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CLÍNICA TRANSDISCIPLINAR

Cristina Rauter

Pensar uma Clínica Transdisciplinar é pensar uma prática orientada por um campo do saber que
chamarei de "campo de dispersão", por oposição a um saber que se pretenda universal e
ordenado. Me utilizo de fragmentos de teorias, faço empréstimos e estabeleço parentescos não
autorizados entre diferentes campos do saber. Quem os autorizaria? Uma certa racionalidade
científica da qual nos afastamos poderia estabelecer um método para que estes empréstimos se
dessem. Ao contrário, preocupa-me não a coerência interna do discurso, mas os efeitos que estes
produzirão no campo das práticas, especificamente no campo da Clínica Psicoterápica.

Quando as próprias ciências ditas "exatas" já abandonaram a pretensão de um saber que pudesse
abarcar todos os fenômenos ou legislar sobre a natureza, a busca de modelos científicos tem
paralisado, em grande parte, a experimentação no campo da clínica. Não pensamos a prática
clínica como técnica sustentada por um corpo teórico do qual esta seria "aplicação". Não se trata
também de propor uma nova técnica terapêutica que viesse resolver os problemas das demais
técnicas. Trata-se de problematizar a prática clínica, de propor estratégias particulares, singulares,
que digam respeito aos problemas também singulares que esta nos propõe. Poderíamos chamar
esta modalidade clínica de psicanálise militante. Uma psicanálise preocupada com a construção
de novas maneiras de viver, uma psicanálise que se ocupasse das produções do inconsciente
para além de uma fantasmagoria do inconsciente. Uma psicanálise liberta de categorias universais
modeladoras e que propusesse um clínica não submissa às tiranias da intimidade.

Deixemos aos epistemólogos a tarefa de saber se isto ainda é psicanálise e passemos a explicitar
de que inconsciente falamos nós. Trabalhamos com um inconsciente produtor. Trata-se de um
inconsciente que não apenas se expressa ou produz fantasmas, mas que é imediatamente
produtor de real. Inconsciente causa de si mesmo, pura positividade. Diferenciando-se de noções
de profundidade e intimidade, trata-se de pensar efeitos de superfície, construir mapas ou
cartografias. Na construção destes mapas não há outro princípio que a produção da vida, seus
movimentos de expansão e retração, efeito do encontro de corpos. Seguimos Espinosa para a
construção desta geometria do inconsciente.

Seguindo as tradições do pensamento no qual o campo PSI costuma se pautar, somos levados a
temer pelo caos. Que princípios organizariam as produções do inconsciente? Costumamos pensar
o caos como ausência de ordem, como negativo. A lei surge como necessidade: algo exterior deve
organizar a produção desejante, ou ela mergulhará no reino da natureza, na desordem instintiva.
Cultura e natureza sendo pensadas como princípios opostos, tal dicotomia já se generalizou no
pensamento a tal ponto que nos é extremamente difícil pensar o desejo sem a lei, ou o desejo sem
a falta como princípio constitutivo.

É necessário , para pensar o desejo como produção , buscar outras relações entre a lei e o
desejo. Não pensar a lei no singular, como transcendência, mas no plural, numa referência a
campos de força, a múltiplas formas de organização e articulação .A partir de Hume[1] pensamos
o homem não como um ser basicamente egoísta, que necessita de lei como princípio ordenador
do caos instintivo, mas como um animal "de grupo" e criador de regras ou de leis.

Nesta direção, a cultura humana não estaria em oposição à natureza , mas seria uma invenção
característica do animal humano. As regras da cultura estariam destinadas a administrar
parcialidades, "simpatias" derivadas das diferentes famílias humanas, ou dos diferentes grupos
humanos. A atividade política, e a produção desejante , (a primeira está contida na segunda)
passa pela administração de parcialidades - eis uma lógica bastante diversa da do contrato social:
homens egoístas coibidos pela lei / homens grupais inventores de regras sociais.

