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38º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

CAXAMBU

GT 40

Teoria social no limite: novas frentes/fronteiras na teoria social


contemporânea

A VIRADA CONCEITUAL PÓS-COLONIAL: PANORAMA,


ESPECIFICIDADES E POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES ÀS
TEORIAS SOCIAIS

Adelia Miglievich-Ribeiro

Outubro de 2014
A VIRADA CONCEITUAL PÓS-COLONIAL:

PANORAMA, ESPECIFICIDADES E POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES ÀS


TEORIAS SOCIAIS1

Adelia Miglievich-Ribeiro 2

RESUMO: pensar os desafios pós-coloniais às teorias sociais requer o inventário de algumas de


suas principais vertentes que guardam, cada qual, especificidades. Nosso propósito é construir
uma reflexão a partir das obras pioneiras de Fanon, Memmi e Said quando analisam a invenção
da alteridade pelo Ocidente. Em seguida, examinamos a proposta de Stuart Hall, um dos pais dos
estudos culturais, em sua herança da categoria derridiana de différance, também apropriada pelos
Estudos Subalternos Indianos, trazidos aqui ao debate por Gayatri Spivak em sua
problematização da subalternidade. Longe de exaurir as múltiplas correntes do pós-colonial,
encerramos este esforço de sistematização com a reação do grupo modernidade-colonialidade
latino-americano que, em seu giro decolonial, recusa o domínio da literatura pós-estruturalista
europeia e retomam o diálogo com o pensamento crítico no continente. Nossa hipótese é que, nas
divergências e similaridades, tais expoentes dos estudos pós e decoloniais promovem uma útil
revisão da sociologia e de seu potencial explicativo.

PALAVRAS-CHAVES: crítica pós-colonial; subalternidade; giro decolonial; estudos culturais;


teoria social.

APRESENTAÇÃO

Pierre Bourdieu (1983; 1987) lega-nos em sua obra uma reflexão acurada sobre a
formação do campo científico. Constata o empenho, consciente ou não, dos produtores de
ciência em promover a esoterização do conhecimento, que o faz restrito prudentemente a
um círculo fechado de “pares”, aqueles iniciados nos códigos exclusivos de seu
deciframento. Não haveria ciência se esta não se distinguisse dos saberes leigos. Tal
distinção é cultivada em instituições com este fim, sobremaneira, nas universidades, onde
aprendemos o “correto” uso da linguagem e das metodologias, antes disso, o que é e o
que não é digno de ser pensado, portanto, a agenda de pesquisas a se adotada. Não que
não haja conflitos e disputas - estes confirmam a existência do “campo científico” - mas a

1
A pesquisa insere-se nos esforços do Núcleo de Estudos em Transculturação, Identidades e
Reconhecimento (Netir-Ufes), cadastrado sob minha coordenação e de Luis Beneduzi no DGP-CNPq. É
um dos frutos da pesquisa em andamento “Leituras Contemporâneas da Crítica Pós-Colonial” (Ufes).
2
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências
Sociais e Pós-Graduação em Letras (mestrado e doutorado) da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes). Bolsista sênior de pós-doutorado Faperj do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd-Uerj). E.mail: miglievich@gmail.com

2
socialização comum tende a promover, mesmo nos dissensos, um grau elevado de
consenso.
Trazemos aqui, entretanto, alguns arranhões neste consenso, sobretudo, a partir
da chamada crítica pós-colonial cuja penetração na academia brasileira ainda é recente.
Para uns, os insights pós-coloniais convergem, em que pesem as variações, numa
oportunidade de ampliação das ciências sociais. A exemplo de Costa (2010), trata-se de
um empenho contemporâneo em “desprovincializar a Sociologia”, referindo-se ao fato de
que uma teoria social é em muito as realidades concretas que buscou desvendar e, nesse
sentido, as categorias sociológicas nascidas nas análise de contextos europeus específicos
não deveriam servir acriticamente para dirigir a análise de todas as demais formas de
existência no mundo.
Glaucia Villas Bôas (2006) chama-nos a atenção para o fato de que um modo
peculiar de “imaginação sociológica” caracterizou a teoria social produzida no Brasil
acentuando a tese acerca de nossa “modernidade periférica”. A idealização sobre uma
pretensa modernidade universal fez com que os brasileiros fossem enquadrados
irrevogavelmente em categorias que induzem à inferioridade, deficiência, falta. Na
produção de conhecimento, esta tendência impediu os cientistas sociais de atentar para as
possibilidades em nossa própria história. Em suas palavras:

se há tentativa para conhecer o perfil cognitivo da sociologia brasileira,


tal tentativa se limita a medi-lo exclusivamente por um conjunto de
interpretações relacionadas às possibilidades de adequação do país a um
modelo de modernidade construído ‘fora’ de seus limites territoriais,
culturais e políticos. Em conseqüência do uso excessivo dessa medida,
o tratamento da relação entre as tradições sociológicas de diferentes
contextos nacionais se limitou a apontar as idéias que estão dentro ou
fora do lugar; ou ainda as idéias que contribuíram para criar um país
legal versus o país real. [...] Em geral, os estudos realizados dessas
perspectivas confirmam de modo impecável os cânones interpretativos
que consagraram a imagem de um país fora do lugar, inadequado, triste,
atrasado (VILLAS BÔAS, 2006, p. 11-12).

Sergio Tavolaro (2005) compartilha argumento similar ao expor o falso dilema


sociológico brasileiro que lida eternamente com nossa “inadequação” aos padrões
modernos dos países centrais. Sem recusar o caráter assimétrico da globalização
contemporânea e os efeitos práticos disto, propõe a substituição das classificações
convencionais da modernidade como “periférica”, “semi-periférica” ou ainda “pré-
modernidade” para se falar em modernidade multifacetada, anos exigir um fôlego
3
interpretativo das nuances entre o “local” e o “global” bem maior.
Marcelo Rosa (2013) forja a noção de “sociologia não-exemplar” numa
perspectiva similar. Questiona nossa competência, como sociólogos, para examinar
realidades no Brasil e na África do Sul, campos de sua pesquisa, sobretudo, se insistimos
obcecadamente em confrontar as dinâmicas que nos são apresentadas com nossos
próprios mitos da modernidade iluminista. Neste caso, irremediavelmente, deixamos de
enxergar aspectos provavelmente relevantes, invisibilizando-os por não caber em nossos
“manuais”. O oposto disso seria revisitar a ideia mesma de modernidade, ampliando-a ao
invés de recair na tendência ainda majoritária de considerar o diferente como “desvio”,
“irracional”, “inferior”, “precário”, “inverossímil”.
Vandenbergue (2012), que não se manifesta (ainda) neste debate, concordaria com
a parcialidade das teorias sociológicas. Faz antes uma diferenciação entre “metateoria”,
“teoria social” e “teoria sociológica”. A metateoria reflete sobre os paradigmas da
sociologia e justifica que retornemos a ele para seguir teorizando. Para o autor,
Durkheim, Weber e Marx conformam “o espaço metateórico da teoria social” (p. 16). A
teoria social, a exemplo do funcionalismo, neomarxismo, pragmatismo, produz um
discurso coerente e defensável sobre uma dada realidade social abarcando temas de
distintas disciplinas. A teoria sociológica, menos geral e mais concreta, ata a sociologia
ao contexto original de sua emergência e aplicação e relega a outras disciplinas o exame
das realidades não europeias (a Europa industrial):

(...) a sociologia emergiu na Europa como uma disciplina relativamente


autônoma no século XIX, no rastro das revoluções científica, industrial e
política que provocaram a grande transição para a modernidade (...).
Colonialismo, capitalismo, industrialismo, urbanismo, estado-nação,
secularismo e individualismo são marcos da modernidade (...). Doravante, a
sociologia investigaria o Ocidente, os Estudos Orientais o Oriente e a
antropologia o resto (VANDENBERGHE, 2012, p. 33).

