Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Impensável Na Clínica - Aragon - Tese PDF
O Impensável Na Clínica - Aragon - Tese PDF
O Impensável na Clínica
Tese de Doutorado
O Impensável na Clínica
Banca Examinadora
_____________________________________
Dra. Suely Belinha Rolnik – Orientadora
_____________________________________
Dra. Regina Néri
_____________________________________
Dra. Miriam S. Chnaiderman Suplentes
_____________________________________ _____________________________
Dr. Luis B. Lacerda Orlandi Dra. Ângela Capozzolo
_____________________________________ _____________________________
Dr. Gilberto Safra Dra. Maria Cristina G. Vicentin
iv
Agradecimentos
Resumo
ix
Abstract
xi
The genesis of such intensive body, pulsing and rhythmical, lay the basis
for a clinical practice that deals with the affective and virtual aspects of being.
Such practice establishes an erratic process regarding what is intended to be
structured and permanent to get into the misty ground of sensations, affections
of vitality, intuitions and “intensive memories.” At this point, it’s used the
contributions by Bion (the proto-thoughts and intuition.)
Sumário
01 Apresentação
08 • Primeira cartografia clínica: Um grito, muitos sopros
29 Capítulo 1 – Corpo Objetificado
37 Capítulo 2 – Perspectivas para um corpo-acontecimento
37 2.1. Corpo-passagem
40 2.2. Corpo-estranho
44 2.3. Corpo-melodia
56 • Segunda cartografia clínica: Violetas e sons
60 2.4. Corpo-devir
62 2.4.1. O virtual
66 2.4.2. Comunicação e In-formação
67 2.4.3. O coletivo
70 2.4.4 Morre-se
76 2.4.5. Afetos
84 • Terceira cartografia clínica: Moça e a notícia que vem
das sombras
92 Capítulo 3 – Fragmentos críticos de corpos atuais
92 3.1. Imanência
96 3.2. Invenção e captura
103 3.3. Controle, antecipação e risco
108 Capítulo 4 – Apontamentos para uma clínica “do”
impensável
108 4.1. Os proto-pensamentos
114 4.2. Intuição – por uma “memória intensiva”
119 4.3. Imaginação, subjetivação e devir
126 Capítulo 5 – Agonias Impensáveis
135 Capítulo 6 – Uma ação ético/clínica
135 6.1. Agenciamento teórico
146 • Quarta cartografia clínica: Uma ação
150 Referências Bibliográficas
158 Créditos das Imagens
xiii
Apresentação
1 Uma perspectiva desta questão é a proposta por Pelbart, quando diz que “se antes o
acesso às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos
estava baseado sobretudo em critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de
passagem, relações de comunidade, pertinência religiosa, sexual, cada vez mais esse
acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis por uma grande maioria. O que se
vê então é uma expropriação das redes de vida pelo capital” (Pelbart, 2002, p. 253).
Nestes “pedágios” são vendidas “maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de
morar e de vestir”, ou seja, “a promessa de um modo de vida invejável” (idem, p. 252).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 3
Sobre o percurso
Gritos.
Mais gritos.
Não quaisquer. São gritos de raiva. Mas não só. Difícil dizer o que se
pode traduzir a partir daquele grave som que enche os espaços. Certo é
que ninguém que está por perto consegue furtar-se ao impacto da
situação. É um grito que demanda, exige.
Como seria bom parar de ouvir aquele clamor, que parece agressão
pura e simples! Por que ele não se conforma com sua situação infeliz, e
aceita seu destino? São alguns dos pensamentos, desesperados, que
surgem nas pessoas responsáveis por cuidar daquele espaçoso ser.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 9
4Bertrand Vergely ao dizer que não há mais lugar para os mortos na sociedade moderna,
quer dizer que “não é mais um morto que se enterra, é o enterro ele mesmo que se
enterra” (Vergely, 2001, p. 26). Podemos parodiá-lo dizendo que não é mais o doente que é
negado, mas o próprio fato do adoecer/envelhecer.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 11
6 Como diz Pontalis (1991, p. 15): “uma doença que entra em sua fase ‘crítica’ pode
conhecer um desfecho fatal ou um desenlace feliz; de qualquer modo será decisiva,
produzirá a decisão. Um ‘simples mal-estar’ não permite nem um diagnóstico seguro nem
um prognóstico provável; desarma nosso saber, escapa a qualquer apreensão”.