Não é a lei que organiza a produção desejante. É a produção desejante que possui "germes de
organização". Nossa concepção afasta-se também daquela que coloca a falta como constitutiva
do desejo. Ao contrário, na falta não há desejo, já que ele só pode ser concebido no
agenciamento, nas conexões que estabelece. Imediatamente produtor de real, o desejo é produtor
de organizações, de territórios ou de leis, aqui entendidas como territórios da produção desejante.

Nesta direção, podemos pensar leis não como necessáriamente opostas à natureza, da qual o
homem estaria separado, mas como produções do animal humano, em continuidade com a
natureza. Não havendo na natureza nada que possa ser um vício ou deturpação desta, já não se
pode falar, a partir de Espinosa, numa oposição natureza/cultura.

Na vida, como na política, trata-se de administrar agenciamentos, ou encontros. A vontade não é


livre, a existência é totalmente determinada Para não se ficar ao sabor do acaso dos encontros,
trata-se de administra-los.

Isto, bem entendido, não significa dizer que é possível prever , controlar os encontros de corpos
ou seus efeitos.Trata-se de estabelecer pequenas guerrilhas, lutas particulares do desejo na
direção da expansão. Introduzir na vida novos campos de forças, dobras da subjetividade. Lutas
travadas por uma consciência reduzida em suas funcões, funcionando como uma espécie de
leme, na tentativa de conduzir o barco num oceano cujos movimentos são apenas imperfeitamente
previsíveis. Ainda assim, navegar é preciso.

Eis como poderíamos colocar, a partir de Espinoza[2], de modo introdutório, algumas direções
para uma Clinica Transdisciplinar. Retornaremos mais tarde a estas questões.

Retornemos, por ora, à questão das relações entre lei e desejo, fundamental para uma
compreensão da noção de desejo como produção. Pensar o desejo sem a lei e a falta, falar do
desejo como pura força ativa, tal concepção poderia ser confundida com um otimismo ingênuo ou
irresponsável. De onde provém o negativo se pensamos o inconsciente como pura positividade?
Que pensar de nossa contemporaneidade, de nosso quotidiano, onde são tantas as forças de anti-
produção do desejo? Com Reich, damo-nos conta de que podemos desejar o facismo, que ao
invés de combater pela afirmação do desejo, podemos combater por sua servidão. Podemos nos
aprisionar na repetição, no tédio e na infelicidade, como é o caso em muitas instituições nas quais
trabalhamos ,em muitas famílias e certamente na neurose.

Como se dá o processo pelo qual toda a força produtora do inconsciente se materializa na criação
de um mundo em vários aspectos lamentável como o nosso? Embora seja da natureza do desejo
a produção de territórios, o investimento no campo social, a codificação dos fluxos, nossa
contemporaneidade caracteriza-se pelo fenômeno da desterritorialização. O capitalismo pós-
industrial, levando ao máximo de eficácia o processo de produção de subjetividades capazes de
reproduzi-lo, trabalha com fluxos desterritorializados, liberados das antigas codificações familiares,
religiosas ou de antigos valores. Destruídos pelo próprio capitalismo os antigos territórios, suas
engrenagens vão tratar de reinvestir os fluxos desejantes em territórios uniformes, letais,
desérticos, no processo denominado por Deleuze e Guattari de reterritorialização.

Se por um lado os pais já "não sabem " o que dizer aos filhos, se os velhos não têm tradições a
transmitir, se os casais não sabem conviver, a televisão despeja , por outro, palavras de ordem
eficazes. Especialistas produzem e/ou reproduzem padrões normativos a partir dos quais a
educação dos filhos, o amor, o sexo, entre outros aspectos da vida, devem ser geridos.
Subjetividades geridas e tuteladas que cultivam a pesquisa introspectiva sobre si mesmas, mas
que encontram, como resultado desta pesquisa, não parâmetros singulares, mas parâmetros
modelizantes sobre os quais pautam sua vida.

A intervenção clínica está desde logo marcada pelo paradoxo de ser herdeira de práticas
produtoras de intimização. Foucault traçou em "A Vontade de Saber[3]" um percurso que vai das
práticas confissionais do catolicismo até as práticas médicas, como produtoras de uma concepção
de desejo característica de nossas ciências humanas, que reificam a dicotomia entre o indivíduo e
o campo social.