Wallerstein (1980) também se refere com ironia a uma sociologia que hierarquiza
as realidades sociais e, inevitavelmente, os sujeitos. Entretanto, como tento argumentar, o
consenso sociológico se desfez. A sociologia ou amplia seus cânones ou pouco
conseguirá explicar acerca da “modernidade-mundo”. Embora os críticos pós-coloniais
não sejam, por formação, sociólogos, nunca pareceram tão úteis em seus insights à
sociologia.

4
Há de se dizer que a crítica pós-colonial é, em muito, devedora de movimentos
intelectuais que se passam, também, no “centro” do mundo. Não por acaso, uma de suas
vertentes, a chamada “modernidade-colonialidade-decolonialidade” reivindicará, a partir
da década de 1990, um maior diálogo com as raízes do pensamento crítico no continente
do que o que considera abuso nas referências a Foucault, Deleuze e Derrida. Um pleito
justo, sobretudo, porque o pós-colonial de língua britânica é, por vezes, tão pós-moderno
e pós-estruturalista que parece não necessariamente acompanhar o “giro decolonial”
latino-americano cujo empenho histórico é apontar a América Latina, em sua rica
tradição cogniscitiva, como lócus legítimo de enunciação. Não nos antecipemos, porém,
nesta senda que nos ocupará mais tarde. A relação entre o pós-colonial e a “virada
linguística” na Europa e nos Estados Unidos é um capítulo da história do dito
movimento.
Perrone-Moisés (2004) sistematiza as características do pós-estruturalismo:
atomização dos objetos e dos pontos de vista, em antagonismo ao projeto totalizador do
estruturalismo; rejeição da razão como universal ou fundacional; o descentramento do
sujeito; o interesse pelas diferenças, exclusões, margens, trânsitos; a atenção à história e à
cultura percebidas como discursos; a dissolução das fronteiras disciplinares; a
desconfiança nas ‘asserções de verdade’; a percepção da ‘significação’ como um jogo
ininterrupto de relações e diferenças. Apesar de alguns pontos coincidentes, pós-
modernismo e pós-estruturalismo não são a mesma coisa, sem contar a complexidade
contida em cada um dos termos. O pós-modernismo é uma terminologia vaga, ora
referida à cronologia, ora às práticas culturais do capitalismo avançado. O pós-
estruturalismo é uma postura filosófica que traz novas maneiras de pensar o sujeito e a
constituição de suas práticas. Fala-se muito, nesta senda, dos “estudos culturais”e, nestes,
dos estudos pós-coloniais. Minha compreensão, porém, exige que partamos dos “estudos
pós-coloniais” para, então, chegar aos “estudos culturais”. Será por isso, talvez, pelo
privilégio à geopolítica do conhecimento e ao entendimento da crítica pós-colonial como
uma crítica que é epistemológica e política num só tempo que consigo concebê-la
somando às teorias sociais, ao questionar sua arbitrária parcialidade, do que como um
empreendimento a deslegitimar as ciências sociais. Quem sabe elas são ilegítimas
efetivamente e a crítica pós-colonial vem devolver-lhe o compromisso com a maior
clareza acerca da vida social?

5
Bourdieu (2003; 2007) também disse que o treinamento numa prática científica
específica nos leva a partilhar um “inconsciente cultural”, captado por nossas
aprendizagens intelectuais. Somos dotados de “esquemas fundamentais” aprendidos por
longos anos que determinam nossas operações mentais (1987). Somos “programados” e
por meio deste “programa” percebemos, pensamos, agimos. Considero que os
intelectuais diaspóricos tiveram, como um privilégio paradoxal, a chance de se
“desprogramar”. A incitação da crítica pós-colonial não nasce na Europa mas em suas
margens: este é o ponto crucial. Não se trata de “essencializar” a subalternidade,
atribuindo a esta um necessário ponto de vista superior analiticamente (ou
ideologicamente). Entretanto, não deixa de ser curioso que a experiência da “dupla
inscrição”, do “entre lugar”, o desconforto da falta de uma “morada” é um potente
promotor da dúvida e, quiçá, de novas respostas. Adorno falou disso em “Minima
Moralia” (2008), sua autobiografia escrita, entre 1944 e 1947, no exílio nos Estados
Unidos, cujo subtítulo é “Reflexões a partir da vida lesada” (Reflexionen aus dem
beschädigten Leben), na qual revela a subversiva positividade da experiência do exílio, a
saber, a conquista de uma “perspectiva alternada”, um modo novo de ver consciente do
infortúnio e da violência sofrida, assim, um “olhar deslocado” disposto à percepção de
que “todas as avaliações são falsas” (ADORNO, 2008, p.27). O peso da diáspora,
inegavelmente, por sua vez, forjou a crítica pós-colonial.
Teremos oportunidade ainda, neste paper, de atentar para a tipologia dos pós-
coloniais elaborada por Sérgio Costa (2013) que os faz suficientemente distintos uns dos
outros. Pretendemos expor Fanon, Memmi e Said, ainda um pouco dos “estudos
culturais” de Stuart Hall, também, o “Grupo de Estudos Subalternos Indianos”, na
atenção especial a Gayatri Spivak e Homi Bhabha. Do “giro decolonial” latino-
americano, destacaremos, pelo impacto de sua proposta, Walter Mignolo. A visão
propositalmente panorâmica nos permitirá um esboço preliminar desta variedade de
contribuições, a luz da preocupação quanto aos ganhos analíticos para nossas pesquisas
de alguns insights pós-coloniais.

1. OS PÓS-COLONIAIS

É necessário, antes de mais nada, esclarecer que o uso dos termos “pós-colonial”
e “pós-colonialismo” deslocou o sentido linguístico mais evidente do “pós” como
6
“depois” ou “fim” para o gesto de “ir além”, isto é, pensar criticamente a colônia na sua
interface com a metrópole e os neocolonialismos3 a fim de abrir novos modos de
entendimento quer “da” condição periférica quer “a partir da” condição periférica. O que
está em xeque, conforme já anunciamos, são as narrativas da modernidade e até que
ponto elas são hoje críveis. O modo como os pós-coloniais revisitarão a narrativa
canônica e formularão outras, permite, segundo Costa (2013), se falar numa tipologia das
investigações pós-coloniais, com espaço para as de tipo “enfático”, “intermediário” e
“moderado”.
Para a crítica pós-colonial enfática, a ligação entre discurso e poder tornou a
ciência historicamente mera legitimadora de estruturas de dominação sob a capa de
“critérios de excelência”, “rigor metodológico” e “pretensão de objetividade”. É esta que
nos permitiria dizer que não se dispõe ao diálogo com a teoria social ou qualquer outra,
em sua perseguição de um saber “beyond theory”. Fonte de inspiração para movimentos
sociais feministas ou de minorias, subestimando a relevância de um debate acerca da
“reforma das ciências humanas” (COSTA, 2013, p. 218), ainda assim, entendo que
inintencionalmente, têm o contributo de incitar o radical debate acerca da possibilidade
mesma do conhecimento e obrigar uma reação que poderá passar pela atenção às críticas
e uma séria autorreflexão da comunidade científica acerca de seus limites,
constrangimentos, sentidos e possibilidades, num gesto de inusitada humildade
intelectual, provavelmente, jamais prevista por Bourdieu.
A vertente intermediária da crítica pós-colonial incentiva pesquisas nas ciências
sociais que explicitem a genealogia das disciplinas científicas em sua ligação intestina
com o colonialismo europeu. Representante emblemática dessa posição é o grupo latino-
americano “modernidade-colonialidade-decolonialidade”. A interdependência estrutural
entre colonialismo e ciências humanas modernas ajudou a apartação entre os centros
produtores de teorias e a periferia, útil apenas para a aplicação delas, excluída, contudo,
da possibilidade de produzir conhecimentos igualmente válidos que intervissem na
produção científica. Esta, incólume aos saberes dos povos nos quais intervinham,
acentuavam a unilateralidade do conhecimento mas dotavam o projeto colonizador de
uma suposta base científica feita para respaldá-lo. Ao explicitar a face oculta da

3
Aníbal Quijano (2010), no giro decolonial latino-americano, observa potência da colonialidade do saber,
do poder e do ser que classificaram (e classificam) a diferença, com ênfase ao aspecto “racial”, como
subalternidade na história e contemporaneamente, abarcando diversas dimensões da vida, tais quais
trabalho, gênero, sexualidade, autoridade, intersubjetividade.

