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Resenha

TIMOTIN, Andrei. La démonologie platonicienne: histoire de la notion de daímon


de Platon aux derniers Néoplatoniciens (Philosophia Antiqua, v. 128). Leiden: Brill,
2012. XI + 404 páginas.

A obra de Andrei Timotin é uma para os investigadores interessados. O


revisão da sua tese de doutorado, orien- primeiro capítulo, além de introduzir a
tada por Philippe Hoffmann e defendida proposta da pesquisa, tem relevância e
em 2010 na École Pratique des Hautes metodologia explicitada, e compreende
Études de Paris. Sua originalidade expli- uma investigação historiográfica. O autor
cita-se na proposta do título: um estudo explica que a organização de sua pesqui-
sistemático da história do conceito de sa segue um princípio que buscou inte-
daímon (δαίμων) na tradição platônica da grar tanto a abordagem temática como
Antiguidade clássica. A ausência de uma a cronológica. A perspectiva temática é
obra atualizada dedicada a uma análise delimitada por três categorias que ele
tão abrangente do tema é enfatizada logo identifica como os elementos de conti-
na Introdução. Ao traçar uma pesquisa nuidade das doutrinas daimonológicas
historiográfica, Timotin recolhe acadêmi- na tradição platônica:
cos de grande importância como Detien- 1. A relação entre Daimonologia,
ne, Robin, Soury, Heinze, Wilamowitz, Cosmologia e Providência;
e os mais recentes Frederick E. Brenk,
2. O papel da noção de daímon na
Pierluigi Donini, Claudio Moreschini,
hermenêutica da religião no mundo
Rodriguez Moreno, John Dillon. Todos
greco-romano;
esses realizaram pesquisas fundamentais
no assunto dentro de quadros específi- 3. O daímon pessoal e a sua relação
cos, mas nota-se que a última pesquisa com a definição da Filosofia e o
com uma proposta de escopo semelhante modo de vida filosófico.
foi a de Joseph-Antoine Hild em 18811. Todos os temas são investigados se-
Com a Introdução, a obra é constituída gundo o critério cronológico (da Antiga
de seis capítulos, sendo que, a partir do Academia aos Neoplatônicos), que, de
segundo, cada um tem uma conclusão, e acordo com Timotin (p.3), possibilita
ao fim tem-se uma breve conclusão ge- a inteligibilidade das teorias analisadas
ral. A bibliografia é volumosa, com mais e expõe a evolução da reflexão dai-
de 700 títulos em 33 páginas, e índices monológica. Esses são considerados os
locorum, rerum, verborum. Um achado problemas estruturais da pesquisa e são,
efetiva e respectivamente, desenvolvidos
1
HILD, Joseph-Antoine. Étude sur les Dé- nos três últimos capítulos. Os capítulos
mons Dans la Littérature et la Religion des primeiros visam, portanto, um assenta-
Grecs. Paris, Hachette, 1881. mento do tema até Platão.

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O segundo capítulo, “La notion de encontrando-se relação com a maior 165
daimōn dans la littérature grecque jus- parte dos âmbitos abordados por sua

