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Os direitos humanos dos humanos

sem direitos
Refugiados e a política do protesto*

Carolina Moulin

G
Amamos o Brasil, mas preferimos voltar para nativa ao paradigma do mundo colonial moderno.
os campos de concentração. Isto quer dizer que, apesar de ancorado em uma
Esse primeiro grito é um pedido de socorro ao Brasil; o
premissa normativa emancipatória, a emergência de
segundo será um grito com pedido de justiça ao mundo.
um regime internacional de proteção à pessoa hu-
Slogans de protesto nas manifestações dos refugiados mana respondeu (e responde), prioritariamente, às
palestinos em Brasília, 2008.
demandas contextuais de rearticulação das relações
de poder no plano internacional e de manutenção
Walter Mignolo (2000) sugere que o discurso
do núcleo duro do design (neo)liberal. Tal núcleo
de direitos humanos, embora fundamentado na
articula-se, sobretudo, na celebrada tríade Estado-
ideia de direitos subjetivos, universais e inclusivos,
-nação-território, por meio da qual a realização dos
não representa, em si mesmo, uma política alter-
direitos subjetivos depende das relações de perten-
cimento estabelecidas entre sujeitos e comunidades
* Agradeço aos participantes e organizadores do GT políticas exclusivas (e excludentes). Essa tese ecoa as
“Migrações Internacionais” do 33º. Encontro da preocupações já avançadas, por exemplo, por Han-
Anpocs pelos comentários e sugestões e aos revisores
anônimos da RBCS pelas críticas e notas. Agradeço nah Arendt (2004 [1948]). Analisando as perplexi-
sobretudo aos refugiados que residem no Brasil pelo dades e as violências causadas pela Segunda Guerra
aprendizado e pela sua fonte inesgotável de esperança. Mundial, Arendt problematiza a questão do sujeito
dos direitos humanos para demonstrar a sua impos-
Artigo recebido em março/2010 sibilidade no mundo colonial moderno. A pergunta
Aprovado em fevereiro/2011 se volta, então, para a definição de quem são esses
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“seres humanos” para quem a efetivação e a imple- “brazilianização da política mundial”; Wacquant
mentação de direitos se faz possível e necessária. (2008) analisa a redução da política internacional
Para ambos os autores, a (in)segurança su- ao gerenciamento de uma política disciplinar pe-
postamente solucionada pela prática humanitá- nal, cujo objetivo central é controle, contenção e
ria acaba por perpetuar o problema da realização prevenção do risco eminente que referidos grupos
dos direitos humanos, haja vista que aqueles que podem trazer para a ordem e a estabilidade do siste-
mais deles necessitam são justamente os que menos ma doméstico e internacional. De toda maneira, o
poderão por eles ser assistidos. Em termos gerais, que todas essas contribuições indicam são dois pro-
pode-se afirmar que o sujeito dos direitos humanos cessos concomitantes dessa crise. O primeiro refere-
é, quase que por necessidade, o cidadão, excluindo -se à sua expansão nas dimensões espaço-temporais,
dessa maneira um enorme contingente de pessoas e que indicam a globalização dos efeitos crescentes da
grupos para os quais a cidadania possui pouco ou interpenetração de povos, culturas e marginalidades
nenhum significado. A proliferação dessas exterio- para além das divisões tradicionais de um mundo
ridades (reproduzidas pela violência fundacional do bipolarizado (Ocidente/Oriente, Primeiro/Terceiro
moderno sistema de Estados) é evidenciada pelo Mundos, Norte/Sul). Nesse sentido, países desen-
crescimento do número de populações marginaliza- volvidos se vêem constantemente achacados pela
das e excluídas do marco de proteção da cidadania. proliferação dos guetos, dos banlieues, dos bairros
Podemos incluir nesse rol as mais diversas catego- de imigrantes, da internalização das desigualdades
rias de indivíduos e grupos sociais, que detêm, via que, no imaginário moderno colonial, deveriam ser
de regra, uma relação conflitiva e ambígua com au- contidas na racialização da diferença e na sua re-
toridades soberanas. Povos indígenas, expropriados territorialização em espaços periféricos. Poderíamos
e marginalizados pelos processos de colonização e falar, dessa maneira, de um processo crescente de
destituição de suas culturas e territórios, processos interiorização das externalidades que, por sua vez,
esses centrais para a formação da ordem internacio- acaba fomentando um discurso securitário funda-
nal e das estruturas de poder contemporâneas; refu- do em uma cultura do medo e em uma geografia do
giados, expulsos de suas terras, expurgados de suas ódio (Appadurai, 2006).
comunidades e gerenciados como efeito colateral O segundo processo refere-se às limitações da
das práticas violentas de reconstituição das frontei- solução moderna para o problema dos direitos, na
ras identitárias e políticas; migrantes econômicos, medida em que Estados-nação não mais se mos-
em particular aqueles sem status, indocumentados, tram capazes de garantir os termos do contrato so-
vivendo às margens das estruturas da divisão de tra- cial, ou seja, de prover para seus clientes (cidadãos)
balho global e cuja expropriação e subalteridade se as garantias fundamentais nas quais se ancoram o
fazem necessárias para a manutenção do sistema poder e a legitimidade do governo da coisa pública.
produtivo transnacionalizado; e, ainda, um grupo Em outras palavras, assistimos à proliferação de so-
cada vez mais abrangente de cidadãos de segunda ciedades de (in)segurança, cada vez mais articuladas
classe (ou subcidadãos), para os quais as promessas ao discurso dos direitos humanos e do direito hu-
de inclusão nunca se efetivaram, seja por táticas de manitário como estratégias disciplinadoras (e não
exclusão política, econômica e social, seja por estra- mais emancipatórias). E observamos, quase que
tégias de reclusão e contenção territorial1 (da favela, atônitos, o sentimento de paralisia e descrença para
do campo, do sistema penitenciário, dos hospitais com os rumos dos (des)governos políticos, aqui e
psiquiátricos). acolá. Nesse contexto, indago que, talvez, as alter-
Essa crise, nunca resolvida, da expansão dos nativas e as respostas aos problemas prementes da
humanos sem direitos para os direitos humanos é política de (in)segurança mundial, e em particular
hoje também global (ou talvez sempre tenha sido). da dinâmica global da proteção aos direitos da pes-
Boaventura de Souza Santos (2004) define a mun- soa humana, esteja justamente no olhar atento das
dialização desse fenômeno como a “transnaciona- estratégias desenvolvidas por esses grupos de supos-
lização do Terceiro Mundo”. Beck (2000) fala da tos “humanos sem direitos”.