7 “Pensado por adultos”, como diria Simondon (2001, pp. 88-94).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 15
outro “de fora”. O corpo é vivido muitas vezes como um estorvo. Diz-se que
o “físico” não acompanha a “idade mental”. Mas também o mental ou
psicológico deve poder ser “trabalhado” com psicoterapias, antidepressivos,
meditações.
Grito.
Grito.
“Todo o corpo escapa pela boca que grita” (Deleuze, 1996, p. 23).
Corpo que expande, toca e recria suas dimensões, lançando as relações em
novas dimensões.
Mas também sim. Sim para o corpo vivo que não cabe na patologia e
nem na comunicação de representações subjetivas. Não cabe na
estrutura 12 orgânica ou psicológica. Nem mesmo no recorte
do real, à ordem do imaginário e mais profunda do que ambas” (Deleuze, 1995, p. 260). E
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 18
Mas com seu adoecer, o ser problematiza. Faz emergir, produz. Não
supõe uma teleologia, e não se reduz à unidade sem carregar consigo toda
a penumbra de virtualidade potencial. Homem surgindo do não-humano
no homem.
ainda: “os elementos simbólicos não têm designação extrínseca nem significação
intrínseca mas apenas um sentido de posição, é necessário estabelecer em princípio que o
sentido resulta sempre da combinação de elementos que não são eles próprios
significantes” (idem, p. 263, grifos do autor).
13 A projeção é “operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, pessoa
ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos, e mesmo ‘objetos’, que ele desdenha ou recusa
em si.” (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 478).
14 Introjeção é o “processo evidenciado pela investigação analítica: o indivíduo faz passar,
“Acho que trabalhava no porto. Devia ser uma pessoa muito ativa!”
Mas porque não ver o paciente todos os dias, já que tratar pacientes
foi a profissão eleita? Pergunta ingênua para quem habita o século XXI. Os
trabalhadores continuam ocupados com pacientes. Só que eles são muitos,
distribuídos por vários lugares diferentes. Diminuiu a relação do médico
com o paciente, e aumentou destes com a doença e com as instituições. E
talvez ainda mais com compromissos menos palpáveis, como sustentar a
existência reduzida à unidade de consumidor. Tentativa de pagar a
recalcitrante dívida de uma sociedade na qual “o homem não é mais o
homem confinado, mas o homem endividado” 17 . (Deleuze, 1992, p.224)
19 O modo como Deleuze concebe a questão do duplo em Foucault esclarece esta questão.
O duplo “nunca é uma projeção do interior, é, ao contrário, uma interiorização do lado de
fora. Não é o desdobramento do Um, é uma reduplicação do Outro. Não é uma reprodução
do Mesmo, é uma repetição do Diferente. Não é a emanação de um Eu, é a instauração da
imanência de um sempre-outro ou de um Não-eu. Não é nunca o outro que é um duplo,
na reduplicação, sou eu que me vejo como o duplo do outro: eu não me encontro no
exterior, eu encontro o outro em mim (‘trata-se de mostrar como o Outro, o Longínquo, é
também o mais Próximo e o Mesmo’)” (Deleuze, 1991, p.105).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 26
Sei que não é possível ficar passivo ante o grito. Mil sopros a
convocam. E eles partem também do que acostumei chamar “mim”.
Encontro... uma.
