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Entre História e Devir: Experimentando a Cartografia nos Estudos Organizacionais

Autoria: Maria Fernanda Rios Cavalcanti

Resumo

O presente artigo pretende apresentar a cartografia como uma maneira de pensar a


problematização da relação entre história e devir nos estudos organizacionais.
Seguiremos as reflexões arqueo-genealógicas de Michel Foucault, buscando as mudanças
na ordem do saber ocidental que possibilitaram usos diversos da história em suas
diferentes configurações, objetivando demonstrar as condições de possibilidade de uma
abordagem cartográfica na contemporaneidade. A abordagem cartográfica será explorada
principalmente através do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Identificamos
uma contestação histórica por parte de alguns autores contemporâneos dos estudos
organizacionais, nossa proposta é demonstrar como a cartografia, através da
problematização entre história e devir, pode ser pensada a fim de encontrar saídas para os
impasses encontrados por tal contestação.

1. Introdução

O presente artigo pretende, através da problematização encontrada na relação entre


história e devir, utilizar uma concepção cartográfica para analisar impasses encontrados
numa contestação histórica da teorização organizacional. Temos como objetivo propor
coordenadas para o problema de uma construção teórica que assume por fim sua
historicidade, partindo do pressuposto de que o campo dos estudos organizacionais, assim
como qualquer outro campo do saber contemporâneo, é constituído no interior de uma
historicidade que o constitui e o atravessa.

Carter et al. (2002) afirma que nos estudos organizacionais, mostra-se apropriado
elaborar argumentações em favor de uma perspectiva histórica. Os autores argumentam,
justamente, que a crítica arqueo-genealógica de Foucault evidencia certos aspectos
historicamente específicos que comumente são deixados de lado em tentativas de dar
conta do pensamento organizacional. Porém, de acordo com Carter et al. (2002), certas
tentativas de abordar esta crítica nos estudos organizacionais, muitas vezes ignoraram as
críticas feitas por Foucault à História e seu uso tradicional. Levando em consideração tal
observação, iremos analisar as críticas feitas por Foucault (2007a, 2007b, 2007c) ao uso
da história, bem como a visão do autor sobre a relação entre história e devir, e como esta
visão é convergente com uma abordagem cartográfica.

A cartografia foi apresentada por Souza et al. (2006) como uma abordagem de pesquisa
inserida nos princípios da pós-modernidade. Neste momento, é preciso ter o cuidado de
esclarecer, contudo, que em sua arqueologia Foucault (2007a, 2007b) não reconhece uma
ruptura entre modernidade e pós-modernidade. Em sua obra arqueológica o autor
estabelece o liame da modernidade no princípio do século XIX, e afirma que o
pensamento contemporâneo ainda permanece dentro desta epistémê. Portanto, uma vez

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que a análise transcorrerá dentro de um horizonte tornado possível por tais obras do
teórico francês, justificamos não tratar do que se convencionou chamar uma perspectiva
pós-moderna no presente trabalho.

Pretendemos através desta leitura, demonstrar como pensar a relação devir x história, e
problematizar o presente filosoficamente dentro de uma perspectiva historicamente
crítica, se mostra um exercício cartográfico interessante numa análise da teorização
organizacional contemporânea e seu processo criativo. Residirá aqui, portanto, um apelo
para que se dê nova vida a este campo na atualidade através de uma orientação
cartográfica.

Em termos metodológicos, realizou-se uma pesquisa qualitativa das principais obras de


Michel Foucault, de sua fase arqueológica (Foucault, 2007a, 2007b) bem como obras
proeminentes de sua fase genealógica (Foucault, 2007c, 2006) para compreendermos
como a história foi utilizada nestas duas etapas do pensamento deste autor. Foi necessário
também buscar nas obras de Rolnik (2006), Deleuze (2006, 1992) e Deleuze e Guattari
(1995a, 1995b, 1995c, 1995d, 1995e) maneiras de pensar a cartografia a fim de relacionar
esta abordagem com as reflexões arqueo-genealógicas de Foucault.

