Você está na página 1de 77

memória e resistência

organização
Johanna Gondar Hildenbrand
Francisco Ramos de Farias

memória e resistência
Nos interstícios do poder

Volume I
© 2021 Johanna Gondar Hildenbrand e Francisco Ramos de Farias
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Produção Editorial
Cacau Costa
João Saboya
Julia Neves
Julia Roveri
Marcus Nunes
Rodrigo Fontoura
Sofia Vaz Apresentação9
Valeska Torres

Revisão 1. Memória social, poder e resistências em Michel Foucault 15


Bruno Lima Ricardo Salztrager
Imagem da capa
Jô Gondar
Dhruv Weaver
2. Dos arquivos mnêmicos da sexualidade à memória do fora:
resistência e prática de liberdade em Michel Foucault 26
cip-brasil. catalogação na publicação
sindicato nacional dos editores de livros, rj Auterives Maciel Júnior

m487
v. 1 3. Memória coletiva e mitos legitimadores – a confrontação dos
subalternos na busca de novas formas de saber e viver 42
Memória e resistência : nos interstícios do poder, volume 1 / organização
Johanna Gondar Hildenbrand, Francisco Ramos de Farias. - 1. ed. - Rio de Janeiro Michelle Bernardino
: 7Letras, 2021.
Ariany Villar
Inclui bibliografia Adriane Roso
isbn 978-65-5905-233-2

1. Memória - Aspectos sociais. 2. Evolução social. 3. Poder (Ciências sociais). 4. Artes da projeção como resistência da memória cinematográfica:
4. Ciência política. I. Hildenbrand, Johanna Gondar. II. Farias, Francisco Ramos de.
ecologia das mídias, espectatorialidades e videomapping 59
21-73252 cdd: 302 Wilson Oliveira Filho
cdu: 316.47

Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - crb-7/6472 5. Resistência e poder:


a emancipação do espectador perante a imagem cinematográfica 72
2021 Johanna Gondar Hildenbrand
Viveiros de Castro Editora Ltda. Francisco Ramos de Farias
Rua Visconde de Pirajá, 580 – sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro – rj – cep 22420-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br
6. Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre: Apresentação
uma trajetória de resistências 88
Evelyn Goyannes Dill Orrico
Roberta Pinto Medeiros
Eliezer Pires da Silva

7. Entre nós, o bem e o mal 108


Lucas Graeff
Memória e resistência: nos interstícios do poder é uma coletânea dividida em
8. A violência e o inominável: dois volumes que reúne artigos de docentes do Programa de Pós-Graduação
da utopia social à utopia monumental 122 em Memória Social da UNIRIO, de docentes de outros Programas de Pós-
Octave Debary Graduação e alguns pesquisadores que abordam o tema da memória em
Francisco Ramos de Farias suas pesquisas. O PPGMS tem uma proposta transdisciplinar, congregando
quatro linhas de pesquisa: Memória e Patrimônio; Memória e Espaço;
Sobre os(as) autores(as) 148 Memória e Linguagem; Memória, Subjetividade e Criação. As questões
sobre memória, resistência e poder, aqui apresentadas, serão discutidas por
pesquisadores de diversas áreas, como arquivo, psicologia, antropologia,
filosofia, artes, ciências humanas e sociais.
Mesmo no interior de cada disciplina, a memória pode ser um tema
controverso. Enquanto campo de estudos, a memória social concilia inú-
meras definições, que se originam a partir de diferentes pontos de vista e
discursos, podendo ser, muitas vezes, contraditórios. “A memória conce-
bida enquanto produção do poder, destinada à manutenção dos valores de
um grupo, não é equivalente à memória pensada enquanto componente
ativo dos processos de transformação social e de produção de um futuro”
(GONDAR, 2005).1 E, a partir das diferentes perspectivas, é possível se pen-
sar em modos de construção pelos quais a memória pode resistir ao poder.
A partir da década de 1980, o foco dado em relação ao futuro, no
ocidente, se desloca para o passado, o que acaba trazendo a memória para
o cerne de diversos estudos e debates. Como consequência, a memória se
tornou uma das grandes preocupações culturais e políticas das socieda-
des contemporâneas (HYUSSEN, 2000).2 Sendo assim, nosso intuito aqui é
1 GONDAR, J. Quatro proposições sobre a Memória Social in: ___.; DODEBEI, V. (Orgs.) O que
é Memória Social. GONDAR, Jô; DOBEDEI, Vera (Orgs). Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
2 HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.

9
contribuir para o avanço das discussões sobre um tema atual e provocante mesmo o conceito em si jamais aparecer em seus escritos, e como poder e
que ainda continua causando inquietações no meio acadêmico: as relações resistência são, no pensamento foucaultiano, dimensões inseparáveis.
entre memória, poder e resistência. Em Dos Arquivos Mnêmicos da Sexualidade à Memória do Fora:
A memória não é apenas uma reconstrução do passado no presente, Resistência e prática de liberdade em Michel Foucault, Auterives Maciel
mas também um instrumento e um objeto de poder, já advertira Le Goff Junior discorre sobre como a constituição de uma memória produzida pelos
(1990).3 No entender de Foucault (1979),4 onde há poder há resistência, e arquivos mnêmicos das ciências sexuais fundará um sujeito parcialmente
que esta não se exerce por contraposição ao poder, mas pela produção de sujeitado às práticas de saber e poder que só poderá vencer tal sujeição ao
derivas em relação a ele. Geralmente ligada à insatisfação com políticas de criar as condições de cuidar de si, problematizar a sua maneira de existir e
cunho autoritário, ou mesmo a perspectivas dominantes sobre modos de construir uma memória do fora como termo final da prática de liberdade
enxergar e agir no mundo, a resistência também pode estar ligada à cria- que define a ética de Foucault. A passagem de uma memória à outra se fará
ção de novas linguagens, disputas de narrativas, novos espaços e modos pela análise criteriosa da noção de resistência, e pelo vínculo desta noção
de habitá-los. Por vezes, imaginamos que a resistência só pode ser exer- com as práticas de si que será colocada em análise na atualidade.
cida por intermédio de grandes atos contra determinadas formas de poder. No terceiro texto, intitulado Memória coletiva e mitos legitimadores: a
Aqui, porém, também iremos discutir outras formas de exercício, tanto confrontação dos subalternos na busca de novas formas de saber e viver, as
de uma quanto de outro; a resistência não precisa se contrapor ao poder e autoras Michelle Bernardino, Ariany Villar e Adriane Roso têm a intenção
este não significa, necessariamente, a repressão autoritária a determinados de mostrar como os jogos de poder e os regimes de verdade colocam as
indivíduos, grupos, formas estéticas, linguagens ou formas de vida. condições para o sufocamento dos conflitos e os entendimentos sobre a
Podemos destacar que a intenção desse livro foi trazer uma contribui- confrontação. Usando exemplos como o da história do movimento pelos
ção não apenas para o campo da memória social, mas também para dife- direitos civis dos Estados Unidos, elas irão analisar a confrontação das for-
rentes campos do saber. Posto isso, como consequência dessas pesquisas, mas de organização social dominantes, sua força advinda da mobilização
pudemos apresentar, entre outras coisas, a importância das possibilidades de novos saberes por parte dos grupos subalternizados e sua consequência
criativas da memória. Pois é através dessas possibilidades criativas que no tecido social comum.
podemos sempre resistir. O autor Wilson Oliveira Filho apresenta a relação entre memó-
Os oito textos aqui reunidos retratam questões sobre esse tema que ria, cinema e resistência no seu texto Artes da projeção como resistência
pode ser abordado de formas tão diferentes e ao mesmo tempo tão com- da memória cinematográfica: Ecologia das mídias, espectatorialidades e
plementares, como iremos ver no presente livro. Portanto podemos dizer videomapping. A partir do reconhecimento da crise no audiovisual bra-
que essa coletânea caracteriza-se por sua transdisciplinaridade, a qual efe- sileiro contemporâneo, principalmente na projeção cinematográfica, o
tivamente foi formulada a memória social como deve ser estudada como autor expõe formas de resistência, ou mais precisamente novas experiên-
campo do saber, pois a memória não pode ser definida de maneira unívoca cias visuais como formas de resistência, que não passam despercebidas no
por nenhuma área de conhecimento. O texto dos professores e psicana- cenário urbano. Seu texto irá refletir possibilidades diversas de projeções
listas Ricardo Salztrager e Jô Gondar, intitulado Memória social, poder e como forma de se pensar a resistência do cinema em nome de uma memó-
resistências em Michel Foucault, inaugura a coletânea introduzindo como ria do audiovisual.
o conceito de memória social pode ser depreendido da obra do Foucault, Em Resistência e poder: a emancipação do espectador perante a ima-
gem cinematográfica, os autores Johanna Gondar Hildenbrand e Francisco
3 LE GOFF, J. História e memória. Campinas, SP: Unicamp, 1990. Farias também irão trabalhar a relação entre memória, cinema e resistência,
4 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. mas de uma perspectiva diferente. Como reação ao processo de dominação

10 11
cultural e estético pelo cinema hollywoodiano, os autores identificam dife- sobre os movimentos sociais e protestos que aconteceram no Rio de Janeiro
rentes movimentos de resistência cinematográfica que têm em comum como posturas de resistência e reinvindicação. Nas duas situações houve
uma mesma busca: uma política da imagem que resista a essa hegemo- violência na tentativa da produção de meios de apaziguamento da violência.
nia estética e cultural proveniente da espetacularização da imagem. Além Os capítulos que compõem esse livro não têm a pretensão de esgotar
disso irão refletir sobre a existência de espaços de liberdade e criação por um tema tão abrangente como a relação entre memória, resistência e poder,
parte dos espectadores tanto dos filmes hollywoodianos, quanto dos filmes e nem resolver por completo as questões trazidas por eles. Referem-se mais
que resistem a essa estética pretensamente hegemônica. a abrir caminhos e aprofundar certas ideias, a partir de diferentes pontos
O sexto texto, intitulado Movimento de Justiça e Direitos Humanos de de vista, relacionadas às diferentes formas de se pensar a memória, a resis-
Porto Alegre: uma trajetória de resistências, dos autores Evelyn Goyannes tência e o poder.
Dill Orrico, Roberta Pinto Medeiros e Eliezer Pires da Silva, caracteriza o
acervo de um movimento social em defesa dos direitos humanos, sua fun-
ção de lugar de memória, suas possibilidades de usos e efeitos sobre iden- Johanna Gondar Hildenbrand
tidades de grupos, bem como de resistência política. Os autores têm como Francisco Ramos de Farias
proposta discutir os campos de movimentos sociais, regimes autoritários e
direitos humanos com base no acervo do Movimento de Justiça e Direitos
Humanos de Porto Alegre, a partir do papel dos arquivos de movimentos
sociais na busca e defesa pelos direitos humanos individuais e coletivos.
O psicólogo e antropólogo Lucas Graeff, em Entre nós, o bem e o mal,
nos apresenta um ensaio sobre a construção social do ódio no Brasil con-
temporâneo. A partir da memória de eventos político-sociais marcantes, o
autor irá discorrer sobre as consequências que as rápidas mudanças demo-
gráficas e culturais pelos quais o Brasil passou nas últimas duas décadas
oferecem um quadro particular às mobilizações de dores e mal-estares que
fundamentarão a construção social do ódio no Brasil. Ele também irá pro-
por como resistir a esse mal que se encontra em nós, em nossa cultura e
em nossa história.
O último texto dessa coletânea é de autoria dos professores Octave
Debary e Francisco Farias, intitulado A violência e o inominável: da utopia
social à utopia monumental. Essa reflexão é um ensaio escrito a quatro mãos
a partir de uma conferência realizada no Consulado Francês, seção Rio de
Janeiro, na qual os autores discutem dois tipos de utopias: uma relacionada
ao passado e outra vinculada ao futuro. Ambas têm em comum o fato de
serem tentativas de posicionamento frente à violência em contextos diferen-
tes. No primeiro caso, são abordadas as questões relacionadas à função dos
antimonumentos como produções artísticas realizadas na Europa depois
das duas grandes guerras mundiais e no segundo são tratadas reflexões

12 13
1. Memória social,
poder e resistências em Michel Foucault
Ricardo Salztrager
Jô Gondar

Escrever sobre memória social, poder e resistências em Foucault pode


parecer, à primeira vista, um grande desafio, pois, embora o autor tenha
sido um dos que mais se debruçaram sobre os dois últimos temas – pos-
suindo sobre eles, inclusive, uma visão bastante original –, o conceito de
memória social em si jamais aparece em seus escritos. De fato, a ausência
do conceito em seu pensamento poderia, de antemão, conduzir à exclusão
de sua obra de todas as análises e discussões que no domínio da memória
social se fazem. No entanto, tal atitude de banimento jamais se justificaria,
visto ser fácil constatar que Foucault é um dos autores mais discutidos no
campo. Porém, ainda que haja tamanha discussão, permanece estranho o
fato de não haver em sua obra uma teorização mais direta sobre o que
poderia se constituir como uma memória social. Daí a questão que propo-
mos trabalhar: como depreender o conceito de memória social do pensa-
mento foucaultiano?
Para responder a esta pergunta, dois outros autores podem vir em
nosso socorro. O primeiro é Lazzarato (2002), para quem a memória social
se configura como um conceito propriamente paradoxal: ela é conserva-
dora, sendo responsável pela transmissão dos códigos, das normas e valo-
res de um grupo social; mas é, ao mesmo tempo, criadora, possibilitando
rearranjos e derivas nesse processo. A ótica de Lazzarato não difere, neste
sentido, daquela que já tinha sido apresentada por Benjamin (1939/1989),
quando afirmou que o novo resulta de uma reatualização da tradição. Isso
nos permite pensar que, se a memória é instrumento de poder – na medida
em que ela é o meio de transmissão de normas e valores instituídos –, ela é