Dar forma aos sopros que sustentam e exigem o grito, Pois este não
pode ser suprimido. Ao contrário, é caminho de “cura” para aquilo que
ainda “não foi experienciado” (Winnicott, 1994, p. 73), apesar de vivamente
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 27
Capítulo 1
Corpo-objetificado
Mas podemos nos perguntar: o que fez com que, para além dos
indivíduos, nos preocupássemos com os seus órgãos, a vertigem do
desconhecido de seus interiores?
Com o tempo, vai tomando conta deste corpo uma filosofia que
enxerga a natureza como uma mecânica. Vê o corpo como uma máquina
composta de peças que possuem funções diferentes, mas que se compõem
para dar vida ao ser. 21 .
20 “Contra o olhar medieval, Vesálio vai instaurar os direitos da observação” (Gil, 1980,
p.124).
21 O corpo morto é o eleito para servir de complemento à concepção emergente de ciência.
22Para além do que se poderia considerar como uma simples correlação da vida com os
achados post-mortem, há toda uma mudança na concepção de vida e,
concomitantemente, em como as pessoas a experimentam. “É preciso, portanto,
substituir a idéia de uma doença que atacaria a vida pela noção muito mais densa de vida
patológica” (Foucault, 1998, 174). Como vimos desenvolvendo, é o próprio viver que está
em questão, cada vez mais – produção intensa de novos corpos-mundos, e captura em
modelos e imagens surdas. Deleuze (1991, p. 102), ao comentar este trabalho de
Foucault, assinala que “a vida consiste apenas em tomar seu lugar, todos os seus
lugares, no cortejo de um ‘Morre-se’ ”. O poder toma a vida como objeto, fazendo com que
a morte deixe de ser “o instante decisivo ou acontecimento indivisível” (que tornava a vida
destino), passando a ser coextensiva àquela e “como feita de uma multiplicidade de
mortes parciais e singulares” (idem).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 33
Capítulo 2
2.1. Corpo-passagem
Eu passo por Maria, passo por João. Os nomes próprios revelam que
se trata de pessoas, indivíduos, e como tais mutuamente excludentes.
João não é Maria, e nenhum dos dois sou Eu. Casamentos, assassinatos,
trocas, todo tipo de situação entre nossas individualidades pode ocorrer.
Da mesma forma que o paciente que grita, pode recusar-se a tomar uma
injeção, deprimir-se ignorando todo o movimento ou morrer.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 38
dos termos, comportando os três momentos sucessivos desenvolvidos por Hegel: tese,
antítese e síntese. Ao contrário, procuro trabalhar com a idéia de uma concomitância
paradoxal da negação e da afirmação.
26 Terceiro excluído tido como terceiro termo excluído, ou seja, a contradição entre termos
“Nosso” paciente não dá trégua aos “nomes próprios que vão visitá-
lo”. Todos os padrões de conduta pessoais – laboriosamente
confeccionados e automática, mas talvez angustiadamente, representados
– tremem. Cada profissional é colhido por um estranhamento que parece
brotar de si (é verdade que na presença do paciente), abrindo espaço para
o encontro com a precariedade do ser. Um médico que evita o seu
paciente? Uma enfermeira que não pára de chorar após desempenhar o
seu trabalho?
2.2. Corpo-estranho
O estranho, neste contexto, seria o contato com algo que possui uma
realidade transitiva, virtual, esquizo, em potência. Corresponderia ao
tangenciar de uma memória que não surge de um suprimido da atenção,
ou de um recalcado do consciente, mas que passa “ao lado”. Uma
“memória inédita”, agida pela abertura à desmedida dos instantes, não
sendo repetições habituais, ou rememoração de algo já vivido.
Nada deste plano esquizo está no plano das formas, apesar de ser
real. Não há um fechamento ou uma totalidade, ali, onde o “entre fluxos”
gesta o atual.