Fez-se necessária, também, uma pesquisa bibliográfica de autores contemporâneos dos


estudos organizacionais (Reed, 1999; Carter e Rowlinson, 2002; Carter, McKinlay e
Rowlinson, 2002; Chanlat, 1999), para se identificar uma contestação histórica do campo
e, para que pudéssemos, enfim, propor uma análise cartográfica aos impasses
encontrados.

2. História e Devir: experimentando o movimento

A problematização entre história e devir está fortemente presente nas obras dos autores
que invocaremos nesta seção. Costa (2000) comenta que a filosofia deleuzeana aponta
como um problema capital tal relação entre devires e história, este problema tomaria
como pressuposto o fato de que a história não seria um mero passado, mas sim toda uma
atmosfera que nos envolve na atualidade, consubstanciada nas semióticas com as quais
lidamos, nas tecnologias das quais dispomos, e nos modos de subjetivação dominantes.
Tal posicionamento reforça a colocação de Guattari (1981), que coloca a questão
histórica como fundamental para pensar o presente, pois esta continua a trabalhar os
assuntos políticos mais atuais fazendo devir e que, portanto, não deve ser ignorada.

Tais concepções não tratam o uso da história para realização de análises de dados sócio-
demográficos ou algo semelhante, antes, trata-se de uma filosofia que problematiza o
presente através da história, filosofia que também é compartilhada por Foucault, de
acordo com Duarte (2002) a reflexão realizada por este filósofo francês, nas fases de seu
trabalho denominadas arqueológica e genealógica, não considerou a história meramente à
luz da análise historiográfica factual, indo muito além, ele tinha como requisito de seu
método de análise de implicações históricas uma interrogação filosófica do presente.

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Em As Palavras e as Coisas, Foucault realiza um retrospecto do surgimento das ciências
humanas na modernidade, e nos traz como uma questão essencial, para se compreender o
pensamento em diversas épocas, a questão da história e as diferentes maneiras de pensá-
la. O autor afirma que no pensamento clássico do século XVI as seqüências cronológicas
não passavam de uma propriedade e manifestação bastante confusas da ordem dos seres,
mas a partir do século XIX elas exprimiriam um modo de ser profundamente histórico
das coisas e dos homens. Foucault coloca, em seguida, que a historicidade foi introduzida
em certos domínios do saber (como na economia), quando a antiga importância atribuída
ao domínio da representação, e sua ordenação/classificação (constituinte do pensamento
clássico), foi substituída por uma preocupação antropológica, onde o homem passou a ser
reconhecido como ser finito. Tal finitude que seria, por sua vez, definida por um tempo
indefinido. A História se tornou a utopia dos pensamentos modernos de causalidade,
como a origem foi utopia para os classificadores clássicos. O pensamento de Marx esteve
nesta epistémê como ‘peixe n’água’, e de acordo com Foucault (2007b, p. 361):

O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de


alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em
troca sua manifestação iluminada. A finitude com sua verdade se dá no
tempo; e, desde logo, o tempo é finito.

Desta forma, a análise arqueológica de Foucault conclui que o saber não seria mais, a
partir da modernidade, constituído ao modo do quadro classificatório, mas ao modo da
série e do encadeamento do devir:

[...] quando vier, com a noite prometida, a sombra do desenlace, a erosão


lenta ou a violência da História fará realçar, em sua imobilidade rochosa,
a verdade antropológica do homem; o tempo do calendário poderá
certamente continuar; mas será como que vazio, pois a historicidade se
terá superposto exatamente à essência humana (Foucault, 2007b, p. 361).

Contudo, o filósofo francês não deixa de expor sérias restrições relacionadas a tal
disposição, colocando que o tom escatológico de promessa de uma verdade por vir na
História (sobre o homem), fez com que o pensamento moderno não pudesse deixar de
buscar um discurso que não fosse desta ordem da promessa. Para Foucault, foi Nietzsche,
no final do século XIX, quem incendiou esta disposição. Aqui voltamos à relação entre
história e devir e para começarmos a compreender melhor como ela foi explorada por
estes autores, e de que forma a história contribuiu e foi utilizada por Foucault, vamos à
contribuição de Deleuze (inspirada em Nietzsche), que nos diz:

O que a história capta do acontecimento é sua efetuação em estados de


coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história. A história não
é a experimentação, ela é apenas o conjunto das condições quase
negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à

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história. Sem a história, a experimentação permaneceria indeterminada,
incondicionada, mas a experimentação não é histórica (Deleuze, 1992, p.
210-11).

