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lações entre gênero, poder e relações nal não é tão flexível. Assim, embora
espaciais (Blunt 1994; 2000; Bluntand o questionamento de Foucault sobre a
Rose 1994). A relação entre poder e noção de que se pode possuir ou ter o
espaço é complexa, particularmente se poder é uma oposição útil para pon-
o poder é definindo de forma produti- tos de vista muito fixos sobre o poder,
va como Foucault fez e se sustenta que ele, no entanto, sugere que tudo está
o poder é uma rede de relações entre em aberto e, por vezes, ignora o poder
as pessoas, o qual é negociado a cada institucional muito real em que certas
encontro, e também se define o espaço pessoas, de fato, trabalham e o usam,
como relacional e relativo como Fou- mesmo que não o possuam.
cault sugere. Esta complexa rede de Em relação à espacialidade e po-
relações cambiantes é tão produtiva der, eu tenho tentado, em meus tra-
quanto problemática para a pesquisa balhos recentes, descobrir como pode-
científica feminista. É produtivo na mos discutir espacialidade em relação
medida em que permite a teorização ao poder (Mills 2005). Sobretudo
de poder, o que salienta que cada rela- no contexto colonial, no século 19, é
ção de poder institucionalmente san- claro que há uma série de estruturas
cionada é negociada a um nível local espaciais que interagem umas com as
e pode, portanto, ser desafiada aberta- outras, algumas deles ratificadas pe-
mente ou veladamente; é problemática los poderes coloniais e outras não. O
na medida em que não leva adequada- que tem me interessado é a maneira
mente em conta o fato de que existem na qual o poder colonial aceita algu-
diferenças de poder que têm efeitos mas dessas estruturas espaciais como
materiais.A análise estritamente fou- normal, mas não necessariamente eli-
caultiana iria contra perguntar "quem mina a existência de outras estruturas
tem o poder?", uma vez que ninguém espaciais.
dentro deste contexto poderia se dizer Em “Anormais”, aulas de Foucault
que possui o poder. O poder, ao con- recentemente publicadas pelo Collège
trário, é visto como algo que é nego- de France, há uma interessanteabor-
ciado nas interações. O trabalho de dagem sobre as relações espaciais e
Thornborrow (2002) por meio desta poder. Ele descreve em pormenores o
posição foucaultiana leva a uma aná- desenvolvimento da prática confessio-
lise que destaca a resistência e os de- nal dentro da Igreja Católica Romana
safios daqueles que estão em posições e mostra como houve uma mudança
institucionalmente mais fracas; no en- nessa prática, cujo foco era na peni-
tanto, embora seja claro, é importante tência, com todas as práticas que isso
se reconhecer que oficiais de polícia, envolve, para um foco na confissão dos
professores e médicos são respeitados pecados, o que exigiu um novo con-
em suas declarações por causa de suas junto de relações entre os sacerdotes e
posições dentro de uma hierarquia de os fiéis.Estas eram relações espaciais e
uma forma que os suspeitos, os estu- de poder, não em um sentido simples,
dantes e os pacientes não o são. Thor- mas elas demandaram um conjunto de
nborrow centra-se na complexa nego- arranjos espaciais que eram muito pre-
ciação entre o statusinstitucional que é cisos e que eram as respostas à percep-
concedido a alguém e que lhe dá uma ção de problemas a serem resolvidos.
posição em uma hierarquia, e o status A confissão dos pecados demandava
local que esse alguém pode negociar que o pecado tivesse que ser confessa-
para si mesmo, através de suaagilidade do a alguém e esse alguém tinha quer
mental ou de habilidades verbais, por ser capaz de conceder a remissão dos
exemplo. Assim, por exemplo, você pecados; nesse sentido, o papel do sa-
pode estar relativamente baixo na hie- cerdote na Igreja mudou radicalmente
rarquia dentro de uma instituição, mas e Foucault argumenta que as relações
você pode ser capaz de negociar lo- de poder, consequentemente, também
calmente uma posição mais poderosa mudaram. Essa mudança se manifes-
para si mesmo por causa de suas ha- ta no desenvolvimento de um novo
bilidades e capacidades. Esta distinção conjunto de relações espaciais que se
entre dois tipos de poder é importante tornou evidente no confessionário, ao Revista do Programa de Pós-
por ser capaz de avaliar quais as po- Graduação em Geografia e do
qual Foucault se refere como "a cris-
Departamento de Geografia da
sições de poder que são negociáveis e talização material de todas as regras” UFES
quais não são. Pode-se negociar o sta- (Foucault 2003/1975, 181). O confes- Janeiro-Junho, 2016 31
tus local, mas o seu status institucio- ISSN 2175 -3709
sionário, assim como outros elementos University Press.