7
modernidade, a saber, a colonialidade (a escravidão negra, os genocídios indígenas, o
sistema de plantation, a usurpação das riquezas das colônias) e os neocolonialismos, tal
vertente intermediária da crítica pós-colonial, devolve à sociologia e à ciência política o
direito de estudar as realidades latino-americanas, caribenhas, africanas, orientais e
outras, vez que desmistificam a pretensão de enxergá-las como fases pretéritas da
modernidade mas, ao contrário, são elas a modernidade plena de contradições: as
aspirações por direitos humanos e pretensões igualitárias no lado europeu do Atlântico e
no próprio continente americano concomitante à expansão do racismo científico nos
Estados Unidos e de lá para a América Latina a legitimar, pelo preconceito racial,
missões ditas civilizatórias a destroçar povos e culturas. Tal crítica pós-colonial, na
medida da crítica a uma ciência historicamente comprometida com a manutenção do
poder hegemônico mundial, pretende agora que as vozes silenciadas possam ser ouvidas
de maneira que seus saberes se incorporem ao patrimônio universal, inspirando, quem
sabe, um “novo humanismo” (SAID, 2007a). Isto implicará uma reforma das instituições
como a escola, a universidade, o Estado onde passam a participar, como protagonistas,
aquelas populações por séculos subalternizadas.
Segundo Costa (2013), a ideia de valorizar formas não científicas de
conhecimento, especialmente em regiões que outrora foram colônias, é seguramente
louvável mas a expectativa de que isso possa impactar o campo científico é exagerada, na
realística suposição deste sociólogo, de que os saberes não-formais são solenemente
ignorados pelas sociedades de ciência. Não ousaria discordar de Costa na medida em que
sabemos a desqualificação da fala do outro se dá, no mínimo, há cinco séculos mediante
o que hoje identificamos como “violência epistêmica”. O sociólogo enxerga a
ingenuidade de projetos que supõe a possibilidade das ciências humanas aprenderem a
partir dos saberes até então alijados.
Uma inegável ingenuidade, se este é um bom nome, contudo, move esta reflexão.
E há movimentos que parecem indicar que autores, vindos do Sul, até então não lidos
passam a ser. O apelo de Edward Said (2007b), um dos pais fundadores da crítica pós-
colonial, nascido palestino e cidadão norte-americano, pode estar sendo se não mais lido
do que supõe Costa, quem sabe, ao menos, lido e pelo pequeno número que seja,
seriamente pensado, de maneira que o humanismo hoje fortemente criticado não apenas
deixe de existir mas adquira um caráter mais polifônico e, por conseguinte, mais
consistente, até mesmo para continuar existindo.
8
Também Anthony Appiah (1997), de Gana e com metade de sue mundo
doméstico referido à Inglaterra, com “familiares na África e na Europa (...) tio libanês e
primos americanos, franceses, quenianos e thais” (p. 11), pode não estar falando
unicamente para as paredes quando proclama que sua defesa de um “universal ético” é
fruto, paradoxalmente, do pós-colonialismo que contestou as narrativas legitimadoras
anteriores “em nome das vítimas sofredoras de mais de trinta repúblicas”, portanto, “não
é um aliado do pós-modernismo ocidental, mas um adversário: como que acredito que o
pós-modernismo possa ter algo a aprender”. Assim, o que chama de “humanismo pode
ser provisório, historicamente contingente, anti-essencialista (em outras palavras, pós-
moderno) e, ainda assim, ser exigente” (p. 216), expressando uma preocupação real como
o sofrimento humano e com as vítimas nos neocolonialismos. Dito de outro modo,
quando, noutro continente, a “modernidade-colonialidade-decolonialidade” fala de
“diversalidade” como um contraponto à anterior arbitrária “universalidade”, sabendo-a
agora híbrida e, a exemplo da tese de Walter Mignolo (2003) expõe seu projeto de
“pensamento liminar”, conforme ainda examinaremos, podemos até minimizar seu
impacto nas humanidades e nas ciências sociais em geral, entretanto, seria desleal dizer
que as margens não vêm destoando dos centros e que há uma realidade inconteste que é a
participação nas sociedades científicas de um maior número de estudiosos cuja
socialização nos cânones não se deu “desde sempre” e que, nem por isso, não queiram ser
ouvidos em suas perspectivas dissonantes. É provável que sejam marginalizados,
“exotizados” nalguns fóruns mais ortodoxos mas isto não é mais seu implacável destino
na medida em que a ordem mundial, também do ponto de vista econômico, conhece
novas configurações. No Brasil especificamente, eu não subestimaria o pós-colonial, não
numa visão de médio e longo prazos na sociologia. A antropologia, de um lado, a
literatura comparada de outro, há tempos, enseja esse diálogo que mostra, nas respetivas
áreas, promissor e, por que não, salutar.
Costa (2013) finda sua tipologia da crítica pós-colonial com a vertente moderada
dos estudos pós-coloniais. Trata-se de uma crítica que não rejeita a ciência nem procura
novas formas de conhecimento para substituí-la, senão que procura realizar uma
transformação/reformulação da ciência a partir “de dentro”. Na desconstrução da história
hegemônica da modernidade, demonstra que categorias explicativas claramente
ocidentais são ineficientes quando aplicadas ao “resto do mundo”. Neste grupo, temos o
historiador indiano da Universidade de Chicago, Dipesh Chakrabarty, com seu intento,
9
neste paper já citado, de “provincializar a Europa”, observando o caráter “paroquial” dos
ideais do liberalismo, do racionalismo e da ciência cuja força hegemônica que os
articulam na narrativa absoluta da modernidade é construída pelo imperialismo europeu
quanto com a participação direta do mundo “não ocidental”. Noutras palavras, a
modernidade hegemônica é heterogênea, plural, tensa, hibridizada, múltipla assim como
são as tantas modernidades “resistentes” nas várias partes do mundo.
Shalini Randeria, antrópologa de origem indiana da Universidade de Zurique,
amplia as teses de Chakrabarty ao cunhar os conceitos de “história compartilhada” e
“modernidade entrelaçada”. Sua tentativa é de fundamentar a ideia de que histórias, a
despeito de serem narradas como nacionais, apresentam interpenetrações e se
determinam mutuamente. Fenômenos como colonialismo e escravidão não podem, por
conseguinte, ser tratados como “exteriores” à modernização iluminista, ao contrário, são
elementos centrais da história global da modernidade, expressando a interdependência e a
simultaneidade dos processos de constituição das sociedades contemporâneas dentro e
fora da Europa (RANDERIA, 2000, 2005 apud. COSTA, 2010).
Não há, em meu entendimento, uma diferença de argumentação entre os três tipos
de pós-colonial; se não expectativas diferentes quanto ao que fazer nas ciências sociais a
partir do convencimento em tal argumentação. A corrente moderada, ao evidenciar
insuficiências metodológicas e os “pontos cegos” das ciências humanas, procuram nelas
trabalhar sem descredenciar a comunidade científica. A posição intermediária quer
modificações mais fortes no programa das ciências humanas com o ingresso, dentre
outros, dos saberes não científicos, as chamadas cosmologias subalternas, não mais como
“objetos de estudo” porém como interpretações do mundo tão legítimas quanto as que se
dizem acadêmicas. A vertente enfática desaloja as ciências humanas de seu lugar
canônico, desprezando-as e optando pelos fluxos de informação que circulam entre as
fronteiras culturais. Nesta última, são conhecidos os “estudos culturais” que não são
poucos criticados:

As coisas ficaram, assim, muito embaralhadas, e ainda estão, porque as


causas políticas defendidas pelos estudos culturais são inegavelmente
progressistas e justas, mas o modo como se substituíram as análises
bem fundamentadas das novas práticas culturais por denúncias
ideológicas simplistas é contestável. Pretendendo exercer a
interdisciplinaridade, os culturalistas (...) recorreram de forma, de
forma geralmente amadorística, à história, à antropologia, à sociologia,

10
à psicanálise, e acabaram numa a-disciplinaridade. A submissão dos
textos à crítica ideológica pré-conceituada, sem levar em conta os
contextos e os momentos históricos desses textos, produziu um sem
número de anacronismos e de condenações oportunistas (PERRONE-
MOISÉS, 2004, p. 220)

É preciso considerar, porém, de onde partem as críticas e não generalizá-las.


Como diz Carvalho (2013), os “estudos culturais” vieram ao encontro das demandas por
uma nova abordagem para a etnografia das expressões contemporâneas, refazendo os
esquemas vigentes de interpretação de temas como identidade, relações raciais,
sexualidade, pertença étnica, hibridismo cultural, dentre outros. A psicanálise, de fato, foi
aceita de modo inédito nas investigações, sobretudo em sua vertente lacaniana,
estimulando novos métodos de interpretação e inovadores ensaios sobre, por exemplo, o
cinema, a virtualidade e a cultura de massa. A teoria de gênero (incluindo a teoria
feminista) garantiu, a partir daí, também lugar de destaque na cena acadêmica. As
narrativas orais, as biografias e as “escritas de si” renovaram inúmeras teorias da
linguagem, como a de Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Paul de Man. Walter Benjamin
foi retomado para a leitura textual “a contrapelo”, que se servia também da atividade de
desconstrução 4 de Jacques Derrida.
Novos movimentos teóricos (ou antiteóricos) podem ser bem ou mal feitos assim
como em sua recepção desdobram-se em algo que não eram em seu início. Mais um
motivo pelo qual neste paper tento ser leal às intenções originárias da crítica pós-
colonial, em suas vertentes, e cito aqueles estudiosos que de modo excepcional buscaram
consolidar tal crítica. Os usos dela, porém, hoje e, particularmente, no Brasil, passam a
ser de responsabilidade daqueles que se propõem a dar seguimento a suas intuições e
provocações.

2. TEXTOS FUNDADORES: FANON, MEMMI E SAID

4
“Desconstrução” é o tipo de palavra que “pegou”. Parece ser o contrário de construção, um sinônimo de
demolição ou destruição, interpretação equivocada que a relaciona ao niilismo e ao irracionalismo. Mas,
quem conhece seu proponente, Derrida, sabe que não é assim. O que foi chamado “desconstrução” em seus
escritos é a atividade de leitura minuciosa de textos filosóficos e literários da tradição ocidental com o fito
de desvelar seus pressupostos idealistas, dualistas, logocêntricos, etnocêntricos. Desconstruir é desmontar,
um exercício de crítica filosófica, uma tarefa infinda. A desconstrução não é dialética visto que não há as
três instâncias célebres – tese, antítese, síntese. A estas se reintroduz incessantemente uma quarta: a dúvida,
que adia a “certeza” sempre para adiante. Mas não há destruição e sim reajustes. Também não é um “vale
tudo” ético ou estético, mas um ‘re-pensamento’ que desconfia de toda hegemonia. Cf. PERRONE-
MOISÉS, 2004, p. 221-3.

