corporais meramente causais não constituem ações humanas39. gítima defesa, com o critério do desencadeamento imediato, inerente

36
CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 50.
37
Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 6-11, p. 553-555.
40
MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 26, n. 8-21, p. 355-360.
38
Assim, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996,
41
Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 14, p. 556-557.
§ 32, II, 1a, p. 338. No Brasil, no mesmo sentido, MESTIERI, Manual de Direito 42
Ver, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, II,
Penal I, 1999, p. 147; em posição contrária, mas inconvincente, ZAFFARONI/ 1, p. 338; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, § 8, p. 97, n. 328.
PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 330, p. 583, exigem 43
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 21, p. 560.
“agressão intencional”, excluindo a “agressão culposa”, porque seria “absurdo (...) 44
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 12/23, p. 389-390.
causar um dano sem proporção alguma com a magnitude do mal.” 45
SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/61.
39
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 8, p. 553-554, n. 8; em posição contrária,
DREHER/TRÖNDLE, Strafgesetzbuch und Nebengesetze, 1995, § 32, n. 4; também,
46
Para a crítica dessas teorias, ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 22-23, p. 560-561.
WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, II 1, p. 84-85. 47
KUHL, Strafrecht, 1997, § 7, n. 41; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 24-25, p. 561-562.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

ao conceito de tentativa: a aproximação do agressor com um porrete defesa do particular – mas não a pessoa jurídica do Estado porque
na mão para agredir ou o movimento da mão do agressor em direção parece inadequado transformar o cidadão em guerreiro contra inimigos
à arma não configuram, ainda, tentativa, mas o último momento da do Estado (espiões ou traidores, por exemplo)52.
fase preparatória, suficiente para caracterizar a iminência da agressão
e, assim, justificar a defesa.
O conceito de agressão em continuação é mais simples: a conti- 2. Ação justificada
nuação da agressão ocorre no intervalo entre a consumação formal e a
consumação material do tipo de injusto, como nos crimes de duração A ação de defesa do agredido é a mesma unidade objetiva e
ou permanência (sequestro, violação de domicílio etc.) ou de estado subjetiva examinada como ação, em seguida como ação típica e agora
(o furto, enquanto o ladrão foge com a coisa)48. como ação típica justificada (os adjetivos não modificam o substantivo).
4. Direito próprio ou de outrem são os bens jurídicos, as necessi- A ação justificada de legítima defesa contém elementos subjetivos, ele-
dades ou interesses individuais ou sociais que recebem proteção do mentos objetivos e, em casos especiais de legítima defesa com limitações
Direito. O bem jurídico distingue-se do objeto da ação precisamente ético-sociais, o elemento normativo da permissibilidade da defesa.
como o conceito de interesse distingue-se da coisa concreta em que se
realiza: a vida e a propriedade privada são bens jurídicos, enquanto
2.1. Elementos subjetivos da ação de defesa
o homem concreto e a coisa respectiva constituem objetos de ação49.
Todos os bens jurídicos individuais são suscetíveis de legítima defesa
(vida, saúde, liberdade, honra, propriedade etc.), mas existe controvér- Os elementos subjetivos da legítima defesa têm por objeto a
sia quanto aos bens jurídicos sociais: a) bens jurídicos da comunidade situação justificante (agressão injusta, atual ou iminente, a bem ju-
(ordem pública, paz social, regularidade do tráfego de veículos etc.) são rídico próprio ou de terceiro) e consistem no conhecimento da situ-
insuscetíveis de legítima defesa porque a ação violenta do particular ação justificante para a teoria dominante53, representada por KUHL,
produziria maior dano que utilidade e, afinal, parece inconveniente OTTO e ROXIN, ou no conhecimento da situação justificante e na
atribuir ao povo tarefas próprias da polícia50, embora alguns autores vontade de defesa para respeitável opinião minoritária54, representada
admitam a defesa do ser social ou comunitário pelo indivíduo51;
b) bens jurídicos do Estado, como o patrimônio público (destruição de
cabines telefônicas, danos em trens de metrô etc.), admitem legítima 52
Ver BLEI, Strafrecht, 1983, § 39, II, 4; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des
Strafrechts, 1996, § 32, II, 1b, p. 339-340; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 40-41,
p. 568-569.
53
KUHL, Strafrecht, 1997, § 6, n. 11, p. 123; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 8,
48
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 28, p. 563.
n. 52, p. 107; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 111-112, p. 604-605.
49
Nesse sentido, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 72-74. 54
WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 14, II 3, p. 83-84, n. 3; JESCHECK/
50
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 36-39, p. 566-568. No Brasil, ZAFFARONI/ WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 31, n. IV, p. 328-331; MAURACH/
PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 334, p. 588. ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 25, V, ns. 24-29, p. 348-349. No Brasil, FRAGOSO, Lições de
51
Por exemplo, MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 26, n. 12-13, p. 357; Direito Penal, 1985, n. 164, p. 193; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 145;
SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/80. ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 335, p. 588.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

por WELZEL, JESCHECK/WEIGEND e MAURACH/ZIPF – em em vez de matar56. Assim, a necessidade da defesa pode ser redefinida,
qualquer hipótese, com outros componentes psíquicos e emocionais, do ponto de vista estático, como necessidade dos meios de defesa em
como medo, raiva, vingança etc. O conhecimento (ou consciência) face dos meios de agressão, e do ponto de vista dinâmico, como em-
da situação justificante, como limiar subjetivo mínimo da legítima prego moderado dos meios de defesa necessários. A definição da defesa
defesa, pode ser suficiente, mas a vontade de defesa, informada pelo necessária naquela dupla direção utiliza um critério objetivo ex ante,
conhecimento e condicionada pelas emoções do autor, é a energia conforme o juízo de um observador prudente57: não atirar contra o
psíquica que mobiliza a ação de defesa. agressor, se é suficiente empurrá-lo ou fechar a porta para fazer cessar a
A ausência do elemento subjetivo significa dolo não justificado agressão. Erros inevitáveis sobre a necessidade ou a moderação dos meios
de realização do injusto e reduz a legítima defesa à existência objetiva de defesa não afetam esse juízo objetivo anterior e, segundo difundida
da situação justificante (a mulher pensa atirar no marido de retorno da orientação político-criminal, devem ser interpretados contra o agressor:
orgia noturna, mas atinge o ladrão armado tentando entrar na casa), existe legítima defesa real – e não meramente putativa – no disparo da
com os seguintes desdobramentos: a) a ação típica dolosa não justifica- vítima contra sequestrador que empunha arma descarregada porque
da representa desvalor de ação atribuível à mulher, mas a existência da o juízo objetivo ex ante de um observador prudente representaria a
situação justificante elimina o desvalor do resultado e, porque o desvalor arma carregada58.
de ação não pode se converter em desvalor de resultado, a hipótese é Mas a defesa necessária não exige proporcionalidade entre meios
definível como tentativa inidônea (na legislação alemã, punível); de defesa e meios de agressão – a proporcionalidade na legítima defesa
b) o desvalor de ação do comportamento típico doloso injustificado não tem por objeto bens jurídicos ou correlações de dano ameaçado e
da mulher não permite ação justificada do agressor porque o com- produzido –, excluída pelo princípio da afirmação do direito: é legítimo
portamento do agressor constitui a situação justificante que exclui o apunhalar agressor para evitar uma surra violenta – até porque o direito
desvalor do resultado na ação daquela55. não precisa ceder ao injusto; não obstante, a ideia de proporcionalidade
entre meios de defesa e meios de agressão não pode ser inteiramente des-
cartada porque desproporcionalidades extremas são incompatíveis com
2.2. Elementos objetivos da ação de defesa o conceito de necessidade da defesa: não é legítimo atirar em meninos

Os elementos objetivos da ação justificada consistem no emprego


moderado de meios de defesa necessários contra o agressor, eventual-
mente examinados do ponto de vista da permissibilidade da defesa.
1. A necessidade dos meios de defesa é definida pelo poder de excluir 56
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84-85; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 42-43, p. 569-
a agressão com o menor dano possível no agressor: defesa protetora, 570.
em vez de agressiva; ameaça de violência, em vez de violência; ferir, 57
Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, II, 2b, p.
343; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 46, p. 572; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht,
1969, § 14, II 2, p. 86.
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 111-112, p. 604-605.
55 58
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 46, p. 572.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

que furtam laranjas no quintal da casa59. BERNSMANN60, fundado 2.3. A permissibilidade da legítima defesa
no dever do Estado de proteger a vida, limita o direito de matar em
legítima defesa às hipóteses de agressões contra a vida, o corpo (inclu-
O conceito de permissibilidade da defesa define limitações ético-
ídas a tortura e as privações de liberdade duradouras) e a sexualidade,
-sociais excludentes ou restritivas do princípio social da afirmação do
com exclusão de todas as outras hipóteses: atirar no autor do furto,
direito que fundamenta – com o princípio individual da proteção de
por exemplo, mesmo que seja o único meio de recuperar a coisa –
bens ou interesses – a legítima defesa. A literatura contemporânea re-
como ainda admite a opinião dominante – não pode ser justificado
conhece hipóteses de defesas necessárias não permitidas por limitações
pela legítima defesa.
ético-sociais relacionadas ao autor da agressão, às relações de garantia
A defesa necessária pode determinar alguns efeitos indesejados, entre agressor e agredido, ao comportamento do agredido e à natureza
cuja justificação depende de sua adequação aos meios necessários: da agressão63.
efeitos indesejados adequados ao meio necessário são justificados (um
1. Agressões de incapazes (crianças, adolescentes, doentes mentais
soco necessário pode quebrar alguns dentes do agressor); efeitos indese-
ou, mesmo, bêbados sem sentido) criam para o agredido um leque
jados inadequados ao meio necessário não são justificados (a morte do
de atitudes alternativas prévias, nas quais se concretizam as limitações
agressor com um tiro de advertência descuidado)61. Efeitos indesejados
ético-sociais da legítima defesa, válidas para os demais casos: primeiro,
de dispositivos de proteção – por exemplo, a lesão de inocentes em
desviar a agressão; segundo, empregar defesas sem dano; terceiro, pe-
armadilhas, cercas eletrificadas etc. – são sempre atribuíveis ao autor e,
dir socorro aos pais, professores, polícia etc.; quarto, assumir o risco
em qualquer hipótese, o emprego de mecanismos de proteção mortais
de pequenos danos; quinto, se nada disso for possível, então – mas
é injustificável62.
somente então – a defesa necessária pode, também, ser permitida64.
2. A moderação no emprego de meios necessários é delimitada pela
2. Agressões entre pessoas ligadas por relações de garantia fundadas
extensão da agressão: enquanto persistir a agressão é moderado o uso
na afetividade, no parentesco ou na convivência (marido e mulher,
dos meios necessários; após cessada a agressão, a continuidade do uso
pais e filhos etc.), subordinam a legítima defesa às mesmas limita-
de meios definidos como necessários torna-se imoderada, configurando
ções ético-sociais mencionadas e, em regra, excluem resultados de
excesso de legítima defesa – que pode admitir exculpação, se determi-
morte ou de lesões graves – exceto no caso de risco de lesões sérias
nado por medo, susto ou perturbação.
(a mulher usa faca para defesa contra agressão do marido com
objeto contundente) ou de maus tratos físicos duradouros ou
continuados (a repetição de agressões e surras do marido contra a
mulher, por exemplo)65.
59
Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84-86; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 47, p.
572-573. No Brasil, comparar MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 148.
60
BERSMANN, Uberlegungen zur tödlichen Notwehr bei nicht lebensbedrohlichen 63
Conforme ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 53-90, p. 575-594.
Angriffen, ZStW, 104 (1992), p. 326. 64
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 57-58, p. 578.
61
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 45, p. 571-572. 65
Assim, GEILEN, Eingeschränkte Notwehr unter Ehegatten?, JR, 1976, p. 314;
62
Assim, também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 51, p. 575. MARXEN, Die “sozialethischen” Grenzen der Notwehr, 1979; ROXIN, Strafrecht,