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qu’à Platon”, apresenta uma visão geral filosofia: religião, ética, cosmologia e psi-
dos conceitos de daímon na tradição cologia. São, então, organizados em duas
grega antes de Platão: nos poemas homé- categorias as diferentes figuras platônicas
ricos, na poesia, na tragédia, e nos filóso- de daímon: o daímon Eros, intermediário
fos pré-socráticos. Também organizado entre os homens e os deuses (Banquete
em categorias temáticas – daímon como 202 d-e), e uma categoria genérica de
entidade particular; como poder divino “daímones guardiões”, que reunem: o
indefinido; como deidade do destino; sinal daimonico (δαιμόνιον σημεῖον) de
como espírito vingativo; como alma dos Sócrates, o daímon pessoal (República X,
mortos; ou como gênio tutelar; o capítu- 617 d-e, 620 d-e, Fédon 107d), os “guar-
lo busca discernir a influência exercida diões dos mortais” de Hesíodo (Crátilo,
pela tradição anterior na daimonologia 397 e- 398 c, Político 271 c- 274d, Leis IV,
de Platão, permitindo compreender o 713 d-e), e o daímon identificado à parte
campo semântico de base e que tornou superior da alma, o νοῦ̋ (Timeu 90a-c)
possível a transposição filosófica da A primeira parte do capítulo é dedi-
noção de daímon no pensamento do cada a figura do daímon Eros, tal qual
filósofo. O autor parte, então, da defini- aparece no Banquete. Timotin aborda o
ção etimológica do termo daímon; sua papel de sua figura como personificação
raiz dai- associa δαίμων a δαίομαι e δαί̋ e do método filosófico e símbolo do cami-
aponta o significado de “partilha”, “repar- nho anagógico-iniciático em direção ao
tição”. Apoiando-se em autoridades tais suprasensível, que na sua ascendência
como Gernet e Detienne, Timotin assume vai progressivamente do particular ao
que o termo gira em torno da noção de geral e das realidades sensíveis às inte-
“repartição do destino”, e que as várias ligíveis. O daímon Eros, assim como o
acepções de daímones desse período tipo de discurso (mítico) que o coloca em
(potência divina indefinida, espírito vin- cena, cumpre a função intermediária de
gativo, gênio tutelar etc.) se organizam passagem de um saber contingente (δόξα)
prevalentemente em torno dessa noção para a verdadeira ciência (ἐπιστήμη). A
primária de “repartição”. E mesmo tendo figura do daímon Eros é, então, apro-
Hesíodo feito dos antigos homens da priada tanto como análogo mítico na
Raça de Ouro, daímones, “guardiões Filosofia, quanto patrono da religião
dos homens mortais”, Timotin identifica (iniciações, adivinhações, orações etc.).
Platão (particularmente em Banquete A segunda parte do capítulo dedica-se
203c-e) como o formulador da ideia dos aos “daímones guardiões”. É também,
daímones como mediadores entre deuses em todos estes variados casos, o discurso
e homens, que será o assunto abordado mítico que lhes introduzem, afirma o
no capítulo seguinte. autor, vinculando-os a variadas temáticas:
O terceiro capítulo, “Les figures pla- a vida filosófica (Apologia, República), a
toniciennes du daimōn”, trata, portanto, pedagogia socrática (Alcebíades I, Teete-
da noção de daímon utilizada por Platão, to), o destino e responsabilidade humana

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166 (República), a estrutura da alma (indivi- Platão aplica sob a forma de narrativas
dual e do mundo) (República, Timeu) e míticas, resultando no que ele denomina
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política (Político, Leis). Será, no entanto, de uma “brassage exégétique” (p.158).


no Timeu onde Timotin encontra um O relato entre as quatro espécies
pleno uso da noção daimônica em Pla- de seres viventes e a série de quatro
tão, na assimilação formal do νοῦ̋ a um elementos do Timeu 39e-40a é lido em
daímon, na sua leitura. Essa noção liga, conjunto com a hierarquia teológica apre-
de maneira mais rigorosa e sistemática sentada no Crátilo, 397d, estabelecendo
que no Banquete, o mundo divino e o uma hierarquia teológica em que os
mundo humano, e determina a prática daímones detêm o papel de mediadores,
da Filosofia como exercício da parte que o Banquete lhes havia assinalado.
divina da alma (o νοῦ̋), em direção à (202 d-e). Tal interpretação teológica do
assimilação ao divino (ομοίωσι̋ Θεώ). É Timeu é encontrada tanto no Epinomis
através desta parte superior da alma que como em Xenócrates, porém de duas
se exerce a providência divina. Enten- formas e por duas razões diferentes.
der isto permite afirmar que o νοῦ̋ é o Essa daimonologia teológica da Antiga
verdadeiro daímon guardião, e que as Academia será retomada apenas em
diferentes figuras platônicas do daímon Alexandria, no séc I, onde três correntes
como intermediário, como guardião dos de pensamento podem são distinguidas:
mortais e como νοῦ̋ são indissociáveis. 1. a identificação dos daímones aos
O daímon é, portanto, ao mesmo tempo “habitantes naturais” aristotélicos
interior e exterior. (Fílon, Apuleio, e certos estóicos);
No quarto capítulo, “Démonologie, 2. a repartição inspirada pelo Epino-
cosmologie et théories de la providence”, mis das regiões do cosmos entre
Timotin inicia a pesquisa dos vários várias espécies de daímones (Alci-
desenvolvimentos daimonológicos que no, Calcídio); e
ocorreram na tradição platônica, desde 3. a concepção retomada de Xenócra-
a Academia Antiga, em particular no tes de uma continuidade progressi-
Epinomis, que ele assume como pro- va das espécies viventes (Máximo
vavelmente sendo de Filipo de Opus, de Tiro).
e em Xenócrates, passando pelo médio- Todavia, estas tendências se cruzam e
platonismo em figuras como Fílon de se articulam ao redor de um outro emba-
Alexandria, Alcino, Apuleio e Calcídio, te, segundo o qual se julga, por um lado,
até os neoplatônicos Jâmblico, Siriano e uma hierarquia “estática” de seres divinos
Proclo. O interesse pela natureza, fun- (Epinomis, Apuleio, Calcídio), onde os
ções e posição dos daímones no cosmos daímones teriam seu lugar fixo entre os
originaram uma leitura teológica e dog- deuses e os mortais, e, por outro, uma
mática dos diálogos platônicos. Timotin ordem “dinâmica”, onde os daímones
destaca como a preocupação em harmo- seriam as almas dos homens virtuosos
nizar as diferentes figuras do daímon não voltando à terra para o benefício dos
levava em conta o contexto discursivo homens (Xenócrates – provavelmente
e a função ilustrativa e pedagógica que –, Estóicos, Fílon, Plutarco, Máximo