arquitetônicos, determinava relações Thornborrow, Joanna (2002) Po-
espaciais e era determinado por uma wer Talk. London: Routledge.
Revista do Programa de Pós- consciência da importância das rela-
Graduação em Geografia e do
Departamento de Geografia da
ções espaciais serem geridas “adequa-
UFES damente” – as pessoas tinham que ser Superado
Janeiro-Junho, 2016 organizadas no espaço para que a con-
ISSN 2175 -3709 pelo Espaço:
fissão fosse ouvida de forma eficaz: o
penitente e o sacerdote não deveriam reformulando Foucault
ser vistos um pelo outro, mas o peni-
tente precisava ser ouvido bem pelo Nigel Thrift
sacerdote; o sacerdote e o penitente
tinham que ser separados um do ou- Introdução
tro e do resto da congregação, mas era
importante que, por causa do celibato Eu tive um relacionamento de idas
do sacerdote e das tentações ineren- e vindascom os trabalhos de Michel
tes à confissão de pecados sexuais, eles Foucault desde que eu li, pela primei-
não ficassem isolados inteiramente do ra vez,em Cambridge nos anos 1970,
resto da congregação. Essas demandas suas obras naquelas edições Tavistock-
discursivas muito particulares deter- brilhantes, de cor preta, que pareciam
minaram esta estranha configuração munidas de autoridade. Eu sempre li-
arquitetônica com grelhas [no confes- guei Foucault àuma certa austeridade
sionário] e meias-cortinas, estimulan- desde então: o homem de preto. Essa
do certas revelações e desencorajando impressão – de uma perspectiva um
outros discursos. A análise cuidadosa pouco sombria – permaneceu comigo,
de Foucault sobre as pressões discur- mesmo que tenha lido e lecionado so-
sivas que deram origem ao desenvol- bre seu trabalho subsequente e mesmo
vimento do confessionário para orga- que tenha se tornado claro que essa
nizar o espaço de maneira particular, impressão é, em grande partepelo me-
me parece uma forma muito produtiva nos, um erro.
de pensarcomo as relações de poder se Duvido que alguém não concorde
desenvolvem em conjunto com as re- que Foucault era um gênio, um ho-
lações espaciais, cada uma delas exer- mem de extraordinária erudição, que
cendo umapressão diferente,uma so- mudou a forma como vemos o mundo.
bre a outra, mas não necessariamente Mas apesar da reverência que lhe faço,
determinista. ele tinha pontos cegos e estes eram, eu
acho, sistemáticos e, em certos sen-
Referências tidos, politicamente incapacitantes.
Eles não são, portanto, adendos tri-
Blunt, Alison (1994) ‘Mapping viais, mas vão direto ao cerne de seu
Authorship and Authority: Reading projeto. Eu quero trabalhar em qua-
Mary Kingsley’s tro desses pontos cegos e, em seguida,
Landscape Descriptions.’ In A. após tê-los identificados, sugerir o que
1 De fato, um dos muitos textos a Blunt and G. Rose (Eds) Writing Wo- eles podem indicar, não no sentido de
que Foucault estava explicitamente men and Space: Colonial and Postcolo- simplesmente completar o projeto de
respondendo em The OrderofThin-
nial Geographies. New York: Guilford Foucault, mas de mudar o sentido da
gs era o texto de Husserl Crisisof- política com quala ele trabalhou.
theEuropeanSciences. Press. 51–73.