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

3. Agressão provocada pelo agredido para agredir o agressor constitui rejeição de desproporções extremas69 na justificação. A legítima defesa
agressão dolosa injustificada contra o agressor e exclui a legítima em relação a coisas mostra a extensão do dissenso ideológico na dog-
defesa – mas para respeitável opinião minoritária não exclui a legí- mática penal: para teóricos conservadores, como SCHMIDHÄU-
tima defesa, ou porque não afeta a antijuridicidade da agressão66, ou SER70, nenhuma avaliação materialista de bens exclui a legítima defesa,
porque o direito não pode criar situações sem saída, de renúncia à justificando a morte mesmo para proteger bagatelas; por outro lado,
vida ou integridade corporal, por um lado, e de punição, por outro SCHROEDER71 afirma que a ideia de proporcionalidade na legítima
lado67. Entretanto, agressão provocada pelo agredido sem finalidade defesa exclui a morte ou lesões graves na defesa de bagatelas ou de
de agredir o agressor condiciona a legítima defesa às limitações ético- outras agressões irrelevantes.
-sociais indicadas, mas é preciso distinguir a qualidade da provocação:
se constitui comportamento antijurídico, como ocorre na maioria das
situações de injúria, vias de fato, violação de domicílio, dano etc., a 3. Particularidades
legítima defesa é, em princípio, excluída; se constitui comportamento
situado ainda no terreno jurídico, como ocorre com gozações, troças
ou pilhérias lesivas de valores ético-sociais, mas de antijuridicidade a) Legítima defesa de outrem
menor, indefinida ou inexistente, subsiste a legítima defesa com as
referidas limitações ético-sociais68. A legítima defesa de outrem depende da vontade de defesa do
4. Agressões irrelevantes mediante contravenções, delitos de bagatela, agredido: só é possível legítima defesa de outrem se existe vontade de
crimes de ação privada ou lesões de bens jurídicos sem proteção pe- defesa do agredido. A impossibilidade de defesa contra a vontade do
nal também condicionam a legítima defesa às limitações ético-sociais agredido resulta do princípio da proteção individual porque o agredido
referidas, especialmente em relação à exclusão da morte ou de lesões pode, por exemplo, ser contra o uso de arma de fogo contra autores
graves no agressor, corolário da necessidade de proteção da vida e de de furto, temer represálias na hipótese de intervenção de terceiro
(em caso de sequestro, por exemplo) ou, simplesmente, não desejar
a intromissão de terceiro, como em brigas de casal (com frequência,
para resolver problemas de relacionamento e reencontrar a harmonia
1997, § 15, n. 83-84, p. 591. afetiva)72. Mas a vontade presumida do agredido autoriza a defesa de
66
Assim, BOCKELMANN, Notwehr gegen verschuldete Angriffe, Honig-FS, 1970, p. 19;
HILLENKAMP, Vorsatztat und Opferverhalten, 1981.
outrem, independentemente da verificação negativa posterior, que não
67
Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 32, III, 2a, deslegitima a ação de defesa já realizada, como indica um exemplo de
p. 346-347; também, SCHÖNCKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch,
Kommentar, 1991, § 32, n. 57.
68
Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 26, n. 46, p. 368-369; OTTO, 69
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 79, p. 589.
Rechtsverteidigung und Rechtsmissbrauch im Strafrecht, Wurtemberger-FS, 1977, p. 129; 70
SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/75.
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 69, p. 584. No Brasil, nesse sentido, FRAGOSO,
Lições de Direito Penal, 1985, n. 164, p. 192; comparar, também, MESTIERI, Manual
71
SCHROEDER, Die Notwehr als Indikator politischer Grundanschauungen, Maurach-
de Direito Penal I, 1999, p. 147; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito FS, 1972, p. 139.
Penal brasileiro, 1997, n. 331, p. 584-585. 72
Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 99, p. 599.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

JAKOBS73: atua legitimamente quem salva vítima já inconsciente de como justificação de conduta típica, fundada na preponderância ou
tentativa de homicídio matando o agressor, embora se esclareça depois equivalência do bem jurídico protegido; terceiro, como exculpação de
que a vítima reconhecera seu filho como agressor, e antes suportaria a conduta antijurídica, fundada na inexigibilidade de comportamento
própria morte do que a morte do filho. conforme ao direito, em hipóteses de bens jurídicos equivalentes75.
Atualmente, duas teorias definem a natureza jurídica do es-
b) Extensão da justificação tado de necessidade: a) a teoria diferenciadora disciplina o estado
de necessidade segundo um sistema duplo: como justificação (para
hipóteses de proteção de bem jurídico superior ao sacrificado) e como
A justificação da legítima defesa alcança exclusivamente os bens exculpação (para hipóteses de proteção de bem jurídico equivalente ao
jurídicos do agressor porque o princípio da proteção individual baseia-se sacrificado) – teoria adotada pela legislação penal alemã, por exemplo,
na correlação agressão/defesa, e o princípio da afirmação do direito que define expressamente o estado de necessidade justificante (§ 34,
realiza-se sobre o agressor, e não sobre terceiro estranho à agressão74. CP) e o estado de necessidade exculpante (§ 35, CP); b) a teoria uni­
tária disciplina o estado de necessidade segundo um sistema único:
c) Excesso de legítima defesa ou como justificação, ou como exculpação – independentemente de
superioridade ou equivalência do bem jurídico protegido em relação
ao bem jurídico sacrificado – teoria adotada pela lei penal brasileira,
O excesso intensivo de legítima defesa (uso de meio desnecessá- que define o estado de necessidade exclusivamente como justificação,
rio) e o excesso extensivo de legítima defesa (uso imoderado de meio no art. 23, I, CP76.
necessário), bem como a legítima defesa putativa, não configuram
situações de justificação, mas hipóteses de exculpação legal ou de
erro de tipo permissivo, estudadas na categoria da culpabilidade (ver
Culpabilidade e exculpação, adiante).
1. Situação justificante

A situação justificante do estado de necessidade caracteriza-se


B) Estado de necessidade pela existência de perigo para o bem jurídico – definido como atual,
involuntário e inevitável sem lesão de outro bem jurídico –, assim
Historicamente, o estado de necessidade tem sido pensado a conceituada na lei penal:
partir de três diferentes pontos de vista: primeiro, como espaço livre do
direito, fundado na impossibilidade do ordenamento jurídico discipli-
Ver HAFT, Strafrecht, 1994, p. 88.
75
nar conflitos determinados pelo instinto de sobrevivência; segundo,
Nesse sentido, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 167, p. 195-196;
76

HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 81; MESTIERI, Manual
de Direito Penal I, 1999, p. 149; TAVARES, Direito Penal da negligência, 2003, p.
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 12/63, p. 408.
73
363; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 337,
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 15, n. 106-109, p. 602-603.
74
p. 591.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem rídicas para proteção justificada pela legítima defesa pode ser ineficaz
pratica o fato para salvar de perigo atual, que não ou implicar lesão maior na área dos bens jurídicos sacrificados) etc.80.
provocou por sua vontade, nem podia de outro modo c) O perigo deve ser involuntário, ou seja, não pode ser provo-
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas
cado intencionalmente pelo autor para proteção pessoal às custas da
circunstâncias, não era razoável exigir-se.
vítima, mas admite produção imprudente porque a limitação legal
a) O conceito de perigo é definido pela probabilidade ou possibi- restringe-se à vontade própria81 e a antiga sentença quem cria perigo,
lidade de lesão do bem jurídico ameaçado77, segundo um juízo objetivo morra por isso82 está ultrapassada: o barqueiro não pode impedir salva-
ex ante de um observador inteligente, combinado, eventualmente, com ção de suicida arrependido em seu barco, sob argumento de culpa na
o juízo do especialista na área78, como propõe HIRSCH: o observador produção da situação de necessidade; o motorista causador do acidente
inteligente é representado por cidadão do círculo social do autor, com pode, justificadamente, fugir do local do fato para evitar perigo real
os conhecimentos e informações especiais deste; o especialista sobre de agressão das vítimas83.
perigos, por exemplo, de fogo é o bombeiro, de construções o en-
d) Enfim, o perigo deve ser inevitável de outro modo, ou seja,
genheiro, de doenças o médico etc. O perigo pode ser determinado
não pode ser evitado conforme ao direito, ou não pode ser superado
por acontecimentos naturais, como naufrágios, incêndios, inundações,
sem lesão do bem jurídico sacrificado, ou, ainda melhor, que a lesão
por fenômenos sociais como distúrbios civis, acidentes e, também, por
do bem jurídico é necessária para evitar o perigo84. O conceito de
outros comportamentos humanos, desde que não constituam a agressão
inevitabilidade de outro modo abrange as situações de estado de ne-
injusta da legítima defesa79.
cessidade defensivo e agressivo: no estado de necessidade defensivo,
b) A atualidade do perigo no estado de necessidade não se con- caracterizado pelo conflito entre o sujeito ameaçado pelo perigo e o
funde com a atualidade da agressão na legítima defesa: a atualidade sujeito criador do perigo, os interesses ou bens jurídicos do ameaçado
do perigo justifica a proteção imediata – mas não exige a existência de prevalecem sobre interesses ou bens jurídicos do criador do perigo
dano imediato –, porque o adiamento da proteção ou seria impossível (A mata/danifica o cachorro de B para evitar mordida); no estado de
ou determinaria maior risco ou dano, como no aborto necessário, necessidade agressivo, caracterizado pelo conflito entre bens jurídicos
por exemplo, realizado no terceiro mês de gestação para evitar dano do sujeito ameaçado pelo perigo e bens jurídicos de sujeitos estranhos
na época do parto; igualmente, pode ocorrer em perigos contínuos ou ao perigo, prevalece o interesse de proteção do perigo contra o interesse
duráveis, atualizáveis em dano a qualquer momento – segundo aquele
juízo objetivo ex ante –, como edifícios em ruína, doentes mentais 80
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 17, p. 617.
perigosos para a comunidade (neste caso, aguardar agressões antiju- 81
CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 53; nesse sentido, também,
FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 168, p. 196; MESTIERI, Manual de
Direito Penal, 1999, p. 149; com restrições, HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos
77
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 13, p. 615; também, JAKOBS, Strafrecht, culposos, 1988, p. 83-84; também, TAVARES, Direito Penal da negligência, 1985, p. 163.
1993, 13/12, p. 415; SCHÖNCKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, 82
BINDING, Handbuch des Strafrecht I, 1885, p. 775.
Kommentar, 1991, § 34, n. 15. 83
Assim, KUPER, Der “verschuldete” rechtfertigende Notstand, 1983, p. 32 s.
78
HIRSCH, Gefahr und Gefährlichkeit, Arthur Kaufmann-FS, 1993, p. 553. 84
LENCKNER, Das Merkmal der “Nicht-anders-Abwendbarkeit” der Gefahr in den §§
79
Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 13, p. 615 e § 19, n. 16, p. 833. 34, 35 StGB, Lackner-FS, 1987, p. 95; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 18, p. 834.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