Vemos a diferença de tal posicionamento com as promessas mescladas da dialética e


antropologia, que buscavam, através do encadeamento do devir em relações de
causalidade, uma utopia histórica, ou, paradoxalmente, o próprio fim da história. Aqui,
história e devir são tratados separadamente, porém abre-se a possibilidade de uma
experimentação, no presente, de algo que escapa à própria história. Assim, talvez tenha
sido motivada por tal posicionamento a afirmação de Deleuze (2006) de que As Palavras
e as Coisas de Foucault seria um grande livro sobre novos pensamentos. Ao conceber os
acontecimentos do pensamento que efetuaram em uma dada época uma determinada
configuração do saber, ele designa, através da história, o conjunto de condições das quais
devemos nos desviar para “devir”, ou seja, para criar algo novo (Deleuze, 1992).

Ao comentar sobre as necessidades de seu método genealógico e como a história aparece


nele, Foucault (2007c, p. 20) diz que: “A história, com suas intensidades, seus
desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes,
é o próprio corpo do devir”. Estas colocações são importantes pois, ao relacionar (mas ao
mesmo tempo separar) história e devir, ambos Deleuze e Foucault situam como
primordial o abandono da tendência metafísica acerca de uma busca da alma, da origem,
de um sujeito constituinte, ao invés disso procura-se chegar a uma análise que dê conta da
constituição do sujeito numa trama histórica.

Em sua fase genealógica Foucault utilizou a história para tratar de campos do saber,
ligados a certos combates, bastante específicos: a psiquiatria, a penalidade e a
sexualidade. Em entrevista a Paul Rabinow (Rabinow, 2002) Foucault nos dá uma clara
explicação de quais foram seus objetivos em cada uma destas pesquisas, ele afirma que
seu objetivo nunca foi analisar separadamente o domínio científico, a estrutura política e
uma prática moral que cada um destes campos de saber constituiriam ou representariam:
no caso da psiquiatria ele afirma que procurou ver como a formação de uma ciência
psiquiátrica, a delimitação de seu campo e objetivos, envolviam uma estrutura política e
uma prática moral, demonstrando que a psiquiatria como a conhecemos seria impossível
sem este entrelaçamento; o mesmo se deu no campo das penalidades, onde o autor tratou
de ver como a estratégia política, ao conferir seu status à criminalidade, havia recorrido a
certos saberes e a certas atitudes morais, moralidade que foi refletida em técnicas
disciplinadoras e, ao mesmo tempo, modificada por elas; quanto à sexualidade, Foucault
fez um trabalho minucioso de dissecação de uma atitude moral, a reconstruindo a partir
do jogo que se trava com as estruturas políticas e modalidades de conhecimento
(Rabinow, 2002).

A obra genealógica de Foucault, apesar da diversidade de campos de saber tratados e


aparente disparidade, possui a coerência de um estilo propriamente diagramático de
questionamento. Esta possibilidade de se diagramatizar vem justamente de uma unidade

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prática, política e filosófica que conduz suas problematizações. Rabinow (2002) revela tal
aspecto, de seu estilo de problematização, ao comentar o debate entre Foucault e Noam
Chomsky acerca da questão da natureza humana. O autor diz que Foucault rejeita a visão
de Chomsky de natureza humana, mas em momento algum chega a afirmar que ela não
exista, assim ele não refuta a questão abstrata “existe uma natureza humana?”, ao invés
disso, ele consistentemente historiciza as grandes abstrações, ou seja, ao invés de se
perguntar se esta existe ou não ele muda a questão, de uma maneira metodologicamente
típica, e se pergunta: como funciona o conceito de natureza humana em nossa
sociedade? É desta forma que a metodologia propriamente diagramática de Foucault
recusa as universalizações e se problematiza entorno de um dado contexto histórico e
social, examinando funções sociais que certos conceitos (como o de natureza humana)
desempenham no contexto de práticas. Assim, Rabinow (2002, p. 28) diz que “para
Foucault, não há posição externa de certeza, não há compreensão universal que esteja
além da história e da sociedade”.

