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584 dossier: saúde mental infantil

Problemas de sono
em idade pediátrica
Manuel Salavessa,* Paula Vilariça**

RESUMO
A importância e impacto do sono na saúde em geral têm merecido, nos últimos tempos, uma maior atenção, sendo os proble-
mas do sono fonte comum de preocupação por parte dos pais. O sono desempenha um papel fundamental sob ponto de vista
biológico, mas também emocional e social. Os problemas de sono podem ter um impacto negativo significativo na criança e
família. Propomo-nos com este artigo tratar informação básica acerca de problemas de sono comuns em idade pediátrica, para
ser usado pelo clínico quando confrontado com as preocupações dos pais. Apresentamos neste artigo aspectos fundamentais
da arquitectura normal e do desenvolvimento dos padrões de sono, seguindo-se uma exposição acerca dos problemas de sono
clinicamente mais comuns em crianças e adolescentes.

Palavras-chave: Sono; Perturbação do Sono; Criança; Adolescente.

INTRODUÇÃO
causam impacto significativo no dia-a-dia das crianças
sono é uma área do funcionamento da

O criança que ocupa grande parte da sua vida


e se apresenta como um desafio para pais
e crianças. O sono é essencial para o nor-
mal crescimento e desenvolvimento, quer nos aspectos
físicos, quer emocionais da criança.1 O sono desempe-
e famílias, quer do ponto de vista social, quer compor-
tamental, emocional e académico.1
Apesar de comuns na prática clínica, os problemas
do sono são frequentemente desvalorizados ou erro-
neamente diagnosticados.5 Tal deve-se a uma escassa
formação e informação por parte dos clínicos,1 tradu-
nha, para lá da sua função biológica, um papel impor-
zindo-se muitas vezes num uso abusivo de fármacos em
tante na modulação da relação precoce entre os pais e
idades pediátricas.4 Na presença de problemas do sono,
o seu bebé, sendo um passo fundamental na aprendi-
torna-se importante reconhecer se a situação é transi-
zagem da sua separação. O sono favorece, em condições
tória e auto-limitada, ligada a uma fase de desenvolvi-
normais, no bebé, o desenvolvimento de processos de
mento, se é uma perturbação de sono per si ou se exis-
auto-regulação fundamentais para o seu desenvolvi-
te uma doença orgânica ou psiquiátrica subjacente ao
mento emocional e interacções sociais futuras.2 Apesar
problema.
do momento do sono ser, em regra, um momento re-
Deste modo este artigo visa contribuir para uma me-
cheado de sensações prazerosas, muitas das vezes pode
lhor compreensão desta problemática quer no respei-
transformar-se num momento particularmente difícil
tante ao diagnóstico das perturbações de sono mais co-
e angustiante, com possível deterioração na relação
muns e quer no respeitante à atitude terapêutica des-
precoce entre pais e filhos, com eventual compromis-
tas alterações.
so do desenvolvimento.
Para tal iremos abordar brevemente a fisiologia do
Os problemas do sono são comuns (20-30%) na in-
sono, debruçando-nos sobre a sua arquitectura e de-
fância,1 na idade escolar e na adolescência, sendo fon-
senvolvimento dos padrões de sono, seguindo-se uma
te comum de preocupação por parte dos pais.4 Nas suas
exposição acerca dos problemas de sono clinicamente
formas mais graves, e independentemente da idade,
mais comuns em crianças e adolescentes.

*Médico Interno de Psiquiatria da Infância e Adolescência, Hospital D. Estefânia, FISIOLOGIA DO SONO


Centro Hospitalar Lisboa Central, EPE
**Assistente Hospitalar de Psiquiatria da Infância e Adolescência, Unidade da
O sono é um estado comportamental reversível carac-
Primeira Infância, Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Lisboa Central, EPE terizado por uma diminuição de resposta e interacção