do titular de bens jurídicos estranhos ao perigo, cuja destruição/dano 2.2. Elementos objetivos e normativos da ação necessária
é necessária para evitar o perigo (A destrói o valioso guarda-chuva de
B, para evitar a mordida do cachorro de C)85.
A ação de proteção do bem jurídico deve ser (a) necessária para
afastar ou excluir o perigo – como se deduz da exigência de constituir
o único modo de evitar o perigo – e (b) apropriada para proteger o bem
2. Ação justificada jurídico com a menor lesão em bens jurídicos alheios: em outras pala-
vras, o meio utilizado – ou o fato praticado – deve ser apropriado para
A ação de proteção necessária também constitui a mesma unidade evitar o perigo sem agressões inúteis a bens jurídicos alheios, devendo
subjetiva e objetiva estudada como ação, depois como ação típica e o autor (ao contrário da legítima defesa) considerar as alternativas pos-
agora como ação típica justificada, igualmente compreendendo ele- síveis para evitar o perigo, inclusive a ajuda de terceiros87. Em síntese,
mentos subjetivos, objetivos e normativos. a evitação do perigo exige uma ação necessária determinada, que deve
ser apropriada para proteger o direito ameaçado, sem lesões inúteis em
bens jurídicos alheios, conforme ponderação de todas as circunstâncias
2.1. Elementos subjetivos da ação necessária concretas ligadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo
e à gravidade da pena88.
Os elementos subjetivos do estado de necessidade têm por objeto 2.2.1. O critério do bem jurídico. A preponderância de certos valores
a situação justificante (perigo atual, involuntário e inevitável de outro em relação a outros pode ser decidida pelo critério do bem jurídico:
modo) e consistem no conhecimento da situação justificante (teoria a) a preponderância do perigo concreto em relação ao perigo abstrato ou
dominante) ou no conhecimento da situação justificante e vontade de em relação a outro perigo concreto: transportar ferido grave para hos-
proteção do bem jurídico (teoria minoritária) – em qualquer hipótese, pital em velocidade excessiva (art. 311, CTB) ou sob a influência do
admitem outros componentes psíquicos e emocionais, como ambição, álcool, ou de outra substância psicoativa que determina dependência
pagamento, busca da glória, etc.86. Assim como na legítima defesa, o (art. 306, CTB); b) a preponderância de valores da personalidade em
conhecimento (ou consciência) da situação justificante, como limiar relação a valores materiais: tomar chave de motorista para evitar que
subjetivo mínimo do estado de necessidade, pode ser suficiente, mas dirija embriagado; c) a preponderância dos bens jurídicos do corpo e
a vontade de proteção, informada pelo conhecimento e condicionada da vida, perante todos os demais: quebra de sigilo médico para evitar
pelas emoções do autor, é a energia psíquica que mobiliza a ação de infecção por HIV em relações sexuais ou uso da mesma seringa entre
proteção necessária. dependentes de droga. O critério do bem jurídico compreende si-
tuações controvertidas, como a extração forçada de sangue do único
WESSELS/BEULKE, Strafrecht, C.F. Muller, 2000, n. 293 e 295, p. 95.
85
portador do tipo sanguíneo adequado para salvar uma vida humana:
Ver, entre outros, KUHL, Strafrecht, 1997, § 8, n. 183-184, p. 303; também, ROXIN,
86

Strafrecht, 1997, § 16, n. 91, p. 654. No Brasil, pela necessidade de consciência e


vontade de proteção, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 169, p. 197;
MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 149; ZAFFARONI/PIERANGELI, Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 19, p. 617-8 e § 19, n. 21, p. 835.
87

Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 342, p. 597. Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 7, p. 611-612 e n. 22, p. 619-620.
88

242 243
Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

para um setor da doutrina, constitui injustificável lesão da dignidade existem diferenças de valor ou de quantidade:
humana; para outro setor, a salvação da vida humana prepondera sobre a) não existe diferença de valor entre vidas diferentes que au-
a lesão da dignidade humana, especialmente em agressões corporais torize desligar aparelho de respiração/circulação artificial de paciente
pequenas e não perigosas89. com menores chances de sobrevivência, para ligá-lo em outro com
2.2.2. O critério da pena. Em certas situações, o critério da pena90 – maiores chances; ou que permita matar paciente de pequeno tempo
determinante na teoria da ponderação de bens – pode ser importante, de sobrevivência para assegurar vida maior de outro com órgãos do
como na extração não consentida de órgãos de cadáver para salvar vida cadáver daquele; ou que justifique sacrificar vidas de valor inferior (as
humana ou na violação de domicílio para evitar estupro etc. chamadas vidas sem valor vital) em proveito de vida de maior valor:
2.2.3. O critério das relações autor/vítima. Situações de estado de ne- sacrificar doente mental em favor do prêmio Nobel, ancião em favor
cessidade defensivo podem ser engendradas pelas relações autor/vítima: do jovem, criminoso em favor do cidadão socialmente útil93;
a) hipóteses de perigo criado por não ação da vítima: lesão corporal leve b) não existe diferença de quantidade que permita, no conhe-
em vítima sob ataque epiléptico para evitar destruição de vaso valioso cido exemplo de WELZEL, desviar um trem desgovernado da linha
(mas não lesão corporal grave, como fratura ou comoção cerebral); principal, evitando a morte de muitos, para uma linha secundária,
lesão grave ou morte para proteger a vida ou saúde, como a morte determinando a morte de poucos94; ou admitir a morte de uma pessoa,
da criança no ventre materno para salvar a vida da mãe – porque se como exigência de quadrilha para evitar a morte de vários reféns95.
ninguém é obrigado a suportar lesões sérias, e se não é possível desviar Situações de perigo comum extraídas da literatura podem ajudar a
ou pedir ajuda, abre-se aquele espaço livre do direito que admite ponde- esclarecer a controvérsia: a) dois alpinistas ficam pendurados em corda
ração de vida contra vida91; b) hipóteses de legítima defesa preventiva: capaz de sustentar apenas um deles – e o alpinista da posição superior
proprietário de bar coloca narcótico na bebida de fregueses que ouvira corta a corda abaixo dele, precipitando o companheiro no abismo96;
combinarem assalto ao estabelecimento – porque existe perigo atual b) dois homens em balão defeituoso capaz de sustentar apenas um
(mas não existe agressão iminente para permitir legítima defesa), cuja deles – e um lança o outro no espaço97; c) barco com crianças em
proteção posterior ou seria impossível, ou implicaria maior risco de corredeira, sob perigo de afundar por excesso de peso – e o barqueiro
morte ou lesão grave dos agressores92. joga algumas crianças na água para salvar a vida das demais98; d) após
2.2.4. O conflito de vida contra vida. A questão crucial do estado 20 dias de fome e sede em jangada com pedaços de tronco do barco
de necessidade refere-se à ponderação de vida contra vida, que parece
não caber em fórmulas comuns porque, entre vidas em conflito, não 93
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 29, p. 622-623.
94
WELZEL, Zum Notstandsproblem, ZStW, 63 (1951), p. 51.
89
Assim, BAUMANN/MITSCH, Strafrecht, 1995, § 17, n. 78; também, JAKOBS, 95
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 30, p. 623.
Strafrecht, 1993, 13/25, p. 422-423; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 43-45, 96
MERKEL, Die Kollision rechtmässiger Interessen und die Schadenersatzpflicht bei
p. 629-630. rechtmässigen Handlungen, 1895.
90
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 23, p. 620. 97
NEUBECKER, Zwang und Notstand in rechtsvergleichender Darstellung, Bd. 1, 1910.
91
Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 68-70, p. 642-643. 98
KLEFISCH, Die nationalsozialistische Euthanasie im Blickfeld der Rechtsprechung und
92
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 73-6, p. 644-645. Rechtslehre, MDR, 1950, p. 261.