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Partha Chatterjee sugere que parte dessas es- cidade, a filiações identitárias, étnicas, familiares
tratégias reside nos processos de negociação que se e religiosas. Seu modo de presença normalmente
estabelecem entre os grupos marginais da política envolve uma flexibilidade dos termos do contrato
democrática liberal e os núcleos institucionais sedi- social, a “distorção das regras de convívio” e o re-
mentados nas figuras dos grupos de interesse e do curso a mecanismos de participação que seriam, em
próprio Estado.2 Para ele, esses sujeitos, que detêm qualquer outro contexto, consideradas ilegais. A
uma relação ambígua e incompleta com os discur- sociedade política procura, dessa maneira, abarcar
sos de (e dos) direitos, compõem em larga escala o essa esfera da política que converte grupos margi-
espaço atual do desenrolar da política e, em suas nais (no duplo sentido da palavra, como aqueles
articulações, redefinem o próprio conteúdo do po- que habitam as margens e que são percebidos como
lítico. A crítica se volta, portanto, para a linguagem transgressores da ordem estabelecida) em dimen-
e os instrumentos convencionais de análise política sões importantes de exercício da função gerencial
que parecem preocupar-se apenas com um grupo e interventora das agências governamentais. Con-
relativamente restrito e culturalmente equipado tudo, percebe e considera salutar a influência des-
(Chatterjee, 2004, p. 39) de sujeitos dotados de di- ses mesmos grupos como elemento transformador
reitos (humanos) e que têm acesso aos mecanismos e potencialmente inovador no que tange à recon-
de participação no processo decisório. Conceitos ceitualização de uma alteração radical da política
como sociedade civil buscam precisamente mape- contemporânea. O simples fato de que tanto as
ar essas interações e o impacto desses grupos de agências governamentais como grupos de interesse,
cidadãos sobre a distribuição dos recursos sociais. ONGs e demais membros da sociedade civil têm
Não obstante, na medida em que proliferam as de- que prestar atenção e negociar com a sociedade po-
sigualdades e as (in)seguranças por elas trazidas, as lítica indica que, longe de serem irrelevantes, essas
limitações analíticas se fazem óbvias e denotam a marginalidades, muitas vezes convertidas em fontes
necessidade de se repensar os mecanismos de ne- de insegurança, são, elas próprias, essenciais para a
gociação social, sobretudo junto a grupos que não reprodução das funções governamentais e para o es-
se articulam dentro dos quadrantes de civilidade, tabelecimento dos próprios limites do discurso dos
transparência e representatividade tão caros (e cen- direitos. Em outras palavras, a presença da sociedade
trais) ao processo democrático liberal (Moulin e política revela que os direitos humanos dependem
Nyers, 2007). da existência de seres humanos sem direitos e que,
Nesse contexto, emerge a sociedade política, na sua luta por inclusão ou por alternativas, eles
composta por indivíduos e grupos de subcidadãos reconfiguram o próprio conteúdo do discurso dos
(ou de não cidadãos), que são cuidados e contro- direitos. É dessa tensão produtiva que emergem tal-
lados por agências governamentais e, via de regra, vez potenciais opções emancipatórias.
convertidos em populações subjugadas às tecno- Não devemos contudo sobre-estimar essas
logias de controle do poder soberano. Embora sua mesmas potencialidades. A interrupção promo-
vinculação com as estruturas constitucionais seja vida pela sociedade política é tênue, ambígua e
tênue, a presença da sociedade política mostra-se temporária. Repleta de paradoxos, a política dos
bastante real no espaço territorial do Estado. Suas governados está intrinsecamente ligada à política
reivindicações e demandas enquadram-se dentro dos que governam e, muitas vezes, acaba por ela
de uma abordagem governamental, não obstante sendo subsumida. Se não altera as regras do jogo,
sejam usualmente feitas em uma linguagem co- a sociedade política mostra, ao menos, a emergên-
munal e, sob a ótica das abordagens democráticas, cia de novos atores, de grupos populacionais que,
por meio de estratégias não legítimas e muitas vezes de forma autônoma, “conferem (a si próprios) os
irregulares. Ainda, suas associações e intervenções atributos de uma comunidade moral” (Chatterjee,
partem de um conjunto de lealdades que, no geral, 2004, p.57) e, nesse processo, redefinem as fron-
remontam a conexões comunitárias, ao comparti- teiras do exercício político. Se, de um lado, muitas
lhamento de um locus subordinado no espaço da de suas reivindicações não proveem a solução para