15
também lugar de resistências a essas normas e valores, sendo parte ativa de poder que participam da construção mnemônica, abrindo e indicando, ao
processos de produção coletiva. mesmo tempo, suas possibilidades de resistência. O método genealógico
É neste ponto que nos aproximamos de Foucault. O gancho para nossa de Foucault nos mostra como os diversos sistemas de submissão foram
análise será justamente as imbricações que a memória social possui com os sendo produzidos e construídos historicamente, através de um jogo casual
conceitos de poder e de resistências. Ora, julgamos ser bastante conhecida de dominações. E assim como foram construídos, de certa maneira, com
a afirmação de Foucault (1979) de que onde há poder há necessariamente todos os seus acidentes, percalços e acasos, poderiam ser de outra.
resistências. E a ela podemos acrescentar – sem ferir seus postulados, Trata-se, aqui, de uma metodologia de trabalho assentada, em linhas
muito pelo contrário – que de todo esse conjunto resulta a constituição de gerais, em certa problematização de três conceitos muito caros à histó-
uma memória social. Desta forma, tal conceito poderia ser depreendido ria do pensamento filosófico: a origem, a verdade e a identidade. Nesta
da obra foucaultiana como algo que inevitavelmente se constitui em meio medida, em primeiro lugar, colocamos que, ao contrário da grande maio-
a um imenso trançado de exercício de poderes e de resistências. A partir ria dos filósofos que o antecederam, não interessava a Foucault analisar
deste jogo, uma memória social vai se fazendo, porém, conforme veremos, ou mesmo descobrir a origem dos fenômenos que estudava, distanciando-
sem jamais se instituir em definitivo ou permanecer enquanto tal ao longo -se, portanto, da ânsia por encontrar uma espécie de marco zero a partir
do tempo. Ela sofre inúmeras e constantes transformações, justamente em do qual certos processos viriam a se desenvolver. Pelo contrário, para ele,
virtude das resistências que se fazem aí sentir. seria impossível delimitar uma data, acontecimento ou ocorrência que ori-
Visando analisar esta questão, partimos de um dos conceitos cen- ginariam os mais diversos fenômenos sociais. Interessava-lhe, sobretudo,
trais do pensamento de Foucault (1979), a saber, o de microfísica do o exame de como os fenômenos iam ocorrendo e se desenrolando atra-
poder. Trata-se de um conceito que aparece em seus escritos em meados vés dos anos, décadas e mesmo séculos. Por este viés, qualquer tentativa
dos anos 70, quando se opera uma verdadeira guinada em sua teoria. de concentrar em um único evento desencadeador o imenso turbilhão de
Até então, Foucault já havia escrito importantes obras como História da acontecimentos presentes em qualquer processo social acabaria por for-
loucura (FOUCAULT, 2017) – seu primeiro livro – e As palavras e as coi- necer-lhe uma explicação demasiado simplista e reducionista. A homena-
sas (FOUCAULT, 2007). No entanto, com a entrada em cena da ideia de gem ou culto a um evento fundador poderia servir também para legitimar
uma microfísica do poder, foi se configurando uma reformulação em sua um sistema de dominações que teria se imposto a um grupo ou formação
maneira de se voltar a seus objetos de estudo e, desta maneira, ele veio a social, mas cujo gesto de imposição permaneceria oculto. Desse modo, a
circunscrever para si uma nova proposta metodológica: a chamada genea- valorização da origem serviria para naturalizar e eternizar determinadas
logia, valendo marcar, fortemente embasada no pensamento de Nietzsche. formas de poder.
Assim, tendo Nietzsche como intercessor, ele estabelece, através da Em segundo lugar, coloca-se que a pesquisa genealógica também
noção de genealogia, uma forte crítica ao que ele chama de “modelo meta- problematizou o conceito de verdade, principalmente, se considerarmos as
físico da memória” (FOUCAULT, 1979). Neste modelo metafísico, a memó- relações entre a ordem do saber e o domínio da verdade. Ou seja, durante
ria é apenas um instrumento de poder, ou seja, ela é parte das artimanhas séculos – e mais ou menos até Nietzsche e mesmo Freud – acreditou-se que
que o poder utiliza para se naturalizar e eternizar. Desse modo, ela nos uma das principais funções do saber científico seria a de descobrir verdades
transmitiria regras instituídas, fazendo-nos acreditar que não há outro sobre seus objetos de estudos. E, com efeito, em relação a esta concepção,
mundo possível: sempre foi assim e assim sempre será: “a metafísica nos Foucault vem a promover uma contundente inversão, destacando que mais
leva a acreditar no trabalho obscuro de uma destinação que procura vir do que descobrir verdades, o saber científico, propriamente, as produz.
à luz desde o primeiro momento” (FOUCAULT, 1979, p. 23). É contra este Com isto, abre-se o devido espaço para que se questione se as tantas verda-
modelo de memória que a genealogia é proposta. Ela denuncia os jogos de des que as ciências pretensamente afirmam ter descoberto não seriam por

16 17
elas próprias construídas. E construídas por jogos de poder. Neste sentido, dispostos em malhas ou tramas microfísicas de poder. E é justamente aí que
a genealogia vai nos lembrar que toda verdade “neutra”, apresentada como chegamos ao ponto que nos interessa, pois seguindo esta linha de raciocí-
incontestável, é resultado de um processo produzido, ao longo do tempo, nio, depreendemos que não apenas os indivíduos assim se produzem, mas
por relações de dominação e submissão. Assim, a genealogia descortina os também os mais variados grupos sociais. Deste modo, trata-se de conside-
jogos de poder que estão na base da produção das verdades, e que de outro rar que, ainda que não o tenha exatamente sublinhado, o pensamento fou-
modo estariam escamoteados. caultiano efetivamente possui uma teoria sobre a produção e o dinamismo
Em terceiro lugar, houve também uma série de questionamentos de uma memória social, produzida tanto pelo poder quanto pela resistên-
sobre o conceito de identidade. De fato, para Foucault, uma identidade cia, ainda que Foucault privilegie, em seu método genealógico, a face de
jamais estaria ligada a qualquer espécie de essência, tal como era insis- resistência da memória. Contudo, poder e resistência são, no pensamento
tentemente preconizado pelo pensamento tradicional. Pelo contrário, foucaultiano, dimensões inseparáveis: é pelo meio dos jogos de poder que a
qualquer identidade, para Foucault, seria efetivamente da ordem da pro- resistência se constitui, não havendo entre eles relações de oposição.
dução e, mais especificamente, de uma produção instaurada a partir de Com efeito, o ponto central de sua obra – espécie de núcleo a partir do
um incessante jogo de poder-saber. Assim, se tivermos em mente o saber qual todo o seu pensamento se desenvolve – é a ideia de que o poder, mais
psiquiátrico – bem como o poder do qual ele desfruta na sociedade que o do que fundamentalmente repressor, é, sobretudo, produtor (FOUCAULT,
legitima enquanto enunciador de verdades –, talvez consigamos encarar o 1988). Por isto, ele assume uma postura questionadora diante de alguns
“indivíduo panicado”, o “indivíduo desatento” ou o “indivíduo deprimido”, autores tocados pelo marxismo, como Reich e Marcuse, para sugerir que
por exemplo, não como identidades ligadas a qualquer essência ou natu- o poder não se exerce necessariamente reprimindo indivíduos ou grupos
reza, mas sim como produções do próprio modo de atuação do saber psi- sociais, mas sim os produzindo. Destaca-se aqui que a hipótese repres-
quiátrico. Ou seja, os indivíduos em questão não se configurariam como siva evidenciava o poder como se exercendo em uma única direção – de
realidades em si às quais se volta a psiquiatria com o propósito de descobrir cima para baixo –, como se partisse, por exemplo, do Estado e atingisse a
suas verdades (FOUCAULT, 2006). De modo inverso, tais indivíduos pas- população a princípio livre, reprimindo-a. Para Foucault, mais interessante
sariam a ser encarados como produções próprias ao saber psiquiátrico, efe- do que pensar o poder exclusivamente sob esta forma descendente, seria
tivamente existindo apenas após a enunciação do diagnóstico e que, com encará-lo como se efetuando em todas as direções possíveis: de cima para
ele identificados, passam a se subjetivar como “panicados”, “desatentos” baixo – é claro –, mas também de modo ascendente, da esquerda para a
ou “deprimidos”. O mesmo valeria para a identidade de um “adolescente direita, da direita para a esquerda e em todas as diagonais possíveis, como
problema”, por exemplo, preconizado pelo saber pedagógico ou de uma que fazendo originar uma complexa e embaralhada teia na qual se efetivam
“criança pouco desenvolvida” circunscrita pela psicologia. Temos aqui dois as mais variadas e inimagináveis artimanhas.
outros saberes dotados do poder de enunciar algumas verdades sobre os De fato, é a esta imbricada rede de poderes que Foucault faz corres-
indivíduos aos quais se volta (FOUCAULT, 2010). No entanto, marca-se ponder à trama microfísica, visando examinar – como o próprio nome
que, em ambos os casos, tratar-se-ia de construções identitárias instituídas indica – o poder circulando ao nível micro. E este é outro ponto a ser sub-
por estes saberes que, iludidos pela fantasia de que efetivamente possuem linhado, pois, de acordo com sua abordagem, o poder consiste apenas em
o poder de encontrar a natureza ou essência próprias aos indivíduos em algo que circula. Desta maneira, problematiza-se a concepção corrente
questão, se cegariam para o fato de as estarem produzindo. de que o poder consiste em algo que o Estado, as instituições, uma classe
Portanto, conforme Foucault (1997), o indivíduo não se constitui social ou um indivíduo possui ou detém. De acordo com Foucault, nin-
enquanto uma realidade em si, mas como uma produção. E, mais especi- guém – absolutamente ninguém ou nada –, a princípio, possui poder. Não
ficamente, uma produção advinda de determinadas artimanhas e artifícios existe um lugar definido de poder, nem se trata de um cetro que alguém

18 19
poderia deter ou transmitir a outro. O poder só existe enquanto relação; ele resistências que se constituíram nesses jogos, em um embate e um dispên-
circula e, circulando, faz constituir tanto o Estado quanto as instituições, dio de energia constantes.
as classes sociais e os próprios indivíduos, nenhum destes consistindo em Uma destas modalidades de configuração social que perdura por
entidades já existentes e anteriores ao seu exercício (FOUCAULT, 2018). certo tempo, porém desde sempre de forma instável e às custas de muita
Trata-se sempre de jogos de poder. luta para se manter, é a chamada “sociedade disciplinar” (FOUCAULT,
Ao caracterizar as relações de poder como jogos, isto é, como modos 1997). Sua origem é incerta e, conforme colocamos, não interessa muito a
de ação de uns sobre outros, Foucault inclui nessas relações também a Foucault investigar como se deu seu advento. Sabe-se que ela consiste em
liberdade de resistir. Assim como não há lugar fora do poder, não há poder uma forma de sociedade que, aos poucos, foi sucedendo ao Antigo Regime,
sem resistências ou sem possibilidade de liberdade. Como escreve Foucault conforme ia se disseminando, através das décadas e mesmo séculos, a ideia
(1982/1995, p. 244), o poder só se exerce sobre sujeitos individuais ou cole- de que seria possível acabar com o crime através de uma disciplinarização
tivos “que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas con- maciça dos corpos. Com efeito, ninguém sabe exatamente de onde surgiu
dutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acon- esta ideia, tampouco seu idealizador, mas, novamente, estas não são as coi-
tecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas”. sas mais importantes. Interessa que a sociedade como um todo abraçou tal
Desse modo, a escravidão não se configura como uma relação de poder, ideia e, muitas vezes de forma acrítica, a propagou através das gerações.
e sim como uma relação física de coação. Não há relação de poder se um Deste modo, até os dias de hoje difundimos esta ideia sem muito proble-
homem estiver acorrentado; ela só existe se ele puder se deslocar e for livre matizá-la e passamos, por exemplo, a maciçamente investir em educação já
para escapar. Por este motivo, não existe oposição entre poder e liberdade, que, segundo acreditamos, este é o principal meio para formar bons cida-
ou entre poder e resistências. O que há, para Foucault, é um jogo mais dãos. Nunca é demais lembrar que, segundo a ótica foucaultiana, não se
complexo no qual a liberdade aparece como condição de possibilidade de trata aqui de uma verdade propriamente dita, mas sim, de uma produção,
existência do poder. É nesse sentido que ele dirá que as resistências são ou seja, uma ideia que passa a adquirir na sociedade um efeito de verdade
anteriores ao poder. Assim como só pode haver poder onde há resistências, sem propriamente sê-la. E tal efeito se deve justamente por esta ideia ser
estas não existem por si mesmas, nem tampouco se opõem ao poder, mas incessantemente repetida pelos mais variados cientistas humanos e sociais
se constituem a partir de seus jogos e de seu exercício. que, em si, possuem o poder de, na sociedade disciplinar, enunciar verda-
É através desta circulação do poder em traçados microfísicos que des sobre os fenômenos subjetivos e sociais.
toda uma memória social vai se constituindo. Como já foi sublinhado, Nesta medida, foi justamente a partir da produção e da propagação
não é apenas de jogos de dominação e de submissão que depende a cons- desta ideia que a sociedade disciplinar foi se constituindo e, com ela, as
tituição de uma memória social, já que, segundo Foucault (1979), o poder mais diversas instituições sociais. Produz-se, assim, a instituição familiar
jamais se exerce de forma absoluta e sem encontrar pela frente alguns tal como a conhecemos – salvo as devidas mudanças por ela sofridas – por
entraves. Assim, devemos marcar que a memória vai se fazendo a partir tanto tempo: uma família nuclear e inteiramente voltada à criança com o
do exercício microfísico do poder, criando as mais variadas resistências intuito de nela investir e transformá-la em um bom adulto. Junto à institui-
como derivas desse exercício. Nesta medida, é imprescindível destacar ção familiar, alguns indivíduos também são aí produzidos: a “boa mãe”, ou
que, devido a estas resistências, qualquer memória que daí advenha vai seja, aquela que bem exerce a maternagem, cuidando da cria e dispensando
se constituindo de forma propriamente fugaz, jamais se cristalizando ou aos filhos todo amor e carinho; a “mãe ruim”, ou seja, aquela que não exerce
se neutralizando para todo o sempre. Pelo contrário, ainda que possa muito bem suas funções e que, com isto, se arrisca a criar um futuro crimi-
durar, a memória jamais permaneceria ou ficaria instituída enquanto tal. noso; o “bom pai” – indivíduo provedor e trabalhador que segura a família
E se porventura se estabiliza é porque conseguiu razoavelmente driblar as com rédeas firmes – e também o “pai anormal”; o “menino normal” e a