244 245
Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

naufragado, o capitão e seu imediato sacrificam a vida do já enfra- chance de sobrevivência, previamente escolhidas pelo destino, como no
quecido grumete para sobreviver com seu sangue (o famoso caso do caso da corda dos alpinistas105; c) enfim, a irracionalidade de certas
iate inglês Mignonette)99. situações existenciais permite qualificar todo comportamento, simul-
2.2.4.1. A teoria diferenciadora, que distingue entre estado de neces- taneamente, como certo e errado, nos quais a decisão cabe à consciência
sidade justificante e estado de necessidade exculpante, admite apenas de cada um, como propõe MANGAKIS106.
exculpação nas situações descritas, afirmando ser injustificável qualquer 2.2.4.2.  A teoria unitária da lei penal brasileira, que define estado
ponderação entre vidas humanas, com os seguintes argumentos: a) de necessidade exclusivamente como justificação, admite todos os
uma ética racional do valor exclui cálculos avaliativos ou finalidades argumentos da posição minoritária da teoria diferenciadora, com
racionais em relação à vida humana, segundo WELZEL100; b) valores os seguintes acréscimos: a) estudos recentes admitem áreas livres do
jurídicos não são valores utilitários, mas fusão de convicções morais direito em conflitos relacionados com situações de perigo comum ou
fundamentais da cultura, conforme GALLAS101; c) matar quem mor- de colisão de deveres – portanto, não podem ser injustas ações que
rerá de qualquer modo representa, do ponto de vista prático, uma estariam fora da disciplina jurídica; b) admitir, na legislação brasileira,
arbitrária redução da vida humana, segundo KUPER102, e, do ponto a hipótese supralegal de estado de necessidade exculpante, nos moldes
de vista teórico, a morte matematicamente certa seria mera construção da teoria diferenciadora da lei penal alemã, significa mutilar a hipótese
do pensamento porque ninguém pode conhecer, com certeza, aconte- legal do estado de necessidade justificante da teoria unitária, reduzindo
cimentos futuros, conforme ROXIN103. o alcance de justificação legal em favor de hipotética exculpação supra-
Não obstante, respeitável opinião minoritária da própria teoria legal, em prejuízo do acusado107.
diferenciadora considera justificada a ação de reduzir um mal ine- 2.2.5. Cláusula de razoabilidade. A ação de proteção necessária de bem
vitável, com argumentos poderosos: a) primeiro, o direito não pode jurídico em perigo depende de condição definível como cláusula de ra­
proibir salvar uma vida humana, se impossível salvar duas, como dizia zoabilidade: a não razoável exigência – ou a razoável exigibilidade – de
WEBER104; b) segundo, o princípio da “usurpação de chance”, desen- sacrifício do bem jurídico protegido, nas circunstâncias (art. 24, CP).
volvido por OTTO, para casos semelhantes, proíbe aniquilar chances Art. 24, § 2º. Embora seja razoável exigir-se o sacri-
de sobrevivência de vítimas escolhidas em grupo maior – o barco com fício do di­­­­rei­­­to ameaçado, a pena poderá ser reduzida
crianças em corredeira, por exemplo –, mas não se aplica a vítimas sem de um a dois terços.

99
PRÖCHEL, Die Fälle des Notstands nach anglo-amerikanischem Strafrecht, 1975, p. 61.
105
OTTO, Pflichtenkollision und Rechtswidrigkeitsurteil, 1978, p. 29.
100
WELZEL, Monatsschrift fur Deutsches Recht, 1949, p. 375.
106
MANGAKIS, Die Pflichtenkollision als Grenzsituation des Strafrechts, ZStW, 84 (1972),
p. 475.
101
GALLAS, Pflichtenkollision als Schuldausschliessungsgrund, Mezger-FS, 1954, p. 327.
107
No sentido do texto, COSTA JÚNIOR, Comentários ao código penal I, 1989, p. 205;
102
KUPER, Grund- und Grenzfragen der rechtfertigenden Pflichtenkollision im Strafrecht,
também, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 149-150 e 187; em posição
1979, p. 57.
contrária, reduzindo a justificação legal à hipótese de simples exculpação supralegal,
103
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 34-35, p. 625. na linha da teoria diferenciadora da lei penal alemã, FRAGOSO, Lições de Direito
104
WEBER, Das Notstandsproblem und seine Lösungen in den deutschen Strafgesetzentwurfen Penal, 1985, n. 168, p. 196; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal
von 1919 und 1925, 1925, p. 30. brasileiro, 1997, n. 340, p. 594 e n. 382-383, p. 654-657.

246 247
Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

O conteúdo da cláusula de razoabilidade da lei penal brasileira o dever jurídico de suportar perigos somente evitáveis com danos
não se confunde com o conteúdo da cláusula de apropriação da legis- desproporcionais a terceiros.
lação alemã, mas é equivalente: a não razoável exigência refere-se ao Art. 24, § 1º. Não pode alegar estado de necessidade
sacrifício do bem jurídico protegido e a apropriação do meio refere-se à quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.
capacidade da ação para excluir o perigo, mas os dois casos representam
critérios de valoração para definir a juridicidade da ação porque exis- 3.1. Dever jurídico de proteção à comunidade. O dever jurídico
tem ações necessárias para proteção do bem jurídico que são injustas, especial de proteção à comunidade incumbe a certas categorias de
como a extração forçada de rim para transplante, por exemplo, em funcionários públicos que têm o dever legal de enfrentar o perigo,
que seria razoável exigir o sacrifício do bem jurídico ameaçado ou em como bombeiros e policiais, mas também se estende aos magis-
que o fato praticado constitui meio inapropriado para excluir o perigo. trados, em geral, que não estariam justificados a decidir deste ou
A contrapartida da cláusula da não razoável exigência de sacrifício do daquele modo lesivo ao dever, sob alegação de ameaça de morte,
bem jurídico ameaçado, para a justificação do estado de necessidade, por exemplo. Atualmente, esse dever legal de proteção à comu-
é a razoável exigência de sacrifício do bem jurídico ameaçado, para a nidade inclui algumas profissões liberais, como a medicina: um
simples redução de pena. médico não pode deixar de atender um doente sob alegação de
perigo de contágio pessoal111. Os deveres de proteção à comunida-
A crítica de que tais cláusulas seriam ociosas108 ou de que reali- de estão limitados aos perigos específicos da função ou profissão:
zariam mera função de controle109 não parece prejudicar sua utilidade, por exemplo, o policial em relação aos perigos da perseguição do
embora alguns critérios alternativos ofereçam maior precisão, como autor de um crime, o médico em relação ao perigo de contágio de
a exigência de não lesionar a dignidade humana, por exemplo, um doenças etc. Não obstante, esse dever legal pode exigir estender o
valor absoluto vinculante de todos os critérios110. perigo à família do obrigado: numa catástrofe, o policial não pode
deixar de proteger a comunidade para salvar a mulher ou filhos,
por exemplo112.
3. Posições especiais de dever
3.2. Dever jurídico fundado na produção do perigo. O dever ju-
rídico fundado na produção do perigo é objeto de controvérsia sobre
As sociedades contemporâneas definem algumas posições espe-
os componentes objetivos e subjetivos do comportamento113: a pro-
ciais de dever que obrigam determinados funcionários públicos ou
dução do perigo deve ser objetivamente contrária ao dever (segundo a
cidadãos comuns a assumir ou suportar o perigo: a) o dever jurídico
opinião dominante)114 ou deve ser objetiva e subjetivamente contrária
de proteção da comunidade; b) o dever jurídico fundado na produção
do perigo; c) o dever jurídico resultante da posição de garante; d)
111
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 56-57, p. 636-637, e § 19, n. 40, p. 843.
No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 150.
108
Assim, SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, 112
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 41-43, p. 843-844, e n. 52, p. 848.
§ 34, n. 45. 113
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 45-46, p. 845.
109
Ver ESER/BURKHARDT, Strafrecht I, 1992, n. 39-46. 114
Assim, MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 34, n. 5; também, WESSELS/
110
Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 83-86, p. 650-651. BEULKE, Strafrecht, 1998, p. 126, n. 441.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

ao dever (segundo a minoria)115. Segmento importante da literatura nas montanhas em relação ao grupo ou do professor em relação aos
critica ambas posições: o dever de suportar o perigo dependeria da alunos exigem proteger membro do grupo ou da turma, suportando,
previsibilidade da situação de necessidade resultante da produção do pessoalmente, o perigo119.
perigo – afinal, a simples autoexposição a perigo não pode ser proibida116: 3.4. Dever jurídico de suportar perigos somente evitáveis com
o companheiro convidado pelo autor para passeio de barco em mar danos desproporcionais a terceiros. O dever legal de evitar danos
agitado morre no naufrágio do barco porque o autor se apodera da desproporcionais a terceiros para excluir perigos próprios pode ser
única boia do barco para se salvar. assim equacionado: a) o autor não pode produzir a morte ou dano
Problemas podem ocorrer nas situações em que a determinação grave em inocente para evitar dano corporal reparável – contudo,
e a exposição ao perigo relacionam-se a pessoas diferentes (o marido parece justificada a morte de terceiro para evitar dano corporal grave
coloca a família em perigo e, para proteger a família, produz dano em ou a morte de vários para evitar a própria morte; b) situações de
terceiro) ou em que a pessoa protegida determina o perigo (a mulher perigo para o corpo, como ameaça de quebrar um braço ou sofrer
do autor produz o perigo, e este a protege com dano a terceiro): nes- uma contusão séria, admitem evitação mediante dano equivalente,
ses casos, a literatura reconhece a inexigibilidade do autor suportar mas excluem matar ou aleijar; c) situações de perigo consistentes em
o perigo – logo, o dever resultante da produção do perigo difere dos pequena probabilidade de perder a vida podem justificar lesão, mas
deveres legais especiais, que exigem suportar o perigo117. não a morte de terceiros120.
3.3. Deveres jurídicos da posição de garante. Os deveres jurídicos 3.5. Limites do dever jurídico ligado às posições especiais de dever.
fundados na posição de garante relacionam-se às comunidades de O dever jurídico ligado às posições especiais de dever possui limites,
vida e de perigo: a) em comunidades de vida, a posição de garante podendo ser excluído ou reduzido por situações de conflito:
do pai/marido, em catástrofes como incêndio, naufrágio ou em a) primeiro, o dever legal de enfrentar o perigo não é absoluto, ces-
acidentes de trânsito, por exemplo, exige suportar pessoalmente sando em face de certeza ou de probabilidade de morte ou de lesão
o perigo para proteger mulher e filhos – o pai/marido não pode grave porque o direito não pode exigir renúncia à vida ou aceitação
deixar de proteger membro da família sob alegação de perigo de graves lesões à saúde ou ao corpo121;
para a saúde ou integridade corporal próprias118, exceto hipóteses
de especial gravidade do perigo; b) em comunidades de perigo, os b) segundo, conflitos de deveres de ação podem constituir, conforme
deveres de cuidado ou vigilância do guia de expedição na selva ou a teoria dominante, hipóteses de justificação122: o pai só pode salvar