11
Conforme Almeida (2013a), em 1952, Frantz Fanon - médico psiquiatra,
intelectual martiniquense - que combateu na Guerra da Argélia, publicou seu “Pele
negra, máscaras brancas” (2008). Em 1961, ano de seu falecimento, vem a público “Os
condenados da terra” (2005). Por sua vez, Albert Memmi, nascido na Tunísia, lançou,
em 1961, “Retrato do Colonizado precedido pelo Retrato do Colonizador” (2007). Tais
textos fundam a crítica pós-colonial exemplificando a forma inédita como se puderam
entrelaçar análises sociológicas e psicanalíticas para a compreensão da situação
colonial.
Ambos os estudiosos inserem no debate o tema do estereótipo e sua força
alienadora de modo original e, mediante o uso de alguns instrumentais da
desconstrução pós-estruturalista nascida na Europa, a voz colonizada é enunciada
pela primeira vez. Fanon e Memmi reivindicam um humanismo que não se encarcere
na experiência do colonizador, mas incorpore a diversidade dos modos de vida daqueles
arbitrariamente reduzidos à (auto)representação social de “receptáculos” da história
alheia. Ensinam ainda que o colonizador e o colonizado se constituem mutuamente,
seres inventados que são nos sistema de exploração colonial de maneira que apenas a
supressão radical deste tem o poder de desfazer o “feitiço” que se compraz na falácia da
dicotomia mesma (colonizador/colonizado), produtora de desumanizações nuns e
noutros.
A análise fanoniana das estratégias de violência, subordinação e desumanização
que produziram/produzem “o colonizado, tornado espectador sobrecarregado de
inessencialidade” (FANON, 2005) é minuciosa e recusa a identidade pura quer do
colonizador quer do colonizado. Nem as tradições culturais nativas podem ser
calcificadas nem é o europeu uma entidade abstrata e homogênea. As identidades são
sempre instáveis e conformadas como “zonas de luta política”, nas quais também nasce a
ideia de “diferença colonial”. Para Fanon, na “reorganização dialética” de sua herança
colonial, os sujeitos colonizados podem reinventar-se em sua verdadeira humanidade:
“homens novos”, portanto, em incessante constituição.
No Brasil, a recepção de Fanon pela academia, segundo Antonio Sérgio
Guimarães (2013), é ainda frágil. O sociólogo explica que para a literatura revolucionária
dos anos 1960 - de Glauber Rocha a Paulo Freire – a influência fanoniana era nítida.
Depois disso, porém, Fanon era lembrado em breves notas biográficas, sequer uma
12
biografia completa escrita por algum autor brasileiro existiu. Guimarães lembra que nas
análises políticas aqui produzidas, Fanon é uma referência ligeira num livro de Octávio
Ianni (). Serão os estudos pós-coloniais cujo desenvolvimento no Brasil é muito recente
que começam a trazer a contundência de seu pensamento para as ciências sociais
acadêmicas. Uma honrosa exceção cabe a Renato Ortiz (1995, 1998) que
competentemente vinculou as ideias de Fanon a três movimentos intelectuais centrais ao
mundo intelectual do pós-guerra na França: a releitura de Hegel; o debate entre marxistas
e existencialistas; e, finalmente, a négritude. Guimarães (2013) alerta, porém, que a
formação psicanalítica de Fanon foi, neste empenho interpretativo, esquecida. Mesmo
que Fanon tenha se consolidado “no panteão dos heróis da raça negra” (GUIMARÃES,
2013, p.51), seus estudos acerca do racismo ou da violência ainda são subestimados nas
teorias sociais à revelia de sua importância conforme, seguindo Guimarães, procuro
também defender.
Fanon, da crítica pós-colonial, interessa à teoria social, sobretudo, como analista
(e psicanalista) da violência, física e simbólica, aquela que parece inseparável da
condição humana. Ao averiguar a “despersonalização” provocada pela violência da
colonização (que podemos variar nos exemplos e sentidos contemporâneos) naqueles
nela enredados, Fanon desfaz a metafísica ocidental do Homem (a figura mítica: o
homem branco colonizador) e, ao mesmo tempo, desconstrói aa narrativa moderna
hegemônica. Evidencia a orientação neurótica das relações coloniais (ou de qualquer
relação de opressão), articulando o problema da alienação cultural ao desejo, em
linguagem psicanalítica, permitindo que pensemos o confronto com o usurpador como
maneira de devolução da existência negada ao usurpado. Sabe bem disso Axel Honneth
(2003), representante da terceira geração de Frankfurt, que leu Fanon na construção de
sua “teoria do reconhecimento”.
O argumento de que a história da modernidade está colada à história da
desumanização de povos inteiros e que a negação do conflito em nossos diagnósticos e
prognósticos como sociólogos é a recusa da percepção de tal grau de desumanização nas
experiências históricas contemporâneas no mundo tem em Fanon e Memmi pioneiros na
análise, sobretudo, em se incorporando a análise das subjetividades. Suas vozes, contudo,
não servem somente para aprimorar os estudos mas são, por excelência, combates vivos
aos modos de reificação das colônias pelas metrópoles, da periferia pelo centro, dos
pobres pelos ricos, dos subalternos pelos poderosos.
13
A clareza ideológica de tais críticos pós-coloniais não parece, a meu ver, destituí-
los de rigor analítico, ao contrário. É este o caso, também, de Edward Said, nascido
palestino em Jerusalém tornada, depois, Israel, tendo o inglês e o árabe como seus
idiomas primordiais (não sabe em qual deles teria pronunciado a primeira palavra),
escrevendo, porém, apenas no primeiro. Formou-se em Harvard e lecionou em
Columbia, vindo a se tornar um dos mais importantes críticos literários e culturais dos
Estados Unidos, que escreveu “Orientalismo” (2007b), livro de referência do pós-
colonial. Para Said (2003), que cita Adorno como um dos autores de sua predileção, o
intelectual diaspórico, no qual se situa, tem, como poucos, a exigência da “erudição
implacável” no mercado intelectual. Aliás, o próprio intelectual do “entre-lugar”,
desenvolve “um sentido do dramático e do insurgente” que o leva, quase
compulsivamente, ao rastreamento exaustivo de fontes alternativas, à exumação de
documentos “enterrados” e à valorização de todas as oportunidades de fala, num
empenho incomparável para cativar “a atenção do público, saindo-se melhor nos
embates e deixando pelo caminho os desafetos e os admiradores” (p. 15). As noções de
deslocamento e de intrusão são para os intelectuais pós-coloniais, advindos das margens
e instalados no Primeiro Mundo, fortes antídotos à displicência e a melhor motivação
para seu, aparentemente, inesgotável vigor intelectual.
Em “Orientalismo” (2007b), publicada pela primeira vez em 1978, Said
empreende uma análise desconstrucionista dos textos literários que compõem o
cânone universal, de Shakespeare a Flaubert, responsáveis pela repetição à
exaustão de pré-conceitos de quem é o “oriental”, a “alteridade essencial”. O
crítico pós-colonial combate os “essencialismos”, identificando as formas de invenção
do “Oriente” (Médio) pelos pensadores ocidentais e seus efeitos na
criação da bipartição mundial entre civilizados e bárbaros, produtos de uma história
narrada unilateralmente.
Said descortina a imaginação ocidental que cria o “Oriente”, observando como a
(in)sensibilidade dos viajantes produziram a “alteridade” como estigma e o discurso
reiterado, que impediu a real compreensão da complexidade das civilizações mundiais,
nenhuma dela contemplada na rude categoria “Oriente”. Não existe o “oriental”, sequer
existe o “ocidental”. Como Fanon, ao falar do “negro”, Said endossa que os poderes
coloniais forjaram colonizador e colonizado, negando-lhes a complexidade das interações

14
humanas, jamais redutíveis a qualquer estereótipo, mais uma vez, recusando-lhes a
humanidade.
Do ponto de vista analítico, demonstra o quão inverossímil é a categoria “Islã” (a
mesma a permitir a celebração da excepcionalidade americana ou ocidental e a maldição
sobre quem não pertence a este grupo). Não há, segundo Edward Said, amparo para tais
clivagens numa sociologia histórica. Nem o Ocidente nem o Oriente nem a América nem
o Islã são termos capazes de dar conta da incomensurável teia de histórias entrelaçadas
ali realizadas. Said em seu “Orientalismo” (2007) evidencia os processos de reificação
das dicotomias que transformam histórias reais numa fábula, literalmente, “para inglês
ver”. Conforme Carvalho (2013), a perspectiva colonialista e imperialista que forjou a si
mesma, ao inventar a “alteridade”, está comprometida, na sua raiz, por uma ambivalência
paradoxal que a debilita e permite confrontá-la visto que:

não é capaz de exorcizar o impuro, o ilícito, o feio, o horroroso, o perigoso,


que se instaurou no seu núcleo constitutivo, sob pena de enfraquecer-se
simbolicamente e deixar de ser um bom modelo de texto eminente do
colonizador como portador da pretensa moralidade universal (...). Isso
corrobora a intuição de Walter Benjamin, inspirado em Karl Marx, de que não
existe nenhum documento de cultura que não seja ao mesmo tempo
documento de barbárie (CARVALHO, 2013, p. 61)

3. OS ESTUDOS CULTURAIS NA CRÍTICA PÓS-COLONIAL: STUART


HALL

Stuart Hall, jamaicano, vivencia as contradições do sistema colonial e descobre


desde muito cedo a violência da colonização e seus distúrbios em sua própria família e na
constituição/destruição das subjetividades. Ainda antes da libertação da Jamaica vai
estudar Literatura em Oxford. Na Inglaterra, aproxima-se de Hoggart, Edward Thompson
e Raymond Williams, com estes, tornando-se um dos fundadores dos chamados “Estudos
Culturais”. Alinhado à “nova esquerda”, Hall atua, nos anos 1970, em prol da
consolidação do Centro de Estudos Culturais da Universidade de Birminghan.

15
5
Inspirando-se no conceito différance de Derrida que lhe serve para também
rejeitar as oposições binárias forjadas na modernidade que servem à elaboração ocidental
da “diferença colonial”, Hall (2009, p. 58) destaca o jogo sistemático e ininterrupto de
similaridades e diferenças entre “eus” e “outros” em cada um de nós a desconstruir a
cisão “modernidade” e “pré-modernidade”, revelando a primeira, desde sempre, como
uma “totalidade suturada”. A cultura é, nessa perspetiva, o “lócus da indecidibilidade”,
portanto, dinâmicas culturais onde transpassam múltiplas identificações e pertenças tais
como as de classe, gênero, região, religião, de maneira que a modernidade também se
realiza cotidianamente nas ambivalências, tensões e hibridizações que permeiam a
história dos humanos em seus deslocamentos, diásporas, recomposições, reinvenções. O
pós-colonial, para Hall, é atitude epistemológica que se vincula a uma temporalidade
real, que tornou a différance irrefutável. Segundo o crítico pós-colonial trata-se de se
reconhecer:

(...) a proliferação de histórias e temporalidades, a intrusão da diferença


e da especificidade nas grandes narrativas generalizadoras do pós-
iluminismo eurocêntrico, a multiplicidade de conexões culturais laterais
e descentradas, os movimentos e migrações que compõem o mundo
hoje, frequentemente se contornando os antigos centros metropolitanos
(HALL, 2009, p. 106).