20 21
“menina normal”, ambos devidamente comportados e cada um seguindo em jogo nesta configuração social. E, enfim, vale marcar que caso os prin-
à risca as exigências prescritas do bom comportamento, sobretudo, em cipais intentos do poder disciplinar não fossem alcançados pela família,
relação ao que devem brincar, o que devem vestir etc. Finalmente, surge a pela escola, pela fábrica e pelo exército, a sociedade, ainda assim, oferecia
“família normal” e a “família desviante”, a primeira com o casal de pais se duas outras instituições encarregadas de disciplinar os indisciplinados: a
amando e se suportando por toda a vida pelo bem dos filhos e a segunda prisão e o hospício. Cabe novamente frisar que todas estas operações não
dizendo respeito àquelas nas quais há traições, separações e demais ocor- se fizeram sem o oferecimento de maiores resistências, vide as inúmeras
rências que tanto atrapalham o “desenvolvimento normal” das crianças transformações que nestas instituições se fizeram sentir, todas perdurando
(FOUCAULT, 2010). através dos séculos de maneira ora forte, ora cambaleante.
Vale marcar que todos estes indivíduos e instituições foram produzi- É principalmente no campo da subjetividade que essas resistências ao
dos, conforme colocamos, pelo próprio saber científico, aquele legitimado poder se constituem, através do processo que Foucault, no período final de
pela sociedade disciplinar enquanto detentor do poder de enunciar ver- suas pesquisas, chamou de “criação de si”. Embora não haja lugar fora do
dades. De fato, a sociedade disciplinar assistiu à invasão de um exército poder, o filósofo se dá conta de que o poder não abarca todo o espaço, dei-
imenso de psicólogos, psiquiatras, pedagogos, psicanalistas, e assistentes xando brechas que permitem uma parcela de autonomia para a subjetivi-
e cientistas sociais nas mais diversas famílias. Batalhão este que propagou dade. Este é o tema de suas últimas pesquisas: o modo pelo qual surge uma
em seus seios as verdades que acreditava ter descoberto e assim, aos pou- possibilidade de escape ao poder, não através da oposição a ele, mas através
cos, foram se produzindo uma infinidade de famílias em conformidade aos da criação que os sujeitos individuais ou coletivos podem realizar sobre
seus ideais moralizatórios. Claro que a este poder exercido pelos cientistas si próprios, estabelecendo derivas em meio aos jogos de poder dos quais
foi oferecida grande resistência, sendo a prova disto as inúmeras transfor- participam. Foucault percebe que indivíduos e coletivos podem se relacio-
mações vivenciadas pelos membros da família – e pela própria família em nar com as regras e os mecanismos estabelecidos pelo poder de maneira
si – ao longo dos séculos disciplinares, o que nos leva novamente a conce- singular, constituindo processos de criação de si, isto é, modos de subjeti-
ber, sob a ótica foucaultiana, uma memória social se constituindo sempre vação que escapam àquilo que foi estabelecido pelos códigos e normas que
de forma fluida a partir do exercício do poder e das resistências que deri- lhes foram transmitidos. Em outros termos: eles são capazes de criar uma
vam de seus jogos. memória, para além da memória que a eles é imposta.
Ainda visando à formação de bons cidadãos, o poder disciplinar O filósofo se dá conta deste processo ao estudar a Antiguidade grega.
também criou as instituições escolares, sobretudo, nas suas formas de Ao pesquisar a ética, a erótica, a dietética e a estética gregas, ele nos apre-
internato. Nelas, as crianças passavam a ser devidamente afastadas das senta todo um uso dos prazeres que se descola dos códigos de assujeita-
maldades do mundo adulto e disciplinadas conforme os padrões da boa mento (FOUCAULT, 1984). Haveria um campo de relação consigo mesmo,
moral. Alguns indivíduos foram aí também produzidos: o “aluno normal”, ou, melhor dizendo, das forças consigo, campo no qual um sujeito preser-
o “aluno problema”, o “bom professor”, o “mau professor”, dentre tantos varia sua parcela de liberdade nos jogos de poder. Isso não quer dizer que a
outros. Nas escolas, o mesmo exército de cientistas humanos e sociais relação consigo seja uma área preservada, imune às normas e às relações de
passaram a se acotovelar com o intuito de exercer o poder que lhes era saber e poder. Pois, de fato, não existe um território no qual essas relações
atribuído: enunciar verdades e mais verdades sobre a boa formação e o estejam ausentes. O que importa marcar é que os processos de subjetivação
bom desenvolvimento de uma criança. Nesta mesma perspectiva, a fábrica ou de criação de si promovem um movimento sinuoso que não se reduz à
também foi uma instituição constituída pelos séculos disciplinares e, com submissão ou ao assujeitamento, nem tampouco às relações de oposição. O
ela, se produziram o “operário padrão”, o “bom funcionário” etc. O mesmo que fazem esses sujeitos ou coletivos é usar as mesmas forças que alimen-
pode ser dito a respeito do que ocorria no exército e demais instituições tam as relações de sujeição para, a partir delas, trilhar derivas, vergando

22 23
ou dobrando essas forças sobre si mesmas – como faz um surfista na onda referências bibliográficas
ou um praticante de artes marciais. Um surfista não se opõe à onda, mas
BENJAMIN. W. Sobre alguns temas em Baudelaire (1939). In: Walter Benjamin.
faz uso de sua força para criar um movimento próprio, escapando dela Obras Escolhidas III. Tradução de Hemerson Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
(DELEUZE, 1992). Em outros termos: ao invés de enfrentar um inimigo DELEUZE, G. Foucault. Tradução de José Carlos Rodrigues. Lisboa: Vega, s/d.
opondo uma força à dele, o sujeito dobra a própria força que o assujeita
DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter Pal Perbart. São Paulo: Editora 34,
para com ela constituir resistências, criando algo novo para além de qual- 1992.
quer assujeitamento. Desse modo, a força de dominação pode se transfor- FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de
mar em instrumento de liberdade, e a partir desse complexo e intrincado Janeiro: Graal, 1979.
jogo a memória social se constitui. FOUCAULT, M. O sujeito e o poder (1982). In: Dreyfus, H & Rabinow, p. Michel
Em um livro que escreve sobre Foucault, Deleuze afirma que a memó- Foucault, uma trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêu-
ria consiste justamente nessa dobra, nesse movimento pelo qual a força de tica). Tradução de Vera Portocarrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
dominação é vergada. “Memória, eis o verdadeiro nome da relação con- FOUCAULT, M. A história da sexualidade volume 1: A vontade de saber. Tradu-
ção de Maria Thereza Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
sigo” (DELEUZE, s/d, p. 144). Nesta perspectiva, a memória social não é
Graal, 1988.
apenas uma superfície passiva na qual se inscrevem as normas e os valores
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,
de um grupo ou de uma sociedade. Ela é uma superfície vibrátil, criadora, 1997.
que reage à inscrição normativa estabelecendo derivas a partir dessas mes-
FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
mas inscrições. O que Deleuze enfatiza no pensamento de Foucault é a Martins Fontes, 2006.
possibilidade de uma memória que inventa o futuro a partir do passado: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Muchail. São Paulo:
a cada vez que se faz a força dobrar-se sobre si mesma se constitui uma Martins Fontes, 2007.
memória – não aquela que é simplesmente gestada nos e sobre os sujeitos, FOUCAULT, M. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
e sim uma memória gerada por eles, como resistência criadora de práticas Fontes, 2010.
e outras formas de vida. FOUCAULT, M. A história da loucura. Tradução de José Teixeira Neto. São Paulo:
Uma memória criativa, portanto. Um processo mnêmico que vai Perspectiva, 2017.
se fazendo sem jamais acabar-se ou instituir-se, visto que este trabalho FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermentina Galvão.
de fazer com que a força dobre sobre si mesma é interminável. Tão logo São Paulo: Martins Fontes, 2018.
uma memória se forma, ela imediatamente se desfaz, e assim por diante, LAZZARATO, M. La mémoire social: répresentations et croyances. In: Puissances
de l’invention. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, 2002.
sendo ilusória qualquer concepção de que um processo mnêmico efetiva-
mente perdure. Por este viés, se algum pesquisador vier a escrever sobre
uma memória estática, ele assim o fará por apenas ter focalizado o resul-
tado de um amplo processo de embates e lutas e, sobretudo, por imaginar
que a memória pode se estabilizar em uma única forma. Com efeito, por
detrás desta figura mnêmica ilusória, cristalizada e estagnada, no domínio
propriamente micro que lhe é subjacente, há uma luta constante, algo que
jamais cessa: um trabalho infinito de construções de memórias que nunca
assumem uma forma acabada, definitiva ou mesmo duradoura.

24 25
2. Dos arquivos mnêmicos da sexualidade à maneira de ser do homem na sua experiência de mundo atual, demons-
trando, por consequência, que uma memória do fora será consolidada com
memória do fora: resistência e prática de a constituição de uma subjetividade trabalhada em proveito da produção
liberdade em Michel Foucault de uma diferença. Assim, é pelo direito à diferença que uma prática de
liberdade irá se edificar na resistência às práticas produtoras de identidade
Auterives Maciel Júnior existentes nos dispositivos de saber e poder. Com ele, veremos a constru-
ção de uma memória ser edificada por intermédio de práticas de liberdade
que irão constituir – conjuntamente – as condições de emergência de um
sujeito ético dotado da capacidade de se relacionar com o porvir.
O procedimento incluirá três movimentos que gostaríamos de anun-
ciar da seguinte maneira: primeiramente, traremos o problema da produ-
ção de sujeitos sujeitados pela construção de um modo de ser edificado por
introdução
uma memória produzida pelos arquivos das ciências sexuais; em seguida,
Neste texto trabalharemos uma diferença existente entre uma memória mostraremos que a resistência pode possibilitar a construção de um outro
produzida pelos arquivos mnêmicos dos dispositivos das ciências sexuais – modo de vida implicado na construção de uma outra memória e, final-
cuja análise resultará em uma compreensão parcial de um sujeito definido mente, falaremos da memória do fora como a teleologia de um sujeito ético
pelos dispositivos de saber e poder – e uma memória do fora produzida que se constrói no horizonte de uma serenidade de vida.
por uma série de problematizações de si, indispensáveis para a implemen-
tação de uma prática de liberdade constituinte de um sujeito ético. Sendo a memória dos arquivos: o que é preciso reter dos saberes
assim, tensionaremos as duas memórias para pensarmos as condições de e dos poderes que vigoram no campo das ciências sexuais?
possibilidade dos processos de sujeição e das práticas de liberdade na obra
A memória de arquivos em Foucault é colocada em evidência por
de Foucault, trazendo para o escopo da nossa análise as relações de poder,
intermédio de diversos estudos que irão culminar na investigação das
as práticas de saber e as práticas de si no interior dos dispositivos concre-
ciências sexuais. É que no seu procedimento ela aparece integrada aos
tos da sexualidade. Afinal, é na passagem destas duas memórias – cujo
processos de sujeições produzidos pelos dispositivos de saber e poder que
vetor será demonstrado nos livros que Foucault escreve sobre a história da
vigoram nos dispositivos de sexualidade e que colocaremos em relevo no
sexualidade – que a ética ganhará destaque no seu sistema de pensamento,
centro da nossa análise.
pela explicitação criteriosa das relações consigo. Como elemento deflagra-
Todavia, em inúmeros momentos, o autor parece sugerir que tanto
dor da passagem de uma memória à outra, trabalharemos o conceito de
na dimensão arqueológica quanto na genealógica há processos de produ-
resistência na obra de Foucault, colocando em evidência a sua especifici-
ção de memória. Afinal, nenhum processo de produção de normas teria
dade ética e política. Como a análise será demarcada no contexto da atuali-
eficácia sem uma certa memorização do sujeito – guardando o indis-
dade do pensamento de Foucault, diremos que é da resistência ao presente
pensável para executar uma tarefa em um mínimo de tempo gasto e um
– e aos mecanismos no presente que produzem uma memória daquilo que
máximo de produtividade. Entretanto, cabe-nos perguntar: de que memó-
é necessário saber e reter do mundo atual – que a constituição de uma
ria se trata? Daquela que é produzida nas formações históricas e nos meios
outra memória se torna possível, por intermédio de trabalhos conjugados
concretos que conjugam tais formações com relações de poder. Ou seja,
de si que visam a transformação do sujeito. Tais exercícios serão descritos,
de uma memória produzida por uma série de atividades que constituem
ao longo deste texto, como práticas criteriosas de si que visam alterar a

26 27
– conjuntamente – a aquisição de um saber em meios concretos que defi- caso, uma sala de aula com alunos executando uma tarefa sob a suspeita
nem o que deve ser sabido e em relações estratégicas de poder postas como de serem vigiados por alguém que eles não veem produzirá um efeito de
recursos de um bom adestramento. aprendizado mais eficaz; da mesma maneira que um trabalhador, colocado
Claro está que o procedimento de Foucault é progressivo: assim, a em um lugar onde ele vai executar o seu oficio sob suspeita de estar sendo
produção de memória é posta primeiramente na dimensão arqueológica vigiado, produzirá também rendimento muito maior em uma economia de
de um saber que dita o que deve ser retido para que uma atividade possa tempo mais eficaz. Vê-se aqui onde Foucault pretende chegar: ele parte do
ser executada; na dimensão de um poder que orquestra a atividade de um panopticon como estrutura arquitetônica para encontrar no dispositivo de
sujeito – ao submetê-lo a uma tarefa que deve ser executada em uma eco- vigilância técnicas combinadas de saber e poder que produzem indivíduos
nomia específica de tempo – e em uma tarefa combinada de saber e poder disciplinados, dotados de identidade fixa e de uma memória produzida
que tem no discurso o meio fundamental da sua articulação. Assim, por pela repetição da atividade executada. Se o panopticon é enfim alçado à
exemplo, uma aprendizagem decorrente de uma subjetivação de um saber condição de um diagrama, isto ocorre porque nas disciplinas todo um con-
imposto pelas técnicas de um dispositivo que conjuga saber e poder no seu junto de relações de forças é repartido pelo campo social, onde nele a fun-
meio heterogêneo, deve ser compreendida como uma forma de sujeição às ção de poder – o anátomo poder – visa produzir sujeitos com identidade
normas do saber em questão e, ao mesmo tempo, adestrada pelos exercí- fixa e comportamento dócil. Como bem diz Foucault, o panopticon
cios de forças que permeiam o meio do dispositivo.
Isto é o que aparece, por exemplo, em Vigiar e Punir (1975/1977), é polivalente em suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas
quando Foucault apresenta o Panopticon como um meio arquitetônico, também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos,
fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de
como um dispositivo e como diagrama da sociedade disciplinar. Mas o que
implantação dos corpos no espaço... de organização hierárquica, de disposi-
vem a ser o panopticon no projeto de Bentham? Trata-se de um projeto ção de centros e dos canais de poder... que se podem utilizar nos hospitais,
arquitetônico descrito na forma de um prédio circular constituído por salas nas oficinas, nas escolas e nas prisões. (FOUCAULT, 1975/1977, p. 181)
dispostas ao longo de um círculo com duas aberturas por onde possa passar
a luz. Do lado de fora existe uma janela voltada para o exterior do prédio e Ou seja, ele é o dispositivo por excelência que faz valer a disciplina
do lado de dentro uma abertura que permite que a luz atravesse a sala recor- como um diagrama que produz sujeitos dóceis, corpos disciplinados,
tando a silhueta dos indivíduos que são colocados no interior do prédio. No enclausurados para executarem uma tarefa útil em um espaço bem distri-
centro há uma torre protegida por um sistema de venezianas que impede a buído, com ordenação de um tempo otimizado e uma boa composição no
visibilidade de um suposto agente que ali possa estar. Nas salas, por sua vez, espaço e no tempo.
são colocadas pessoas executando uma tarefa para aprender um determi- E mesmo que este dispositivo já não seja no contemporâneo o modelo
nado saber sob o olhar de um vigilante situado na torre que não é visto. Ora, dominante, já que o poder desenvolve estratégias mais sutis de domina-
o efeito de uma vigilância permanente e invisível pode até mesmo dispen- ção, o seu exemplo ainda deve constar para que entendamos como em tal
sar a presença do vigilante. Afinal, é na atividade executada no interior do dispositivo uma memória é produzida nas tarefas executadas. Além disso,
prédio que a eficácia da vigilância se fará notar pelo empenho adotado por todos os saberes que ditam atividades que devem ser aprendidas por téc-
aqueles que se sentem vigiados em aprenderem a tarefa que a eles foi atri- nicas combinadas de saber e poder produzem processos de memória. É
buída, procurando executá-la com empenho e rigor de autoadestramento. que em tais atividades há processos conjugados de saber e poder, isto é,
Ao tomar o projeto arquitetônico de Jeremy Bentham, Foucault irá de relações de saber constituídas por práticas discursivas e não discursi-
propor que o analisemos como um meio de vigilância, um dispositivo vas e relações de poder que funcionam no meio como relações de forças,
produtor de saber e poder e diagrama da sociedade disciplinar. Nesse cujo exercício irá produzir um adestramento sutil dos corpos. Se elas se