115
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 44, III, 2a, p. 485-486; 119
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 54, p. 849.
SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 35, n. 20. 120
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 54-55, p. 849-850.
116
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 45-46, p. 845-846; BAUMANN/WEBER, 121
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 56, p. 636-637. No Brasil, ver MESTIERI, Manual
Strafrecht, 1995, § 23, n. 27; HRUSCHKA, Strafrecht nach logisch-analytischer de Direito Penal I, 1999, p. 150-151.
Methode, 1988, 286. 122
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 15/6-15, p. 445-449; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16,
117
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 22, n. 50-51, p. 847-848. n. 101-105, p. 658-660; SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch,
118
SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 34, Kommentar, 1991, § 32, n. 7; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, § 16, p. 234-
n. 34. 235, ns. 735-737.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

um dos dois filhos em perigo simultâneo de afogamento, com pere- diferença qualitativa (bom/mau, novo/velho, inteligente/bobo)
cimento do outro; o médico só pode atender um de dois pacientes ou quantitativa (salvar um na direção sul, salvar dois na direção
em simultâneo perigo de vida, com morte do outro. A opinião de norte) entre vidas humanas.
que constituiriam meros casos de exculpação123, sob alegação de que A lesão do dever jurídico de suportar o perigo determina re-
escolhas pessoais representariam arbitrário abandono de vidas huma- dução da pena, em todas as hipóteses mencionadas, embora alguns
nas, parece inconsistente: a antijuridicidade supõe a possibilidade de autores excluam hipóteses de lesão de deveres jurídicos especiais, por
comportamento jurídico alternativo e, afinal, existe diferença entre razões de prevenção geral128 ou por ser incompatível com o princípio
o esforço para salvar um e nenhum esforço para salvar nenhum124; da culpabilidade129.
c) terceiro, alguns critérios de justificação, como a relação entre os
deveres, o valor do bem jurídico, a gravidade do perigo etc. podem
ser decisivos: 1) a relação entre os deveres: se os deveres são desi- C) Estrito cumprimento de dever legal
guais, prevalece o maior; se iguais, qualquer deles; 2) o valor do
bem jurídico: em incêndio de museu, a salvação da criança, não O estrito cumprimento de dever legal constitui justificação
do quadro valioso; 3) a gravidade do perigo: proteger a vítima de exclusiva do funcionário público: compreende hipóteses de inter-
lesão grave, não a vítima de lesão leve; 4) relações entre dever es- venção do funcionário público na esfera privada para assegurar
pecial de garantia e dever geral de solidariedade: o pai deve salvar o cumprimento da lei ou de ordens superiores da administração
o filho, e não a criança alheia, na hipótese de perigo simultâneo pública, que podem determinar a realização justificada de tipos
de afogamento, pela precedência do dever de garantia; o pai deve legais, como coação, privação de liberdade, violação de domicílio,
salvar a criança alheia ferida gravemente, e não o filho ferido leve- lesão corporal etc.
mente, pela precedência do valor do bem jurídico ameaçado em
relação ao dever de garantia125; 5) hipóteses de culpa na produção
da situação de necessidade, supondo igualdade do perigo, são 1. Situação justificante
polêmicas: o médico pode atender primeiro o culpado e, depois, a
vítima, ou vice-versa, indiferentemente126; o médico deve atender A situação justificante do estrito cumprimento de dever legal é
primeiro a vítima, depois o culpado127. Em qualquer caso, não há constituída pela existência de lei em sentido amplo (lei, decreto, re-
gulamento etc.) ou de ordem de superior hierárquico, determinantes de
dever vinculante da conduta do funcionário público ou assemelhado130.
123
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 33, V, p. 365-368; HAFT,
Strafrecht, 1994, p. 101.
124
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 105-106, p. 660. 128
É a opinião de ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 56, p. 850.
125
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 16, n. 109-111, p. 661-662. 129
Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 44, IV, 2,
126
SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 32, p. 488.
n. 74. 130
Comparar CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 55; também,
127
BLEI, Strafrecht, 1983, § 88, I, 4a. MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, 151-152.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

O estrito cumprimento de dever determinado por lei exclui lesão desenvolveu o conceito de uma antijuridicidade especial para o funcio-
de direitos humanos fundamentais definidos em tratados e convenções nário público, cujos limites ampliados poderiam justificar ações que,
internacionais – por exemplo, homicídios dolosos para impedir fuga dentro dos limites comuns do conceito, seriam antijurídicas132. Essa
de presos de estabelecimento penal. antijuridicidade especial do funcionário público teria alguns pressu-
O estrito cumprimento de dever fundado em ordem superior postos objetivos: a) competência material e territorial para a ação, com
pressupõe autoridade competente para emitir a ordem, objeto lícito e exclusão de ações fora das atribuições ou fora do território respectivo;
forma adequada da ordem emitida, segundo os requisitos de validade b) forma prescrita em lei; c) observância dos princípios da necessidade
dos atos administrativos. Não obstante – e como é óbvio –, admite e da proporcionalidade133 – aliás, princípios de difícil compreensão
um restrito direito de crítica do subordinado, cujo exercício é limitado pelo funcionário público. A juridicidade da ação não seria excluída por
exclusivamente à legalidade da ordem, excluindo razões ou argumen- erros normais sobre tais pressupostos objetivos, ocorridos em exame da
tos relacionados a critérios de oportunidade, de conveniência ou de situação conforme ao dever (por exemplo, o oficial de justiça entra na
justiça da ordem. casa errada para cumprir o mandado) – portanto, somente erros graves
indicadores de culpa grosseira seriam capazes de deslegitimar a ação134.
Contudo, a teoria de uma antijuridicidade especial parece criti-
2. Ação justificada cável: primeiro, o conceito de antijuridicidade especial está em contra-
dição com a dogmática penal, que não trabalha com dois conceitos
A ação justificada pressupõe atuação do funcionário público de antijuridicidade – um normal para o comum dos mortais, outro
nos estritos limites do dever criado por lei ou por ordem de superior especial para o funcionário público; segundo, intervenções oficiais sem
hierárquico. Nesse sentido, rupturas dos limites do dever na aplicação observância dos pressupostos legais não geram dever de tolerância;
da lei ou no cumprimento de ordens superiores excluem a justificação terceiro, a boa-fé do funcionário público não exclui a antijuridicidade
da conduta. da ação – assim, não faz o injusto virar justo135; quarto, o sentimento
de imunidade do funcionário público ampliaria práticas ilegais ou
arbitrárias do poder136; quinto, o Estado Democrático de Direito
2.1. Ruptura dos limites do dever na aplicação da lei
garante respeito às liberdades do cidadão, exige estrita observância
da legalidade pelo funcionário público, e não atribui ao funcionário
A ruptura dos limites do dever na aplicação da lei pelo funcio-
nário público, no emprego de coação ou na privação de liberdade,
por exemplo, é frequente e inevitável do ponto de vista estatístico, e
pode determinar duas consequências imediatas: primeiro, excluir a 132
Assim, LENZ, Die Diensthandlung und ihre Rechtmässigkeit in § 113 StGB, Diss.
justificação da conduta; segundo, permitir a legítima defesa do cida- Bonn, 1987.
133
Nesse sentido, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 113.
dão agredido131. Para resolver esses problemas, a dogmática moderna 134
LACKNER, Strafgesetezbuch mit Erläuterungen, 1995, 21a edição, § 113, n. 12.
135
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 9, p. 671.
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 1-2, p. 667-668.
131 136
Ver THIELE, Zum Rechtmässigkeitsbegriff bei § 113, Abs. 3 StGB, JR, 1975, p. 353.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

público o privilégio de errar137. a ordem é incompatível com a exposição do subordinado à legítima


Em conclusão, pode-se dizer o seguinte: o erro inevitável do defesa140; b) constitui exculpação porque o injusto não se transforma em
funcionário público, ocorrido em exame da situação conforme ao justo e o que o superior não pode, o inferior também não pode141 – so-
dever, ou seja, com o emprego do cuidado devido, exclui o dolo e lução adotada pela lei penal brasileira (art. 22, CP), que pune somente
a imprudência – portanto, exclui o desvalor da ação, impedindo o o autor da ordem (ver Culpabilidade e exculpação, adiante).
exercício da legítima defesa; mas o erro evitável do funcionário público
não exclui o desvalor da ação e autoriza o exercício da legítima defesa,
embora com as necessárias limitações ético-sociais138. 3. Elementos subjetivos do estrito cumprimento de
dever legal

2.2. Cumprimento de ordens antijurídicas Os elementos subjetivos do estrito cumprimento de dever legal
consistem no conhecimento da situação justificante (a existência de
O cumprimento de ordens superiores antijurídicas é resolvido dever legal) ou no conhecimento da situação justificante e vontade
conforme as alternativas de evidência/ou de não evidência da natureza de cumprir o dever legal, como prender, coagir etc. – em qualquer
típica da ordem: a) ordens superiores ilegais de evidente natureza hipótese, com outros componentes psíquicos e emocionais, como
típica não vinculam a conduta e não devem ser cumpridas pelo su- medo, perturbação etc.
bordinado, que responde pelo injusto praticado, se cumpre a ordem:
a autoridade policial ordena ao subordinado espancar suspeito para
obter confissão; o superior hierárquico determina ao subordinado D) Exercício regular de direito
embriagado dirigir veículo automotor etc.; b) ordens superiores O exercício regular de direito justifica ações do cidadão comum
ilegais de natureza típica oculta ou duvidosa vinculam a conduta e definidas como direito e exercidas de modo regular pelo titular.
são obrigatórias para o subordinado, que não responde pelo injusto
praticado, se cumpre a ordem: prisões processualmente admissíveis;
disparo sobre sequestradores para libertar reféns; prisão de inocente
1. Situações justificantes
fundado em forte suspeita etc.139.
O cumprimento de ordens superiores ilegais obrigatórias para o A dogmática moderna reconhece dois grupos de hipóteses como
subordinado (natureza típica oculta ou duvidosa) é objeto de controvérsia: situações justificantes do exercício regular de direito: a) a atuação pro
a) constitui justificação, sob o argumento de que a obrigação de cumprir magistratu; b) o direito de castigo.