2 Stuart Elden apontou-me que Blunt, Alison (2000) ‘Spatial Sto-
Merleau-Ponty se associou com ries Under Siege.' Gender Place and Quatro pontos cegos
Sartre, especialmente em torno do Culture, 7(3), 229–46.
projeto político do LesTempsMo- O primeiro desses pontos cegos
dernes, tornando esta uma rea-
Blunt, Alison and Gillian Rose,
ção, sem dúvida, compreensível, Eds (1994) Writing Women and Space: surgedo anti-humanismo pós-estru-
que só foi reforçada pelo impacto Colonial and Postcolonial Geographies. turalista de Foucault, uma posição
deLetterofHumanism[Carta sobre New York: Guilford Press. que dominou toda a vida intelectual
o Humanismo]de Heidegger que em larga escala das ciências sociais
ofereceu a autores como Foucault, Foucault, Michel (2003/1975) Ab-
Althusser e Derrida uma leitura normal.Edited by V. Marchetti and A. e humanidades nos últimos 30 anos
alternativa de Heidegger. Salomina.Translated by G. Burchell. mais ou menos. Em particular, esse
3 Embora em seus trabalhos pos- London: Verso. anti-humanismo suprimiu muitas das
teriores fique claro que a posição de Mills, Sara (2005) Gender and Co- ambiguidades da fenomenologia do
32 Foucault era mais complexa do que registro. Se for para confiar em Dosse
isso. lonial Space. Manchester: Manchester
Referências
Foucault entre os Geógrafos
Afary, J. and K.B. Anderson (2005)
Foucault and the Iranian Revolution. Thomas Flynn
Gender and the Seductions of Islam.
Chicago: University of Chicago Press. O historiador Paul Veyne des-
Butler, J. (2005) Giving an Account creveu Foucault como um pensador
of Oneself. New York: Fordham Uni- “caleidoscópico”. Ele pegou o círculo
versityPress. de nossas opiniões recebidas e virou o
Canguilhem, G. (1991) The Nor- cilindro ainda que levemente, causan-
mal and the Pathological. (With an in- do configurações inteiramente novas,
troduction byMichel Foucault.) New de modo que a pessoa nunca poderia
York: Zone Books. recapturar o conjunto anterior na sua
Carman, T. and M.B.N. Hansen, totalidade. A ingenuidade foi perdida.
Eds (2005) The Cambridge Companion Essa metáfora visual é duplamente
to Merleau-Ponty. Cambridge: Cam- adequada porque Foucault era um
bridge University Press. pensador espacial. De fato, eu diria
Colebrook, C. (2005) ‘The Space of que sua preferencia por metáforas e
Man: On the Specificity of Affect in De- argumentos espaciais, mais do que
leuze andGuattari.’ In I. Buchanan and uma peculiaridade pessoal, era a sua
G. Lambert (Eds) Deleuze and Spa- maneira de combater o pensamento
ce. Edinburgh:Edinburgh University dialético que impregnouo pensamen-
Press, 189–206. to francês desde os anos 1930 (ver
Conley, T. (2004) ‘The Historical Baugh, 2003; Flynn, 2005). Entre
36 Atlas: Archive or Diagram.’ Journal of outros efeitos, solapou o efeito “to-
ii
Edição em português: Foucault,
xiii
Publicado no Brasil em A Mi-
Michel: História da Loucura na Idade crofísica do Poder, capítulo “Sobre a
Clássica. São Paulo: Editora Perspec- Geografia”
tiva, 1978.
xiv
Referência ao “O mito de Sí-
iii
Edição em português: Foucault, sifo”, ensaio escrito por Albert CA-
Michel: As palavras e as coisas: uma MUS em 1941
arqueologia das Ciências Humanas.
xv
Estudo do caráter das pessoas
São Paulo: Martins Fontes, 1999. pela forma do crânio
v
Edição em português: Cangui-
lhem, Georges: O Normal e o Patoló- Revista do Programa de Pós-
gico. Rio de Janeiro: Forense Univer- Graduação em Geografia e do
sitária, 2009 Departamento de Geografia da
UFES
Janeiro-Junho, 2016 41
vi
Referência ao estoicismo, esco- ISSN 2175 -3709