28 29
encontram conjugadas, isto ocorre porque existe uma pressuposição recí- Existem também, como observa Deleuze no seu texto “O que é um
proca entre o saber e o poder, onde o primeiro deve ser compreendido dispositivo” (1988), linhas de subjetivação depreendidas de resistências que
como uma estratégia de forças em relação que produzem afetos, estando irão ocasionar as práticas de si que serão analisadas na parte dois do nosso
o segundo assegurado por um regulamento que faz funcionar as relações trabalho. Estas linhas de subjetivação, convém dizer, são aquelas que cons-
formais de saber, fazendo com que a tarefa exigida seja mais eficaz. tituirão as práticas de liberdade em Foucault, demonstrando que em todo
Enfim, é no A Vontade de Saber (1976/2006) que Foucault descobre e qualquer dispositivo existe uma abertura para um lado de fora onde algo
os dispositivos da sexualidade: neles a estratégia de poder se conjuga com de novo pode aí se inscrever. É nelas que encontraremos a ocasião para
as relações formais de saber por intermédio de discursos que ditam – pela falarmos de uma memória do fora deflagrada pelos focos de resistências
via das ciências sexuais – as condutas dos indivíduos pela produção de encontráveis nos dispositivos conceituados.
procedimentos normativos e coercitivos orquestrados com a finalidade de Todavia, há algo que já pode ser enunciado das duas dimensões des-
produzir memórias. Sendo assim, além do panopticon, os meios heterogê- critas acima: as relações combinadas de saber e poder criam a ambientação
neos da produção discursiva da sexualidade são, igualmente, dispositivos. de uma produção de memória construída pela sujeição parcial do indiví-
Como aqui alcançamos o essencial da nossa argumentação, talvez seja este duo a um discurso que articula, em uma vontade de saber, as técnicas de
o momento para um maior detalhamento desta noção. Só assim a sexua- poder com as relações de saber, funcionando em um regime de pressu-
lidade – enquanto produção discursiva que produz memória – pode ser posição recíproca. E aqui encontramos os dispositivos da sexualidade que
devidamente argumentada no nosso trabalho. pretendemos trabalhar, para analisarmos as linhas de subjetivação pela via
A noção de dispositivo em Foucault – que é utilizada de uma maneira da resistência, com a qual pensaremos as práticas de liberdade.
estratégica nos textos escritos durante a década de 70 – é descrita como um Assim, em A Vontade de Saber (FOUCAULT, 1976/2006), o autor irá
conjunto absolutamente “heterogêneo que implica discursos, instituições, descrever quatro dispositivos de sexualidade que darão às ciências sexuais
estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, medidas administrati- todo um manancial de saber e poder, articulados por um discurso que pro-
vas, enunciados científicos, proposições filosóficas” (Foucault, Dits et écrits, duz uma sexualidade normatizada pela estratégia disseminada de uma von-
vol. III, 299-300) e todo o conjunto daquilo que é dito ou não dito dentro tade de saber: a histerização do corpo da mulher; a pedagogização do sexo da
de uma determinada formação de saber. Aqui o dispositivo se explica pela criança; a psiquiatrização da conduta perversa e a socialização das condutas
ordenação orquestrada das práticas discursivas e não discursivas que pre- de procriação. Segundo Foucault, neste primeiro dispositivo encontramos
cisam ser aprendidas para que um saber possa ser subjetivado.
um tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado
Por outro lado, há nesse meio estratégico “uma certa manipulação de
e desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo
relações de forças, de intervenção racional e combinada de tais relações; qual este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria
seja para orientá-las em certa direção, seja para bloqueá-las ou para fixá-las intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em
e utilizá-las” (Foucault, Dits et écrits, vol III, p 299-300). Nesta dimensão, comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve
as relações de poder se encontram inscritas nos dispositivos, ligadas aos assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e
limites de relações de saber que derivam destas e na mesma medida irão funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, através de
uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação:
condicioná-las. Neste caso, o dispositivo é um conjunto de estratégias de
a mãe, com a sua imagem em negativo que é a mulher nervosa, constitui a
relações de forças que condicionam certos tipos de saber e por ele são con- forma mais visível desta histerização. (FOUCAULT, 1976/2006, p. 115)
dicionadas. Ou seja, as linhas de enunciação e de visibilidade irão coexistir
com as relações de poder em um regime de dupla pressuposição que con- Já na pedagogização do sexo da criança, todo um jogo pedagógico
fere ao poder um primado. colocará em evidencia a dupla afirmação

30 31
de que quase todas as crianças se dedicam ou são suscetíveis de se dedi- a sexualidade não deve ser concebida como uma espécie de dado da natu-
car a uma atividade sexual; e de que tal atividade sexual, sendo indevida ao reza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro
mesmo tempo “natural” e “contra a natureza”, traz consigo perigos físicos e que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que
morais, coletivos e individuais; as crianças são definidas como seres sexuais se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se
liminares, ao mesmo tempo aquém e já no sexo sobre uma perigosa linha de apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a esti-
demarcação, (FOUCAULT, 1976/2006, p. 115) mulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso,
a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
na qual os pais, as famílias, os educadores, os médicos e, mais tarde os encadeiam-se uns nos outros, segundo algumas grandes estratégias de poder
e saber. (FOUCAULT, 1976/2006, p. 116-117)
psicólogos devem se encarregar para pedagogizar, evitando em germe os
possíveis perigos desta manifestação sexual. Por outro lado, a psiquiatri-
Ou seja, a produção da sexualidade enquanto discurso supõe estraté-
zação do prazer perverso colocou manifesta toda uma série de prazeres
gias de saber e poder que produzem verdades sobre os sujeitos pela via do
considerados desviantes ao isolar o instinto sexual para fazer uma análise
discurso. A técnica utilizada vem de uma confissão secularizada – já que
clínica de todas as formas que pudessem afetá-lo. Neste dispositivo, cria-
Foucault analisa a confissão na pastoral cristã como o procedimento que
ram-se procedimentos de normalização e patologização de toda uma con-
irá aparecer nas diversas técnicas de produção de verdade pelo discurso –
duta; procurando, por outro lado, desenvolver uma tecnologia corretiva
que irá se combinar com o exame, constituindo formas variadas de produ-
para tais anomalias. Já a socialização das condutas de procriação põe em
ção de sexualidade, de processos de sujeição e de memória instituída pelos
manifesto mecanismos sutis que valorizam
dispositivos descritos acima.
a socialização econômica por intermédio de todas as incitações, ou freios, Em tal procedimento, o exame se generaliza e ao se combinar com a
à fecundidade dos casais, através de medidas sociais e fiscais; socialização confissão produz sujeitos sujeitados às tecnologias de um discurso imple-
política mediante a responsabilização dos casais relativamente a todo o mentadas com o propósito de fazer falar a verdade do sexo que será for-
corpo social... socialização médica, pelo valor patogênico às práticas de con- malizada por aquele que escuta. Sendo assim, os indivíduos submetidos
trole de nascimentos, com relação ao indivíduo ou à espécie. (FOUCAULT,
às tecnologias de saber e poder existentes nos dispositivos serão examina-
1976/2006, p. 116)
dos, tratados, diagnosticados e interpretados pelo agente encarregado de
Assim, vemos com tais exemplos toda uma vontade de saber sobre fazer valer a ordem do discurso; e toda uma verdade sobre a sexualidade é
o sexo e sobre a vida se erigir, combinando os dispositivos da sexualidade produzida na conjunção dos dois agentes que entram nos dispositivos em
com uma nova tecnologia de poder que completa a disciplina ao colocar posições dissimétricas. Sendo assim, é o examinado que fornece o discurso
em evidencia o controle da vida do casal e da população em geral. Trata-se que será elucidado pelo outro que escuta e interpreta para conferir a ver-
aqui de um biopoder funcionando ao lado do anátomo poder que vigoram dade daquilo que foi relatado. Por outro lado, a confissão funciona como
nos dispositivos disciplinares. uma espécie de fundamento da palavra daquele que dirá a verdade subja-
De qualquer forma, nestas estratégias de controle do sexo e da vida, o cente às práticas sexuais daquele que fala.
que se encontra em questão não é a descoberta de uma sexualidade subter- Ora, não é assim que funciona o mecanismo de uma vontade de saber
rânea que seria manifesta por intermédio de um discurso, nem tampouco generalizada? Não visam eles produzirem saberes pelas técnicas de confis-
o controle de uma sexualidade natural. Já que o termo sexualidade emerge são e exame? Não estariam tais saberes assegurados pela palavra daquele
como discurso nos termos estabelecidos pelos dispositivos analisados que diz de si alguma coisa? Ou não seria mais verdadeiro asseverar que é
acima, devemos doravante dizer que é a própria sexualidade que se encon- no diagnóstico que o sujeito se identifica e recebe o nome pelo qual ele irá
tra sendo produzida pela esfera do discurso. Como diz Foucault, se definir? Vemos, com muita pertinência, que tais questões se encontram

32 33
articuladas e podem, com alguma pertinência, receber uma resposta mais tais processos mnêmicos sejam absolutos? Ou não há alguma coisa a ser
geral: sendo assim, é a vontade de saber que produz o sujeito através da téc- descrita como o fundamental de uma linha de subjetivação?
nica combinada da confissão e do diagnóstico dado por aquele que escuta. Ora, ao ter dito e asseverado que o discurso da sexualidade e as disci-
E tudo deve resultar em um discurso que articula a confissão com a norma plinas são produções combinadas de saber e poder, resta a Foucault inda-
e identifica o sujeito, a sua verdade e o seu perfil pela sua sexualidade agora gar sobre as resistências encontráveis nos dispositivos concretos e de que
discursada. Ou seja, é o discurso da sexualidade que produz o sujeito sujei- fonte elas emanam. E é aqui que encontramos as condições para retomar a
tado às normas técnicas e combinadas de saber e poder. análise da noção de dispositivo acima interrompida.
Assim, das disciplinas analisadas acima pelo exemplo do panopticon Com efeito, há nos dispositivos práticas de resistência e linhas de
aos discursos das ciências sexuais, implementados pelos dispositivos de subjetivação (DELEUZE, 1988) que deflagram procedimentos indispensá-
sexualidade, vimos como o poder e o saber produzem memória, forma- veis para a consecução de uma prática de liberdade. Nesse caso, a noção
tando indivíduos sujeitados às tarefas impostas pelos meios coercitivos e de resistência contraposta à reação de uma força integrada às relações de
normativos que vigoram no interior dos dispositivos. poder abre a Foucault a condição dele pensar em uma prática de si como
Resta entender como tal processo resultará na produção de uma a sua fonte, na condição da resistência ser concebida como ato de criação.
memória de arquivos. E aqui um certo cuidado torna-se indispensável: Sendo assim, resistir não é reagir, mas construir as condições de uma ree-
diremos que a memória neste nível é o produto da confissão combinada xistência a ser trabalhada na dimensão de uma prática de si, cujo produto
com o diagnóstico, mas é igualmente o processo de subjetivação do diag- final nos verterá na construção de uma outra memória, produzida na con-
nóstico assimilado pela interpretação de quem escuta. Assim presume-se trapartida das memórias construídas nos arquivos mnêmicos.
uma zona difusa na esfera da sexualidade que exige o trabalho de elucida- Assim, é das linhas de subjetivação que a prática de liberdade ganhará
ção daquele que escuta através de uma codificação clínica do fazer falar. a oportunidade de pensarmos em uma outra memória, que será o termo
Além disso, postula-se um princípio de latência intrínseca à sexualidade final dos modos de subjetivação que agora iremos descrever. Com tal
que irá exigir do especialista toda uma técnica de interpretação que funcio- memória procuraremos as condições de ultrapassagem dos arquivos mnê-
nará como chave de elucidação de uma verdade que irá identificar o sujeito micos e dos dispositivos de poder que procuram controlar o indivíduo e
pelo efeito da decifração. Enfim, ao término do processo, todo um discurso a vida em geral. Aqui a ultrapassagem do anátomo poder e do biopoder
normativo irá construir o sujeito pela via de uma sujeição aos dispositivos darão a oportunidade para pensarmos em uma memória do fora, criando
das ciências sexuais. Que a configuração de um sentido àquilo que adveio a chave da finalização do nosso trabalho.
da palavra do penitente acabe produzindo neste uma memória de arquivo
condizente com o discurso que ele pronunciou, cremos ser inevitável. cuidado de si e produção de memória
Desta maneira, os sujeitos produzidos pelos discursos subjetivados serão
sempre sujeitos sujeitados às normas da confissão e retêm – na dimensão Pelo que foi antecipado na nossa introdução, existem duas memórias
relativa da sua suposta obediência – um arquivo mnêmico daquilo que foi na obra de Foucault: a memória dos arquivos – produto das atividades de
dito e do que deve ser corrigido. adestramento que conjugam relações de poder e saber – e uma memória
Ao término do processo, todo um sujeito é identificado, fixado e sujei- produzida pelas diversas relações consigo que condicionam os procedi-
tado a um processo mnêmico reiterado pelos discursos de saber e poder. mentos éticos descritos como práticas de liberdade. Se no item anterior
Mas será totalmente sujeitado? Ou não haverá aí um elemento de resistên- pudemos descrever os mecanismos postos em jogo para a produção de um
cia a ser contado como a chave de uma linha de subjetivação? E quando arquivo mnêmico, agora assumimos a tarefa de descrever o essencial desta
pensarmos na linha de subjetivação poderíamos continuar dizendo que memória de longa duração.