28 Palavra cunhada por Laplanche e Pontalis (1988, p. 429) para traduzir o termo
utilizado por Freud “durcharbeitung”, elevando-o à categoria de conceito. Acompanhando
a perspectiva de Lyotard, parlaborar é “passar ao lado da síntese”, é uma “técnica sem
regra ou com uma regra negativa, desregulada, uma generatividade sem outro dispositivo
do que a ausência de dispositivo” (1997, p.62).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 44
2.3. Corpo-melodia
princípio de que são necessários, pelo menos, dois sons para formar uma harmonia. Na
composição de um dueto, as duas partes que se devem fundir numa harmonia são
compostas nota por nota, ponto por ponto, uma para a outra. Nisso se baseia a teoria do
contraponto, na música” (Uexküll, s/d, pp. 180-1).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 46
Não nos deteremos neste tema, aqui. Mas importa convidar alguns
elementos da teoria de Uexküll, que implicam um atravessamento da ética,
da política e da perspectiva de ação.
Por ora vamos reter que existe uma diferença de mundos entre os
seres. É necessário que ela seja preservada, e não encarcerada em um
modelo aplicado a priori a todos.
Violetas e sons
Não se sabe de onde, pois não havia mais nada. Talvez vindas do
pouco de seiva que restava, improvável. Explodiram palavras.
Palavras palavras mais palavras Pode ser que não fossem palavras
eram mais propriamente sons Sons em galope fortes incontroláveis
Vibração bruta sem origem ou destino Diziam da vida das cores dos
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 58
Quanto tempo durou esse jorro, que usava minha boca, língua, voz?
Momentos, segundos, minutos. Quero dizer, o tempo todo. O tempo todo
contraído em sístole infinita, após a diástole tornada assistolia. Após? Ou
antes? Ou durante? Como saber o que poderia ser causa ou efeito? O que
já estava, o que esperava, o que se seguia?
Bronca.
Foi uma bronca que se deu. Pelo menos foi esta a palavra que surgiu
d’Isso tudo.
2.4. Corpo-devir
34 Os trechos entre aspas são de Deleuze, em Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp.
315-7.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 62
2.4.1. O virtual
violação limítrofe ao limiar da morte? Limítrofe ao ato de matar” (Bataille, 2004, p. 28).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 65
Um encontro aconteceu!
2.4.3. O coletivo
2.4.4. Morre-se
40 Nas palavras de Espinosa: “Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que
possa ser afetado de diversos modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de
um número maior de modos, é útil ao homem; e é-lhe tanto mais útil quanto o corpo se
torna por essa coisa mais apto a ser afetado de mais maneiras ou a afetar os outros
corpos; e, pelo contrário, é-lhe prejudicial aquilo que torna o corpo menos apto para isto.”
(Ética IV, prop. XXXVIII)
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 73
41 “Em nossos dias, nada é mais desolador do que constatar que o pavor dos seres
descartáveis pode dar lugar à construção de seres que queiram durar eternamente”
(Sant’anna, 2001, p. 97).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 75
2.4.5. Afetos
44 Note-se que Stern utiliza a expressão em inglês “sense of self”. Senso é uma palavra
com muitas acepções, mas entendo que o autor procura deslocar, com esta palavra, o
enfoque do sujeito para processos de subjetivação. Assim, senso estaria alinhado à
singularidade dos planos de sentido que se exprimem em um acontecimento impessoal.
Vejo, acompanhando a concepção de Safra (1999, p. 135), o self não como “organização
mental, ou como uma representação de si mesmo, mas como o indivíduo organiza-se no
tempo, no espaço, no gesto, a partir da corporeidade”.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 80
46 Daqui podemos fazer uma ponte para a intrigante idéia de um excelente texto de Gil:
“as pequenas percepções supõem uma zona de percepções de movimentos ínfimos e de
forças poderosas. A percepção dos movimentos visíveis do corpo desencadeia outras
percepções, de outro gênero: ‘percepções’ de movimentos virtuais” (Gil, 2002, p. 143).