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o problema dos direitos humanos, de outro, cha- quência da necessária resolução moderna que atrela
mam atenção para o nó nevrálgico que explica a o exercício dos direitos humanos ao Estado e ao ci-
vinculação, quase umbilical, entre os humanos sem dadão (Arendt, 2004 [1948]), se torna, por essa ra-
direitos como fonte das (in)seguranças políticas e zão, um sujeito sem direitos. É esta condição limiar
sociais, isto é, para o ponto de inflexão que separa do refugiado de ser um indivíduo entre soberanos
governados e cidadãos. Dentre os muitos possíveis (Haddad, 2008) que o torna figura emblemática
grupos que poderiam ser elencados como exemplos das limitações do discurso humanitário.
das articulações da sociedade política global, o foco O refugiado, pois, depende do reconhecimen-
desse trabalho reside nas demonstrações de grupos to de seu status (dos motivos fundados e subjetivos
de refugiados. Na seção que se segue, apresento os do temor que justificam a fuga) por parte de um
principais elementos definidores da figura do refu- outro Estado para readquirir, ainda que minima-
giado, aplicando-os ao contexto das manifestações mente, qualquer possibilidade de acesso a direi-
e dos protestos avançados, entre 2008 e 2009, pela tos básicos. Embora supostamente protegido pelo
comunidade refugiada palestina no Brasil. A aná- guarda-chuva do direito humanitário e por agên-
lise desse caso, importante na recente história da cias governamentais internacionais (dentre as quais
proteção humanitária no país, indica algumas das se destaca o Alto Comissariado das Nações Unidas
potencialidades e dificuldades envolvidas na forma- para Refugiados – Acnur), a retomada de seus direi-
ção da sociedade política global e, espero, a urgente tos básicos depende, prioritariamente, de sua rein-
necessidade de se repensar as fronteiras dos direitos tegração territorial e, por consequência, jurídica ao
humanos e os seus próprios termos. espaço da política governamental. Essa reinclusão
pode dar-se tanto pelo reconhecimento do status
no país de acolhida como por sua reinserção, ainda
Caridade, protestos e a luta pelo “direito a ter que temporária, no espaço do campo. Pode, ainda,
direitos” acontecer em um terceiro país, quando a integração
no primeiro país de acolhida ou no campo se mos-
A Convenção das Nações Unidas relativa ao tram insuficientes. Esse último movimento confor-
Estatuto dos Refugiados de 1951 define em seu ar- ma a situação dos refugiados reassentados, tal como
tigo 1º (A, 2) que o refugiado é toda pessoa que é o caso dos refugiados palestinos que chegaram ao
final de 2007 no Brasil, provenientes do campo de
[...] devido a fundados temores de perseguição Rweished na Jordânia.
por motivos de raça, religião, nacionalidade, por Os aproximadamente cem refugiados palesti-
pertencer a determinado grupo social e por suas nos chegaram ao país como parte do Programa de
opiniões políticas, se encontre fora do país de Reassentamento Solidário, estabelecido pelos países
sua nacionalidade e não possa ou, por causa dos Latino-Americanos em novembro de 2004. O Pro-
ditos temores, não queira recorrer a proteção de grama faz parte de processo mais amplo de revisão
tal país; ou que, carecendo de nacionalidade e do marco jurídico regional de proteção a refugia-
estando, em consequência de tais acontecimen- dos, iniciado em 2004 e concluído com a Decla-
tos, fora do país onde tivera sua residência habi- ração e Plano de Ação do México, assinados pelos
tual, não possa ou, por causa dos ditos temores, representantes nacionais ao final daquele mesmo
não queira a ele regressar. ano. O programa de Reassentamento respondeu
à necessidade de ampliar a coordenação regional
Assim sendo, o refugiado é aquela pessoa que no que tocava ao compartilhamento do apoio e da
se encontra fora do seu país de nacionalidade e/ou assistência a populações forçosamente deslocadas,
residência e, por medo de perseguição, não pode com especial ênfase na situação de colombianos em
mais recorrer ao seu governo para obter proteção. países fronteiriços. Capitaneado pelo Representan-
Nesse sentido, trata-se de quem perdeu a proteção te do Acnur no Brasil e pelo próprio governo brasi-
diplomática de seu país de origem e, como conse- leiro, o plano acordado no México tentou retomar