34 35
Ao adotar a ideia kantiana que define o tempo como forma de inte- as descobertas de Foucault, procurando situar as práticas de si no mundo
rioridade, Foucault propõe, como fórmula geral da ética, que pensemos o contemporâneo. Neste sentido, as problematizações de si serão descritas e
tempo enquanto sujeito pelos diversos relacionamentos consigo. Assim, é atualizadas no contexto do nosso trabalho, tendo em vista os procedimen-
a afecção de si por si – aqui apresentada como a fórmula geral das práticas tos de subjetivação no mundo atual.
de si – que fará do tempo a condição da subjetivação de um sujeito ético. Ora, é aqui que as problematizações de si devem ser criteriosamente
Em que sentido é possível sustentar tal asserção? Dizendo que as relações descritas: segundo Foucault, as relações consigo supõem quatro modalida-
consigo – com os seus diversos modos de problematizações de si – supõe des de problematizações de si que recobrem uma substância ética que deve
um intervalo de indeterminação que deve ser ocupado para que todo um ser trabalhada, uma relação agonística de forças – que faz do intervalo tem-
trabalho de transformação de si possa ser realizado. Tal tempo – aqui des- poral um palco onde nele um combate efetivo de forças deva ser efetuado
crito como a definição elementar da subjetividade – é aquele que existe, –, uma subjetivação da verdade – que deve orientar o processo de decisão
primeiramente, entre as percepções que atam o ser humano ao mundo e do sujeito que se encontra trabalhando a si mesmo – e uma interioridade
as ações que ele deve executar como sucedâneas de tais percepções; sendo, de espera – que funciona como o resultado final de todo um trabalho de
igualmente, aquele que é preenchido por um tempo que liga as lembranças subjetivação cujo produto será uma nova memória. Detalhemos estes qua-
do passado às expectativas de um futuro, definido pela espera de um sujeito tro aspectos.
que consulta a sua memória para agir no futuro no momento adequado. A substância ética é o termo que Foucault utiliza para determinar a
Ocorre, como já vimos, que tal intervalo tanto pode ser capturado parte material de nós mesmos que deve ser trabalhada. Assim, ela pode
por atividades desempenhadas pelos mecanismos produtores de memória variar com a história e aparecer de diversas maneiras: nos gregos ela se
implementados pelos dispositivos de saber e poder, quanto pode ser traba- definia no regime dos aphodisia, isto é, o corpo e os seus prazeres; nos
lhado pelas diversas modalidades de problematizações de si que agora ire- cristãos é o desejo e carne; e, nos contemporâneos, é o desprendimento
mos descrever. Todavia, as condições, para que tais atividades sejam devi- da identidade pelo direito à variação como a possibilidade de se trabalhar
damente postas em práticas, é que o sujeito resista em ocupar o seu tempo fora dos dispositivos normativos de sexualidade que vigoram nos discur-
nas atividades ordinárias ditadas pelas obrigações morais; para entrar em sos das ciências sexuais. É que na modernidade a substância ética se fará no
relações consigo visando problematizar a sua maneira de existir e de viver. vetor de um direito ao corpo, cuja produção de diferença, na materialidade
Aqui, convém lembrar que Foucault desenvolveu tal trabalho nos física dos corpos indóceis, forçará a ruptura com os dispositivos normati-
livros intitulados História da Sexualidade – Vol II: O Uso dos Prazeres vos de adestramento e organização dos corpos dóceis. Ou seja, o direito ao
(FOUCAULT, 1984) e História da Sexualidade – Vol III – O Cuidado de corpo se problematiza nos sujeitos que não aceitam as marcações binárias
si (FOUCAULT, 1984) como resultado da crise ocasionada na Vontade de ou identitárias do discurso da sexualidade. Na medida em que resistem e
Saber pela investigação da resistência. Para explicitar a resistência pela via procuram uma nova maneira de se relacionar com o sexo e com a vida,
de uma nova prática distinta, a um só tempo, das práticas de saber e poder, constituem uma substância ética pelo estilo de uma prática contrasexual
ele foi investigar os procedimentos de subjetivação entre os gregos e os que consiste na produção de corpos não marcados pela disciplina.
romanos, colocando em pauta as práticas e o cuidado de si. Neste cená- A segunda modalidade diz respeito à relação de forças propriamente
rio, uma prática de liberdade deu ao autor as condições dele pensar em dita, isto é, ao combate agonístico de forças cujo palco é a própria subjeti-
uma ética cujo resultado culminou na memória que aqui estamos proble- vidade. Trata-se de uma modalidade eficiente, isto é, de um vergar da força
matizando. Como a nossa preocupação é pensar, através da descoberta de sobre si mesma que forja um meio agonístico cujas forças serão subjugadas
Foucault, as condições históricas das problematizações de si pela via da por outras forças para tornar o sujeito altivo e paradoxalmente mais forte
resistência ao poder disciplinar e do biopoder, traremos para o presente que si mesmo. Aqui, tratamos exatamente daquilo que os gregos chamavam

36 37
de Enkrateia, e que constitui a condição eficiente de um combate contra em Paul Preciado (2000) – e as práticas não identitárias que se mostram
os aparelhos de normatização produtores de identidade. Neste aspecto, em teorias que questionam a heterossexualidade compulsória – como é o
uma certa relação agonística consigo não é só pretendida, como também caso de Judith Butler (1990/2009) – do nosso tempo, devem ser descritas
desejável, quando o que se encontra em questão é fazer uma justa consigo como verdades que podem ser relacionadas com os sujeitos que pretendem
para não permitir que certas solicitações tornem o homem assujeitado às questionar, com contundência, as normas produtoras de sujeição que habi-
normas disciplinares do tempo presente. Neste caso, o combate agonístico tam a contemporaneidade.
é indispensável para que as exigências das normas não ocupem o tempo Enfim, existe a subjetivação de um lado de fora como o termo final das
que deve ser ocupado consigo. Como no contemporâneo o poder e o saber três modalidades acima descritas. Nesta última inflexão se constitui aquilo
atuam incitando os indivíduos a executarem tarefas exigidas pelos dispo- que em Foucault é possível pensar como uma interioridade de espera ou
sitivos, ocupar-se consigo só se torna viável se inventarmos vacúolos de de exceção. Nesse nível, tal interioridade coincide com uma teleologia de
indeterminação pela resistência implementada contra os dispositivos que um sujeito ético, através do qual o sujeito pode esperar, de diversas manei-
controlam os atos e roubam o tempo dos indivíduos. ras, alguma coisa deste fora. Como bem diz Gilles Deleuze, “é dela que o
A terceira modalidade coloca em cena a nossa relação com a verdade sujeito espera, de diversos modos, a imortalidade, a eternidade, a salva-
e o poder que esta possui de dar ao homem a capacidade de questionar ção, a liberdade, a morte, o desprendimento... (DELEUZE, 2005, 112). Desta
as verdades do poder. Nesta terceira inflexão, convém estabelecer uma interioridade de espera é preciso dizer que ela pode variar, igualmente,
diferença entre uma verdade de poder e um poder de uma verdade que é com a história; mas se constitui como termo final da teleologia ética como
subjetivada para dar forma às atitudes do sujeito. Como condição formal a expectativa de um fora através da construção de um lado de dentro pela
do procedimento de subjetivação, é a verdade que formaliza o combate sua subjetivação.
da segunda inflexão descrita acima. As verdades escolhidas pelo relacio- Todavia, tais modos de subjetivação podem, com certeza, ganharem
namento consigo devem dar forma e saber às decisões do sujeito; dando, aqui uma determinação positiva que nos autoriza a pensá-los como resul-
igualmente, a este condições de expressão na ordem da fala que o torne tando na produção de uma memória. Uma memória diferente da memória
um sujeito capaz de sustentar o que pensa na condição de ser falante. Ora, curta dos arquivos mnêmicos – já que esta se inscreve nos estratos e nos
é com a verdade subjetivada que se torna possível desfazer o discurso da arquivos – e que se constitui como “uma memória absoluta” ou memória
sexualidade, mostrando as possibilidades de novas combinações entre do lado de fora para além das estratégias presas aos diagramas de poder.
sexo, discurso e verdade, construídas por subjetividades que questionam Nestes termos, as quatro modalidades de problematização de si acima
as normas identitárias, os binarismos sexuais e promovem a produção de anunciadas resultam sempre na produção de uma memória do fora que é
diferenças por vias não binárias de produção contrasexual. o termo final da problematização de si. Neste sentido, Deleuze tem razão
Devemos observar que estas três inflexões se encontram entrelaçadas quando diz:
em Foucault, pois se configuram como modalidades técnicas de produção
de si por si que visam a constituição de um sujeito ético. Neste caso, as três Memória é o verdadeiro nome da relação consigo, ou do afeto de si por si.
modalidades no mundo atual devem ser descritas sempre em função da Segundo Kant, o tempo era a forma pela qual o espírito se afetava a si mesmo,
assim como o espaço era a forma pela qual o espírito era afetado por outra
expressividade de sujeitos que lutam pelo direito à diferença, através de
coisa... o tempo era então autoafecção, constituindo a estrutura essencial da
verdades proferidas pela denúncia das verdades normativas acrescidas de subjetividade. Mas o tempo como sujeito, ou melhor, subjetivação, chama-se
toda uma argumentação ética. Ora, neste aspecto as teorias queers, as filo- memória. Não esta memória que vem depois, e se opõe ao esquecimento.
sofias da diferença – que têm em Foucault e Deleuze seus principais defen- Mas a memória absoluta que duplica o presente, que reduplica o lado de fora
sores –, os manifestos contra sexuais – cujo exemplo podemos encontrar e que não se distingue do esquecimento. (DELEUZE, 2005, p. 115)

38 39
Ora, ao pensarmos nesta memória do fora, estabelecendo entre ela e biopoder de controle da população. Neste nível, é a resistência da vida que
a memória do arquivo uma diferença ética, podemos tecer algumas consi- criará a condição de uma nova maneira de viver que marcha na direção
derações para finalizarmos a nossa exposição: sendo assegurada a tese de contrária dos mecanismos orquestrados e diagramatizados pelos poderes
que os dispositivos de poder e saber produzem memória, a construção de em curso. Ou seja, é no direito à diferença que a sexualidade enquanto
uma memória do fora seria possível sem um combate ativo aos mecanis- discurso decai, surgindo a possibilidade de desestabilizar o presente e criar
mos presentes na nossa sociedade? Cremos que não. Nesse caso, por onde novas maneiras de pensar e de existir. Cremos que esta talvez tenha sido
encontraríamos as condições de resistência ao presente que definiriam um a última grande tentativa de Foucault no campo da ética, mas o retorno
processo de subjetivação atual? Pela luta às duas formas atuais de sujeição: ao presente infelizmente não pôde ser feito, pois o autor faleceu em 1984
a primeira que nos individualiza de acordo com as exigências do poder – quando prosseguia a sua tentativa de pensar contra a sexualidade uma
segundo os critérios estabelecidos por Foucault na sua analítica do poder nova maneira de se relacionar com o tempo, com a vida e com o sexo.
–, a segunda que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade fixa, Aqui, a nossa contribuição consistiu em trabalhar a produção de uma nova
sabida e conhecida – segundo os propósitos fixados pelos dispositivos de memória, isto é, uma memória de um fora que nenhum poder, cremos nós,
saber e poder. Nesse caso, resistir ao presente e instaurar pelas problema- seja capaz de capturar totalmente.
tizações de si práticas produtoras de diferenças parecem ser o caminho
para uma nova forma de relacionamento consigo cujo produto seja a cons- referências bibliográficas
trução de uma outra memória. Como bem diz Gilles Deleuze, “a luta pela
BUTLER, J. (1990) Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Rio
subjetividade se apresenta então como um direito à diferença e direito à
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
variação e à metamorfose”. (DELEUZE, 2005, p. 113)
DELEUZE, G. (1986) Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
Sendo assim, a memória do fora é na atualidade o produto final de
DELEUZE, G. (1975/1995) O que é um dispositivo? (1988). In: Dois regimes de lou-
um modo de vida que se afirma como diferença, pela interioridade de cos. Edição preparada por David Lapoujade. São Paulo: 34 Letras, 2016.
espera ou de exceção constituinte de sujeitos que praticam a liberdade FOUCAULT, M. (1975) Vigiar e punir. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1977.
contra os mecanismos normativos e produtores de identidade. Se tais FOUCAULT, M. (1976) História da sexualidade: A vontade de saber. São Paulo:
sujeitos se afirmam como diferentes, ou lutam pelo direito à diferença, Graal, 2006, v. 1.
talvez aqui o lado de fora possa ser esperado pela via de uma interioridade FOUCAULT, M. (1984) História da Sexualidade: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro:
de espera ou de exceção voltada à convicção de que há um devir do lado Graal, 1988, v. 2.
de fora, havendo, igualmente, uma possibilidade de fuga para fora dos FOUCAULT, M. (1984) História da sexualidade: O cuidado de si. Rio de Janeiro/
dispositivos atuais de dominação. São Paulo: Paz e Terra, 2014, v. 3.
Todavia, é necessário que esta memória seja produzida na contrapar- FOUCAULT, M. (1994) Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, v. III.
tida da memória construída nos arquivos; para que a luta pela diferença PRECIADO, p. (2000) Manifiesto contrassexual. Barcelona: Anagrama, 2000.
venha a consistir na constituição de uma nova maneira de viver, cuja ver-
dade torne possível uma subjetividade em variação e cuja interioridade de
espera consista em viver fora dos mecanismos de sujeição dos poderes e
saberes atuais.
Finalmente, para que a memória do fora ganhe uma consistência
ontológica, é preciso concebê-la como uma prática de invenção de modos
de vida que resistem ao anátomo poder das sociedades disciplinares e ao