Dreyfus e Rabinow (1995, p. 118) concluem acerca da genealogia que para ela:

[...] não há essências fixas, nem leis subjacentes, nem finalidades


metafísicas. A genealogia busca descontinuidade ali onde
desenvolvimentos contínuos foram encontrados. Ela busca recorrências e
jogo ali onde progresso e seriedade foram encontrados. Ela recorda o
passado da humanidade para desmascarar os hinos solenes do progresso.
A genealogia evita a busca da profundidade.

Acerca da questão da origem, este filósofo francês nos deixou claro, assim, que sua
genealogia não utilizou a história para buscar possíveis origens, ao contrário, a utilizou
para demonstrar que “O que se encontra no começo histórico das coisas não é a
identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate”
(Foucault, p.18 2007c). Assim, o autor buscou utilizar a história para conjurar a origem, e
afirmou que, justamente por isso, o genealogista não pode ignorá-la.

Partindo deste princípio que não segue a história tradicional, Foucault leva a fase
genealógica de seu trabalho em face de um tríplice perigo que o uso deste tipo de história
busca conjurar: o acaso, o descontínuo e a materialidade. E seriam exatamente estas três
noções que permitiriam a ligação da história daqueles sistemas de pensamento com a
prática dos historiadores (Foucault, 2006).

Para as análises de Foucault, foi de fundamental importância questionar o funcionamento


da própria história em seu uso tradicional. E com estas pistas, e os indícios que ele
encontrou de forças que a história busca conjurar, chegamos a duas questões: sobre o que
a história tradicional impõe sua ordem? E, isto poderia ser resgatado através dela pela
postura diagramática da problematização genealógica?

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Retomando o problema da relação história e devir pensado por Deleuze (1992),
concluímos que este movimento que escapa à história, e o que ela busca conjurar, é o
próprio devir. Este fluxo é o tempo todo conjurado, capturado e estratificado pela
história, porém sempre escapa dela. O que a proposta genealógica de Foucault nos sugere
é exatamente que seria possível demonstrar como este movimento, este combate de
forças, que envolve domínios científicos, estruturas políticas e práticas morais, ocorre.

Assim analisado, o movimento deste fluxo deriva do poder e do saber, porém não
depende deles. Desta forma, tanto as multiplicidades, devires, quanto as relações de poder
seriam históricas, exatamente por se oporem a condições universais, mas longe de variar
historicamente estas condições variam com a história (Deleuze, 1988). Sobre esta
maneira filosófica de tratar e questionar a história, Foucault (2007b) esclarece:

Não vejamos nisso o fim de uma reflexão autônoma, demasiado matinal


e demasiado orgulhosa para se inclinar exclusivamente sobre o que foi
dito antes dela e por outros; não tomemos isso como um pretexto para
denunciar um pensamento impotente para manter-se de pé sozinho e
sempre constrangido a enrolar-se a um pensamento já realizado. Basta
reconhecer aí uma filosofia já desprendida de certa metafísica, porque
desligada do espaço da ordem, mas votada ao Tempo, ao seu fluxo, a
seus retornos, porque presa ao modo de ser da História. (p. 301)

Tendo em mão estas pistas, podemos vislumbrar o lugar do uso da história num apanhado
geral da obra de Foucault, que pode ser dividida em três fases (que, no entanto, estão
imbricadas e não cessam de se entrelaçar): arqueológica, que trabalha uma modalidade
que o autor denominou arquivos (discursos acumulados) e prepara uma superfície de
inscrição (histórica); fase genealógica, já mais centrada no movimento da das relações de
força, poder e resistência; e finalmente uma fase ética, que se concentra no movimento
independente, do saber e do poder, que busca orientar-se como tal. Esta reflexão estaria
diretamente ligada à Ética implicada por este re-direcionamento do pensamento moderno
sobre o Tempo como fluxo, demonstrando assim como este pensamento não pôde
elaborar uma Moral, justamente por afastar-se da noção de tempo ligada ao espaço da
ordem formulada pelo pensamento clássico (Foucault, 2007b).