A “virada linguística”, da qual participa Stuart Hall, isto é, a descoberta da


discursividade e da textualidade, do poder cultural, da ideia de representação como
modalidade de regulamentação e do simbólico como fonte de identidade, a introdução do
“sujeito pós-moderno”, indefinido, descentrado, produto de negociações e articulações
cotidianas, a atenção às subjetividades, postas no centro das investigações, a exemplo das
questões de gênero e sexualidade, raça e de etnia, marcndo uma inflexão nas análises,
alargam o campo das pesquisas para além do foco do materialismo histórico e dialético,
mas torna, concomitantemente, Hall alvo fácil das duras críticas daqueles que alegam a
subestimação das estruturas materiais por parte dos estudos culturais.
Arif Dirlik (1997), professor na Universidade de Duke, nos EUA, é um dos mais
duros “detratores” a acusar o culturalismo de “substitutivo universalista” das meta-

5
A noção de “diferência” (différance), a partir do jogo de palavras que o francês possibilita, remete à
quebra dos dualismos ou binômios, obrigando à percepção das infindas diferenças – semânticas, históricas,
étnicas, culturais – que não existem “essencialmente” mas estão em contínuo fluxo. Cf. PERRONE-
MOISÉS, 2004, p. 222.

16
narrativas estruturalistas que rejeita. Dirlik também acusa Hall de, ao se desfazer do
capitalismo como foco de análise, rebustecer o discurso conservador neoliberal. Stuart
Hall admite parcialmente as críticas mas insiste na relevância dos estudos acerca das
“representações sociais”, no interior do capitalismo e da sociedade do trabalho, ainda
que os estudos culturais dediquem a isto menos espaço do que se mereça. Não admite em
suas análises a proeminência de uma categoria sobre outras observando que, na
construção da hegemonia, diversas subalternidades se entrelaçam. Insistindo no caráter
pós-estruturalista de seus estudos nega a pretensão universalista que Dirlik aponta em
seus estudos pela ênfase dada às dimensões intersubjetivas da dominação e opressão
humanas. Observa, noutro aspecto, o ganho analítico dos estudos culturais ao observar
como as estruturas econômicas, sociais e políticas instalam-se, também, nas
subjetividades, compondo, sob a inspiração de Raymond Williams (1969), também uma
“estrutura de sentimentos” tão real na vida em sociedade quanto qualquer outra.
Para a análise aqui pretendida da utilidade analítica da crítica pós-colonial na
teoria social, vislumbramos, da parte dos estudos culturais, a rejeição dos
fundamentalismos, sem que isso seja imediatamente metamorfoseado em discurso
conservador. A crítica de Stuart Hall ao capitalismo e à alienação não parece menos
consistente por este unir Gramsci a Foucault, investigando um mundo constituído por
poderes macro e microcóspicos que se articulam hegemonicamente também no plano
cultural, sem conseguir anular as articulações contra hegemônicas e as resistências. O
crítico pós-colonial Stuart Hall sabe ainda que foi o mundo do trabalho que dividiu o
planeta em metrópoles e colônias, mas que as pessoas em sua criatividade, na différance
que marca a modernidade, criaram objetiva e subjetivamente as “zonas de fronteira”,
assim como antigos colonialismo se metamorfosearam nos neocolonialismos. A agudeza
de sua análise traz às teorias sociais ganhos que se consolidam ainda com a leitura
indiana que vem na sequência.

4. OS ESTUDOS SUBALTERNOS INDIANOS: SPIVAK E BAHBHA

Uma organização interdisciplinar de intelectuais indianos, dirigida por Ranajit


Guha, direcionada à crítica da historiografia nacionalista eurocêntrica que invisibilizou

17
aspectos centrais da história da Índia e silenciou uma gama de vozes nativas, cresce a
partir dos anos 1980, agregando os trabalhos de Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty,
Gayatri Chakrabarty Spivak, dentre outros. As releituras de Gramsci e Derrida, Foucault
e Deleuze impactam de modo nítido os trabalhos do “Grupo de Estudos Subalternos
Indianos”, responsável por gestar a ideia de “múltiplas temporalidades modernas”,
“entretempo” e “entre lugar”.
Focalizando a contribuição específica de Spivak , nascida em Calcutá em 1942 e
professora nos Estados Unidos, onde completou seus estudos pós-graduados em
Literatura Comparada, tendo publicado, em 1985, o famoso “Pode o Subalterno falar?”
(2010), pode-se notar como a investigadora analisa a luta por autodeterminação do
colonizado mediante sua produção de contradiscursos de resistência. Spivak destaca a
categoria do “subalterno”, sob a inspiração gramsciana, para se referir aos grupos
desagregados - ou apenas episodicamente agregados - alvos de constantes
constrangimentos impostos pelas classes dominantes que impedem sua identificação
como “ator coletivo”. Recordando Marx do “18 Brumário de Luís Bonaparte”, a autora
fala de camadas da sociedade excluídas do mercado e da representação política e legal,
fragmentadas e deslocadas, cujos projetos de consciência de classe e de transformação da
consciência são descontínuos (SPIVAK, 2010, p. 12), de maneira a contestar o marxismo
ortodoxo a fim de valorizar os sutis movimentos sociais, os “protestos”, as dinâmicas
avessas à lógica da racionalidade moderna sobre a qual se erigiram os conceitos de
“consciência em si” e “consciência para si” mas que na realidade indiana não poderiam
ser negligenciados sob o preço de não se enxergar a sociedade mesma.
Conforme Sandra Almeida (2013), Spivak reabilita ainda o conceito de ideologia
a luz dos desafios teóricos (e práticos) contemporâneos, ao tornar duvidosas as
pretensões de “representação” e “agenciamento” do subalterno por seus autoproclamados
“porta vozes”: os intelectuais (não menos os intelectuais pós-coloniais). Na arrogância de
traduzir a voz subalterna, intelectuais, políticos, ativistas tendem a contribuir para
reforçar o emudecimento dos subalternizados. Melhor fariam os “bem intencionados”
intelectuais atuando na reestruturação do espaço social, econômico, simbólico para torná-
lo permeável à presença e à intervenção dos grupos subalternos, qualificando para estes
uma audiência. Há que se escutar o silêncio, este é seu ponto. Se o subalterno está silente
é porque há um excesso de vozes que não são as suas. Não há que se falar pelo
subalterno. A estudiosa volta seu olhar, sobretudo, para as mulheres indianas e para a
18
impossibilidade, quer dos intelectuais quer dos políticos, de “acessá-las” e encenar seus
desejos e interesses uma vez que intraduzíveis nos sistemas cognitivos e políticos
convencionais. Desafia-nos, contudo, a não desistir de escutá-las e senti-las, em
substituição à sofreguidão de querer falar no lugar delas.
Homi Bhabha, também crítico literário indiano, em “O Local da Cultura” (2007),
segue apontando para a “alteridade” ou “diferença colonial” como artifícios discursivos a
condenar ao silêncio pessoas e coletividades. Propõe a articulação dos “sujeitos diversos
de diferenciação”, capazes de interpelar o discurso e a prática hegemônica, subvertendo e
transgredindo a ordem, recriando pela “tradução” novas realidades.