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um papel mais ativo dos países da região para a na fronteira da Jordânia era do exército. Não
resolução de crises humanitárias com foco especial tinha casa não tinha nada. Só um pedaço de
na atenção a populações refugiadas. A aceitação dos tecido, uma barraquinha que vivíamos dentro
reassentados palestinos entra, nesse contexto, na dela. Ficamos quatro anos e meio nesse cam-
guinada diplomática brasileira ao assumir um papel po [em 2007 ampliou-se a ofensiva contra os
de liderança regional sobre assuntos humanitários. campos de refugiados palestinos, com pressões
Embora a política de reassentamento não seja nova para que perdessem a condição de refugiados
(em 1998, reassentados afegãos chegaram ao país, palestinos e ganhassem cidadania jordaniana].4
mas o programa não foi bem-sucedido), não resta (Entrevista, 2009).
dúvida de que o processo recente surge a partir de
uma ótica regional mais coerente e de uma articu- É nesse contexto, e com essa bagagem, que os
lação mais intensa entre governo, organizações da refugiados palestinos chegam para o reassentamen-
sociedade civil e organizações internacionais. to no país. E a história de esperança converte-se em
Os refugiados palestinos foram, assim, incluí­ alguns poucos meses numa batalha política cons-
dos em um programa especial, desenhado pelo pe- pícua entre eles e as diversas agências governamen-
ríodo de dois anos, nos quais organizações da socie- tais nacionais e internacionais responsáveis pela sua
dade civil, o Acnur e governos seriam responsáveis proteção. Em abril de 2008, três refugiados pales-
por prover os meios necessários para sua plena in- tinos percorreram de ônibus os mais de mil qui-
tegração à cultura e à sociedade brasileiras. Distri- lômetros que separam Mogi das Cruzes e Brasília
buídos em municípios do interior de São Paulo e e iniciaram um protesto em frente ao escritório
Rio Grande do Sul, os refugiados teriam direito a do Acnur na nobre região do Lago Sul na capital
moradia, assistência médica e ajuda de subsistência federal. Alojados em barracas de plástico e dor-
mensal, além de acesso a programas de aprendizado mindo nas calçadas, os refugiados permaneceram
da língua portuguesa e de integração cultural. Os no local por mais de um ano, esperando que suas
refugiados palestinos, ao contrário da maioria da demandas fossem atendidas. Nesse ínterim, outras
população refugiada espontânea no país,3 já deti- famílias juntaram-se ao grupo, entre elas mulheres
nham, contudo, uma longa e histórica relação com e crianças (Fernandes, 2009). Reclamavam da falta
os mecanismos internacionais de proteção humani- de assistência recebida da sociedade civil nas comu-
tária. Muitos deles, fugindo dos conflitos com Israel nidades receptoras e da ausência de diálogo com as
e, posteriormente, das duas grandes guerras no Ira- instituições, em especial com o Acnur. Decidiram
que, habitaram os espaços de contenção de campos assim intervir no processo, impondo sua presença
de refugiados por anos. Conhecedores das estrutu- cotidiana na rotina da agência e procurando atrair
ras e das regras de proteção humanitária, chegaram atenção da mídia e da opinião pública para uma
ao Brasil com esperanças de mudança, não obstante rea­lidade ainda bastante desconhecida da popula-
cientes das difíceis e circunscritas regras do jogo dos ção em geral.
direitos humanos internacionais para apátridas e re- Dentre as diversas demandas avançadas pelo
fugiados. Essa trajetória é observada no relato de grupo, destacam-se a exigência de tratamento mé-
vida de um dos palestinos reassentados: dico adequado e imediato para idosos e doentes,
retomada do benefício mensal (suspenso após o
Estou refugiado desde 67. Fui refugiado aos início dos protestos), reunificação das famílias se-
19 anos quando fugi da guerra entre Israel e paradas no processo de alocação nos municípios do
Palestina indo para o Iraque. Depois fui para programa de Reassentamento, negociação dos ter-
Arábia Saudita, Líbia e voltei para o Iraque mos da permanência findos os dois anos previstos
onde vivi até a invasão dos Estados Unidos, para a implementação do programa e, principal-
quando tive que fugir e me tornar mais uma mente, a discussão sobre o potencial reassentamen-
vez refugiado na fronteira com a Jordânia no to para países onde os refugiados possuíam famílias
campo Rweished [de refugiados]. Esse campo ou para campos montados pelo Acnur. Em suma,

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as demandas orientavam-se em dois eixos centrais, ficou de nos acolher e cuidar. Já faz dois meses
quais sejam, o da reformulação efetiva do progra- que não temos nenhum contato com a Acnur.
ma de integração e o direito a voz não só sobre os Eles se mudaram [do local onde os refugiados
termos dessa integração como também sobre o pró- ficaram acampados anteriormente] e só o go-
prio direito à mobilidade internacional. O primei- verno brasileiro sabe onde eles estão. Mas o go-
ro reflete uma longa e já conhecida narrativa das verno brasileiro não nos procura. O programa
populações refugiadas no Brasil que acabam inte- vence agora em setembro, vão ser pelo menos
gradas apenas em outros espaços de exclusão socio- cinco meses abandonados. O que vai ser de
econômica, sobretudo nos grandes centros urbanos nós? (Entrevista, 2009).
do país. Assim, a proteção humanitária concedida
acaba tornando (quase) permanente uma situação Os protestos refletem, dessa maneira, uma ten-
de marginalidade jurídica, social e racial, comum a tativa dos refugiados de retomar o controle sobre
outros tantos quase-cidadãos nacionais. Por outro suas vidas e sobre sua mobilidade, em um contex-
lado, os refugiados questionam a estrutura do mar- to no qual eles se reconhecem como humanos sem
co normativo internacional de proteção à pessoa direitos e que, por essa mesma razão, conferem ao
humana, em particular o do Direito Internacional grupo os “atributos de uma comunidade” (Chatter-
dos Refugiados, que tende a vincular sua identida- jee, 2004). A mobilidade, que confere ao indivíduo
de, modos de existência e os próprios destinos de a liberdade mais fundamental de escolha, se alça,
suas vidas individuais e familiares aos ditames das na experiência do refúgio, à categoria de direito hu-
agências governamentais. E esses ditames normal- mano mais básico e elementar. Contra a sedenta-
mente restringem a figura do refugiado aos espaços riedade do Estado e da territorialidade soberanas,
da caridade social e/ou da criminalidade e da segu- que presumem a realização dos direitos humanos
rança (Soguk, 1999; Pratt, 2005; Moulin, 2011). por meio da cidadania à uma fixidez espacial, os re-
Em qualquer um desses espaços, as populações re- fugiados reclamam pela retomada da autonomia do
fugiadas são convertidas em sítios de intervenção, nomadismo, da condição de exílio como traço per-
seja do cuidado pastoral das diversas agências por manente e quase inescapável da existência humana,
eles responsáveis (Foucault et al., 2007), seja do ou, pelo menos, da existência de grande parte da
aparato penal, judicial e disciplinar que visa conter humanidade – em especial, e talvez paradoxalmen-
as desordens e as fontes de insegurança à comuni- te, da humanidade para a qual foi negada essa mes-
dade internacional e hospedeira. ma condição, da humanidade impossível e reduzida
à vida nua, como salienta Agamben (1998).
[A situação se complicou] porque até agora ne-
nhuma pessoa do governo se dispôs a ajudar Se fizermos uma comparação com esse campo
a gente ou encaminhou nossa situação. Isto [de Rwesheid] e a situação que enfrentamos
ocorre porque lei aqui no Brasil é para quem aqui no Brasil, nós vivemos muito melhor,
é rico, quem tem poder. Estamos aqui há um com muito mais orgulho, nos sentíamos muito
ano e sete meses e o governo não nos escuta, só mais humanos lá no campo do que aqui. Por-
escuta o Acnur. Pelo fato de sermos refugiados que aqui nós nos sentimos tratados pior do que
pobres o governo brasileiro não olha para nós. se trata um animal. Para o animal existem leis,
Estamos refugiados no Brasil e o governo não direitos, nós não temos nada. Aqui no Brasil,
deveria deixar a situação chegar neste ponto, o as Nações Unidas e o governo que nos trou-
que é algo muito feio para o governo brasileiro xe nunca nos trataram como humanos, nem
e para quem gosta deste país. Agradecemos aos protegidos como prometeram. A única coisa
brasileiros. Quem nos ajudou neste período que nós queríamos era o orgulho. Mas aqui eu
foram nossos vizinhos brasileiros e os amigos nunca vou encontrar. O Acnur, as Nações Uni-
que fizemos aqui. Parece que o programa [para das, não nos trata como refugiados, aqui não
refugiados] foi feito por eles. E não por quem tivemos nem direitos humanos, então não te-