Nietzsche[4] traçou os caminhos do processo de "interiorização". As forças ativas podem ser


dominadas pelas forças reativas. De que forma? Uma economia de forças se estabelece, na qual
as forças reativas são artificialmente vitoriosas e as forças ativas sucumbem a elas. A consciência,
órgão reativo por excelência, pode dominar a vida - mas esta será uma vida enfraquecida, que
toma o ponto de vista do escravo, sendo vivida a partir do medo, do niilismo, da vontade de ser
amado mais do que de amar. Uma vida que teme a luta e o amor. As forças ativas estão assim,
"separadas do que elas podem".

A faculdade do esquecimento, que emana das forças ativas, torna-se entravada. O homem torna-
se aprisionado às marcas do passado, distribui culpas, lamenta-se. E como último estágio deste
processo há uma mudança na direção do ressentimento. É dentro de si próprio que encontrará o
culpado. O sentido da dor passa a ser interno.

Se por um lado as forças reativas são necessárias à própria efetuação das forças ativas como
forças de conservação, o predomínio das forças reativas sobre as ativas é o que gera a doença do
ressentimento. Mas há no capitalismo "algo mais" no que diz respeito à produção maciça de
ressentimento, interiorização, niilismo e culpabilidade. Eis porque Guattari nos fala de uma
questão ecológica que diz respeito à subjetividade humana: a urgência de se inventar novos
modos de vida ou as forças de anti-produção do desejo tornar-se-ão vitoriosas podendo acabar
por extinguir toda a vida na terra.

Poderemos construir uma subjetividade capaz de habitar de forma afirmativa este mundo ao invés
de refugiar-se em territórios já perdidos? Eis um dos problemas que atravessam a clínica
transdisciplinar.

Algumas questões Clínicas:

1) Intimismo, interiorização, subjetividades individuadas e clínica:

Referimo-nos ao paradoxo em que se encontra colocada a clínica, ao ser ao mesmo tempo


herdeira de práticas confissionais e dos dispositivos de saber-poder oriundos das práticas
médicas, e conclamada a resolver os problemas colocados a partir destes mesmos dispositivos no
campo da subjetividade. A subjetividade individuada apresenta-se por outro lado, como o modo de
subjetivação correlato da intervenção psi. Ou seja, é o modo de subjetivação no qual estão
presentes os requisitos para a existência de um "projeto psicoterápico" ou de uma "demanda de
análise"[5].

Segundo nosso ponto de vista, não se trata de "atender" ou responder simplesmente à demanda
de análise, excluindo da possibilidade de ser analisado o modo de subjetivação que não se
encaixa adequadamente ao instrumental Psi. Trata-se de produzir rupturas no processo de
produção e reprodução deste modo de subjetivação, rupturas essas referidas tanto a uma clínica
produtora de interiorização quanto aos modos de subjetivação do cliente e do terapeuta. Assim, a
adequação do cliente à intervenção Psi se constitui num problema, pois se trata de produzir uma
ruptura nesta adequação mesma, tanto no que se refere ao cliente quanto no que se refere ao
terapeuta.

Associada a esta direção está a luta contra uma concepcão reativa do inconsciente.
Estabelecemos um paralelo entre o predomínio das forças reativas e a subjetividade individuada.
Ocorre que uma prática clínica ligada à memória, ao passado infantil e à rememoração deste
passado, vai contribuir para agravar a doença do ressentimento em todas as suas manifestações -
culpabilidade, introspecção estéril, etc. Otto Rank é uma referência na análise desta questão, pois
ele via na introspecção produzida pela análise um mal que precisava ser levado em consideração.
Como via de solução ele pensou nas terapias de curta duração.

A produção de uma história de si mesmo (uma outra biografia construída na análise, sobreposta
ou contraposta àquela com a qual o cliente busca tratamento),pode ser um resultado da
intervenção clínica, resultado este que pode não levar à ação, ou a novos equilíbrios em que as
forças ativas predominem, mas a correlações de forças em que as forças reativas são fortalecidas.