47 Esta passagem me foi destacada pelo interessante trabalho de Reis acerca do auto-
Imagem 6 – De formato foetu líber singularis - Adriaan Van den Spiegel (1631)
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 84
48 Utilizo a palavra mais popular, bebê, no lugar da que seria cientificamente mais
apropriada, a saber: feto. Faço esta opção para enfatizar o aspecto psicológico complexo
que se apresenta como mãe-bebê-em-processo-de-gestação, e para me afastar da
concepção mais científica do ser. A palavra feto será utilizada quando o contexto for
predominantemente científico.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 86
Eu, sentado ao seu lado, era o pólo da dupla (ou do trio) destinado a
manejar o instrumento do progresso da medicina. Meus olhos treinados
não se opunham à captura das imagens que trazem as profundezas do
corpo à superfície. Não se poderia dizer que esta penetração consentida
fosse fruto de uma relação de amor. O interesse de ambos foi colhido pela
curiosidade científica que não se detém em intimidades, e põe a descoberto
o que antes era privado. Quando a atenção da paciente desviava-se da tela
para mim, era na intenção desesperada de interpretar, na minha
fisionomia, algo que pudesse ser bom ou ruim. As palavras nervosas
claramente buscam dissimular – sem conseguir – a preocupação acerca do
que o meu conhecimento poderia depreender daquele estranho jogo de luz
e sombra.
entanto, creio que esta é uma forma de aportar no que aparenta ser um
porto seguro, enquanto tudo à volta desaba.
No dia do parto eu estava ao seu lado. Era a sua família, como viria
saber depois. Não havia mais ninguém para apoiá-la.
Capítulo 3
3.1. Imanência
2000, p. 95).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 95
52 Lembremos que possível é o leque de ações que se pode projetar no futuro, tendo em
vista os acontecimentos passados. Já potencial é o poder de diferir radicalmente.
53 Rolnik (2005) detalha, com clareza, o processo de “hiperativação do exercício empírico”
55 Como foi o caso de uma paciente que atendi. Antes de ser encaminhada para mim,
submeteu-se a um ultra-som obstétrico (tétrico), feito por um profissional com uma
competência extrema em seu “métier”. O mesmo conseguiu, o que é incomum,
diagnosticar particularidades de uma doença do coração fetal, sem ser cardiologista. A
partir daí informou, com correção, à paciente que o feto provavelmente não sobreviveria
até o final da gravidez, e marcou um novo exame, para controle, no mês seguinte.
Obviamente a mulher passou a viver um sofrimento impensável, sem condições sequer de
sair dali, sendo ajudada pela secretária a telefonar para o marido, que foi buscá-la.
Alguma sensibilidade para o adoecer, para o morrer, para o sofrer da passagem do tempo,
estava simplesmente excluída do campo de atenção daquele profissional. E não é questão
(ou talvez seja justamente esta) de pensarmos que ele não é psicólogo para saber destas
coisas.
56 Penso não em um voluntarismo ou em uma imposição de alguma força abstrata, mas
população junto com uma forma de medicina coletiva. Uma apropriação do corpo pela
sociedade capitalista, através de uma “estratégia bio-política”.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 100
Esta última frase soa muito estranha. Isto pois, como o inconsciente
freudiano, a esfera virtual não “reconhece” a morte. É um campo de pura
produção, sendo a morte uma propriedade dos indivíduos. Mas então,
como pensar a morte no limite virtual/atual?