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mos direitos de nada. Nós não aceitamos mais namento desses indivíduos como fontes potenciais
isso, essa situação. Por isso estamos pedindo de ruptura da fixidez e da ordem internacional dela
nossa saída do Brasil. Não é porque não gosta- derivada. Precisam valer-se de estratégias de inter-
mos do Brasil, mas porque fomos maltratados rupção, de intervenção radical que se dá pela sua
pelas Nações Unidas, por essas ONGs que dis- simples presença em espaços não autorizados; pela
seram que nos acolheriam, mas nunca o fize- sua simples demanda como interlocutores de um
ram (Entrevista, 2009). debate que afeta suas vidas, mas para o qual não são
convidados. E, nesse processo, esperam que o seu
Como pensar que os refugiados prefirem viver direito à voz seja garantido, torcem para que sejam
no campo ao Brasil? Como explicar essa impossibi- escutados.
lidade da humanidade mesmo dentro do guarda- Cumpre ressaltar, contudo, que a sociedade
-chuva protetor do humanitarismo? Como justi- política funciona, nesse sentido, não só como are-
ficar para a comunidade hospedeira essa própria na de discussão (ou de alargamento do campo das
impossibilidade? Com uma narrativa apologética disputas políticas), mas também como processo
que, ao mesmo tempo em que justifica o fracasso de subjetificação ao conferir a esses grupos os atri-
da integração e do discurso de proteção, politiza butos necessários que permitem o seu posiciona-
o direito de escolha sobre a mobilidade e reverte a mento como participantes do debate sobre a pro-
lógica do cuidado, na qual as opções são dadas aos teção internacional a refugiados. Permitem ainda
refugiados, em vez de serem por eles estabelecidas. a formação de redes de solidariedade, articuladas
justamente pela ampliação do seu espaço de atua-
Eu peço desculpas por não ter me adaptado. Eu ção. Na medida em que o processo se prolonga no
tinha o sonho de ficar no Brasil. Mas agora tempo e no espaço novos grupos vão aderindo à
eu tenho dois desejos: quero voltar para a Pa- causa dos refugiados palestinos. Contam hoje com
lestina ou ir para o campo de refugiados onde o apoio de vizinhos (muitos dos quais forneceram
eu estava. Torço para que o governo brasileiro comida e apoio material aos protestantes), com a
nos escute. Esperamos que o governo nos es- ajuda de associações, com advogado e com a mo-
cute e discuta com a gente o nosso problema e bilização de outros setores da sociedade (entre eles
deixe realizar uma dessas duas opções. Estamos estudantes universitários e, inclusive, alguns mem-
deprimidos e traumatizados pela tortura psico- bros do Parlamento). De fato, durante o protesto,
lógica que sofremos (Entrevista, 2009). os refugiados conseguiram organizar uma reunião
com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara
Os protestos dos refugiados palestinos, e as dos Deputados, ocasião na qual encontraram uma
narrativas e demandas relativas ao reassentamento e importante porta de entrada para suas demandas
ao aparato de proteção, fornecem um exemplo cla- nas agências governamentais. Em agosto de 2009,
ro de como a sociedade política opera. Grupos que moveram o protesto para o gramado do Itamara-
detêm uma relação tênue com noções de cidadania ty, na tentativa de mobilizar também a diplomacia
e que habitam espaços transnacionais de exclusão brasileira, em especial os diplomatas vinculados ao
jurídica e socioeconômica se posicionam no debate setor de Organizações Internacionais, para a sua
político acerca dos limites e potenciais dos direitos causa. Essa estratégia, embora não tenha aberto
humanos, a fim de pressionar agências e institui- as portas dos altos escalões diplomáticos, garan-
ções domésticas e internacionais responsáveis por tiu uma promessa de encontro entre os refugiados
sua proteção. Nesse processo, precisam articular e os membros do Comitê Nacional para os Re-
suas posições por meio da construção de um sen- fugiados (Conare), principal órgão vinculado ao
so de comunidade moral, que lhes é conferido pela Ministério da Justiça responsável pela população
própria impossibilidade de habitar uma condição refugiada no país.
de inter, do entre Estados, que é sempre reapro- Além disso, nota-se um processo crescente de
priado sob a ótica do gerenciamento e do discipli- globalização da sociedade política, já que come-