A reconstrucão da história individual é freqentemente um objetivos da psicoterapia. O que se


entende como reconstrução, ou como este "fazer história" na clínica" não é algo bem definido
pelos terapeutas. Frequentemente, acreditamos, este fazer história está ligado à reconstituição
dos fatos do passado e dos sentimentos ligados a ele no sentido de construção de uma
identidade. Quem sou eu? Eu sou aquele pobre ser que um dia foi rejeitado e em função disto sou
assim ... Este pode ser o efeito da "crença" por parte do terapeuta e do cliente de que os fatos do
passado determinam mecânicamente o presente, e de que existe um eu unitário, efeito de tudo
isso. Este eu unitário só existe quando a consciência é vitoriosa, quando ela vence as lutas do
desejo e estabelece um domínio sobre outros eus marginais, menores.

Ao invés de um clínica reativa propormos uma clínica do esquecimento, no sentido Nietzscheano.


Que estratégias clínicas podemos construir neste sentido? Eis uma pergunta a ser respondida nas
situações concretas que infrentamos como terapeutas.

M., 42 anos, tinha tido uma infância "daquelas que psicanalista gosta", segundo sua expressão. Já
tinha sido analisado por mais de 10 anos. Voltava a buscar tratamento pois se sentia muito
angustiado e com idéias suicidas, como já ocorrera anteriormente. Chamavam minha atenção
alguns aspectos de sua história de vida: a violência concreta exercida pelos pais adotivos, através
de surras e castigos severos na infância, seguida da distância que se estabeleceu quando M. se
tornou adulto, pois os pais retornaram ao país de origem (eram imigrantes) vindo a falecer sem
que M. os revisse ou se emocionasse com a notícia de sua morte.

Não me ocuparei de descrever os detalhes desta infância, cabe apenas ressaltar as estratégias
clínicas empregadas. Para M,. fazer análise era remexer neste passado, buscar detalhes ou
lembranças, preencher lacunas. Mas isto lhe desgostava profundamente (embora achasse que ia
me agradar), pois o fazia sentir-se diminuído, humilhado, como se repetisse as experiências a
cada relato. Ao me dar conta da esterelidade destas "escavações arqueológicas", deixei de fazer
qualquer menção a este material trazido pelo cliente. Ele passava, por assim dizer, "em brancas
núvens". Já se M. me falava de algo que estivesse fazendo - arrumação da biblioteca, cortar o
cabelo, o trânsito que enfrentara para vir até a sessão, "era toda ouvidos". Esta estratégia foi muito
frutífera, pois além de facilitar outras produções em sua vida concreta (sucesso num concurso, o
desejo de ser pai) fez com que um outro "fazer história" se estabelecesse. M. retornou mais tarde
a suas lembranças de infância, trazendo aspectos desconhecidos para mim e não valorizados por
ele. A turma da rua, a militância política iniciada ainda no colégio, etc, entre outros aspectos, foram
evocados. O "fazer história" a que se dedicava M. anteriormente era uma atividade consciente de
memorização. Antes, ia em busca de memórias[6], agora elas vinham até ele, de modo irresistível.

[1]DELEUZE,G. Empirismo e Subjetividade.Capítulo II

[2] DELEUZE, G. Espinoza e os Signos. Porto, Rés, 1973.

[3] FOUCAULT, M. História da Sexualidade. A Vontade de Saber . Vol I .Rio, Graal, 1985.

[4]DELEUZE, G.Nietzsche e a Filosofia. Rio, Editora Rio, 1978.

[5]Muitos psicanalistas colocam assim a questão: reconhecem que a Psicanálise não se aplica a
todo e qualquer ser humano, e propõem que aqueles aos quais ela não se aplica não sejam
analisados. Esta "triagem" seria feita nas primeiras entrevistas. Freud comungava destas idéias,
uma vez que em seus escritos técnicos propõe que se submeta todo cliente a sessões probatórias
com finalidade diagnostica. Para ele, a analisabilidade se refere também ao grau de instrução do
cliente.

[6]Aqui trabalhamos com a distinsão feita por Deleuze no livro Proust e os signos, entre memória
voluntária e memória involuntária.Também poderiamos relacionar a questão com a distinsão
Bergsoniana entre memória utilitária e memória do ser.

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