Capítulo 4
4.1. Os proto-pensamentos
63Ritornelo é um termo de origem italiana que determina uma “forma de retorno ou volta,
notadamente musical, ligada à territorialidade e à desterritorialização, e produtora de
tempo” (Sasso & Villani, 2003, p. 304). “Trata-se de fazer retornar, em uma troca de
códigos e em uma mais-valia de passagem, em um ritmo como entre-dois que desorienta
todas as medidas, o universal-singular contra as particularidades da memória e as
generalidades do hábito. No ritornelo, há esta invenção de vibrações, de rotações, de
gravitações e turbilhonamentos, de danças e saltos que ‘atingem diretamente o espírito’ ”
(Martin, 1993, pp. 304-5).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 110
64 Adjetivo para a teoria desenvolvida por Wilfred Ruprech Bion (1897-1979): Psicanalista
nascido na Índia, mudou-se para a Inglaterra aos oito anos, onde estudou medicina e
psicanálise.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 111
65 Na maioria das vezes Bion utiliza unicamente a palavra pensamento para referir-se ao
pensamento sem pensador. Utilizo o termo proto-pensamento, por acreditar representar
melhor o viés do conceito que desejo abordar, ou seja, de singularidade potencial não
formal ou extensiva.
66 “... em contextos diferentes (na mente, nos grupos, na sociedade, na sessão
psicanalítica, etc.) sempre há uma conjunção constante de fatos específicos. Sempre que
esta conjunção estável enfrenta uma situação de mudança e de crescimento, a situação
se altera e se instala um clima de catástrofe. Esta mudança catastrófica abriga três
características, às quais Bion denomina: violência, invariância e subversão do sistema”
(Zimerman, 2001, p. 373).
67 “Pensar é justamente a força que, no homem, explora e expõe o virtual ‘até o fundo de
suas repetições’ ” (Orlandi, 2000, p. 58). Repetições que, em seu fundo, encontram a
diferença. Então, pensar é diferir.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 112
Para ser não compulsivo, o indivíduo deve poder ser aquilo que não
é, em si. Participar do “tornar-se” que advém da ação potencial do mundo
ambiente, do que lhe é estranho.
Pode ser antecipado, então, que o que vai ser tratado como doença,
vem instalar-se neste limite. Será a produção de estratégia do pensar, que
ocorre “entre” os pensadores e os proto-pensamentos.
Isto nos cabe, pois permite uma diferenciação capital entre o que
chamamos de esquizo e uma patologia qualquer. A doença, nessa
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 113
Impossível até então, porque não se pode lembrar do que não foi
integrado no pensar que constitui o nosso mundo próprio e que surge
como apresentação desmedida, fazendo mover o próprio suporte de
inscrições, ou seja, a forma de perceber e sentir.
Pode ser extremamente penoso não poder esquecer algo, por não
poder ter sido experimentada a memória intensiva de um esgarçar infinito,
de um escoar (amniótico?) incessante. É preciso ensaiar exprimir essa
memória atmosférica, para poder liberar a intuição, muitas vezes
carregada de sensações terríveis.
E, a seguir:
68 “Esta terceira área foi contrastada com a realidade psíquica interna, ou pessoal, e com
o mundo real em que o indivíduo vive, que pode ser objetivamente percebido. Localizei
esta importante área da experiência no espaço potencial existente entre o indivíduo e o
meio ambiente, aquilo que, de início, tanto une quanto separa o bebê e a mãe (...)”.
(Winnicott, 1975, p. 142).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 123
69 Em uma perspectiva surgida da prática psicanalítica, Safra (1999. p. 48) escreve que
“quando áreas da experiência humana não se constituíram na situação de ilusão como
parte dos aspectos do self, temos buracos, que ameaçam o indivíduo com a dispersão de
si e com as ansiedades impensáveis.”
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 125
Capítulo 5
Agonias Impensáveis
70 Uma maneira interessante de pensar esta questão em psicanálise nos foi apresentada
por Cavalcanti, quando trata o “fort” (o encenar repetido da experiência dolorosa de
separação da mãe) como “o estabelecimento de signos de percepção e de um real
originário, funcionando além do princípio do prazer” (1998, p. 278). A repetição da
“experiência fort” sem o “da” (aí está) “é uma experiência de ligação” (idem). A autora
relaciona esta experiência com a emergência da angústia automática, proposta por Freud
em Inibição, sintoma e angústia como “a primeira forma que a quantidade em excesso
toma, ligando-se às imagens cenestésicas simultâneas ao nascimento. Estabelecem-se ali
trilhamentos que dão à quantidade a forma de taquicardia, de dispnéia, de atividade
muscular desordenada, de gritos” (idem, 279). Pensando desta forma, poderíamos
considerar que no que chamo “momento fetal” estão envolvidas tanto imagens
cenestésicas, quanto afetos de vitalidade ou a origem de um pensar.