40 41
3. Memória coletiva e mitos legitimadores – A América branca está tentando manter os muros da segregação substan-
cialmente intactos enquanto a evolução da sociedade e o desespero dos
a confrontação dos subalternos na busca negros estão fazendo com que eles desmoronem. A maioria branca, despre-
parada e relutante em aceitar mudanças estruturais radicais, está resistindo e
de novas formas de saber e viver produzindo caos enquanto reclama que se não houvesse caos uma mudança
ordenada chegaria. (KING JR., 2018, p. 215)
Michelle Bernardino
Ariany Villar Enquanto muitos entendem o conflito como algo negativo, King
Adriane Roso subverte esta lógica ao apontar a indiferença do grupo dominante como a
principal causa do motim, e não a revolta do grupo oprimido. No entanto,
permeia uma ideia de que o conflito entre grupos distintos seria negativo,
e, para isso, perguntamos, negativo para quem?
Neste capítulo, analisaremos a confrontação das formas de organiza-
ção social dominantes, sua força advinda da mobilização de novos saberes
por parte dos grupos subalternizados e sua consequência no tecido social
introdução comum. Argumentaremos que a lógica hegemônica, que busca evitar con-
A história do movimento pelos direitos civis (Civil Rights Movement) dos flitos entre grupos a fim de favorecer a harmonia na sociedade, acaba por
Estados Unidos conta com um capítulo que muito inspira as pessoas do preservar o conforto dos grupos dominantes às custas do silêncio dos gru-
mundo inteiro, embora pareça ter tido menor impacto no Brasil. A luta pos subalternizados. Além disso, queremos argumentar que, longe de ser
por maiores direitos civis para a população afrodescendente daquele país um problema em si, o conflito entre grupos pode ser compreendido sob
foi, de certo modo, bem-sucedido e provocou mudanças legislativas funda- outro prisma, isto é, como um sintoma de rigidez dos grupos envolvidos
mentais, porém a forma de organização não foi homogênea. no conflito diante de um choque de interesses opostos, principalmente em
Enquanto no sul do país os protestos haviam sido pacíficos e exitosos se tratando de modos de subjetivação alternativos aos discursos hegemôni-
em seus objetivos de maior igualdade, nos estados do norte, os protestos cos herdados na colonização e reverberantes no pós-colonialismo.
foram violentos e pouco eficazes. Em uma carta aos cientistas sociais de Do ponto de vista teórico-epistemológico, nesse capítulo nos desa-
sua época, Martin Luther King Jr. (1968), um dos mais importantes líderes fiamos a aproximar (e algumas vezes afastar) diferentes visões sobre
do movimento, explicou porque os protestos se desenvolveram de maneira poder, particularmente recorrendo a Michel Foucault e Jim Sidanius.1
diferente entre essas regiões. De acordo com ele, os protestos no norte, Desenvolvemos reflexões recorrendo às noções de micropoder (mais
incialmente pacíficos, eram absorvidos pelo alto movimento da cidade associadas ao primeiro autor) e macropoderes (próximas ao segundo
grande, e, por isso, não atingia a repercussão que buscavam. Em contraste, autor) com o intuito de lançar algumas luzes para compreendermos mais
cidades menores do sul sofriam um maior impacto com as passeatas em seu sobre as hierarquias sociais e sobre o lugar das táticas de confrontação na
cotidiano, o que mobilizou as autoridades públicas a resolver o problema nossa sociedade.
com maior celeridade. O sentimento de raiva do movimento do norte, pro-
duto da frustração da invisibilidade, os levou à revolta e ao escalamento da 1 Jim Sidanius é professor na Harvard University, Departmento de Psicologia Social. Em con-
junto com Felicia Pratto, é autor da Teoria da Dominância Social, cujo objeto de compreensão
violência, culminando em quebra de patrimônios e saqueio de lojas. são as relações de dominação, a ideologia e os conflitos intergrupais, entre outros objetos de
estudo. Diferentemente de Foucault, suas pesquisas são, principalmente, de cunho experi-
mental. Para saber mais sobre Sidanius, consulte Sidanius & Roso (2020).

42 43
Neste capítulo, nos focamos na rigidez do grupo dominante. O pro- Tais grupos dominantes ocupam posições socioeconômicas, culturais
pósito é mostrar como os jogos de poder e os regimes de verdade colocam e políticas privilegiadas que dispõem não só de vantagens materiais, mas
as condições para o sufocamento dos conflitos e os entendimentos sobre a também ocupam os lugares de produção dos regimes de verdade. Eles não
confrontação. Em relação a isso, defendemos que os mitos legitimadores, agem na solidão, pois “se apoiam uns nos outros, remetem uns aos outros,
perpetuados por meio da memória coletiva, contribuem para sustentar a em certos números de caso se fortalecem e convergem, noutros casos se
harmonia entre subalternos e dominadores. Finalmente, a tática do con- negam ou tendem a anular-se” (IBIDEM).
fronto aparece como força de produção de novos saberes e resistência. Assim, se vivenciam as relações de poder como jogos de força entre
diferentes práticas discursivas, expressas nas relações sociais e vincula-
1. sobre jogos de poder: das necessariamente à produção de saberes (FOUCAULT, 2006, 2008).2
as relações hierárquicas entre dominados e subalternos Todavia, é fundamental salientar que, embora os operadores de domina-
ção busquem dominar e submeter os grupos subalternos aos seus desejos
Certos grupos de pessoas ainda sofrem com discriminação, exclu- e ética por meio de certas habilidades e recursos, nos jogos de poder coti-
são social e condições de vida limitantes, tais como quilombolas, povos dianos os subalternos não são passivos, anômicos. Como Michel Foucault
originários, ciganos, moradores das favelas, gays. Esses grupos são os (1999) insiste, ao defender a assertiva dos micropoderes, todos têm poder,
que denominamos subalternos (MARTINS, 1989) ou grupos colonizados pois este circula e é produtivo. Ou seja, as pessoas resistem àquelas obras
(KILOMBA, 2019; VERGÈS, 2020), que, apesar de estar abaixo na hierarquia e ações que visam a morte da população subalterna, dissidente (mulheres,
social, são múltiplos, diferindo tanto em quanto na sua participação no negros, latinos, imigrantes, refugiados etc.).
capitalismo, quanto em seus “conflitos de interesses e conflitos políticos Sob esse viés, é preciso dizer que os macropoderes (ou superpode-
entre si” (MARTINS, 1989, p. 98). res), constituídos especialmente pelos grandes conglomerados industriais
Nesse sentido, as noções de interseccionalidade (CRENSHAW, 1991) e megagrupos midiáticos, são utilizados “para dominar e trazer as capaci-
e de matriz de opressão (HILL COLLINS, 2013) nos ajudam a pensar sobre dades (poderes) de outros a nosso serviço, ele se transforma em domina-
o engendramento das inequidades de maneira mais integral. As pessoas e ção e usurpação, num poder-dominação” (ROSO; GUARESCHI, 2007, p.
grupos, classificados a partir de diferentes categorias sociais (como classe 38). Independente de distanciarmos nossas análises dos grandes aparelhos
social, raça, gênero, sexualidade, idade, entre outros), são posicionados em de poder (algo que Foucault preferiu) ou de nos atentarmos a eles, o fato
um lugar social que enquadram suas possibilidades da constituição de sub- é que estes regimes circulantes na sociedade justificam a forma como nos
jetividades e de viver per se. Como os regimes de verdade atribuem valores organizamos e estruturamos as instituições sociais. Eles determinam quais
às categorias sociais, certas categorias são tidas como negativas e indese- discursos sobre a(s) história(s) são verdadeiros e quais não o são, quais
jáveis, enquanto outras são bem valorizadas em determinada sociedade, podem ser contados ou silenciados, produzindo certos modos de subjeti-
formando redes complexas de opressão para os grupos que acumulam vação3 em contextos específicos, e estabelecem os limites para as subjetivi-
valorações negativas (IBIDEM). dades e identidades pessoais e sociais, em uma classificação e categorização
A exploração, dominação e exclusão econômica e política que sofrem, que mantém, assim, certa ordem hierárquica das relações sociais.
segundo Martins (IBIDEM), são parte de um processo dinâmico, pois se
atualizam, alcançando novos grupos conforme o contexto sócio-histórico.
2 Práticas discursivas referem-se a um conjunto de práticas, dispositivos e tecnologias de produ-
A dinamicidade desse processo se deve às relações de poder entre os gru- ção de verdades e de subjetividades a partir das quais o poder é exercido (FOUCAULT, 1999).
pos subalternos e os grupos dominantes, ou “operadores de dominação”, 3 Condições de possibilidade, materiais e discursivas, que delimitam o que se pode ser em deter-
para utilizar uma expressão de Foucault (1999, p. 51). minado contexto de relação entre saber-poder, são performativas de subjetividades e determi-
nam se o que essas subjetividades têm a dizer é verdadeiro ou falso (FOUCAULT, 2006).

44 45
Além das condições de vida precarizadas, aos grupos subalterniza- (BULHAN, 2015; SIDANIUS; PRATTO, 1999). Sob este aspecto, entramos
dos não lhes são conferidos lugares de produção de saberes e da histó- numa abordagem metodológica de análise que necessita precisão. Já não
ria oficial. São os que, nos Estados ocidentais modernos, têm recebido o se trata de olhar para o poder que circula, como fez Foucault, mas, sim,
racismo de Estado: grupos com certas características físicas ou materiais para as relações de dominação, para os macropoderes, empreendidas por
– ou pertencentes a certas cruzes de categorias não-desejadas – que são grupos que parecem se unir a fim de controlar, subjugar o subalterno.
tratados como inimigos do Estado, e cuja imagem de decadência e perigo Parte-se do pressuposto de que, para atingir tal finalidade, o uso
é construída pelo próprio Estado para justificar sua existência na missão da força – ou a ameaça do uso desta – é arriscado pois prejudica a per-
de proteger a população cidadã de fato dessas ameaças que se localizam no cepção da legitimidade dos privilégios dos grupos dominantes, podendo
interior da sociedade (FOUCAULT, 2008). Dessa forma, as instituições que criar ressentimento, e aumentar a resistência entre os grupos subalternos
constituem uma sociedade, aliadas a alguns grupos da população, traba- (SIDANIUS; PRATTO, 1999). Além disso, debilita os grupos subordinados
lham para defender a sociedade desses grupos dissidentes, subalternizados psicológica e economicamente (IBIDEM), atrapalhando a sua performance
(FOUCAULT, 2008), o que justificaria qualquer ação violenta para contro- nas forças produtivas e reprodutivas. Ainda assim, quanto mais o grupo
lá-los, que seus direitos não sejam respeitados, que seu trabalho seja explo- subalternizado deslegitima a posição do grupo dominante, mais o grupo
rado, e que, incluso, possam ser exterminados para proteger a população dominante terá que incrementar o uso da força – o que diminui sua legiti-
“de bem” (AGAMBEN, 2002). midade ao poder (IBIDEM).
Apesar de parecer claro, estas desigualdades passam despercebidas A manipulação psicológica, no entanto, é mais sutil e mais eficaz por-
por grande parte da sociedade, proporcionando certa estabilidade para que convence tanto os subordinados quanto os dominantes da legitimi-
o funcionamento do sistema. A chave para esta estabilidade, segundo dade da hierarquia vigente. Para alcançar este objetivo, se usa o poder para
Sidanius e Pratto (1999), seria a cooperação das classes subalternas com o produzir ideologias e discursos que convençam tanto o grupo dominante
sistema que as oprime, ainda que de maneira inconsciente, para a criação quanto os subordinados da suposta justiça da hierarquia social (IBIDEM).
de consensos ideológicos. A esse respeito, Foucault (2008) afirma que o Os mitos legitimadores seriam “valores, atitudes, crenças, atribuições
êxito na efetividade dos regimes de verdade se deve nas sociedades ociden- causais e ideologias que proveem justificativa moral e intelectual para práti-
tais modernas, à forma de controlar as vidas, passa de repressiva à produ- cas sociais que podem tanto aumentar quanto diminuir níveis de desigual-
tiva, pela via da disseminação dos regimes de verdade de maneira capila- dade social entre os grupos sociais” (SIDANIUS; PRATTO, 1999, p. 104).
rizada em todos os níveis da vida social. Os assujeitados encarnam esses Portanto, existiriam mitos legitimadores que servem tanto para reforçar
regimes, cujos ingredientes são aplicados no cotidiano de cada um para a hierarquia quanto para debilitá-la (IBIDEM), elementos essenciais dos
dar sentido à própria existência. regimes de verdade que estruturam as sociedades.
Mas como se convence um grupo subalterno a acreditar que as coisas Outro meio para a dominação se perpetuar, seguindo a sugestão de
são do jeito que são, que devemos seguir a ordem estabelecida e reconhecer Bulhan (2015), é pela manipulação da memória e da história de um deter-
uma verdade universal sobre o mundo? minado povo, distorcendo as percepções da realidade histórica e material
por meio da reinterpretação de fatos e pela lembrança seletiva de eventos
2. os mitos legitimadores e a memória coletiva passados (IBIDEM); a memória coletiva “é o trabalho que um determinado
como chaves para sustentar a harmonia grupo social realiza, articulando e localizando lembranças em quadros
sociais comuns” (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993, p. 291). O sucesso parece
Para manter sua posição hegemônica, os grupos dominantes podem garantido; o apagamento das injustiças e opressões flui naturalmente, haja
fazer uso da força, usar de manipulação psicológica ou controle do discurso vista que a “memória coletiva apresenta-se como a solução do passado, no

46 47
atual; apresenta-se como recomposição quase mágica ou terapêutica, como O problema se consolida em uma experiência subjetiva e objetiva
algo que cura as feridas do passado” (IBIDEM, p. 293). que favorece os privilegiados e desvalida os subordinados (BULHAN,
Com estas formas de controle, se legitimam inequidades e se aba- 2015; FANON, 2008; MEMMI, 2007), uma cosmovisão apoiada em varia-
fam dissensos, criando uma narrativa “verdadeira” sobre a organização da dos mitos que produzem realidades e memórias subalternizantes. Um dos
sociedade. Essas verdades produziriam outras realidades: condições mate- mitos que constitui um consenso no Brasil conta que, antes da invasão
riais específicas, práticas discursivas e as maneiras como as pessoas podem europeia, o Brasil era constituído por poucos povos, sendo, basicamente,
ou não viver, como devem lidar com seus corpos, entre muitos outros efei- uma “terra vazia” (RAMOS, 1995). Muitos anos após a chegada dos colo-
tos (FOUCAULT, 2012). nizadores, outro mito entra em cena, o mito da democracia racial, o qual
Para que os mitos tenham eficácia, é fundamental que sejam compar- propicia o obscurecimento e subserviência à hierarquização e o cegamento
tilhados e pactuados pelos grupos que compõem uma determinada socie- do genocídio dos povos afro-latinos-americanos. Até mesmo o mito do
dade. O que é chamado de “consensualidade”, “ajuda a coordenar compor- amor materno mantém a mulher alienada em uma posição subordinada
tamentos, torna as práticas sociais significativas, dá segurança psicológica (BADINTER, 1985). Este “mito da terra vazia”, portanto, possibilita que o
às pessoas e fornece padrões para julgar o comportamento das pessoas ou povo branco tenha uma legitimidade à sua posição na hierarquia social
possíveis mudanças na sociedade” (SIDANIUS; PRATTO, 1999, p. 106). É brasileira até o dia de hoje, afinal, “descobriu” o Brasil, que estava vazio,
importante salientar que um mito não é necessariamente adotado por sua os negros têm as mesmas oportunidades que os brancos para triunfar, e as
verdade objetiva, mas porque contém “valores e pontos de vista básicos de mulheres querem ficar em casa e depender do marido por sua natureza.
sua cultura” (SIDANIUS; PRATTO, 1999, p. 104). Mais do que isso, os mitos Nessa linha de raciocínio, a criação e manutenção de mitos legitima-
se sustentam pela afetividade, produzindo e reforçando laços culturais à dores consensuados4 operam de modo a prevalecer as formas de organiza-
despeita das diferenças sociais e identitárias. ção social vigentes mais ou menos estáveis – uma história universal branca
Dessa forma, as pessoas passam a apoiar as hierarquias. A ideologia patriarcal heterossexual, reforçando o “complexo de superioridade” do
pós-colonização continua desenvolvendo uma narrativa que manipula a branco, e o “complexo de inferioridade” do negro (DOMINGUES, 2005, p. 13).
sociedade de forma enviesada, pois a história é contada pelos olhos dos Assim, podemos afirmar que a busca pela legitimidade da ordem social
colonizadores, favorecendo-os e apresentando-os como benevolentes e por meio de diferentes mitos, que se associam e se reforçam, aparece como
valentes (BULHAN, 2015). Essa distorção da história afeta a memória, um chave tanto para a manutenção do consenso quanto para a gestão da ordem.
processo denominado “metacolonização”, a atual etapa da colonização Afinal, se a posição de privilégio atual do branco é feita na base do saqueio
segundo Bulhan (2015), cujo objetivo não é mais uma expansão de terras, (expropriação do trabalho) e assassinato, será legítima sua posição vantajosa?
mas uma ocupação da subjetividade dos cidadãos de uma determinada Se não, será cabível que os outros povos permaneçam pacificamente em uma
nação (BULHAN, 2015). Fanon (2008) discute sobre como esses discursos posição subalterna? Podemos especular que desmanchar os mitos legitima-
dores, colocando às claras seu papel ideológico nas estruturas hierárquicas,
ideológicos, sustentados também pela ciência, desumanizam os corpos
poderia ser um caminho para a transformação das relações de dominação.
colonizados e são introjetados e replicados por colonizadores e coloni-
Entretanto, como disse Martin Luther King Jr., provocar mudanças é
zados, justificando a subalternização desses últimos. Neste sentido, esta
desafiador porque estamos “psicologicamente e socialmente presos” (2018,
introjeção da racionalidade colonial de Fanon (2008) coincide com a noção
p. 214). Assim sendo, a libertação de pessoas e grupos subalternos só seria
foucaultiana de que os sujeitos são um efeito dos regimes discursivos cons-
possível a partir de sua desalienação mental em relação à racionalidade
tituídos: são o que se é possível ser sob certas condições de possibilidade
prático-discursivas de determinado contexto social (FOUCAULT, 2006).
4 Sobre outros mitos legitimadores no contexto brasileiro, consulte ROSO (2021).