O poder da tradução pós-colonial da modernidade reside em sua estrutura


‘performática’, ‘deformadora’, que não apenas reavalia os conteúdos de uma
tradição cultural ou transpõe valores ‘trans-culturalmente’. A herança cultural
da escravidão ou do colonialismo é posta ‘diante’ da modernidade ‘não’ para
resolver suas diferenças históricas, em uma nova totalidade, nem para
renunciar suas tradições. É para introduzir um outro lócus de inscrição e
intervenção, um outro lugar de enunciação híbrido, ‘inadequado’, através
daquela cisão temporal – ou entre-tempo – [...] da agência pós-colonial
(BHABHA, 2007, p. 334)

Bhabha (2007) destaca o potencial de reelaboração, pelos povos subordinados, de


suas histórias reprimidas. Em consonância com a crítica pós-colonial, sabe que a cultura
existe como posições negociadas e renegociadas a produzir “os sujeitos da fala”.
Retomando Fanon, o crítico pós-colonial indiano enfatiza o caráter não essencialista das
identidades e a impossibilidade das “tradições puras” mas sim as ininterruptas
“estratégias culturais e textuais de aquisição de poder” (BHABHA, 2007, p.249). Expõe
o complexo processo de identificação entre colonizador e colonizado que evidencia a
fratura de todo maniqueísmo assim como a irrealidade das categorias “primitivo”,
“colono”, “negro”, “branco”, “árabe”, “cristão” uma vez irreversivelmente “rasuradas”
nos confrontos tantas vezes camuflados e nas criativas insurgências. A exemplo da
mímese, da ironia, da “civilidade dissimulada” que provocam “descoseduras” e
religações contingentes, movimentos e manobras nas interações entre opressores e
oprimidos, Bhabha nega qualquer pretensão de fixidez das entidades e categorias a da
conta do mundo moderno, ambivalente, híbrido e indeterminado a sabotar a
metanarrativa iluminista do universalismo hegemônico, unitário, homogêneo e linear.

19
Para Bhabha, a história contemporânea só é passível de compreensão na vistoria
de suas fendas, tornadas visíveis pela crítica pós-colonial. Somos híbridos porque a
história da humanidade. Ignorar as fraturas do projeto moderno é o mesmo que negar a
história. Somente será possível postular a igualdade da condição humana (numa ordem
universal metafísica) na percepção de nossas irrecusáveis diferenças e alternâncias. Seu
esforço de “ir além da teoria” revela seu descrédito nesta. Podemos, entretanto, atentos a
seus insights, propor revisitar a teoria social e não abandoná-la.

5. O “GIRO DECOLONIAL” LATINO-AMERICANO: WALTER


MIGNOLO

Relata-nos Luciana Ballerstrin (2013) que a tradução por Santiago Castro-Gomez


do inglês para o espanhol do manifesto “Colonialidad y modernidad-racionalidad”,
clássico de Aníbal Quijano, originalmente publicado em 1993, na Revista Boundary,
número 2, da Universidade de Duke, marca o redirecionamento da crítica pós-colonial na
América Latina, agora mais centrada no acúmulo crítico do pensamento produzido na
América Latina e menos nas referências aos pós-modernos Foucault e Derrida.
É de Mignolo, segundo José Jorge Carvalho (2013, p. 66), a convicção de que
“tivemos nossos próprios teóricos pós-coloniais muito antes de que surgissem esses
famosos acadêmicos de língua inglesa de hoje”, numa referência ao Grupo de Estudos
Subalternos Indianos. Mignolo (2004) aponta, pois, que as teorias pós-coloniais que
bebem apenas de Ranajit Guha, Gayatri Spivak, Homi Bhabha, dentre outros estudiosos
indianos, não poderiam ser tão facilmente aplicadas no caso latino-americano ou se
negaria a América Latina como lócus de enunciação. Fazia-se, assim, imprescindível que
os intelectuais latino-americanos pudessem fundar sua específica crítica ao ocidentalismo
a partir de sua própria experiência histórica, conscientes, portanto, de que o contexto
histórico das lutas por independência política no continente havia se dado um século
antes das guerras de libertação das colônias em África e no Sul da Ásia; um acúmulo de
produção intelectual anticolonial não poderia ser desprezado na atualização da crítica aos
neocolonialismos na América Latina; 3) a descoberta dos efeitos da história colonial nas
subjetividades e na organização da cultura não exigia a a ruptura com as correntes que a
antecederam, dentre elas, com o campo marxista heterodoxo aqui constituído de modo
original nas experiências concretas de lutas.
20
O futuro já não pode ser imaginado como um movimento na direção da
completude do projeto incompleto da modernidade [nas suas versões
marxista ou habermasiana], mas deve ser pensado, antes, em termos de
‘transmodernidade’ [Dussel], de um mundo para o qual todas as
racionalidades existentes possam contribuir. A socialização do
conhecimento, ou seja, a superação do totalitarismo epistêmico, implica
a superação da modernidade/colonialidade [...]; em síntese, o ‘mito da
modernidade’ é o mito que justificou não apenas o totalitarismo
científico, mas o totalitarismo tout court, tal como o estamos a
testemunhar no início do século XXI à escala global (MIGNOLO,
2004, p. 677).

Com tal movimento, aprofunda-se a interlocução entre os “decoloniais” e as


raízes de uma crítica descolonizadora a partir da América Latina que permite a retomada
crítica de estudos tais quais a os debates em filosofia e ciência social latino-americana
sobre noções como filosofia da libertação e uma ciência social autônoma (José Martí,
José Carlos Mariátegui, Rodolfo Kusch, Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova,
Darcy Ribeiro, Enrique Dussel, Paulo Freire, dentre outros); as teorias da dependência;
os debates em América Latina sobre a modernidade e a pós-modernidade dos anos
oitenta, seguidos das discussões sobre hibridez na antropologia, na comunicação e nos
estudos culturais nos anos noventa; e, nos Estados Unidos, o grupo latino-americano dos
estudos subalternos. Neste projeto, uniram-se, dentre outros nomes, Aníbal Quijano,
Walter Mignolo, Fernando Coronil, Edgardo Lander, Oscar Guardiola, Freya Schiwy,
Zulma Palermo, Catherine Walsh e Santiago Castro-Gómez.
Elegemos Walter Mignolo a fim de refletir acerca de suas propostas com
rebatimentos na teoria social que fazemos hoje. Para Mignolo (2003, p. 35), o “giro
decolonial” necessário à epistemologia, portanto, às humanidades e às ciências sociais,
permite a percepção de um “pensamento liminar”, até então desprezado na academia, que
revela uma “gnosiologia poderosa emergente” provinda dos emudecimentos e opressões
históricas mas que renasce em plena potência. O “pensamento liminar” evidencia uma
“enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia territorial e
hegemônica” (p.11), é um “novo medievalismo”, em oposição ao pseudo universalismo
ocidental, abrange um mundo de histórias locais que podem ser articuladas criativamente
reiventando o “universal”, aquele que tem a “diferença cultural” como sua marca e a
“diversalidade” como projeto de um cosmopolitismo mais plural e simétrico (p.420).

21
Segundo Costa (2013, p. 267), o “pensamento liminar” é o “glocal”, o diálogo
entre destinos globais e histórias locais, na valorização dos saberes subalternizados na
constituição do mundo mais amplo. A “modernidade-colonialidade-decolonialidade”
6
enfatiza seu caráter pós-ocidental e anti-imperialista: se, no século XVI, missionários
espanhóis violentaram a cultura dos povos ameríndios, hoje, os Estados Unidos, à época
colônia britânica, transformaram-se no “outro imperial” (MIGNOLO, 2003, p.16), por
isso, uma sociologia pós-ocidental vem explicitar a ilegitimidade da nova ordem mundial
e somar ao empenho de “remapear os loci acadêmicos de enunciação em função dos
quais se mapeou o mundo” (p.418).
A “modernidade-colonialidade” é um discurso crítico que expõe o lado colonial
do sistema mundial moderno bem como a colonialidade do poder embutida na própria
modernidade, mas ao incorporar o último termo – a decolonialidade – vai além uma vez
que se coloca como também como um discurso que altera a proporção entre locais
geoistóricos (ou histórias locais) e a produção de conhecimentos, reordenando a
geopolítica do conhecimento que passa a levar em conta: 1. A crítica da subalternização
do ponto de vista subalterno; 2. A emergência do “pensamento liminar” como uma nova
modalidade epistemológica na interseção entre a tradição ocidental e a diversidade das
categorias suprimidas sob o peso do ocidentalismo, refutando, num só tempo, o
“orientalismo” (como objetificação do lócus do enunciado enquanto “alteridade”, a
reificação de modos de vida sob o apanágio do “exotismo”); e os estudos de área (como
objetificação do “Terceiro Mundo”, enquanto produtor de culturas, mas não de
conhecimento em simetria com os países centrais). (MIGNOLO, 2003, p.136-7)
O desafio decolonial latino-americano (pós-ocidental) está em formular teorias a
partir do chamado “Terceiro Mundo”, embora não apenas para o “Terceiro Mundo”,
como se se tratasse de uma “contra-cultura ‘bárbara’ perante a qual a teorização do
Primeiro Mundo teria de reagir e acomodar-se” (MIGNOLO, 2003, p.417). Há que se
dizer que uma sociologia “não-colonizada” não visa ao lugar do colonizador mas se