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com o ambiente.1,2 O sistema neurológico que coman- falográficos perto do estado de vigília.2 A maioria das
da as alterações cíclicas sono-vigília estende-se desde crianças desenvolve processos auto-regulatórios que
a medula, passando pelo tronco cerebral e hipotálamo lhes permite adormecer novamente após estes perío-
até núcleos centrais superiores.7 A função fisiológica do dos de despertar.8 Cada ciclo de sono demora cerca de
sono ainda é desconhecida. As duas teorias mais popu- 50-60 minutos no recém-nascido, gradualmente au-
lares defendem que o sono é essencial para a restitui- mentando para 90 minutos na adolescência.6 Na crian-
ção das funções cerebrais ou reabastecimento do cor- ça, o sono inicia-se na fase NREM, com predomínio dos
po, visto que o sono, e a sua imobilidade imposta, se tra- estádios 3 e 4 na primeira parte da noite e com perío-
duzem num corte dos gastos energéticos.2 No entanto dos breves de sono REM. Com o avanço da noite, os es-
o sono não se traduz por um »descanso» do corpo, sen- tádios 1 e 2 de NREM, bem como o sono REM, vão ga-
do um período de actividade cerebral intensa, envol- nhando maior predominância em cada ciclo, até ao
vendo funções corticais superiores. Mais recentemen- despertar matinal, normalmente de sono REM ou dos
te foram identificadas funções importantes ao nível da estádios de sono leve (1 e 2) do NREM.
memória, bem como da optimização das funções imu- A proporção entre sono REM E NREM vai mudando
nológicas.1 com o crescimento, acompanhando a maturação do
O padrão de actividade eléctrica do Sistema Nervo- SNC. Assim, o recém-nascido frequentemente inicia a
so Central (SNS), tónus muscular e movimento ocular noite em sono REM, sendo que a proporção entre sono
permite dividir o sono em dois tipos, (1) sono REM (ra- REM e NREM vai diminuindo com o crescimento.3
pid eye movement) e (2) sono NREM (non-REM), com Em relação ao desenvolvimento do ciclo sono vigí-
diferentes estádios dentro do sono NREM. lia, acredita-se que se origine ainda na vida fetal.2 O feto
O sono NREM divide-se em 4 estádios: 1 a 4. Os es- parece nunca estar, de facto, acordado, alternando en-
tádios 1 e 2 correspondem ao sono leve. Os estádios 3 tre um sono calmo e sono activo, precursores do sono
e 4 são normalmente combinados, apresentam um re- NREM e REM.2 Com o nascimento e o rápido desenvol-
gisto eléctrico típico com ondas lentas, apelidadas de vimento que se segue, uma das funções primordiais é
ondas delta, e são denominados sono de ondas lentas. a sincronização fisiológica do bebé com as relações so-
Este é o sono mais profundo nos seres humanos e ocor- ciais primárias. Numa primeira fase, o recém-nascido
re predominantemente na primeira metade da noite. alterna entre sono e vigília a cada 3-4h, com desperta-
Durante este estádio as crianças dificilmente são acor- res geralmente relacionados com a fome.6 Os períodos
dadas, e se isto acontece, parecem confusas e desorien- de vigília vão aumentando gradualmente durante o dia.
tadas. É durante este estádio de sono profundo que po- Por volta da 5ª semana de vida estabelece-se um ciclo
dem ocorrer as parassónias como o sonambulismo, so- de vigília diurna na maioria dos bebés.5,6 Estudos reali-
nilóquios e terrores nocturnos. zados, em que os pais preenchem questionários sobre
O sono REM partilha características de sono profun- o sono dos filhos, revelam que aos 3 meses cerca de
do com características de sono leve. Ocorre em ciclos 70% dos bebés são capazes de dormir durante a noite,
de cerca de 90 minutos cada sendo mais comum na se- o que corresponde a um período de sono contínuo de
gunda metade da noite. No sono REM há um relaxa- cerca de 5 horas.1,5 O estabelecimento deste ciclo de-
mento do tónus muscular, excepto nos recém-nascidos, pende da organização e maturação dos processos su-
em que se observam pequenos movimentos das extre- periores do SNC, pelo que recém-nascidos prematuros,
midades ou da face. O sono REM corresponde à fase de ou que tenham sofrido lesões no período peri-natal,
sonhos, caracterizando-se por uma intensa actividade como anoxia, desenvolvem esta capacidade mais tar-
cortical. diamente. Este relógio biológico, que regula o ciclo, sin-
O sono não é um estado uniforme, existindo uma al- croniza-se com outros sinais internos (fome e sacieda-
ternância entre ciclos de sono REM e NREM, interrom- de), bem como com os períodos de interacção social e
pidos por breves momentos de despertares, a maioria com outros sinais do ambiente, como o ciclo de luz-es-
dos quais passa despercebido a observadores e ao pró- curidão e a temperatura ambiente.4 Geralmente o pa-
prio e que são caracterizados por registos electroence- drão de sono estável só emerge a partir dos 12 meses.1