71 Pelbart delimita o que seria uma “maneira de ser esquizo”, que parece traduzir a idéia
Mundos de sonho (de ser mãe, ter família, ser aceita, ...) encontram
mundos tecnológicos; afetos cotidianos encontram outros desconhecidos; a
temporalidade do hábito se rompe no anúncio de uma morte futura. Os
encontros carregam a potência do diferir e, da mesma forma que podem
anunciar a alegria de um tempo novo, podem disseminar a terrível
presença de uma agonia. Agonia difusa e dolorosa por estar no limite da
individuação/indivíduo, da comunicação/informação, dos sons caóticos
para a emergência de um ritmar. Agonia que toma forma – sem esgotar-se
– no infinitivo de um “panicar”, um adoecer, um morrer. Agonias que estão
antes da atualização dos proto-pensamentos por um pensar, impensáveis.
da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza,
escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste
às injunções dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por
excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um
território subjetivo” (Pelbart, 2002, p. 252).
72 Winnicott, ao tratar deste tema, concebe o que chama inicialmente de ansiedades
o que é matéria de pensar, e o que ainda não o é. Para mim, o que não é
matéria para o pensar está longe de ser abstrato ou imaginário, sendo, ao
contrário, real.
“Acho que o aspecto central é que você precisa ousar ser disponível a
algo que queira expressar; ousar permitir que um pensamento sem um
pensador se aloje em algum lugar, dentro dos limites de sua capacidade”
(Bion, 1992, p. 146).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 134
Capítulo 6
76 “Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que possa ser afetado de diversos
modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de um número maior de modos, é
útil ao homem” (Espinosa, Ética, IV, prop. 38).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 140
que o inclui. O que ocorre, pari passu, com o afetar, produzir marcas e
ciclos de função. Os afetos de vitalidade, enquanto produções que vão
sendo apresentadas por um entre (não dialético mas desmedido), são a via
régia de in-formação dos seres em encontro. Abrem um campo de
experiência potencial onde agir e perceber, afetar e ser afetado, são parte
do mesmo movimento.
77 É importante ressaltar que o ato louco “destrói as significações dos atos que existiram
ou que podem ser chamados a existir” (Simondon, 1995, p. 246) se inserindo no devir
sem fazer parte do devir que compreende o evolver do coletivo. Assim se destaca da
temporalidade do acontecer, se entretendo na “vertigem de sua existência iterativa” (idem,
p. 247).
78 “O ‘continuar sendo’ (going-on-being) ou a continuidade do ser é o desenvolvimento
normal, e o seu oposto é o trauma. Para Winnicott, o senso de continuidade no tempo era
uma conquista. E a experiência cultural proporciona a continuidade da espécie humana,
que transcende a existência individual” (Newman, 2003, p. 105).
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 142
nossa conduta possa ter sobre ele; mais além, trata-se de assumir as
conseqüências de sermos permanentemente atravessados pelo outro, uma
política indissociável de uma ética de respeito pela vida” (Rolnik, 1996, p.
256).
♦ A ação busca uma medida que não aniquile o ser. Para que o ser
em devir cumpra todo o seu potencial, faz-se necessário – obviamente –
que ele sobreviva em sua comunicação lateral. No limite, a morte de sua
individualidade pode ser o cumprimento de sua potencialidade, dando
lugar ao nascimento de novos seres, herdeiros, em parte, de sua ação
moral (aqui está toda a questão da sexualidade como forma de elo com a
história da espécie).