Esta configuração do saber fundamentada por Foucault torna possível pensarmos em


termos de cartografia, ou, utilizando seus próprios conceitos, trazem as problematizações
deste filósofo para outro nível, o nível genealógico do diagrama. Deleuze (1988) afirma
que o diagrama de Foucault seria a própria cartografia co-extensiva a todo campo social.
Mas esta mudança de nível em suas reflexões somente encontraram sua condição
possibilidade após estabelecida esta superfície de inscrição histórica. Foucault (2007c)
diz que é, então, “o sentimento histórico dá ao saber a possibilidade de fazer, no
movimento de seu conhecimento, sua genealogia” (p. 30).

Assim como a cartografia, a genealogia de Foucault traz consigo um projeto político ou,
melhor ainda, um exercício político. Pois o que Foucault busca nela é que, a partir do

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conhecimento histórico do saber e o estabelecimento desta superfície, a genealogia,
através de uma análise das relações de poder, crie táticas para ativar saberes históricos
libertos da sujeição, capazes de oposição, luta e criação contra a coerção de um saber
científico com ambição de ser unitário. (Foucault, 2007c) Indicado por seu colega
Deleuze (1988) como um grande cartógrafo, é desta forma, portanto, buscando sempre
ativar a liberdade do devir (da criação) que Foucault escapa do privilegiado, porém
perigoso, acolhimento que a história dá ao saber.

Veremos no seguinte tópico algumas especificidades de uma concepção metodológica


cartográfica, para a seguir explorá-la como uma alternativa de análise que fornece saídas
aos perigos, e expansão da potencialidade histórica neste campo do saber.

3. A Cartografia

A cartografia talvez possa ser definida mais como um critério de avaliação do que
propriamente uma metodologia. Rolnik (2006) afirma que tanto o critério quanto o
princípio do cartógrafo devem ser extramorais, portanto não científicos, situando-os
assim como estéticos e vitais, ou seja, valorizando uma arte em detrimento à ciência. Foi
o filósofo alemão Nietzsche (1844-1900) quem primeiro realizou uma avaliação do
conhecimento e da ciência através destes princípios, estando assim fortemente presente
no pensamento dos autores que trabalham com a cartografia. Portanto, para melhor
compreendermos tal concepção cartográfica, veremos como ela se torna possível através
das problematizações de Nietzsche.

De acordo com Machado (2002) Nietzsche surgiu com uma problematização inusitada,
ao pensar o antagonismo existente entre ciência e arte numa crítica radical aos valores da
metafísica que dominavam sua época. Machado (2002) afirma que o que caracteriza o
projeto nietzschiano é estabelecer que uma crítica ao conhecimento só se torna possível
se articulado com a moral, pois conhecimento (ordem epistemológica) e ordem moral
teriam uma ligação intrínseca, imanente. O objetivo de Nietzsche ao realizar este projeto
foi subordinar, por intermédio da moral, a questão da verdade (no conhecimento) a uma
teoria das formas de vida. Machado (2002) coloca que o caminho da argumentação de
Nietzsche em direção a sua questão mais fundamental se faz, portanto, do conhecimento
à moral e da moral à vida, e afirma:

Essa posição exterior à moral, esse para além da moral a que é preciso se
elevar para ter uma perspectiva do alto é justamente a vida considerada
como instinto, como força, como vontade, como potência, e seus diversos
tipos [...] No fundo a moral é “imoral”, os valores morais são valores
vitais. É essa a relação intrínseca entre moral e vida que torna possível o
projeto de uma genealogia da moral como genealogia da vontade de
potência que tem como objetivo avaliar os valores morais a partir da vida
– e das forças que servem para defini-la – considerada como critério
último de julgamento (p. 54-5).

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É desta forma, tendo a vida como critério, que tanto a genealogia nietzschiana quanto a
cartografia tornam o problema do verdadeiro ou falso, do científico ou não-científico,
irrelevante. A vida tomada como uma força, uma potência, analisa o conhecimento
determinando se ele expressa uma abundância ou uma indigência vital, uma afirmação ou
negação da vida, e estabelece uma questão fundamental: a serviço de que tipo de vida se
coloca tal ou qual conhecimento?