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As necessidades diárias de sono decrescem lenta- de sono apresentam sintomas tipicamente de uma des-
mente nestes primeiros meses (16,3 horas diárias ao tas 4 áreas2 (1) insónia (dificuldades no adormecimen-
nascer para 14,8 horas diárias aos 16 meses), represen- to e/ou despertares nocturnos) (2) sonolência diurna
tando sobretudo o decréscimo do sono diurno, com excessiva (3) eventos comportamentais ou fisiológicos
aumento da vigília diurna e diminuição do número de anormais durante o horário de sono (parassónias) (4)
sestas.2,5 À noite e aos 16 meses o sono contínuo aumen- problemas do sono relacionados com perturbações psi-
ta, em média, das 4 para as 8,5 horas.2 Por volta dos 2- quiátricas ou médicas.
-3 anos a necessidade de sono reduz-se para 12 horas Na abordagem de uma criança ou adolescente com
diárias, com decréscimo para as 9 horas diárias entre perturbação do sono, a história clínica reveste-se de
os 9 e os 12 anos.2,5 Durante a adolescência parece que importância fundamental. Questões centrais como sa-
as necessidades de sono aumentam ligeiramente, para ber se a criança está a ter dificuldades em adormecer
decair para as 8 horas diárias no jovem adulto.2,5 É de ou manter-se a dormir, ocorrência de episódios com-
salientar que a maioria dos estudos realizados sobre portamentais durante o sono ou existência de sonolên-
sono infantil se baseia nas informações fornecidas pe- cia diurna devem ser colocadas à partida aos principais
los prestadores de cuidados das crianças (geralmente prestadores de cuidados. Se estas dificuldades ocorre-
os pais), através de entrevistas ou preenchimento de rem, deverá ser colhida uma história do sono detalha-
questionários, sendo raros os que usam medidas direc- da, bem como do ciclo sono-vigília, devendo ser abor-
tas (polissonografia) para medição das horas de sono dadas questões fundamentais como sestas diurnas, ho-
em populações normais. Estes últimos, na maioria, são rário das refeições nocturnas e alimentação, activida-
realizados com populações pequenas e têm resultados de após a última refeição, postura da criança e da
pouco generalizáveis.1 A questão das horas normais de família perante a hora de deitar, qualidade do sono,
sono em bebés e crianças permanece incompletamen- despertares, atitude perante os despertares. É de impor-
te resolvida, dando lugar a uma multiplicidade de in- tância fundamental a realização de um diário do sono
terpretações pessoais dos técnicos que lidam estas pro- durante 2 semanas.1,2 O clínico deverá manter-se recor-
blemáticas. O mais consensual é que as necessidades dado que, perante a análise de um caso de dificuldades
de sono são variáveis de indivíduo para indivíduo, de- de sono, terá de pensar na eventualidade de estar pe-
pendentes das suas idiossincrasias, constituindo os nú- rante uma perturbação orgânica ou psiquiátrica cuja
meros apresentados médias que pretendem servir de apresentação se faz através de problemas no sono. Para
orientação geral.1 tal é necessária uma avaliação cuidadosa do estado fí-
sico, emocional e de desenvolvimento da criança.
PERTURBAÇÕES DO SONO Apenas num reduzido número de casos são neces-
De acordo com a 4ª edição revista da Diagnostic and sários estudos fisiológicos de sono, polissonografias,
Statistical Manual of Mental Disorders, de 2002 (DSM parecendo ser mais úteis em situações de sonolência di-
IV-TR), classificação diagnóstica da Associação Ameri- urna excessiva, parassónias complicadas e suspeita de
cana de Psiquiatria, as perturbações do sono dividem- apneia de sono.2 A polissonografia inclui electroence-
-se em dissónias (caracterizadas por anomalias da falograma, bem como gravações do tónus e do movi-
quantidade, qualidade ou horário do sono), parassónias mento ocular, permitindo o reconhecimento das dife-
(eventos comportamentais ou fisiológicos anormais rentes fases do sono.
durante o horário de sono), perturbações do sono rela-
cionadas com perturbações psiquiátricas e perturba- INSÓNIA
ções do sono associadas a doença física. Esta classifi- Dificuldades no adormecimento e despertares noctur-
cação diagnóstica, apesar da sua utilidade, foi elabora- nos (características chave da insónia) são queixas co-
da centrando-se nas dificuldades de sono nos adultos muns dos pais de bebés e crianças mais novas, poden-
e tem pouca sensibilidade às especificidades do desen- do considerar-se tratar-se de uma situação quase nor-
volvimento, importantes nas crianças e adolescentes.4 mal, que vai diminuindo de frequência e intensidade ao
Clinicamente, crianças e adolescentes com problemas longo do tempo, até aos 5 anos em crianças nas quais