79 Expressão de Lygia Clark, retomada por Rolnik (2002, p. 274): “a obra opera uma
espécie de iniciação do espectador àquilo que Lygia chama de experiência do
‘vazio/pleno’: vazio de sentido do mapa vigente, provocado por um cheio transbordante de
sensações novas que pedem passagem.”
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 145
Imagem 11 – Vaso de Phintias (VI a. c.), representando aula de música, a qual era
um elemento da terapia médica pitagórica.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 146
Uma ação
81 Gostaria de inserir aqui um “corpo estranho”, que foi um reencontro, anos após o
término da análise.
Falo do corpo desta mulher, que morreu de câncer.
Mulher pobre, enfrentou uma via crucis após descobrir um nódulo pulmonar. Demorou-se
para ser diagnosticado o tipo de neoplasia, e após o diagnóstico, o tratamento não pôde
ser iniciado prontamente. Falta de liberação da medicação pelo sistema público de saúde.
Fui vê-la, no hospital, após uma ligação telefônica. Os encontros psicanalíticos haviam
cessado há três anos. Mesmo assim, de tempos em tempos, ela vinha me ver.
Ao chegar, encontrei-a “internada” em uma cadeira, na sala de inalação do pronto-
socorro. Era o terceiro dia de “internação”. Recebia alimentos e medicação ali, sentada.
Não os remédios indicados para o tratamento do câncer. Que esperavam liberação.
Nesta situação de espera, duas metástases apareceram.
Conhecia alguns médicos, e fui inquiri-los sobre a situação. A resposta: “estamos muito
angustiados, mas não temos como pagar, nós mesmos, o tratamento de tantas pessoas
que chegam, a cada dia”.
O tratamento iniciou com auxílio da igreja que freqüentava. A continuidade se deu pelo
serviço público. Mesmo assim, devido ou não ao atraso, ela faleceu em pouco tempo.
Corpo estranho ao sistema de tratamento, mas nem um pouco estranho à multidão de
excluídos que se acumulam, nesta sociedade de endividados.
A morte acena concretamente, para aqueles que não obtêm sucesso em consumir: bens,
identidades, saúde.
Creio que incluir este corpo, no corpo da tese, é também, de certa forma, estar “à altura
do acontecimento”.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 149
Referências Bibliográficas
Uexküll, J. (s/d). Dos animais e dos homens: digressões pelos seus mundos
próprios: doutrina dos significados. Lisboa, Portugal: Livros do
Brasil.
Vène, M. (2001). Écorchés: l’exploration du corps XIV – XVIII siècle. Paris:
Albin Michel et la Bibliothèque Nationale de France.
Vergely, B. (2001). La mort interdite. Paris, France: J.C. Lattès, (18-Saint-
Amand-Montrond : Bussière Camedan impr.).
Virilio, P. (2000). Velocidade de Libertação. Lisboa, Portugal: Relógio
D’Água.
Winnicott, D., W. (1975). O Brincar & a Realidade. Trad. José Octávio de
Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago.
_______. (1994). O medo do colapso (breakdow). In: Winnicott, C.;
Shepherd, R. e Davis, M. (orgs.). Explorações psicanalíticas: D.
W. Winnicott. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Porto Alegre:
Artes Médicas.
Zygouris, R. (2002). O vínculo inédito. Trad. Caterina Koltai. São Paulo:
Escuta.
Webster, N. (1987). New concise Webster’s dictionary. New York: Modern
Publishing.
O Impensável na Clínica - Luis E. P. Aragon- PUC/SP -2005 158
Imagem 4 – Butô – Kazuo Ohno. In: Emidio Luisi e Inês Bogéa: Kazuo
Ohno. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
Imagem 8 – O médico, 1891 – Sir Samuel Luke Fields (1844 – 1927). Tate
Gallery, London.
Imagem 11 – Vaso de Phintias (VI a. c.) – In: Albert S. Lyons & R. Joseph
Petrucelli II: Medicine: an illustrated history. New York: Harry N.Abrams.