137
Assim pensava JELLINEK, Verwaltungsrecht, 1931, p. 373. 140
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 16/14, p. 458-459; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch
138
Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 13-14, p. 673-674. des Strafrechts, 1996, § 35, II 3, p. 394-395.
139
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 113. 141
MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 29, n. 7, p. 408.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

1.1. Atuação pro magistratu. A atuação pro magistratu compreende educativos exclui o próprio tipo146, mas para a opinião dominante
situações em que o cidadão é autorizado a agir porque a autoridade constitui justificação147, embora o castigo corporal como método de
não pode atuar em tempo, como as hipóteses de prisão em flagrante educação familiar não mereça aplausos.
e de autoajuda.
A prisão em flagrante realizada pelo cidadão comum requer deter-
minados requisitos, sem os quais não pode ser efetuada: a) certeza142 ou 2. Ação justificada
forte suspeita143 de autoria; b) fato típico e antijurídico – exclui ações
preparatórias e justificadas; c) suspeita de fuga – no caso concreto, A ação justificada na prisão em flagrante e na autoajuda limita-se
um juízo de probabilidade problemático, mas normal em hipóteses às condutas típicas indispensáveis para conduzir o preso à autoridade
de crimes graves e clandestinos –, ou impossibilidade de identificação, ou para recuperar a posse da coisa furtada, como lesão corporal leve,
como falta ou recusa de apresentação de documento, exceto hipóteses privação da liberdade etc., excluindo lesão corporal grave e empre-
de conhecimento da identidade pessoal144. go de armas148. A ação justificada no direito de castigo compreende,
A autoajuda parece melhor definível como hipótese de exercício igualmente, ações típicas como lesões leves, privação da liberdade,
regular de direito, e compreende ações diretas sobre pessoas (prender, coações etc., excluindo sangramentos, fraturas ou violências indig-
eliminar a resistência) ou coisas (tomar, destruir), fora dos casos de nificantes (dar pontapés, deixar nu, chicotear, acorrentar etc.), que
legítima defesa ou de prisão em flagrante: após o furto, o proprietá- constituem, em face da intangibilidade do direito à dignidade e à
rio encontra o autor de posse da coisa furtada, prende-o e recupera a integridade corporal, abuso não justificado do direito de castigo149.
posse da coisa145.
1.2. Direito de castigo. O direito de castigo tem por objeto a edu-
3. Elementos subjetivos no exercício regular de direito
cação de crianças no âmbito da família, compete exclusivamente aos
titulares do poder familiar em relação aos filhos, mas não se estende aos
filhos alheios – embora possa ser exercido, dentro de limites estritos, O elemento subjetivo do exercício regular de direito consiste no
por professores e educadores no âmbito da escola, com o consenti- conhecimento da situação justificante (prisão em flagrante, autoajuda
mento expresso ou presumido dos responsáveis. e direito de castigo) ou no conhecimento da situação justificante e
vontade de prender, de recuperar a coisa ou de corrigir – em qualquer
Alguns autores consideram que o direito de castigo com fins

146
EB. SCHMIDT, Bemerkungen zur Rechtsprechung des Bundesgerichtshofs zur Frage
des Zuchtigungsrechtes der Lehrer, 1959, p. 519; também, KIENAPFEL, Körperliche
142
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 16/16, p. 459; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Zuchtigung und soziale Adäquanz im Strafrecht, 1961, p. 101.
Strafrechts, 1996, § 35, IV, 2, p. 398. 147
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 34, p. 684.
143
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 24, p. 679. 148
Ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 152.
144
Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 27, p. 681. 149
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 115; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 35,
145
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 17, n. 29, p. 682. p. 684-685.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

hipótese, com outros componentes psíquicos e emocionais, como Outros argumentos favoráveis à concepção do consentimento
raiva, desgosto etc. real como excludente do tipo seriam os seguintes: a) o consentimento
real, como renúncia à proteção penal de bens jurídicos disponíveis,
exclui o desvalor de resultado e, por consequência, a ação consentida
E) Consentimento do titular do bem jurídico não representa desvalor de ação, descaracterizando o próprio tipo de
crime; b) o consentimento real exprime desinteresse do titular na
O consentimento do titular do bem jurídico – ou consentimento do proteção do bem jurídico, indicando situação de ausência de conflito
ofendido – constitui causa supralegal de exclusão da antijuridicidade ou – ao contrário do sistema de justificações, fundado na existência de
da própria tipicidade porque consiste na renúncia à proteção penal de situações de conflito; c) enfim, o argumento de que não existe dife-
bens jurídicos disponíveis150 – ou seja, todos os bens jurídicos individuais, rença semântica entre concordância excludente do tipo e consentimento
inclusive a vida, em determinadas condições. O consentimento do excludente da antijuridicidade – por exemplo, na injúria, na privação
titular do bem jurídico pode ser real ou presumido, com divergências de liberdade, na revelação de segredos etc. –, parece decisivo153. Na
na literatura sobre os efeitos do consentimento real, mas consenso sobre prática, não há diferença entre efeito destipificante e efeito justifican-
a natureza justificante do consentimento presumido. A opinião domi- te do consentimento real porque o fundamento jurídico necessário
nante, representada por JESCHECK/WEIGEND, MAURACH/ZIPF para destipificar é o mesmo exigido para justificar a ação, e porque
e outros, baseada em distinção de GEERDS, define o consentimento a consequência jurídica da exclusão do tipo é idêntica à da exclusão
real de dois modos distintos: a) o consentimento real sob forma de da antijuridicidade. Mas, além dos argumentos teóricos, a própria
concordância (Einverständnis) teria efeito excludente do tipo; b) o con- economia dogmática aconselha atribuir ao consentimento real efeito
sentimento real sob forma de consentimento (Einwilligung), teria efeito excludente da tipicidade154, embora nada impeça atribuir-lhe efeito
excludente da antijuridicidade151. A opinião minoritária, representada de exclusão da antijuridicidade, como causa supralegal de justificação.
por ROXIN, atribui ao consentimento real exclusivo efeito excludente do
tipo porque configura exercício de liberdade constitucional de ação do
portador do bem jurídico152: se o consentimento real do portador do 1. Consentimento real
bem jurídico significa exercício de liberdade de ação, então não pode
significar ação típica, com suas funções de ratio essendi ou de ratio O consentimento real do titular de bem jurídico disponível tem
cognoscendi da antijuridicidade, apesar de excluída pela justificação eficácia excludente da tipicidade da ação porque o tipo legal protege
do consentimento do ofendido. a vontade do portador do bem jurídico, cuja renúncia representa exer-
cício de liberdade constitucional de ação155. Todos os bens jurídicos
150
MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 17, III, 1, n. 36, p. 227.
151
Ver GEERDS, Einwilligung und Einverständnis des Verletzten im Strafrecht, in:
GA, Goltdammers Archiv fur Strafrecht, 1954, p. 262; JESCHECK/WEIGEND,
153
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 13, n. 17-22, p. 464-467.
Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 34, I, p. 372-376; MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 154
Outra posição, aqui modificada, em CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, p. 57.
1992, § 17, III, 1, n. 32, p. 225. 155
MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 17, III, 1, n. 36, p. 227; ROXIN, Strafrecht,
152
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 13, n. 12, p. 462. 1997, § 13, n. 11-14, p. 461-462.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

individuais, inclusive o corpo e a vida – como mostra a prática de o consentimento da vítima como justificação/exclusão da tipicidade,
esportes marciais –, são disponíveis. exceto em hipóteses contrárias aos bons costumes157 – um conceito
indeterminável, sujeito a profundas distorções ideológicas. No caso de
lesão corporal consentida, a liberdade de disposição do bem jurídico
1.1. Objeto do consentimento prevalece sobre o valor do bem jurídico protegido: como esclarece a
literatura, o consentimento da vítima pode ter por objeto somente o
a) Liberdade, sexualidade e propriedade. O consentimento do titular risco para o corpo ou para a vida – e não o resultado de lesão ou de
de bem jurídico individual disponível pode ter por objeto a liberdade morte – porque espera-se que tudo corra bem158.
pessoal, no caso de sequestro ou cárcere privado consentido – pressu- No Brasil, a proibição legal de tratamento médico e de interven-
posta a capacidade civil do titular do bem jurídico; a liberdade sexual, ções cirúrgicas contrárias à vontade do paciente (art. 15, CC), mesmo
nas relações sexuais consentidas – se o titular do bem jurídico possui a em casos de risco de vida, institui o consentimento real do titular do
idade mínima de 14 anos, exigida para excluir a violência presumida, bem jurídico como fundamento excludente da tipicidade nas cirurgias
exceto hipóteses de absoluta incapacidade de decisão válida; a pro- médicas, incluindo esterilizações, extração de órgãos em pessoas vivas
priedade privada, em subtrações ou apropriações consentidas de coisa para transplante, cirurgias corretivas de anomalias sexuais em indiví-
alheia móvel etc.156 – se o titular é, pelo menos, relativamente capaz. duos transexuais etc., que constituem lesões corporais graves159. A lei
b) Corpo humano: saúde e integridade. O poder de disposição de civil brasileira proíbe a disposição do corpo em hipóteses de cirurgias
bens jurídicos relacionados ao corpo, como a saúde ou integridade corretivas causadoras de redução permanente da integridade física
física, pode depender da extensão, da finalidade ou da adequação so- ou contrárias aos bons costumes (art. 13, CC). Permite, contudo, a
cial da lesão respectiva: a) o consentimento real exclui a tipicidade de extração em vida de órgão duplo, de parte de tecido ou partes do corpo
lesões corporais graves em esportes marciais regulamentados, como para transplante em cônjuge ou parente consanguíneo até 4o grau,
boxe, caratê, judô etc., especialmente no gênero de competição co- obedecidos os requisitos da legislação especial (Lei 9.434/97) sobre
nhecido como vale-tudo, apresentado ao vivo em televisão, em redes capacidade do doador, gratuidade da remoção, necessidade terapêutica
internacionais em competições de vale-tudo – embora não exclua a comprovada do receptor, ausência de risco ou de mutilações ou defor-
tipicidade de lesões corporais graves em brigas de rua; b) admite-se mações inaceitáveis para o doador e, finalmente, prévia autorização
efeito excludente da tipicidade em lesões sadomasoquistas consentidas judicial, exceto no caso de medula óssea. A limitação representada
entre adultos e sem dano social, realizadas na esfera inviolável da vida pela exigência de conformidade aos bons costumes é inconstitucional,
privada da pessoa humana (art. 5o, X, CR).
A legislação penal alemã (§ 226 a, CP) expressamente admite 157
“Quem efetua uma lesão corporal com consentimento do lesionado somente atua de modo
antijurídico se o fato, apesar do consentimento, contraria os bons costumes” (§ 226 a, CP
alemão).
CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 57; comparar FRAGOSO, Lições
156 158
ARZT/WEBER, Strafrecht, BT, 2000, § 6o, n. 28 e 35.
de Direito Penal, 1985, n. 176, p. 199-100; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 159
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 13, n. 38, p. 475; também, SCHÖNKE/SCHRÖDER/
1999, p. 152-153. STREE, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, 24a edição, § 226 a, n. 6.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