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o desenvolvimento e o funcionamento global se man- dades dos pais e nunca uma atitude de culpabilização,
têm preservados.2,8,9 Como já referimos, o padrão está- cujo efeito poderá ser contraproducente. Por vezes a re-
vel de sono só se define completamente aos 12 meses dução de ansiedade dos pais, através da conversa com
pelo que antes dessa idade não deverá ser colocado o alguém que os escuta e compreende, poderá ser o pas-
diagnóstico de Perturbação do Comportamento do so mobilizador em torno de um objectivo comum, bem
Sono (DC 0-3:R, Zero to Three, 2005). Apesar desta li- como a criação de uma aliança terapêutica. Geralmen-
mitação do diagnóstico é importante reconhecer que te os pais que pedem auxílio para tratamento de uma
existem bebés nos quais o sono é excessivamente de- perturbação de comportamento do sono necessitam
sorganizado e fragmentado, que pode acarretar conse- de estratégias práticas para lidar com a situação. Mui-
quências graves em termos de desenvolvimento e que tas vezes a intervenção psicopedagógica com as famí-
requerem atenção clínica. Estima-se que entre 3 a 14% lias é suficiente para melhorar significativamente o pro-
de crianças tenham este tipo de problemas.4 blema.4 Os princípios fundamentais que terão de ser co-
O processo de se manter sozinho na sua cama, a municados aos pais são a importância da consistência
aquisição da capacidade de se auto-confortar e ador- dos seus comportamentos e da existência de uma roti-
mecer é uma tarefa de aprendizagem para as crianças, na, que englobe a regularização dos horários do sono e
que deve ser apoiada pelos prestadores de cuidados10,11 de outras rotinas diárias.1,10,11 O incentivar a criança des-
mas que depende fundamentalmente de característi- de cedo a adormecer sozinha e em quarto próprio apli-
cas temperamentais e de reactividade da criança2,4,8. ca-se à maioria das crianças mas há casos excepcionais
Exige a organização de uma área transicional satisfató- em bebés, especialmente os que estão a ser amamen-
ria (processo de separação dos pais), depende do tem- tados, que precisam do contacto próximo com a mãe,
peramento e capacidade de auto-regulação por parte para se auto-regularem e organizarem o sono. Nestas
da criança mas, como processo de aprendizagem que situações o co-sleeping pode ser uma forma de apoiar
é, também depende das condições exteriores e das ati- a criança neste processo. O co-sleeping é desaconse-
tudes parentais. Quando estas competências não são lhado em famílias de pais com problemas de tabagis-
adquiridas, as manifestações clínicas podem ser varia- mo, alcoolismo e toxicodependência. O aconselhamen-
das, desde oposição ao deitar a rituais intermináveis to aos pais passa também pela proposta de organiza-
com o objectivo de adiar a hora de deitar, até a dificul- ção do momento de adormecer para que seja tranqui-
dades de adormecimento ou despertares nocturnos fre- lizante (criar um ambiente tranquilo, temperatura
quentes.2,8 adequada e evitar momentos de excitabilidade / hipe-
Assim, na avaliação de perturbações do comporta- restimulação no momento de deitar) sem criar rituais
mento do sono/insónia em crianças pequenas devem de adormecer demasiado complicados ou rígidos, que
ser tomadas em conta a existência de factores especí- podem tornar-se angustiantes para a criança e para a
ficos da criança tais como dificuldades biológicas de família. Incentivar o estabelecimento de limites é de
auto-regulação ou integração sensorial, como pode ser extrema importância, de modo a que não se crie um de-
o caso de crianças hipo ou hipersensíveis à estimula- sequilíbrio familiar em torno do problema do sono da
ção sensorial, com impacto sobre a sua homeostasia criança, que confere à criança, por um lado, uma falsa
global e com manifestações nas áreas funcionais, como ideia de omnipotência, mas, por outro, uma sensação
é o sono. de desamparo, pela falha dos pais em conseguirem
Outros factores importantes a serem avaliados são os auto-controlar-se e servirem de verdadeiro motor con-
problemas psicossociais e do ambiente da criança.4 Em tentor e ansiolítico para a criança. Para ajudar a crian-
casos em que se verifiquem problemas desta natureza, ça a encontrar as suas formas de apaziguamento pode
o tratamento é direccionado para intervenções psicos- ser encorajado o uso de objectos transicionais visto que
sociais e suporte aos pais, tendo como foco de atenção se trata de objectos investidos de afecto pela criança e
clínica a relação entre os pais e a criança.2,4,5 Alguns que a apoiam no processo de separação dos pais quan-
princípios devem ser tidos em conta, o principal será do passa da vigília para o sono. Todas as estratégias pro-
uma atitude de escuta empática em relação às dificul- postas devem ser discutidas com os pais e avaliada a sua