48 49
colonial, que criou o branco e o negro como categorias naturalizadas e que Entretanto, os grupos subalternizados trazem consigo memórias e
fundou a razão – branca – como a verdadeira forma de conceber a reali- saberes alternativos (MARTINS, 1989). Pessoas de ancoragem ancestral e
dade (FANON, 2008). afrodiaspórica no Brasil, por exemplo, possuem uma “construção de um
Contudo, outras formas de subjetivação e de construção de memórias sentido de mundo afrodiaspórico, produzido com a tomada de consciência
resistem e escapam aos discursos hegemônicos e suas tecnologias de poder. coletiva amalgamada com base em uma história comum” (OLIVEIRA et al.,
Na própria situação de subalternidade, por estar às margens dos regimes 2020, p. 6), que é forjada por experiências de vidas comuns dado o lugar no
de verdade, é possível o aparecimento de outras formas de viver, discur- qual são colocadas dentro da estrutura brasileira.
sos alternativos e insurgentes. Isso porque, mesmo quando o subordi- O ponto de vista alternativo do grupo subordinado é evidenciado na
nado busca repetir os discursos dominantes – como no exemplo de Fanon carta de King Jr. (1968), na qual ele menciona que, durante o Movimento
(2008) sobre a tentativa dos colonizados de serem como os colonizadores dos Direitos Civis, os afro-americanos estavam “experimentando uma
–, a sua condição de alteridade não permite que essa mimesis seja perfeita, transformação interna que os está libertando da dependência ideológica da
gerando rupturas e brechas no modo de funcionamento da sociedade que maioria branca” porque eles estavam se conscientizando “de que a filosofia
poderiam dar espaço a novos saberes e memórias (BHABHA, 2002). O que e a moral dos brancos dominantes na sociedade não são santas ou sagra-
aconteceria, então, se esses grupos confrontassem os regimes de verdade das” (p. 220). A experiência do que se pode chamar de “liberdade epistê-
que os posicionam como subalternos? Seria um conflito inevitável? mica” pode ser percebida também em algumas das narrativas feministas e
no sentimento de liberdade que as mulheres vivenciam ao se “tornar” femi-
3. o confronto como força de produção de nistas, especialmente nas sociedades pós-coloniais cujas as normas mascu-
novos saberes e resistência linistas das sociedades patriarcais são naturalizadas (cf., HARDING, 1986).
A dificuldade de compreender (e de desejar conhecer) o que membros
Nos olhos dos grupos dominantes – e aqui se incluem todas as ver- das classes subalternas têm a dizer vem muito mais da incompreensão de
tentes ideológicas, até mesmo de esquerda e algumas perspectivas femi- que pessoas marginalizadas são capazes de sistematizar e organizar pensa-
nistas, que supostamente buscam a igualdade e a libertação dos povos –, mentos sobre a sociedade assim como contribuir para avaliações coerentes
aquilo que é reconhecido como o vocabulário adequado e o conhecimento da vida social que de uma dificuldade concreta linguística (MARTINS, 1989;
teórico e político para o exercício do poder sobre as causas sociais parece VALLA, 1996). Além disso, existe o desconhecimento sobre quem são essas
ser pertencente somente a certas classes intelectuais (MARTINS, 1989), que pessoas subalternizadas, de como vivem e quais são suas raízes culturais
na ordem do discurso ocupariam os lugares de emissores ou protetores (VALLA, 1996). Enquanto os subalternizados conhecem a mentalidade e as
da verdade – seja ela científica, política, moral ou religiosa (FOUCAULT, regras da cultura dominante, navegando entre essas experiências contradi-
2009). Nesse raciocínio, além da marginalização social pela sua condição tórias de não ser pertencente, mas de estar presente, de narrar a própria his-
de existência dissidente, as pessoas subalternizadas não poderiam enunciar tória usando a língua do colonizador (BHABHA, 2002), de vestir máscaras
sobre sua própria experiência de subalternidade, pois sofreriam de uma brancas para poder subsistir (FANON, 2008), visões de mundo alternativas
“insuficiência cultural” que as impediria de exercer sua capacidade como à hegemônica não são conhecidas. Histórias de negros contadas por bran-
sujeitos políticos (MARTINS, 1989). Esta compreensão – produto da rela- cos, ou de mulheres contadas por homens podem, muitas vezes, reforçar
ção entre poder-saber – traz consigo a ideia colonial de que é necessário estereótipos e prevenir o aparecimento de novas versões da história.
que um sujeito apreenda os modos da cultura tradicional e seus referen- A própria epistemologia europeia, base do conhecimento da cultura
ciais sociais – geralmente, europeu e brancos (FANON, 2008) e masculino hegemônica, invalida todo o conhecimento que não se encaixa em seus pre-
(HARDING, 1986) – para tornar-se capaz de agência e do saber. ceitos ao afirmar que se trata de senso comum (SANTOS, 1988). Se esses

50 51
“saberes verdadeiros” são os alicerces da própria organização social pós-co- que, mesmo diante de discriminação flagrante, geralmente evitam o con-
lonial, é difícil alcançar, e até mesmo validar, o saber do outro (VALLA, 1996). fronto após ser vítimas de sexismo (KAISER; MILLER, 2004; SWIM; HYERS,
1999; WOODZICKA; LAFRANCE, 2001). Confrontar os regimes de verdade
O conhecimento de que são portadoras as classes subalternas é mais do que vigentes envolve altos custos ao subalterno, além de todas as condições
ideologia, é mais do que interpretação necessariamente deformada e incom- de possibilidade limitantes que já vive. Ao confrontar comportamentos
pleta da realidade do subalterno. É nesse sentido, também, que a cultura
discriminatórios nas relações interpessoais, por exemplo, pessoas de gru-
popular deve ser pensada como cultura, como conhecimento acumulado,
sistematizado, interpretativo e explicativo, e não como cultura barbarizada, pos subalternos são percebidas como exageradas e queixosas (GULKER;
forma decaída da cultura hegemônica, mera e pobre expressão do particular. MARK; MONTEITH, 2013). E quando se tratam de confrontos coletivos
(MARTINS, 1989, p. 111) em favor de mudanças estruturais radicais, podem ser entendidos como
uma ameaça à sociedade, reafirmando a figura de violento e perigoso de
Dessa forma, uma compreensão implícita da realidade como algo alguns grupos – como os afrodescendentes em sociedades pós-coloniais
universal categoriza as formas de pensar alternativas como patológicas (ALMEIDA, 2019) –, o que justificaria ações de extermínio por parte do
(ADAMS et al., 2015; SANTOS, 2007), e as diferenças epistêmicas, ou essa Estado (AGAMBEN, 2002).
“lacuna entre diferentes visões de mundo” (DOTSON, 2011, p. 248), são Portanto, mais que apontar a suposta falta de ação dos grupos subal-
interpretadas apenas como “diferentes entendimentos sobre o mundo, ternos, que na verdade já lutam cotidianamente por dignidade, é neces-
diferentes conhecimentos da realidade” (BERGIN, 2010, p. 198). sário questionar as condições de possibilidade para a confrontação dos
Ainda assim, resistências sutis e pequenos levantes servem para regimes de verdade e para as transformações que poderiam advir dela. Na
desestabilizar a legitimidade política de diferentes sistemas de opressão dimensão interpessoal, por exemplo, não basta perguntar como membros
(VALLA, 1996). Quando os grupos localizados na base das hierarquias do grupo privilegiado reagem ao ser contrariados, especialmente por pes-
começam a questionar a legitimidade dessa forma de organização e a cla- soas que não estão em seu mesmo nível hierárquico. A morte de George
mar por mudanças, aqueles outros grupos na posição superior podem não Floyd é emblemática nesse sentido. E como “[n]ão se apagam as marcas
concordar, levando a conflitos de interesses e rupturas da trama social. de privilégio e de opressão pela mera disposição solidária, pois requer que
É interessante pensar que todo esse processo é evitado ao máximo em estas sejam evidenciadas” (GONÇALVES et al., 2019, p. 161), é preciso abrir
nome da manutenção da ordem social, já que as instituições sociais con- territórios para a desalienação e sensibilização à alteridade. Se o outro não
seguem produzir coesão à medida em que absorvem os conflitos sociais consegue respirar, também não serei capaz de respirar a certa altura, pois
(ALMEIDA, 2019). Várias são as formas de tentar manter a harmonia a des- o sofrimento coletivo de um grupo subalterno também irá provocar, em
peito da opressão dos grupos subalternizados. No entanto, isso parece ser dado momento, a ação, a resistência, a confrontação.
confortável apenas para um lado da história, precisamente o lado que é con- O conflito aparece, então, no momento que esta confrontação de
vocado a rever seus próprios padrões e desconstruir muitos mitos que são verdades alternativas abala o consenso de verdades e encontra resistência
difíceis de desconstruir. Silenciar a discussão sobre desigualdade pode ser da ideologia hegemônica – tanto entre os grupos dominantes quanto os
uma boa maneira de promover a paz entre os grupos, mas pode não ser uma grupos subalternizados.5 Se pensamos em confrontações epistemológicas,
forma eficiente na promoção de mudanças na direção de relações equitati- o caráter etnocêntrico de grupos privilegiados provavelmente os levará a
vas entre os grupos. Parece que o custo da paz é a manutenção das injustiças. negar pontos de vista alternativos, não considerando como legítimos os
Entretanto, não discutir disparidades de poder para defender a har- saberes dos grupos subordinados que vão além do já estabelecido, nem
monia em sociedade não é uma forma de funcionar exclusiva dos grupos
5 Um caso cinematográfico que ilustra adequadamente esse processo de identificação com
dominantes ou das instituições. Como exemplo temos o caso de mulheres o opressor é o filme “Eles não usam Blacktie” (1981), cujo personagem Tião (interpretado

52 53
sequer reconhecendo-os em sua diferença (SANTOS, 2007). Além disso, produzem conflito e violência, mas situam os subalternizados na inuma-
em se tratando de uma hierarquia velada, também pode haver sentimentos nidade. Assim, a valorização da harmonia na memória coletiva, em detri-
de hostilidade no nível subjetivo provenientes da ameaça à ordem social mento do incentivo às histórias alternativas e da luta do povo oprimido,
hierárquica pela deslegitimação de regimes de verdade e mitos que sus- preserva as estruturas sociais do modo como estão há séculos.
tentam as desigualdades, que são incorporados pelos sujeitos como seus Vivemos em uma sociedade hierárquica e injusta, na qual a memória
próprios discursos (FOUCAULT, 2006). coletiva é chave na sustentação de consensos sobre mitos a fim de legiti-
Apesar dos custos – subjetivos, interpessoais e sociais – que podem mar a hierarquia dominadores-subalternizados. Por outro lado, não há
emergir do confronto, vários grupos na história têm lutado em vias de anomia por parte dos grupos subalternizados, pois estes confrontam, ao
transformar a sociedade, desafiando mitos que as estruturam e conferindo seu modo e passo, os grupos dominantes. Afloram memórias coletivas
outras formas de enunciação e de produção de memória. São histórias de que resistiram ao “ferro e fogo”, mas não foram esquecidas. Nessa via,
personagens conhecidos que alcançaram grandes mudanças enfrentando apontamos que os conflitos apresentam uma positividade (raramente)
reações violentas por parte dos seus contextos sociais (por exemplo, Nise realçada nas análises sociais.
da Silveira, Rosa Parks e Nelson Mandela) e que encarnam em suas trajetó- Frente ao desafio que é romper consensos, haveria que sustentar o
rias a memória de uma longa luta que só foi exitosa através da pressão cole- desconforto dos questionamentos de memórias alternativas, as quais
tiva. O confronto é esse enfrentamento, geralmente não institucionalizado, podem vir da própria vida daqueles subalternizados. O confronto, como
dos modos de subjetivação subalternos frente ao seu próprio processo de queremos argumentar, pode ser incômodo porque pode desafiar mitos,
subalternização, expressados nas relações de poder interpessoais, grupais romper a consensualidade e, portanto, abalar a percepção compartilhada
e estruturantes da vida social, um enfrentamento que produz atritos e rup- de realidade entre os grupos, mas não necessariamente leva ao conflito.
turas no tecido social. O conflito é um produto desse atrito, mais caracteri- Entretanto, na ausência disto, por medo de romper a consensualidade,
zado pela reação dos grupos dominantes na tentativa de proteger a ordem também estamos beneficiando grupos que estão no poder e reforçando o
social, que pela manifestação do confronto em si mesmo. status quo, afinal, a igualdade ainda não foi conquistada.
A confrontação é esse jogo de forças antagônico, de conflitos de inte-
algumas considerações finais resse. Um embate entre os discursos e regimes de verdade que organizam e
estruturam uma sociedade e as práticas discursivas alternativas dos grupos
Nesse capítulo, buscamos refletir sobre as relações entre dominados e subalternizados frente a esses mesmos discursos que os subalternizam pos-
subalternizados com o intuito de pôr em evidência a resistência do grupo tos em prática. São disputas entre formas hegemônicas e contra-hegemôni-
dominante como a causa principal do motim, e não a revolta do grupo cas de contar e fazer a história. É uma ameaça aos sistemas de saber-poder
oprimido, dialogando com a frase introdutória de Martin Luther King Jr. e regimes de verdade existentes, pelo que é evitada ao máximo nas relações
Os regimes de verdade e práticas discursivas dos dominantes não apenas interpessoais e entre diferentes grupos. Por outra parte, a confrontação
tem se mostrado uma estratégia importante de mudanças sociais e para a
por Carlos Alberto Riccelli), filho do sindicalista Otávio (interpretado por Gianfrancesco
Guarnieri), que luta pelo coletivo, em prol da classe trabalhadora, assume uma posição oposta produção de outras memórias para os grupos subalternizados, para além
à do pai. Em Tião – o “fura greve” –, prevalece o individualismo e a perpetuação da submissão daquelas que lhes foram impostas pela herança da colonização.
ao modelo patrão-empregador capitalista opressor. Seu desejo de ascender economicamente
catapulta-o para longe de seus convivas, acirrando conflitos intrafamiliares. Ao final, vence os
dominadores, por meio da repressão policial, quando um dos operários negros é assassinado
e a greve coibida. A raça do morto aqui é digna de saliência, pois remete à prática da punição
violenta dos negros escravizados. Mudam os tempos, mas não se mudam as verdades instituí-
das – negro que confronta é negro morto.