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çam a articular-se transnacionalmente com outros jornal de Berlim e a um canal de TV que cobre
grupos de refugiados palestinos e a ter como alvo grande parte da Europa, o advogado Acilino
uma audiência que é cada vez mais global. A im- Ribeiro informou que a principal reivindicação
prensa internacional começa a veicular notícias dos refugiados agora é irem para outro país,
sobre o caso e, com isso, eleva o perfil político da pois foram maltratados e abandonados pelo
manifestação.5 Se global em seu escopo, o protesto Acnur (Interprensa, 2009).
é também global em seus objetivos, pois visa sobre-
tudo à crítica da estrutura de proteção internacio- Esse processo de emergência de uma socieda-
nal, focando suas demandas sobre a agência por eles de política global faz com que seja cada vez mais
responsável (Acnur) e exigindo uma solução que é difícil para as agências governamentais, domésticas
também por natureza internacional, qual seja, a de e internacionais,esquivar-se do diálogo e de um
sua mobilidade para além das fronteiras estabeleci- posicionamento sobre os problemas da política
das entre o território brasileiro e o campo de onde de proteção. Isso não quer dizer, contudo, que os
provêm. Essa é a estratégia indicada em cobertura protestantes tenham alterado ou sequer alcançado
feita sobre o protesto em frente ao Itamaraty em quaisquer de suas reivindicações. Ao contrário, a
maio de 2009: impossibilidade de continuação do acampamen-
to, em função de medidas restritivas emitidas por
[...] numa estratégia traçada pelos principais autoridades locais, pôs fim à mobilização. Em face
dirigentes do Comitê de Apoio aos Refugia- às pressões e aos choques de “lei e ordem”, mui-
dos, preferiram fazê-lo usando o elemento tos dos protestantes retornaram às suas cidades de
surpresa para evitar confronto com as autori- reassentamento. O encerramento do protesto, e
dades e principalmente a policia, tendo a im- as muitas vezes trágicas consequên­cias para seus
prensa chegado somente após algumas horas, participantes, atesta para a resiliência das dificul-
principalmente um grupo de correspondentes dades em transformar as regras do discurso de
estrangeiros que cobria, já à noite, um jantar proteção. O medo irrefutável do uso iminente da
para diversas autoridades estrangeiras no Ita- força e do aparato coercitivo da violência (como
maraty, onde os refugiados esperavam encon- medo das tropas de choque e do cerco policial aos
trar o presidente Lula e ter a oportunidade de protestos) também restringem sobremaneira as
pedir-lhe ajuda. Durante todo o período gru- possibilidades estratégicas do grupo. Não eximem
pos de estudantes de várias universidades do também os próprios refugiados da sua incapaci-
DF apareceram para manifestar solidariedade dade em traduzir seus traumas e experiências para
aos refugiados e saber de suas reivindicações. um contexto no qual a realidade da proteção é de
[...] Estudantes do curso de Cinema de uma difícil acesso para grande parte da população hos-
das principais Faculdades do DF filmaram e pedeira. Entretanto, nenhum desses aspectos (ou
entrevistaram alguns dos refugiados e ao advo- deficiências) tornam menos relevante o que suas
gado Acilino Ribeiro para um documentário narrativas podem significar para a reformulação
que irá concorrer em vários festivais no mundo da política de proteção humanitária, sobretudo
inteiro, e assim chamar a atenção do mundo no contexto regional. Enquanto os círculos diplo-
sobre a questão dos refugiados, enquanto ou- máticos aplaudem a liderança humanitária brasi-
tros estudantes, desta vez do curso de Foto- leira e a sociedade civil e governos celebram os
grafia e em número bem maior, em trabalho dez anos da Lei 9474 (Estatuto dos Refugiados),
para o curso fotografaram o momento da ins- os protestos indicam que, em sociedades periféri-
talação do acampamento e tiveram suas fotos cas, a letra dos direitos humanos ainda vive como
enviadas para todas as agências internacionais fronteira da utopia, mas agora de uma utopia que
de notícias e as principais rede de TV do mun- tem cara, cor e tom definidos. Nas palavras dos
do , como a Al Jazira, que as divulgou ontem próprios refugiados, ainda nos meses iniciais do
mesmo. Em entrevista à imprensa alemã, um acampamento:

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Por que é que sempre que alguém, nas posições desses sujeitos móveis, com lealdades múltiplas, in-
de alto escalão dos governos, diz alguma coisa, terpretados e disciplinados como efeitos colaterais
aquilo é considerado verdade? Por que eles não e desestabilizadores do sistema internacional. Em
nos perguntam diretamente? Se alguém não outras palavras, os protestos indicam as limitações e
sabe o que queremos, é muito simples: venham as potencialidades abertas pela problematização do
até nós e perguntem. Durante esses quatro me- direito a ter direitos no plano internacional, sobre-
ses que estivemos em Brasília, qualquer um já tudo em contextos nos quais o modelo de gerencia-
sabe onde nos encontrar (Blog Refugiados com mento (voltado para um marco histórico no qual a
Dignidade, ago. 2008). mobilidade se articulava nos eixos preexistentes das
relações de poder entre Estados, ou seja, no âmbito
das relações entre o mundo desenvolvido e o mun-
do em desenvolvimento) parece pouco apropriado
Conclusões para a circulação cada vez mais intensa entre socie-
dades periféricas.
Em uma apresentação recente de trabalho so- As consequências dessas mudanças afetam não
bre a mobilização política de comunidades deslo- só as instituições globais de regulação e assistência
cadas na Amazônia Oriental, para uma plateia de humanitária, governos nacionais e sociedade civil
estudioso da área de relações internacionais, foi-me global, mas também os próprios grupos de refugia-
questionado o porquê da necessidade de se estudar dos, na medida em que trazem consigo expectati-
a “voz” desses grupos marginalizados. A pergunta vas, muitas vezes frustradas, de acesso a uma prote-
era justificada pelo fato de que referidos grupos ção jurídica nos moldes das democracias avançadas.
nunca tiveram (e portanto não devem ter no futuro A esperança de encontrar no refúgio um espaço de
próximo) qualquer impacto sobre a formulação de oportunidade, acaba se convertendo em um encon-
políticas públicas e sobre os rumos da política de po- tro no qual o medo da morte violenta (princípio
der global. O protesto dos refugiados palestinos no estruturante dos modelos convencionais das rela-
Brasil indica que a proliferação espaço-temporal de ções internacionais) é meramente subsumido na
uma humanidade sem direitos é, de um lado, resul- luta cotidiana, normalmente travada no espaço da
tante das estruturas de poder global e da impossível informalidade socioeconômica das marginalidades
resolução dos direitos humanos dentro do marco periféricas, pela sobrevivência identitária e social.
da tríade território-Estado-cidadão. Mas, de ou- Expectativas frustradas pela desmistificação do en-
tro, também demonstra como essa mesma huma- contro humanitário, que romantiza a proteção for-
nidade tem se convertido em espaço crescente de necida pelo Estado e e seus representantes, e pelo
intervenção política e, mais do que isso, da trans- aumento das barreiras à mobilidade entre Norte e
nacionalização das funções pastorais das estruturas Sul. Assim, esses grupos acabam tendo como úl-
de governança global. Se os refugiados ainda não timo recurso o refúgio nesses “terceiros-mundos
tiveram sucesso em alterar essa complexa dinâmi- transnacionais” (Santos, 2004). Longe de desatar o
ca das relações de poder global, acredito, contudo, nó entre (in)seguranças e direitos humanos, a so-
que a emergência de sua mobilização política global ciedade política global reclama para si essa função
apresenta importantes questionamentos sobre as e, nesse processo, questiona a capacidade das agên-
premissas nas quais se edificam as regras de acesso cias governamentais domésticas e internacionais
à mobilidade humana em um mundo interdepen- em lidar com suas demandas num espaço que é,
dente. No mínimo, a emergência de uma sociedade sempre e por necessidade, político. Isso não quer
política global, evidenciada pela contra-cultura do dizer que a sociedade política global, incipiente na
protesto de diversos grupos de não e quase-cidadãos sua mobilização, muitas vezes ineficaz em sua im-
nos mais diversos rincões do planeta, torna saliente plementação, produz as respostas necessárias e vi-
as indagações sobre os efeitos e as violências engen- áveis às difíceis perguntas do debate humanitário.
dradas por uma política global de gerenciamento Entretanto, demonstra a existência de uma outra

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política dos direitos, ou como sugere Chatterjee espaço crescente de intervenção e de diálogo entre os
(2005), o retorno a uma política pura, na qual vio- diversos grupos. De fato, o início dos protestos só co-
lência, ética e política se encontram na negociação meça a entrar o imaginário coletivo por meio de blogs
dos termos de uma hospitalidade para com o outro. e chamadas na Internet, já que a mídia oficial tarda a
encontrar espaço para os manifestantes. No próprio
A realização dos direitos humanos depende assim
blog, os refugiados sugerem que, apesar de terem con-
de se repensar seriamente o que os humanos sem cedido entrevistas a redes de rádio e TV, elas em sua
direitos têm a dizer e como o fazem. Talvez na jun- maioria não foram veiculadas por razões que, para
ção dessas múltiplas inseguranças resida o potencial eles, indicam uma tentativa das agências governamen-
da factibilidade do discurso de direitos ou de uma tais (domésticas e internacionais) de manter o domí-
percepção dos direitos humanos como estratégia de nio sobre a narrativa do evento (e consequentemente
inclusão do estrangeiro, como igual e diferente (To- manter o monopólio sobre a temática da proteção a
dorov, 1998). refugiados) (Blog Refugiados com Dignidade, 2008).