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eficácia, convindo recordar que nem todas são tera- de sono não está indicada, a não ser para tratamento
pêuticas para uma determinada criança ou família.4 de uma perturbação psiquiátrica de base ou em casos
Em crianças de idade escolar o problema pode man- excepcionalmente graves.4 Mais uma vez o processo
ter-se ou aparecer de novo. A manifestação mais co- fundamental é trabalhar em conjunto com o adolescen-
mum é a resistência em ir dormir, com recusa ou adia- te e a família de forma a assegurar a higiene de sono,9,10,11
mentos sucessivos da hora de deitar. O problema pode através de medidas gerais como (1) ir para a cama à
ser perpetuado quando os pais demonstram dificulda- mesma hora todas as noites, (2) levantar-se à mesma
des em apoiar a transição da vigília para o sono, que de- hora todos os dias, incluindo fins-de-semana, (3) evi-
verá ser feita através de regras consistentes acerca da tar sestas, (4) limitar bebidas com cafeína ao jantar e
hora de dormir, e do estabelecimento de limites de uma após, (5) evitar exercício físico intenso 6 horas antes da
forma clara, assertiva e não punitiva.2 Nestas idades, as hora de deitar, (6) evitar ler, ver televisão ou comer na
crianças poderão desenvolver ainda insónia relaciona- cama, (7) se após cerca de 20 minutos de estar deitado
da com medos e fobias específicas. Torna-se importan- não adormecer, levantar-se e dedicar-se a uma activi-
te nestas situações perceber quais as fontes destes, dade tranquila, como ler, até se sentir novamente en-
como primeiro passo no tratamento. sonado, deitando-se novamente e repetindo o esque-
A medicação só tem indicação em situações especí- ma quantas vezes as necessárias.
ficas, não devendo ser prescrita como rotina.4 Os fárma-
cos deverão ser usados por breves períodos, como co- SONOLÊNCIA DIURNA
adjuvantes de uma intervenção em curso, nunca de for- A causa mais comum de sonolência diurna, muitas ve-
ma isolada. Os agentes farmacológicos mais usados na zes erradamente interpretada por desinteresse ou des-
prática clínica são a melatonina, hidroxizina, o hidrato motivação, é o sono insuficiente, incluindo alterações
de cloral e o clonazepam.4 no padrão sono-vigília, ou simplesmente ausência de
Se as medidas gerais não forem suficientes e a situa- higiene de sono,2 com horários tardios de deitar e des-
ção provocar uma situação com impacto grave na crian- pertares cedo. Uma vez excluída esta situação e verifi-
ça e na família, o caso deverá ser referenciado a consul- cando-se que os horários de sono são adequados e su-
ta de pedopsiquiatria. ficientes, outras causas possíveis são as alterações qua-
Nos adolescentes, pode aparecer, associada aos pro- litativas do sono nocturno, como ocorre, por exemplo,
blemas de sono, uma dificuldade fisiológica relaciona- na apneia de sono. Nesta situação, a obstrução parcial
da com a hora do deitar, denominada de delayed sleep ou completa das vias aéreas superiores conduz a uma
phase syndrome (DSPS). Nesta situação há uma altera- redução de níveis de O2 e/ou aumento dos níveis de
ção fisiológica do ritmo circadiano, em que há um atra- CO2, conduzindo a uma alteração na fisiologia do sono
so na hora de deitar, em norma algumas horas após a e a despertares intermitentes. O resultado é sonolência
meia-noite, desfasada da norma social. Como adorme- diurna com possível impacto no desenvolvimento
cem tarde, existe uma grande dificuldade em acordar cognitivo e comportamental da criança. Se houver sus-
de manhã e cumprir com a obrigação dos horários es- peita de apneia de sono a situação deverá ser referen-
colares. Normalmente a única alteração na DSPS cen- ciada a consulta de otorrinolaringologia. Outras causas
tra-se na hora tardia do deitar, não havendo alterações possíveis de interferir na qualidade de sono são doen-
qualitativas no sono.2 Apesar de ocorrer tipicamente ças neurológicas, medicamentos, consumo de subs-
nos adolescentes, associada às alterações biológicas tâncias ou álcool. A terceira causa de sonolência diur-
pubertais e a mudanças de estilo de vida, a DSPS pode na deve-se a um aumento das necessidades do sono,
ocorrer em qualquer idade.2 Esta situação pode ser ma- como na narcolepsia e síndrome de Kleine-Levin (SKL).
nejada antecipando primeiro a hora de acordar e pos- A narcolepsia tem uma prevalência de 1 em 20002 e
teriormente a hora de dormir, até à hora desejada. Pela predisposição familiar (1-2% de risco de familiar em
mesma ordem poderá adiantar-se a hora do acordar e primeiro grau desenvolver esta perturbação). A situa-
hora de dormir até alcançar a hora desejada. ção inicia-se em regra na adolescência e tende a ser
Nos adolescentes a medicação para as dificuldades crónica. Na narcolepsia parece haver intrusão do sono