6
O conceito é do cubano Roberto Retamar que, em 1974, propôs o “pós-ocidentalismo” que o ajudaria a
perseguir melhor algumas questões. Com este, a crítica pós-colonial que, em seus inícios, não incluía as
Américas, as teria, agora, reunidas, assim como o Caribe, a África do Norte e a África subsaariana.
Também, o pós-ocidentalismo contemplava desde o império espanhol após o século 16 até a emergência
dos EUA. Cf. MIGLIEVICH-RIBEIRO, Pensamento Latino-Americano e Pós-Colonial: o diálogo possível
entre Darcy Ribeiro e Walter Mignolo, 2012.

22
detém em explicitar seus equívocos e buscar combatê-los, promovendo um conhecimento
a partir das experiências latino-americanas, algo como um border-thinking, ou seja, um
modo de pensar que esteja para além das fronteiras impostas pela modernidade capitalista
e pelas ciências humanas eurocêntricas. As chances de impacto desta pretensão no campo
das ciências sociais já foram avaliadas por Costa (2010) como superestimadas. Ainda
assim, o grupo de estudiosos cresce e recebe severas cobranças quanto à incompletude
ainda de seu projeto. A exemplo, José Jorge Carvalho (2013) nota em que pese a crítica
dura à modernidade iluminista, os intelectuais da “modernidade-colonialidade-
decolonialidade” parecem carecer de uma sistemática prática etnográfica que lhes
permitiria chegar mais habilmente às vozes que apontam como silenciadas
historicamente: os múltiplos grupos, coletividades, etnias que vêm sendo até hoje
excluídos da história da história da humanidade. O antropólogo observa, neste ponto, que
a rejeição absoluta à contribuição dos pós-coloniais de língua britânica é pouco salutar
visto que há de se aprender com eles muito sobre uma “antropologia simétrica”, a
enriquecer a sociologia e a ciência política que se querem “decoloniais”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo a pensar que a crítica pós-colonial, em suas matizes e ainda em seus


limites, é imprescindível ao alargamento dos espaços de reflexão crítica e à promoção de
uma perspectiva humanística no campo das ciências sociais. Contrariando alguns, sequer
os movimentos “para além da teoria” não são convidativos a um empenho crítico acerca
do que esperar dos sociólogos em suas análises das múltiplas modernidades.
Partilho da hipótese de Marcelo Rosa (2013) de que nossas narrativas teóricas
mestras não estão – nem poderiam estar – “equipadas” para sondar as realidades diversas
daquelas nas quais se ergueram. Daí a vitalidade de uma “sociologia do sul” ou de uma
“sociologia dos processos sociais não exemplares”, não para se edificar um corpus
teórico com as mesmas pretensões de universalidade que hoje criticamos nos cânones,
estes com um problema a mais: coniventes com um narrativa de modernidade a ocultar a
colonialidade e as formas de “bem viver” desaparecidas com a colonização e os
neocolonialismos.
A crítica pós-colonial, em sua vertentes, traz-nos a evidência de que foi para
compreender o seu entorno que intelectuais diaspóricos constituíram esta que vemos
23
como uma promissora agenda de pesquisas que me nada destitui de validade a sociologia
tal como feita antes dos pós-coloniais, apenas recordam que esta não contemplava a
complexidade das interações no mundo globalizado. Da quebra dos binarismos modernos
à capacidade de audição das significações do mundo do ponto de vista do subalterno, nas
teias híbridas que constituem mutuamente forte e fracos, opressores e oprimidos numa
modernidade contemporânea marcada pelos processos de diferenciação incessantes e
pelas tentativas de articulação de discursos, a sociologia, no caso de nosso estudo, tende a
perder em potência analítica se se recusar a atualizar suas ferramentas (conceitos) na
medida dos desafios reais que lhe surgem.
Tais desafios foram mais nítidos para os intelectuais diaspóricos, não à toa.
Nascidos nas bordas do sistema mundial, “invadiram” departamentos das universidades
centrais, mantendo-se, porém, desconfortáveis em sua “hibridez". Na medida da
intensidade dos processos de deslocamento e realocamentos dos poderes coloniais, ou
melhor, neocoloniais no cenário de fim do século XX e início do século XXI, mudam-se,
também, os contextos e correlações de forças. Nisto, as produções teóricas convencionais
são desestabilizadas. Como sabemos, os meta-relatos liberal ou marxista são hoje
igualmente questionados.
O momento se mostrou oportuno à onda crítica à narrativa hegemônica moderna,
evidenciando seu “ocaso”. No seio do próprio euro-norte-centrismo, a exemplo de
Wallerstein, nos Estados Unidos; e de Lyotard, Foucault, Deleuze, Derrida, Guatari, na
França, foram produzidos estudos que, ao relacionar, saber e poder, “desmontavam”
instituições e apontavam seu totalitarismo.
Não deixa de ser curioso que venha das margens impulsos de revigoramento do
poder emancipatório do conhecimento. Entretantro, não qualquer conhecimento. Falamos
daquela a incoporar como seus produtores mais que 3/4 da humanidade até então
invisibilizados. Não se trata, reitero, de se propor um novo meta relato mas da tessitura
de uma vasta articulação a criar discursos mais críveis em seu empenho de produzir
inteligibilidades (plural) acerca das formas de vida humana:

O problema é que não pode haver um caminho uni-versal. Tem de


haver muitos caminhos, pluri-versais. E este é o futuro que pode ser
alcançado a partir da perspectiva da colonialidade com a contribuição
dada pela modernidade, mas não de modo inverso (MIGNOLO, 2004,
p. 678).

24
Nas divergências, a principal reivindicação a unir as vertentes pós-coloniais é pela
ampliação das vozes a participar da construção do conhecimento. Se Karl Marx mantém-
se como uma referência necessária, não menos Waman Puma de Ayala e Alvarado
Tezozomoc, Gloria Anzaldúa, Mohammed Abed Al-Jabri, Vine Deloria Jr. e tantos
outros. É oportuno lembrar mais uma vez Said, o crítico pós-colonial auto-denominado,
também, “crítico do humanismo, em nome do humanismo”, que diz:

Chega perto de ser escandaloso, por exemplo, que quase todo programa
de estudos medievais em nossa universidade omita rotineiramente um
dos pontos altos da cultura medieval, a saber, a Andaluzia muçulmana
antes de 1492, e que, como Martin Bernal mostrou para a antiga
Grécia, a mistura complexa das culturas européia, africana e semítica
tenha sido purgada dessa heterogeneidade tão perturbadora para o
humanismo corrente. (SAID, 2007a, p.78)

Parecerá a alguns quase uma heresia dizer que a sociologia necessita ser
“refundada” mas isto é menos grave do que a impossibilidade mesma de tal projeto,
como supõem muitos. A cultura, logo, também, a ciência se manterão, a despeito da
fortuita negação do valor da crítica pós-colonial, como uma arena de luta, embates,
resistências e rearranjos. A paralisia do conhecimento não se dará de todo modo.

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