A ruptura radical com a metafísica foi feita pelo projeto genealógico de Nietzsche em
termos da descontinuidade que sua análise demonstraria. Os valores não são mais
tomados como eternos ou imutáveis, ao contrário, a genealogia nietzschiana acredita em
valores históricos, advindos ou em devir, em constante produção.

Esta descontinuidade que rompe com os valores metafísicos torna possível pensar em
termos de cartografia, que toma o desejo (devir, multiplicidade), que aproxima-se da
noção nietzschiana de vontade de potência, como criador de mundos, e é justamente nesta
produção que se concentra o esforço de uma análise cartográfica (Rolnik, 2006). Assim,
uma cartografia procura mostrar justamente este movimento de criação, como fluidez,
mas, ao mesmo tempo, que trabalha com o visível (o rígido, delimitado e bem talhado)
nas produções sociais:
Numa cartografia, pode-se apenas marcar caminhos e movimentos, com
coeficientes de sorte e de perigo. É o que chamamos de ‘esquizoanálise’,
essa análise das linhas, dos espaços, dos devires (Deleuze, 1992, p. 48).

A cartografia conteria, assim, três dimensões (ou linhas): uma linha molar rígida, de
território (Deleuze) correspondente a um estrato de saber (Foucault) que, como vimos
anteriormente, se trata de uma superfície histórica; uma linha molecular intermediária
flexível, doublé-face, linha que vacila entre a primeira e a terceira linha, se tornando
rígida ou deixando escapar, onde podemos enxergar o nível das reflexões genealógicas de
Foucault e suas análises das relações de poder; finalmente uma terceira linha (que, na
verdade, se trataria mais de um fluxo do que de uma linha), linha de fuga, ela é
multiplicidade pura, e apesar de se entrelaçar com as demais este fluxo ela sempre escapa
por todos os lados. (Rolnik, 2006; Deleuze e Guattari, 1995a, 1995c). Uma vez que estas
linhas não param de remeter umas às outras, vemos a ruptura da cartografia com a
metafísica, e, assim, porque nela “não se pode contar com um dualismo ou um dicotomia,
nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau” (Deleuze; Guattari, 1995a, p. 18).

Finalmente, para compreendermos o uso da cartografia precisamos perceber que o


movimento do devir (que produz mundos) se dá no entrelaçamento destas três linhas,
como conclui Rolnik (2006):
[...] Os homens estão expostos a viver essas três linhas, em todas as suas
dimensões. É através delas que eles se expressam, se orientam. É em seu
exercício que se compõem e decompõem seus territórios, com seus
modos de subjetivação, seus objetos e saberes (Rolnik, p. 52).

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É desta forma, portanto, que a cartografia privilegia a constituição de espaços, de tipos,
aproximando-se mais de uma geografia do que de uma história linear.

Deleuze e Guattari (1995b) colocam que os impasses numa cartografia devem ser
analisados em sua relação com a vida, se colocando de maneira a questionar:

[...] em que caso essa relação com a vida deve ser um endurecimento, em que
caso uma submissão, em que momento trata-se de se revoltar, em que momento
se render, ou ficar impassível, e quando é necessário uma palavra seca, quando
uma exuberância ou um divertimento? (Deleuze; Guattari, 1995b, p. 58).

Mais adiante em seu texto os autores complementam afirmando que as respostas da vida
não devem ser fugas, mas devem fazer com que a fuga aja e crie, e assim, sendo sempre
um exercício de potência de criação.

É desta forma que a cartografia analisa e utiliza a história, que representa, ao mesmo
tempo uma potência e um perigo para a vida. Alguns importantes teóricos dos estudos
organizacionais de hoje (Reed, 1999; Carter e Rowlinson, 2002; Carter, McKinlay e
Rowlinson, 2002; Chanlat, 1999) reconheceram a importância de analisar a teorização no
campo dos estudos organizacionais historicamente, na próxima seção examinaremos esta
visão e como uma abordagem cartográfica poderia contribuir para ela.