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REM no estado de vigília, resultando em episódios de acordadas, mas não estão de facto despertas.
sonolência diurna, alucinações hipnagógicas (como re- Os terrores nocturnos podem aparecer por volta dos
sultado do elemento sonho no sono REM), paralisia 18 meses de vida, com pico entre os 4 e os 7 anos,9 sen-
muscular (hipotonia súbita). Os episódios podem du- do mais raros após estas idades. A criança senta-se re-
rar segundos a minutos e podem ocorrer também du- pentinamente na cama, agitada, confusa, olhar fixo,
rante o sono, com alteração na sua arquitectura. A nar- por vezes com sintomas vegetativos acompanhantes,
colepsia é difícil de diagnosticar em fases precoces pois como palpitações, respiração irregular e diaforese. Pa-
os ataques de sonolência súbitos podem não estar ain- rece inconsolável. O episódio dura segundos a minu-
da presentes.2 O tratamento passa por rotinas de sono tos até a criança acalmar subitamente e adormecer no-
organizadas, incluindo sestas diurnas regulares e pla- vamente. De manhã não há recordação do episódio por
neadas. Em termos de medicação, estimulantes como parte da criança. A criança não deve ser acordada, de-
o metilfenidato mostraram ser úteis, tal como antide- vendo ser conduzida de novo para a cama após o epi-
pressivos tricíclicos (por diminuírem o sono REM).4 sódio. A persistência de forma regular para além da ida-
Enquanto na narcolepsia a sonolência é persistente, de pode estar associada por vezes a sintomas fóbicos e
no SKL, esta é intermitente. É uma síndrome rara5 e ti- deve ser alvo de atenção especializada.12
picamente começa após uma infecção ou experiência O sonambulismo é relativamente comum, sendo que
potencialmente geradora de stress em adolescentes do 30% das crianças em determinado momento experien-
sexo masculino. Episódios acontecem de 2 a 3 vezes ciaram um episódio.4 É habitual em cerca de 2,5% da
por ano, com duração de horas a semanas, caracteriza- população geral.2 Parece haver uma base familiar, rela-
dos por hiperssónia, aumento do apetite, hiperssexua- cionada com a proporção de sono de ondas lentas.2 Um
lidade e estados sugestivos de ligeiro estado confusio- episódio pode durar até cerca de 10 minutos e as me-
nal agudo. A situação tende a reverter espontaneamen- didas mais importantes são providenciar um ambien-
te após alguns anos, existindo a possibilidade de medi- te seguro para evitar acidentes (colisões com objectos,
cação com estimulantes durante os episódios. escadas, etc.).
Em relação ao tratamento o primeiro passo é tran-
PARASSÓNIAS quilizar a família acerca da natureza benigna dos epi-
As parassónias consistem num grupo de perturbações sódios, com um prognóstico favorável com a matura-
comuns durante a infância, caracterizadas por altera- ção da criança.4 Medidas práticas envolvem a possibi-
ções no comportamento envolvendo o sono.9 Geral- lidade de uma sesta à tarde de cerca de 30 a 60 minu-
mente são fonte de grande preocupação para as famí- tos, diminuindo a necessidade de sono de ondas lentas
lias, pela sua exuberância, mas revestem-se de carác- durante a noite, reduzindo a frequência dos episódios.
ter benigno, sendo consideradas como parte integran- Deverá ser promovido um ambiente tranquilo e re-
te do desenvolvimento e tendendo a desaparecer com laxante durante o adormecimento, bem como medi-
a idade.2 Neste artigo dividiremos as parassónias em das de segurança referidas para episódios de sonambu-
perturbações relacionadas com (1) despertares parciais lismo.
(terrores nocturnos, sonambulismo, sonilóquios), (2) Para episódios graves, frequentes, com implicação
pesadelos e (3) automatismos do sono. na qualidade do sono e consequentemente sonolência
As perturbações relacionadas com despertares par- diurna, ou perigosos, com risco para a criança, deve ser
ciais ocorrem quando há uma passagem súbita do sono ponderada a medicação, nomeadamente as benzodia-
NREM profundo para um sono NREM leve. No fundo zepinas ou os antidepressivos tricíclicos que diminuem
são comportamentos relacionados com despertares o sono de ondas lentas. Os mais usados destes agentes
que emergem da fase de sono de ondas lentas (ondas são o diazepam, clonazepam e imipramina, ao deitar.4
delta). Visto que a maior proporção deste sono ocorre Os pesadelos são eventos relacionados com o sono
no primeiro terço da noite, estes episódios acontecem REM e que ocorrem normalmente na segunda metade
nesta altura, em média entre 1 a 3 horas após o ador- da noite. São comuns entre os 3 e 6 anos de vida, afec-
mecer. Durante estes episódios as crianças parecem tando de 10 a 50% de crianças.2 Ao contrário dos terro-