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de Tiro). Nesse contexto, os daímones pessoal, que visa atender necessidades 167
servem para sustentar tanto a unidade e ordinárias de cada indivíduo. Numa po-

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homogeneidade do cosmos, como, pela sição antogônica a Porfírio, é Jâmblico
sua função intermediária, a harmonia quem ditará as orientações desse tema às
que rege as relações entre os deuses e doutrinas posteriores, e Timotin mostra
os homens, fundamentando, assim, pre- como Proclo e Siriano herdaram essa
ces, oráculos e sacrifícios. Mais do que sua tradição.
isso, a daimonologia médio-platônica é Encerrando a investigação, o sexto
estritamente ligada, a partir de Fílon, a capítulo, “Le culte du daimōn intérieur.
uma teoria da providência que permite Du daimōn de Socrate au daimōn per-
levar a ação dos deuses à humanidade, sonnel”, trata do daímon pessoal que,
sem prejudicar a sua majestosa trans- obviamente, está estritamente ligado ao
cendência. Mas a partir de Jâmblico a daímon de Sócrates, assunto que sucitou
Teurgia entra em cena e sua abordagem diferentes opiniões e debates ao longo de
será determinante na daimonologia séculos. Dentre eles, tal daímon pode ser
posterior, particularmente na Teologia considerado externo, tal qual qual apare-
de Proclo. ce no Fédon ou na República, ou interno,
O quinto capítulo, “Démonologie et como a parte mais elevada da alma indi-
religion dans le monde gréco-romain”, vidual conforme sugerido em Timeu 90a-
destaca o grande valor da obra de Plu- c, segundo o autor; ou, ainda, como em
tarco. O foco é dado particularmente ao Plutarco (no mito do De Genio), ambos
seu cruzamento da daimonologia com interno e externo de uma só vez. Timotin
as práticas da religão cívica. O filósofo mostra como tal questão, aparentemente
de Queroneia desenvolve uma leitura insolúvel, encontra uma conciliação origi-
filosófica do mito, do rito, da mântica nal em Plotino (em Enéadas III.4). Outra
e da adivinhação oracular, e associa os grande questão duradoura foi se todos
daímones aos deuses passíveis (ἐμπαθεῖ̋ teriam um daímon guardião, ou apenas
θεοί) dos dramas mistéricos, preservan- certos seletos sábios, e ligava-se a ainda
do tanto a impassibilidade dos deuses outras questões, entre as quais a da “es-
superiores como o papel daímônico de colha de vida” (βίον αἵρεσι̋), e o modus
ligação com eles. Ademais, a passibili- communicandi entre a alma humana e
dade dos daímones parece dar crédito o mundo divino. Encontram-se, assim,
à controversa existência de daímones importantes contribuições de Plutarco,
maus, tema um tanto periférico em Apuleio, Plotino (o qual até então não
Plutarco e completamente ausente em tivera muita presença na pesquisa), e
Apuleio e Máximo, mas que ocupa um por último Jâmblico e Proclo, todos os
lugar central em Porfírio. Apuleio e Má- quais são lidados meticulosamente por
ximo de Tiro desenvolvem, a partir dos Timotin.
princípios formulados por Plutarco, uma Considerando que o último estudo
interpretação daimonológica da religião, com a abrangência do trabalho de Timo-
que se apresenta como a apologia filo- tin havia sido feito em fins do século XIX,
sófica de uma religião para a fé cívica e e a significativa quantidade de esutdos

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168 determinantes para o tema realizados do, mas é imprescindível para qualquer
desde então, tem-se aqui uma obra investigador em Filosofia Antiga.
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imprescindível a todos os estudiosos e


interessados no mundo Antigo. Esse re- Julio Cesar Moreira
colhimento deve suscitar críticas, como jcesar.moreira@hotmail.com
se espera de um assunto pouco estuda- PUC-SP

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