4. A Contestação histórica da Teorização Organizacional e a Cartografia

Michael Reed (1999) coloca que a partir de seu surgimento, sobre alicerces racionais, o
campo dos estudos organizacionais sofreu diversas contestações ao longo do século XX
que abalaram suas certezas ideológicas, dando margens e possibilitando abordagens
variadas em seu domínio. Tais contestações e transformações, segundo o autor, acabaram
por desencadear basicamente duas posturas em face deste campo teórico: uma busca
nostálgica das certezas do passado e seu conforto consensual, que pode também requerer
e impor uma rigidez política vigilante dentro do campo; e uma outra postura que explora
suas transformações de maneira lúdica, substituindo as “obviedades sagradas do
racionalismo moderno” por uma “ironia e humildade pós-moderna” (Reed, 1999).

Tais posturas não parecem satisfatórias, e para o cartógrafo parece evidente o perigo
inerente à primeira postura, e o que poderia nos levar a tender a ela. Primeiro o medo:
este é o perigo essencial do movimento conservador, que deseja sua estratificação e
imutabilidade:

Tudo é concernido: a maneira de perceber, o gênero de ação, a maneira


de se mover, o modo de vida, o regime semiótico. [...] Quanto mais a
segmentaridade for dura, mais ela nos tranqüiliza. Eis o que é o medo, e
como ele nos impele para a primeira linha (Deleuze; Guattari, 1995c, p.
109).

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Aqui chegamos a uma colocação importante para a cartografia: também há investimento
de desejo no movimento molar da primeira linha. Tudo isso nós desejamos, a certeza de
uma teoria imutável e a vontade de defendê-la a unhas e dentes, mais do que uma teoria
ela se transforma numa morada, onde se acredita estar de pé entre as coisas estáveis; fuga
diante da fuga. Aqui vemos também uma força vital, mas uma vida que quer se conservar
e não se expandir, por isso, de acordo com Machado (2002), Nietzsche a classificou
como uma força negativa. Vemos aqui um dos perigos evidenciados por Nietzsche (2005)
encontrados num apego em demasia à história, que a conserva e, porém, é estéril:

[...] pouco importa, por conseguinte, o que fazeis, contanto que a


própria história seja preservada na sua bela ‘objetividade’, vigiada
por aqueles que não poderão jamais, eles próprios, fazer história
(Nietzsche, 2005, p. 114).

O segundo perigo, presente na outra postura apresentada, já não parece tão evidente para
o cartógrafo, e o obriga a retornar por um instante ao texto de Reed. Reed (1999) afirma
que haveria um custo em tais aventuras lúdicas, e sua promessa de uma liberdade
intelectual ilimitada, e este custo seria o risco de tender ao isolacionismo (REED, 1999).
Eis o segundo perigo da cartografia: a Clareza e sua flexibilidade ilimitada. Deleuze e
Guattari (1995c) colocam que a clareza é justamente menos evidente porque concerne o
nível molecular da cartografia, ou seja, o movimento não-visível da segunda linha e sua
ambigüidade, porém o perigo desta abordagem é equivalente ao perigo molar da
primeira:

Aqui também tudo é concernido, até a percepção, a semiótica, só que na


segunda linha. [...] Tudo se tornou flexibilidade aparente, vazios no
pleno, nebulosas nas formas, tremidos nos traços. Tudo adquiriu a
clareza do microscópio. Acreditamos ter entendido tudo e tirado todas as
conseqüências disso. Somos os novos cavaleiros, temos até uma missão.
Uma microfísica do migrante tomou o lugar da macrogeometria do
sedentário. Mas essa flexibilidade e essa clareza não têm apenas seu
perigo próprio, elas próprias são um perigo. Em primeiro lugar porque a
segmentaridade flexível corre o risco de reproduzir em miniatura as
afecções, as afectações da dura[...] Obscura clareza que não cai de
estrela alguma e que exala tanta tristeza: essa segmentaridade movediça
decorre diretamente da mais dura, ela é sua compensação direta. (p.
110, grifo nosso).

Assim, o medo encontra uma compensação direta na clareza. Porém, o cartógrafo


pressente também outro perigo que pode decorrer de uma tendência isolacionista: paixão
de abolição. A linha de fuga que foge das organizações molares leva consigo o maior
perigo de todos; sair desfeito depois de desfazer tudo o que podia. O perigo de que, em
seu isolamento e desconstrução, aconteça o seguinte:

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[...] a linha de fuga atravesse o muro, que ela saia dos buracos negros,
mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e aumentar suas
valências a cada vez, ela se transforme em destruição, abolição pura e
simples, paixão de abolição (Deleuze e Guattari, 1995c, p. 112).