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res nocturnos, uma criança quando acorda de um pe- Uma das perturbações psiquiátricas que comum-
sadelo está assustada, alerta, mas orientada e lucida- mente cursa com alterações do sono é a Perturbação de
mente consegue descrever o episódio, tendo dificulda- Hiperactividade e Déficit de Atenção (PHDA), havendo,
de em adormecer novamente. Na manhã seguinte re- em muitas destas crianças referência a diminuição das
corda-se do pesadelo. Se os pesadelos forem persisten- necessidades de sono, dificuldades no adormecer, sono
tes e houver dificuldade na tranquilização da criança agitado e frequentes despertares nocturnos. Na depres-
pode ser necessário tratamento, que deverá ser orien- são, os problemas de sono fazem parte dos critérios de
tado para a fonte das angústias da criança. O conteúdo diagnóstico para episódio depressivo major, quer por
do pesadelo pode fornecer informação sobre a situação insónia (inicial, média ou terminal) ou, no caso de de-
geradora de angústia. A persistência de forma regular pressões atípicas, por hiperssónia. As dificuldades no
para lá da idade normal deverá ser alvo de atenção, bem sono são também frequentes nas perturbações de an-
como outros sintomas associados. siedade, como perturbação de ansiedade generaliza-
Os automatismos de sono caracterizam-se por mo- da, perturbação obsessivo-compulsiva ou perturbação
vimentos regulares e rítmicos (como abanar da cabeça de stress pós-traumático. Neste último caso os pesade-
ou batimentos com a cabeça no colchão ou grades do los recorrentes acerca da situação geradora de stress
berço). Ainda é bastante desconhecido o seu significa- fazem, regra geral, parte do quadro clínico. Na pertur-
do patológico, a generalidade dos estudos revela que se bação bipolar existe uma diminuição franca das neces-
trata de episódios benignos que resolvem espontanea- sidades de sono, enquanto em perturbações psicóticas
mente aos 3-4 anos de idade.2 A maioria dos autores são frequentes queixas de ansiedade nocturna. Nas de-
descreve os automatismos como comportamentos de ficiências mentais ou perturbações globais de desenvol-
autoapaziguamento.2 Ocorrem sobretudo nas fases 1 e vimento, é frequente encontrarem-se alterações no pa-
2 do sono NREM, e por vezes no sono REM, duram se- drão sono-vigília, relacionadas, provavelmente, com al-
gundos e podem ocorrer diversas vezes durante a noi- terações neurobiológicas do SNC.
te. O tratamento passa por medidas protectoras para Existe ainda uma variedade de condições médicas e
evitar lesões. neurológicas que podem cursar com alterações do
Existem outras parassónias como as «alucinações» sono. O clínico, na sua avaliação, deve excluir a possi-
hipnagógicas e hipnopômpicas, que são pseudoaluci- bilidade destas situações estarem presentes. São exem-
nações ao deitar e ao acordar, respectivamente. São co- plos destes casos a apneia do sono, asma, refluxo gas-
muns e sem significado patológico. A enurese noctur- tro-esofágico, obesidade, patologia tiroideia, doenças
na é considerada por alguns autores como uma paras- degenerativas, epilepsia, cefaleias, bem como a narco-
sónia, mas a sua discussão parece-nos deslocada do lepsia ou a SKL supramencionados.
âmbito deste artigo.
CONCLUSÕES
PROBLEMAS DO SONO ASSOCIADOS A OUTRA Como revimos neste artigo, há uma grande variedade
PERTURBAÇÃO PSIQUIÁTRICA OU MÉDICA de problemas de sono no bebé, na criança e no adoles-
Como já foi referido, é fundamental, perante um pro- cente, que podem ser encarados como um espectro de
blema de sono, detectar se há outro tipo de patologia intensidade. Numa ponta do espectro temos dificulda-
do foro psiquiátrico ou orgânico na base das queixas des de adormecimento ou despertares nocturnos pon-
apresentadas. A regulação do sono e vigília parece en- tuais, que podem ser variações da normalidade (de-
volver sistemas neuronais também responsáveis pelo pendente também da percepção e atitude dos pais face
controlo das emoções e comportamento. Não é de es- a estas dificuldades) e na outra ponta problemas gra-
tranhar a elevada comorbilidade entre perturbações ves que podem interferir com o desenvolvimento nor-
psiquiátricas e perturbações do sono, em crianças e mal.
adolescentes. Os problemas de sono são sintomas de Torna-se claro que é necessário ajudar os pais e for-
alarme importantes para detectar uma patologia do necer orientações claras no sentido de promoção de
foro emocional. padrões saudáveis de sono, bem como na detecção pre-