Notas BIBLIOGRAFIA

1 Faço uso da ideia de reclusão e contenção territo- Acnur – Alto Comissariado das Nações Unidas
rial, bem como do conceito de sociedades de (in) para Refugiados. (2004), “Declaração e plano
segurança, a partir da contribuição de Foucault et al. de ação do México”. Disponível em <www.
(2007), em especial da leitura avançada por Haesba-
acnur.org/biblioteca/pdf/3453.pdf>, acessado
ert (2006) sobre esses fenômenos na ordem mundial
contemporânea.
em 16/11/2007.
Agamben, G. (1998), Homo sacer: sovereign po-
2 Essa é uma breve digressão sobre a discussão sobre
wer and bare life. Stanford, Stanford University
sociedade política global avançada por Peter Nyers
e eu no contexto da mobilização e dos protestos de Press.
comunidades refugiadas. Para uma análise mais de- Appadurai, A. (2006), Fear of small numbers: an
talhada desse mesmo marco teórico, embora em um essay on the geography of anger. Durham, Duke
contexto diferente do aqui apresentado, ver Moulin e University Press.
Nyers (2007). Arendt, H. (2004 [1948]), “The decline of the
3 Refugiados espontâneos são, como o próprio termo Nation-state and end of the rights of man”,
indica, aqueles que chegam aos portos de entrada e in , The origins of totalitarianism,
solicitam, por conta própria, refúgio às autoridades Nova York, Schocken Books, pp. 341-384.
competentes. Normalmente, embora certamente haja Beck, U. (2000), The brave New World of work.
exceções, os refugiados espontâneos no Brasil chegam Malden, Blackwell.
por portos, aeroportos e rodovias e encontram pela Blog Refugiados com Dignidade. (2008), Dispo-
primeira vez o aparato protetivo humanitário. Mui-
nível em <http://acampadosnoacnur.blogspot.
tos permanecem no país por período determinado em
situação irregular e só procuram a proteção após obte-
com>, acessado em 16/12/2008.
rem referências das instituições de assistência locais ou Chatterjee, P. (2004). The politics of the gover-
por meio de contatos com comunidades diaspóricas ned: reflections on popular politics in most of the
(de migrantes e refugiados). world. Nova York, Columbia University Press.
4 As referências aqui citadas são de uma entrevista rea- . (2005), “Sovereign violence and the
lizada com os refugiados em protesto, conduzida em domain of the political”, in T. Hansen e F.
junho de 2009 pelo jornal Causa Operária. A íntegra Stepputat (eds.), Sovereign bodies: citizens, mi-
da entrevista está disponível em <www.pco.org.br/co- grants, and States in the postcolonial world. Prin-
noticias>. ceton, Princeton University Press, pp. 82-100.
5 Podemos, ainda, elencar uma rearticulação global dos Dillon, M. (1999), “The scandal of the refu-
meios de comunicação da subalteridade, na medida gee: some reflections on the ‘inter’ of interna-
em que o mundo virtual começa a se delinear como tional relations and continental thought”, in

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Os direitos humanos dos HUMAN RIGHTS OF HUMANS LES DROITS DE L’HOMME DES
humanos sem direitos: WITHOUT RIGHTS: REFUGEES HOMMES SANS DROIT: LES
REFUGIADOS E A POLÍTICA DO AND THE POLITICS OF PROTEST RÉFUGIÉS ET LA POLITIQUE DE
PROTESTO LA PROTESTATION

Carolina Moulin Carolina Moulin Carolina Moulin

Palavras-Chave: Refugiados; Direitos Keywords: Refugees; Human rights; Mots-clés: Réfugiés; Droits de l’Homme;
humanos; Cidadania; Humanitarismo; Citizenship; Humanitarianism; Mobility. Citoyenneté; Humanitarisme; Mobilité.
Mobilidade.

O artigo discorre sobre a crise contem- The paper discusses the contemporary L’article aborde la crise contemporaine du
porânea do processo de institucionaliza- crisis of the institutionalization of hu- processus d’institutionnalisation des dis-
ção do discurso dos direitos humanos, man rights’ discourse, linked to the re- cours sur les droits de l’homme, liée à la
vinculada à reprodução de (in)seguranças production of global insecurities and reproduction des (in)sécurités mondiales
globais e aos limites da vinculação entre to the limits of the connection between et des limites du lien entre l’État, le terri-
Estado, território e cidadania. Desenvol- States, territory, and citizenship. It con- toire et la citoyenneté. L’auteur développe
ve o argumento de que a impossibilida- veys the argument that the impossibility l’argument selon lequel l’impossibilité ou
de ou a incapacidade de realização dos or incapacity of attaining human rights, l'incapacité de la mise en place effective
direitos humanos no contexto de um in the context of a world divided by ter- des droits de l’homme dans le contexte
mundo dividido em Estados territoriais ritorial states, resides precisely in the con- d’un monde partagé en États territo-
assenta-se justamente na junção consti- stitutive junction between the notions of riaux se situe justement à la jonction
tutiva que se estabelece entre a noção de humanity and citizenship. The dilemmas constitutive qui s’établit entre la notion
cidadania e a noção de humanidade. Os therefore produced are analyzed in light de citoyenneté et de la notion d’huma-
dilemas daí derivados são elucidados a of the recent protests among resettled nité. Les dilemmes qui en découlent sont
partir da análise dos recentes protestos de Palestinian refugees in Brazil and their élucidés à partir de l’analyse des récentes
refugiados palestinos no Brasil e de suas disagreements over the international manifestations de réfugiés palestiniens
principais críticas ao marco de proteção humanitarian regime. Thus, the paper au Brésil et de leurs principales critiques
humanitário internacional. Nesse senti- advances the idea that the international à la principale référence de la protection
do, o artigo corrobora a ideia de que o re- human rights regime acts, within this humanitaire internationale. L’article cor-
gime internacional de direitos humanos critical perspective, as a reinforcement of robore ainsi l’idée selon laquelle le régime
atuaria, dentro dessa perspectiva crítica, the current political order, rather than as international des droits de l'homme joue
reforçando a ordem política existente, e a means of subverting it, as some enthu- son rôle à l'intérieur de cette perspective
não subvertendo-a, como imaginam os siast of a human rights agenda as emanci- critique, renforçant l’ordre politique exis-
entusiastas do discurso de direitos huma- patory politics would argue. tant, et non pas en la renversant, comme
nos como promotor de uma política de l’imaginent les enthousiastes du discours
emancipação no plano global. des droits de l’homme en tant que pro-
moteur d’une politique d’émancipation
sur l'échelle globale.

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