Reed (1999) não parece estar disposto a cair nos perigos que ele próprio apresentou, em
outros termos, e afirma: “nem a adesão à onda relativista nem o recuo aos porões da
ortodoxia parecem futuros atraentes para o estudo das organizações” (p. 63). Assim, o
autor descarta o uso das duas posturas anteriores em sua análise, e nos oferece uma
terceira abordagem possível, esta consistiria justamente em recontar a história
organizacional de forma a balancear o contexto histórico e as idéias teóricas, com o
objetivo de redescobrir e renovar a sensibilidade contextual entre “sociedade” e “idéias”.

Chanlat (1999) afirma que a parte histórica no ensino da gestão é insatisfatória, sendo que
poucos programas lhe confeririam espaço. O autor atribui a importância deste
embraçamento da história neste campo afirmando que aqueles que modificam ou
transformam a realidade da sociedade o fazem a partir de estruturas existentes que
incorporariam o passado. A história constituiria, igualmente segundo a visão deste autor,
o próprio indivíduo e a sociedade.

Alvesson e Deetz (1999) reconhecem que a história produz maneiras de pensar o


presente, ou seja, isso não seria o mesmo que dizer que podemos construir, através de seu
uso, maneiras de experimentar algo que escapa dela? Os autores afirmam, justamente,
que a história se torna interessante pela sua capacidade de produzir (Alvesson e Deetz,
1999).

5. Considerações Finais

Vimos que tanto ambos princípio e critério da cartografia são vitais (e não morais).
Utilizando este princípio e critério para a sua análise, afirmamos que história e cartografia
se fundem de uma maneira bastante interessante quando se busca uma orientação para a
criação teórica, uma vez que toda criação representa uma potência vital liberta. De acordo
com Nietzsche (2005):

Na medida em que está a serviço da vida, a história está a serviço de uma


força a-histórica: portanto, ela não poderia nem deveria jamais se tornar,
nesta hierarquia, uma ciência pura, como as matemáticas. Quanto a saber
até que ponto a vida tem necessidade dos préstimos da história, esta é
uma das questões e das inquietações mais graves que concernem à saúde
de um indivíduo, de um povo ou de uma cultura. Pois o excesso de
história abala e faz degenerar a vida, e esta degenerescência acaba
igualmente por colocar em perigo a própria história. (p. 82)

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Seria justamente esta potência criadora que a cartografia busca liberar, com um
diagramatismo em oposição a uma axiomática, axiomática do conservadorismo sempre
fiscalizado, axiomática que não dá conta da invenção e da criação, alimentada pelo medo
(grande perigo da linha molar da cartografia, em seu excesso), uma força vital negativa,
haveria aí uma vontade deliberada de deter, de fixar, de se colocar no lugar do diagrama e
constituir um nível de abstração cristalizada, “já grande demais para o concreto, pequena
demais para o real” (Deleuze; Guattari, 1995b, p. 103).

Desta forma concluímos que tanto um excesso de história (como vemos “nos porões da
ortodoxia”) quanto sua falta (para qual tendem algumas vertentes que se denominam pós-
modernas) podem representar perigo para a vida dos estudos organizacionais, ou seja,
para a potência criadora deste campo do saber. O conhecimento da história trabalharia,
assim, a favor da vida, não de forma a conservar-se, mas de forma a estabelecer as bases
que deverão ser ultrapassadas para que se engendrem novas histórias, libertas da sujeição
e porém fazendo conexões com sua trama.

Através da leitura de alguns autores contemporâneos dos estudos organizacionais, vemos


que existe aí uma certa clareza que tangencia determinados temas que podem ser
amplamente explorados por estudiosos que trabalharam suas análises sob ponto de vista
cartográfico. Desta forma, buscamos favorecer e engendrar uma leitura que se proponha a
contribuir tanto para o debate epistemológico deste campo quanto para fomentar o uso de
uma análise cartográfica. Vemos assim, na cartografia, uma alternativa vitalizante para a
superação de certos impasses que podem ser encontrados numa abordagem nos estudos
organizacionais que se propõe ser histórica.

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