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dossier: saúde mental infantil 591

coce de problemas de sono, de forma a que o sono pos- 5. Touchette E, Petit D, Tremblay RE, Montplaisir JY. Risk factors and con-
sequences of early childhood dyssomnias: new perspectives. Sleep Med
sa ser encarado pelas crianças como uma experiência
Rev 2009 Oct; 13 (5): 355-61.
positiva.
6. Lewis M. Child and Adolescent Psychiatry: a comprehensive textbook.
Deverão ser encaminhadas para consulta de Pedop- 3rd ed. Lippincott, Williams & Wilkins Publishers; 2002.
siquiatria os casos em que as medidas psicopedagógi- 7. Stahl S. Stahl´s Essential Psychopharmacology. 3rd ed. Cambridge:
cas não se apresentaram eficazes, bem como aqueles Cambridge University Press; 2008.
em que haja associação com outros sintomas psicopa- 8. Sadeh A, Sivan Y. Sleep problems during infancy. Eur J Pediatr 2009 Oct;
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tológicos, ou em que pareça haver uma grande dificul-
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dade dos pais em lidar com a situação, gerando uma si- dren: Part two: common sleep problems. J Pediatr Health Care 2004
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2. Stein A, Barnes J in Rutter M, Taylor E. Child and Adolescent Psychiatry.
4th ed. Oxford: Blackwell; 2005. Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.
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York: Norton & Company; 2006. Paula Vilariça
E-mail: paula.vilarica@yahoo.com

ABSTRACT

SLEEP PROBLEMS IN CHILDREN


The importance and impact of sleep on health has earned more attention in the recent years, being sleep problems a common
source of concern among parents. Sleep plays a key role not only biologically, but also emotionally and socially. Sleep problems
can have a significant negative impact on children and their families. In this article we intend to deal with basic information to
be used by clinicians when confronted with the parents´ concerns about children´s common sleep problems. We will focus on
the fundamental aspects of normal sleep architecture and sleep patterns development, followed by an explanation about the
clinically more relevant sleep problems in children and adolescents.

Keuwords: Sleep; Sleep Disorder; Child; Adolescent.

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