por absoluta indeterminação do conceito: o que são bons costumes, e cimento autorizado para transplantes e enxertos, (b) apelo público de
segundo quais princípios ou critérios devem ser definidos? doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano para pessoas
determinadas ou indeterminadas, (c) apelo público para arrecadação
de fundos para financiamento de transplantes ou enxertos.
1.2. Remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano
Entre as ações criminalizadas com pena de reclusão pela lei,
(Lei 9.434/97)
estão as seguintes: a) remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo
humano vivo ou em cadáver, contrária às normas legais (art. 14); b)
A remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, em compra e venda de tecidos, órgãos e partes do corpo humano (art.
vida e post mortem, para fins de transplante e tratamento, é discipli- 15); c) realização de transplante e/ou enxerto de tecidos, órgãos ou
nada pela Lei 9.434/97. Entre as condições estabelecidas pela lei, partes do corpo humano, contrárias à legislação (art. 16); d) recolher,
estão as seguintes: a) gratuidade da disposição de tecidos, órgãos e guardar, transportar, distribuir partes do corpo humano, contrários
partes do corpo humano (art. 10); b) exames prévios do doador e à legislação (art. 17); e) realizar transplante ou enxerto contrário ao
diagnóstico de infecção e infestação, exigidos pelo Ministério da artigo 10 e §§ (art. 18). Outras ações criminalizadas com pena de de-
Saúde (art. 2o, § único); c) realização por equipe cirúrgica de remo- tenção ou somente com pena de multa estão na área da criminalidade
ção e transplante autorizada pelo SUS, em estabelecimento de saúde de bagatela (artigos 19 e 20).
pública ou privada (art. 2o).
Finalmente, a remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo
Além disso, a lei estabelece condições para remoção de tecidos, humano post mortem está submetida às seguintes condições comple-
órgãos ou partes do corpo humano, em vida e post mortem. No caso mentares: a) diagnóstico prévio de morte encefálica, por 2 médicos
de disposição de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano vivo diferentes dos responsáveis pelo transplante/tratamento (art. 3o); b)
para transplante ou tratamento, a lei determina condições específicas autorização do cônjuge ou parente em linha reta ou colateral até o 2o
relacionadas ao doador, ao receptor e ao objeto de disposição, assim grau da linha sucessória (art. 4o); c) recomposição condigna do cadáver,
definidas: a) capacidade jurídica do doador – que pode revogar a para entrega aos parentes e sepultamento (art. 8o).
doação a qualquer momento (art. 9o); b) o receptor deve ser cônjuge
ou parente consanguíneo até o 4o grau do doador – outras hipóteses,
somente com autorização judicial (art. 9o); c) o objeto de doação deve 1.3. Capacidade e defeito de consentimento
constituir unidade de órgão duplo, ou partes de órgãos, tecidos ou
corpo humano cuja retirada não impeça a vida do doador, não crie O consentimento real pressupõe sujeito capaz de compreensão
risco para sua integridade, não represente grave comprometimento de concreta do significado e da extensão da ação consentida, ou seja, da
suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou defor- renúncia ao bem jurídico respectivo – o que significa conhecimento
mação inaceitável (art. 9o, § 3o); d) finalmente, prova de necessidade
terapêutica indispensável do receptor (art. 9o, § 3o).
Complementarmente, a lei proíbe (a) publicidade de estabele-

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

concreto do risco consentido160 –, determinável como questão de do consentimento164, o que implica consentimento anterior ao fato
fato, independentemente da idade do portador do bem jurídico161 – consentimento posterior é irrelevante; por outro lado, assim como o
ou do critério de capacidade civil. Não obstante, a idade é o primeiro consentimento deve ser manifestado antes do fato, essa manifestação
indicador da capacidade de consentimento excludente do tipo ou da de consentimento também pode ser revogada a qualquer momento.
antijuridicidade, como demonstram os crimes sexuais, em que a idade Enfim, o consentimento do titular do bem jurídico pode ser expresso
de 14 anos delimita a incapacidade/capacidade. por palavras ou sinais – ou pode ser simplesmente tácito, dispensando
o uso de palavras ou sinais: na relação sexual, por exemplo, o con-
Além disso, o consentimento real deve ser expressão de vontade
sentimento pode ser manifestado de qualquer modo, como a reação
livre do titular do bem jurídico, o que significa exclusão do consen- positiva do portador do bem jurídico protegido165.
timento por defeitos de vontade determinados por engano, erro ou
violência. O engano exclui o consentimento se determinar erro do Se o portador do bem jurídico é incapaz, o consentimento
ofendido sobre espécie e extensão do dano ao bem jurídico ou so- pode ser manifestado pelos pais ou responsáveis, como nas cirurgias
em filhos menores: na hipótese de recusa abusiva de consentimento
bre intensidade do perigo para o bem jurídico: B aplica injeção de
dos pais em cirurgia necessária, o consentimento pode ser suprido
tranquilizante em A, omitindo informação sobre efeito prejudicial à
pelo Curador de Menores ou, se impossível, o próprio médico
saúde; o erro da vítima exclui o consentimento sempre que exprimir
pode agir justificado pelo estado de necessidade; na hipótese de
equívoco pessoal ou engano provocado por terceiro; enfim, a violência
conflito entre representante legal e adolescente relativamente capaz
real ou ameaçada exclui o consentimento porque bloqueia a vontade de consentir, prevalece a vontade do adolescente – que, também,
do titular do bem jurídico162. deve ser a referência para a hipótese de consentimento presumido.
Mas o representante legal não pode consentir pelo portador do bem
jurídico nas chamadas decisões existenciais, como extração de órgãos
1.4. Manifestação do consentimento
para transplante ou relacionadas ao núcleo da personalidade, como
autorização para injúrias, lesões corporais etc.166.
A teoria da mediação psíquica – principal teoria sobre manifesta-
ção do consentimento – exige prévia comunicação do consentimento
do titular do bem jurídico ao autor163: a comunicação do consenti- 2. Consentimento presumido
mento é decisiva porque a ação consentida deve se conter nos limites
O consentimento presumido é construção normativa do psiquis-
160
ARZT/WEBER, Strafrecht (BT), 2000, § 6, n. 34-35; HAFT, Strafrecht, 1994, mo do autor sobre a existência objetiva de consentimento do titular
p. 102-105.
161
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 34, IV, 4, p. 382; ROXIN,
Strafrecht, 1997, § 13, n. 51, p. 480.
162
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 107-108; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 13, n. 68-72, p. 488-495.
164
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 102-105.
163
Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 34, IV, 2, p. 382;
165
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 13, n. 45-50, p. 478-480.
SCHÖNKE/SCHRÖDER/LENCKNER Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 32, n. 43. 166
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 13, n. 633-636, p. 486-488.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

do bem jurídico, que funciona como causa supralegal de justificação pode, sem prejuízo, ser esperada); b) o consentimento do titu-
da ação típica167 – ao contrário do consentimento real, expressão de lar do bem jurídico poderia ser obtido, mas é desnecessário ou
liberdade de ação do portador de bem jurídico disponível, que exclui mesmo absurdo: por exemplo, entrar na casa alheia para apagar
a tipicidade da ação. Não há consenso sobre a natureza dessa cons- incêndio; contudo, o consentimento não pode ser presumido se o
trução normativa: situa-se entre o consentimento real e o estado de autor conhece vontade contrária do portador do bem jurídico: o
necessidade168, constitui subespécie do estado de necessidade169 ou proprietário não aceitaria, por razões pessoais, a entrada do autor
uma combinação do estado de necessidade, do consentimento real na casa, em nenhuma hipótese.
e da gestão de negócios170. O consentimento presumido é subsidiário
em relação ao consentimento real: se o titular do bem jurídico mani-
festa consentimento real, então não há o que presumir; ao contrário, 3. O problema da eutanásia
se não existe consentimento real manifestado, então a existência
objetiva de consentimento pode ser presumida. A ação com base A discussão sobre eutanásia – do grego eu (boa) + thanatos
no consentimento presumido do portador do bem jurídico é, nor- (morte) –, como morte fundada no consentimento real ou presumido
malmente, ação no interesse alheio; a hipótese de consentimento do titular do direito à vida, começa na controvérsia sobre o suicídio:
presumido justificador de ação no interesse próprio (por exemplo, 1) posição conservadora supõe um dever moral de viver a vida toda,
colher frutas que apodrecem no quintal do vizinho, que viajou em imposto pelo Direito natural a todos os seres humanos; 2) posição
férias) é admitida pela opinião dominante171, mas rejeitada como moderna afirma a liberdade de morrer em situações determinadas por
risco excessivo pela minoria172. exigências morais ou por razões de dignidade humana174.
Enfim, o consentimento presumido pode ser definido A decisão sobre eutanásia, como homicídio por desejo da vítima
mediante duas hipóteses clarificadoras, como mostra HAFT 173: – um fato de pequena frequência estatística –, depende de uma ques-
a) o consentimento não foi obtido, mas o titular do bem jurídi- tão crucial: quem determina quem? O estudo da eutanásia começa
co consentiria, se perguntado: por exemplo, cirurgia urgente em pelo exame da posição da vítima, caracterizada pela vontade real ou
vítima inconsciente de acidente; não obstante, o consentimento presumida de morrer, e termina pelo exame do comportamento do
não deve ser presumido, se a manifestação de vontade do paciente autor, fundado na exclusiva vontade da vítima, mediante ação (ou
ajuda ativa) ou omissão de ação (ou ajuda passiva).
167
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 34, VII, p. 385-6; 3.1. Vontade real e presumida de morrer. A vontade real da vítima
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 18, n. 3-4, p. 697.
168
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 18, n. 4, p. 697. deve exprimir um desejo atual de morrer, mediante clara comunica-
169
WELZEL, Strafrecht, 1969, § 14, V, p. 92. ção oral ou escrita; a vontade presumida da vítima, cuja relevância é
170
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 15/17, p. 451. limitada a situações de inconsciência, pode ser inferida de indicadores
171
JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 34, VII, 1b, 386-387; reais anteriores relativos a hipóteses futuras indesejáveis – por exemplo,
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 18, n. 17, p. 703.
172
JAKOBS, Strafrecht, 1993, 15/18, p. 451-452.
173
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 106. 174
ARZT/WEBER, Strafrecht (BT), 2000, § 3, n. 2.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

vida vegetativa, paralisia etc.175. dico, merece respeito absoluto. Assim posta a questão, trata-se de
3.2. Ajuda ativa e ajuda passiva do autor. O papel do autor pode saber a extensão do direito/dever do médico de prolongar situações de
assumir uma forma ativa (ação) ou uma forma passiva (omissão de sofrimento indignas para o paciente – porque ampliar um sofrimento
ação) na eutanásia. indigno constitui tortura psíquica imposta ao paciente.

A forma ativa de realização da vontade (real ou presumida) da 3.2.3. Princípios da lex artis médica. A relação médico/paciente é
vítima é criminalizada, embora com redução de pena: ou homicídio disciplinada por princípios relacionados à terapia médica e à vontade
privilegiado (art. 121, § 1o, CP), ou participação em suicídio (art. do paciente.
122, CP) – em outras palavras, a extinção da vida por exigência da O princípio relacionado à terapia médica é definido pelos deve-
vítima, mediante intervenção direta ou ativa colaboração do autor res de manutenção da vida e de redução do sofrimento já referidos
no suicídio da vítima (entrega de meios, por exemplo), é proibida – e, no caso de conflito entre esses deveres, a prioridade compete à
de modo absoluto. redução do sofrimento, apesar do risco de redução da vida.
Em contrapartida, a forma passiva de realização da vontade da O princípio relacionado à vontade do paciente distingue o se-
vítima é objeto de interessante discussão na literatura, especialmente guinte: a) em pacientes capazes de vontade declarada, respeito absoluto
na relação médico/paciente, cujas linhas centrais são as seguintes. à decisão de interromper ou reduzir o tratamento; b) em pacientes
3.2.1. Os deveres do médico. A posição do médico em relação ao inconscientes ou incapazes de declarar a vontade, respeito à vontade
paciente é definida por dois deveres principais: o dever de prolongar a presumida de interromper ou reduzir o tratamento. Em nenhuma
vida do paciente e o dever de evitar/reduzir o sofrimento do paciente. hipótese a terminação da vida admite intervenções diretas, mediante
Esses deveres podem entrar em conflito quando a evitação/redução ajuda ativa no suicídio do paciente.
do sofrimento é incompatível com o prolongamento da vida – ou No caso de pacientes terminais, com lesões irreversíveis de ór-
inversamente, quando o prolongamento da vida é incompatível com gãos ou funções vitais, admite-se o seguinte: a) a omissão ou interrup-
a evitação/redução do sofrimento. Neste ponto, surge uma hipótese ção de medidas de prolongamento da vida pressupõem concordância
interessante: se tratamentos contra a vontade do paciente são proi- do paciente; b) na hipótese de certeza de breve morte do paciente, por
bidos, então nenhum paciente tem o dever de suportar intervenções lesões irreversíveis de órgãos ou funções vitais, é admissível a ajuda
médicas para manutenção da vida – logo, a ajuda passiva consentida passiva para permitir morte com dignidade – ainda que tecnicamente
em suicídio do paciente não pode ser proibida176. possível protelar a morte.
3.2.2. Os direitos do paciente. A vontade real de pacientes capazes No caso de pacientes com prognóstico desfavorável, mas ainda
de manifestação ou a vontade presumida de pacientes incapazes de indefiníveis como pacientes terminais, depende da vontade do pacien-
manifestação real, sobre continuar ou interromper o tratamento mé- te: a) a decisão de mudança do tratamento, considerando a evolução da
doença e a redução do sofrimento; b) a decisão de manter/prolongar
a vida com medicina paliativa.
ARZT/WEBER, Strafrecht (BT), 2000, § 3, n. 11-12.
175

ARZT/WEBER, Strafrecht (BT), 2000, § 3, n. 6.


176

270 271
Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 10 Antijuridicidade e Justificação

F) Justificação nos tipos de imprudência de defesa – mas não do resultado indesejado porque excluiria a legítima
defesa da imprudência inconsciente180, em que não há representação
O problema da justificação nos tipos de imprudência resulta da do resultado possível. Um problema sério relaciona-se à ação impru-
combinação de duas ordens de fatores: primeiro, o entrelaçamento dente objetivamente justa, mas sem consciência da situação de legítima
ou interpenetração entre tipo e antijuridicidade é maior nos tipos de defesa: a) disparo em manejo imprudente de arma fere o agressor no
imprudência do que nos tipos dolosos; segundo, a construção judicial momento da agressão, sem consciência do agredido sobre a situação
dos tipos abertos de imprudência leva em consideração a situação con- de agressão; b) em manobra lesiva do cuidado, e sem consciência da
creta que fundamenta as justificações177. Mas a literatura reconhece situação de legítima defesa, motorista atropela assaltante que simu-
algumas justificações, como a legítima defesa, o estado de necessidade lava acidente de trânsito para realizar assalto. A teoria dominante diz
e o consentimento do titular do bem jurídico ofendido. o seguinte: a ação imprudente não é justificada, mas também não é
punível porque não existe desvalor do resultado, apenas o insuficiente
1. A legítima defesa nos tipos de imprudência tem por objeto efeitos
desvalor de ação181.
não dolosos produzidos como riscos típicos dos meios empregados na
legítima defesa dolosa. Exemplos: a) o agressor é ferido por disparo 2. O estado de necessidade nos tipos de imprudência pode ocorrer
acidental de pistola utilizada pelo agredido como objeto contundente em ações de proteção que lesionam proibição de perigo (abstrato ou
contra o agressor; b) soco de defesa contra o braço atinge, não in- concreto) ou de resultado: a) bêbado atropela pedestre ao conduzir
tencionalmente, o queixo do agressor, determinando lesão cerebral; acidentado grave para hospital, evitando morte certa deste; b) ciclista
c) o agressor é ferido acidentalmente por disparo de arma do agredido desvia para o passeio, ao perceber aproximação perigosa de carro no
com finalidade de intimidação. O fundamento da legítima defesa, sentido contrário da ciclovia, ferindo pedestre182.
nessas hipóteses, é indiscutível: se o resultado não doloso da situação 3. O consentimento do titular do bem jurídico nos fatos de impru-
de legítima defesa seria justificado por dolo, então, com maior razão, dência também pode ser real ou presumido. O consentimento real do
é justificado por imprudência178. ofendido em fatos de imprudência é raro porque não deve se limitar
A questão dos elementos subjetivos na legítima defesa impru- ao perigo criado pelo autor, mas abranger o próprio resultado lesivo
dente não é clara: segundo HAFT, se o tipo de imprudência não tem representado como possível, e não exclui somente a antijuridicidade
elementos subjetivos, então, por relação de simetria, as justificações – como afirma a opinião dominante –, mas a própria tipicidade da
(e a antijuridicidade) também não têm elementos subjetivos179; para ação imprudente, nos casos de exposição consentida a perigo criado por
ROXIN, o elemento subjetivo da legítima defesa imprudente consiste outrem: a vítima, esclarecida pelo barqueiro sobre os perigos do mar
na consciência da situação de legítima defesa e da necessidade da ação agitado, insiste no passeio de barco e morre afogada porque, de fato,

177
Ver DONATSCH, Sorgfaltsbemessung und Erfolg beim Fahrlässigkeitsdelikt, 1987, p. 76. 180
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 24, n. 95, p. 953.
178
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 24, n. 93-94, p. 951-952. No Brasil, no mesmo sentido, 181
Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 24, n. 96, p. 953-954; SCHÖNKE/SCHRÖDER/
TAVARES, Direito Penal da negligência, 2003, p. 363; comparar HEITOR COSTA LENCKNER Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 32, n. 99; STRATENWERTH,
JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 78-80. Strafrecht, 1981, n. 1121.
179
HAFT, Strafrecht, 1994, p. 78. 182
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 24, n. 97-99, p. 954.

272 273
Teoria do Fato Punível Capítulo 10

o barco emborca sob a violência das ondas (ver O tipo dos crimes de
imprudência, acima). O consentimento presumido do ofendido exclui
Capítulo 11
a antijuridicidade da ação: operação urgente no local do acidente, Culpabilidade e Exculpação
necessária para salvar a vida de vítima inconsciente, mas com ins-
trumental inadequado e medidas de cuidado insuficientes, em que a
concreta violação da lex artis determina danos à saúde do paciente183.
I. Conceito de culpabilidade
A dogmática penal contemporânea edifica o conceito de fato
punível com base nas categorias elementares do tipo de injusto e
da culpabilidade, que concentram todos os elementos da definição
analítica de crime1. Essas categorias elementares do fato punível se
relacionam como objeto de valoração e juízo de valoração, segundo a
conhecida fórmula de GRAF ZU DOHNA2: o injusto como objeto
de valoração, a culpabilidade como juízo de valoração3.
A culpabilidade, como juízo de reprovação, tem por objeto o
tipo de injusto, e por fundamento: a) a imputabilidade, como con-
junto de condições pessoais mínimas que capacitam o sujeito a saber
(e controlar) o que faz, excluída ou reduzida em hipóteses de menoridade
ou de doenças e anomalias mentais incapacitantes; b) o conhecimento
do injusto, como conhecimento concreto do valor que permite ao autor
imputável saber, realmente, o que faz, excluído ou reduzido em casos de
erro de proibição; c) a exigibilidade de conduta diversa, como expressão

1
Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 39, I, 1,
p. 425; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 5, III, 1, n. 23, p. 46.
2
GRAF ZU DOHNA, Zum neuesten Stande der Schuldlehre, ZStW, 32, 1911, p. 323.
3
No Brasil, JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 454, bem como DOTTI, Curso de Direito
Penal: parte geral, 2001, p. 336, não consideram a culpabilidade como elemento do
crime, mas como “pressuposto da pena”. Esse conceito é incomum na dogmática contem-
porânea: primeiro, todos os “requisitos” ou “elementos” do crime são pressupostos da
pena, desde a ação típica até as condições objetivas de punibilidade, e não parece existir
qualquer razão para isolar a culpabilidade como único pressuposto da pena; segundo, a
proposição confunde crime com tipo de injusto que, em conjunto com a culpabilidade,
ROXIN, Strafrecht, 1997, § 24, n. 100-101, p. 955.
183
constitui o conceito de fato punível, na moderna teoria do Direito Penal.

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