54 55
referências bibliográficas HARDING, S. The Science Question in Feminism. Ithaca and London: Cornell Uni-
versity Press, 1986.
ADAMS, G. et al. Decolonizing Psychological Science: Introduction to the Special
HILL COLLINS, p. On intellectual activism. Philadelphia. PA: Temple University
Thematic Section. Journal of Social and Political Psychology, v. 3, n. 1, p. 213-238, 21 Press, 2013.
ago. 2015.
ELES não usam black-tie. Direção de Leon Hirszman. Embrafilme. 1981.
AGAMBEN, G. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. In: Vida besta, Vida
KAISER, C. R.; MILLER, C. T. A stress and coping perspective on confronting
nua, Uma vida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 25-34.
sexism. Psychology of Women Quarterly, p. 168–178, jun. 2004.
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
KILOMBA, G. Memórias da plantação. Episódios de racismo cotidiano. Rio de
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro:
Janeiro: Cobogó, 2019.
Nova Fronteira, 1985.
KING JR., M. L. The role of the behavioral scientist in the civil rights movement.
BERGIN, L. A. Testimony, epistemic difference, and privilege: How feminist epis-
Journal of Social Issues, v. 74, n. 2, p. 214–223, 2018.
temology can improve our understanding of the communication of knowledge.
MARTINS, J. Caminhada no chão da noite. São Paulo, SP: HUCITEC, 1989.
Social Epistemology, v. 16, n. 3, p. 197–213, nov. 2010.
MEMMI, A. Retrato do colonizado: precedido do retrato do colonizador. 1. ed. São
BHABHA, H. K. El lugar de la cultura. Buenos Aires: Manantial, 2002.
Paulo: Civilização Brasileira, 2007.
BULHAN, H. A. Stages of Colonialism in Africa: From Occupation of Land to
OLIVEIRA, R. G. de et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: consi-
Occupation of Being. Journal of Social and Political Psychology, v. 3, n. 1, p. 239-256,
21 ago. 2015. derações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública, v.
36, n. 9, e00150120, 2020. DOI 10.1590/0102-311X00150120. Disponível em: http://
CRENSHAW, K. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Vio-
cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/1177/desigualdades-raciais-e-a-morte-como-
lence against Women of Color. Stanford Law Review, v. 43, n. 6, p. 1241, jul. 1991. -horizonte-consideracoes-sobre-a-covid-19-e-o-racismo-estrutural. Acesso em: 8
DOMINGUES, p. O mito da democracia racial e a mestiçagem no Brasil (1889- set. 2021.
1930). Diálogos latinoamericanos, v. 10, p. 116-131, 2005. RAMOS, A. R. O papel político das epidemias: O caso Yanomami. In: Ya no Hay
DOTSON, K. Tracking Epistemic Violence, Tracking Practices of Silencing. Hypa- Lugar para Cazadores: Proceso de Extinción y Transfiguración Cultural en América
tia, v. 26, n. 2, p. 236–257, mar. 2011. Latina. Quito: Biblioteca Abya-Yala, 1995. p. 55–89.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. ROSO, A. The Gendered Medicalized Body, Social Representations, and Symbolic
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Violence: Experiences of Brazilian Women with Artificial Contraceptive Methods.
FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense In: The Anthropocene: Politik Economics Society Science. 1. ed. Switzerland: Sprin-
Universitária, 2006. ger International Publishing, 2021. p. 227–252.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France ROSO, A.; GUARESCHI, p. Megagrupos midiáticos e poder: construção de subjeti-
(1977-1978). Tradução: Michel Senellart. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2008. vidades narcisistas. Revista de Ciências Sociais, n. 26, p. 37–54, abr. 2007.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronun- SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência
ciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São pós-moderna. Estudos Avançados, v. 2, n. 2, p. 46–71, ago. 1988.
Paulo: Loyola, 2009. SANTOS, B. de S. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo: Graal, ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3–46, out. 2007.
2012. v. 1. SCHMIDT, M. L. S.; MAHFOUD, M. Halbwachs: colective memory and expe-
GONÇALVES, L. A. p. et al. Saúde coletiva, colonialidade e subalternidades – uma rience. Psicologia USP, v. 4, n. 1–2, p. 285–298, 1993.
(não) agenda? Saúde em Debate, v. 43, p. 160–174, dez. 2019. SIDANIUS, J.; PRATTO, F. Social dominance: an intergroup theory of social hierarchy
GULKER, J. E.; MARK, A. Y.; MONTEITH, M. J. Confronting prejudice: The who, and oppression. Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 1999.
what, and why of confrontation effectiveness. Social Influence, v. 8, n. 4, p. 280–293, SIDANIUS, J.; ROSO, A. Social dominance theory: introducing professor Jim Sidanius
1 out. 2013. to the brazilian social psychology community. Psicologia & Sociedade, v. 32, 2020.

56 57
SWIM, J.; HYERS, L. Excuse Me – What Did You Just Say?!: Women’s Public and
Private Responses to Sexist Remarks. Journal of Experimental Social Psychology, v.
4. Artes da projeção como resistência da
35, p. 68–88, 1 jan. 1999. memória cinematográfica: ecologia das mídias,
VALLA, V. V. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das
classes subalternas. Educação e Realidade, v. 21, n. 2, p. 177–190, dez. 1996.
espectatorialidades e videomapping
VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020. Wilson Oliveira Filho
WOODZICKA, J.; LAFRANCE, M. Real Versus Imagined Gender Harassment.
Journal of Social Issues, v. 57, n. 1, p. 15–30, 2001.
Para Gene Youngblood e Leila Beatriz Ribeiro (in memoriam)

“Como um cientista do design, o artista descobre e aperfeiçoa a linguagem


que corresponde mais diretamente à experiência (...). O artista não aponta
novos fatos tanto quanto ele cria uma nova linguagem (...) portanto ele
expande nosso controle sobre os ambientes interiores e exteriores”.
Gene Youngblood

“O envoltório do cinema abre-se novamente e seus contornos se desfazem,


levando ao ressurgimento, para além da teatralização do espetáculo
cinematográfico, da estética do passeio que se expande”.
Philippe-Alain Michaud

“As gerações futuras descobrirão o cinema com a sua perda”.


Serge Daney

As relações entre cinema e memória são amplamente exploradas nas dis-


cussões sobre o futuro da arte cinematográfica e desta como mídia e como
linguagem que extrapola as relações espaciais. O cinema se expande na
forma (design) e para além do seu conteúdo (a teatralização do espetá-
culo cinematográfico). Se expande e se perde para que uma nova geração
descubra não só o que é o cinema, mas o que ele pode vir a ser. Se ao
mesmo tempo vivemos uma crise em nosso cinema acentuada com o atual
governo, que esquece as instituições de preservação audiovisual – em par-
ticular a Cinemateca Brasileira largada à própria sorte –, e que parece perto
de transformar em departamento de censura e perseguição ao nosso pró-
prio cinema a Agência Nacional de Cinema (ANCINE), observamos nos
grupos que defendem as salas de cinema, como o Movimento CineRua!,
CineRua PE, entre tantos outros, uma forma de resistir através das lem-
branças das salas de cinema.

58 59
Uma outra forma de resistência se dá também nas projeções pela ideais para o espetáculo cinematográfico. A arte da projeção se torna então,
cidade, nos muros e fachadas, nas ruas tornando-se telas. Resistências que como queremos crer, resistência do imaginário do cinema e da realidade
não podem passar despercebidas literalmente. Se os outdoors invadiram cada vez mais fílmica de nossos tempos e lembranças.
a paisagem urbana na modernidade, hoje uma mediascape se desenha na Esse artigo reflete possibilidades diversas de projeções como forma
urbe e em sua tela global. Dos letreiros-tela da Times Square às projeções de se pensar a resistência do cinema em nome de uma memória do
que saem de nossas casas para a fachada do prédio vizinho ou das calçadas audiovisual. Memória-material, memória-corpo. Memória-mídia. Talvez
para monumentos e telas adaptadas no espaço urbano, uma outra expe- o principal projeto que sintetiza nossa ideia por essas linhas, pois mescla
riência cinematográfica emerge. Experiência visual como possibilidade de várias das questões anteriores, seja o work in progress “Cine Fantasma”,
resistência. Quando pensadas como linguagem, como potências da nova idealizado pela artista e pesquisadora Paola Barreto. Uma pajelança
configuração midiática em rede e, como sugeriu Deleuze (1992), como segundo Paola e, ao mesmo tempo, uma assombração que usa a projeção
um cinema que nos restitui a crença na vida, as projeções apontam para nas fachadas do que outrora eram salas de cinemas. O cinema em toda
uma sobrevida do cinema em tempos de mudanças significativas na forma sua mistura de espaço, linguagem e sociabilidade transformado em
como fruímos as imagens em movimento. performance audiovisual em tempo real e em diálogo com a memória
Pensar um outro espectador que se divide entre o streaming, os “fil- do espaço (um lugar digital de memória de uma arte analógica), mas
metes” no celular que chegam como gifs animados, stickers, vídeos da rede também com o registro visual/audiovisual que revive em nós lembranças
e a resistência imbricada com a memória de espaços de exibição como os do cinema. Um ‘verbivocovisual’, para retomarmos a expressão de James
cinemas de rua (BESSA, 2013), não é tarefa das mais fáceis. Mas é na expe- Joyce, transposto para arte cinematográfica. Não a adaptação de um filme,
riência de um espectador diferenciado, para estendermos o entendimento mas a adaptação do cinema a novos tempos em seus poderes sinestésicos,
de Murray Smith (2005) sobre a ficção como forma institucionalizada, que micropolíticos e criadores.
passamos a compreender que o cinema se encontra vivo, potente e vibrante. “Cine Fantasma” é um dos diversos trabalhos de live cinema que
Cinema ao vivo. O espectador e seu “leque da oferta de ‘eventos cinema- ilustram a tese de doutorado apresentada por mim no Programa de Pós-
tográficos’ estão longe de ter atingido toda sua extensão” (GAUDREAULT; Graduação em Memória Social (PPGMS/UNIRIO) em 2014. Por definição,
MARION, 2016, p. 149), encontram-se diante de novas possibilidades que a o cinema ao vivo constitui uma prática audiovisual em que filmes/vídeos/
própria mídia cinema traz. experimentos audiovisuais são realizados, editados, manipulados em
Como observou McLuhan (2002), sua conhecida máxima “o meio é tempo real como uma performance. Um certo “caleidoscópio dotado de
a mensagem” possui um complemento: “o usuário é o conteúdo”. O espec- consciência” (apud CRARY, 2012, p. 114), como observou Baudelaire sobre
tador não mais passivo passeia pela cidade e se insere em um ambiente a modernidade caleidoscópica, se faz presente nesse cinema (ao) vivo no
midiático que, segundo Neil Postman, “nos afeta a percepção, a compreen- contemporâneo.
são, os sentimentos e os valores humanos”.1 Como na perspectiva da ecolo- Estamos diante de um cinema que lida com a memória do espectador
gia das mídias, “qualquer ato comunicacional está necessariamente situado para criar tensões, distanciamentos, choques. Para atraí-lo! Não à toa a
em um suporte material que formata/configura a mensagem e a própria expressão cunhada por Tom Gunning “cinema de atrações”, para referir-se
atividade comunicativa” (BRAGA, LEVINSON, STRATE, 2019, p. 21), o ao período histórico que vai de 1895 a 1905 e a estética que “dirige-se
espectador como conteúdo se torna mídia, a projeção torna-se mais que diretamente ao público e, como nos primeiros filmes de trem exagera esse
veículo da luz, se transforma em uma atmosfera que ultrapassa os lugares confronto numa experiência de assalto” (GUNNING, 1995, p. 55), é muito
própria para se pensar o live cinema e as artes da projeção nesse momento
1 Disponível em https://media-ecology.org/What-Is-Media-Ecology. Acesso em 01/05/2021. dos pós-cinemas que remete tanto aos pré-cinemas (MACHADO, 1997).

60 61
Em projeções live somos tomados de assalto e de assombro como os O cinema total ou realismo integral talvez tenha se convertido no que
espectadores dos primórdios assustados com “A chegada do trem à estação” se cristalizou com o nome de arte-mídia. Termo que evidencia questões
(1895). Não tememos mais ou ingenuamente acreditamos na alegoria de relacionadas à materialidade dos meios, uma vez que já se torna próprio da
que um meio de transporte atravessaria a tela, mas imergimos atraídos pela “experiência estética dirigir a atenção do sujeito para a configuração mate-
imagem digital que salta dos prédios, que transforma objetos que fazem rial da mensagem. Além disso, as mídias digitais parecem amplificar essa
as vezes da realidade. A imagem na era da lógica paradoxal apontada por questão ao colocarem em evidência temas como os da relação do corpo
Paul Virilio, sintetizada pela imagem videográfica, pela holografia e pela com as tecnologias”. (FELINTO, 2007, p. 10). O cinema total hoje con-
infografia, é uma imagem que “atinge a alta definição, não apenas como vertido em parte pelas obras de arte-mídia, guiada pela simbiose corpo/
resolução técnica, mas sobretudo como substituição do real” (MACIEL, máquina, tem nas projeções diversas de cinema ao vivo terreno fértil para
1992, p. 253). novas formas de criar cinemas, de expandir o cinema para novos terrenos.
A memória que já é há mais de um século tema nobre dos filmes e de Seguindo McLuhan, se tem aqui como método a necessidade de querer
sua expansão para outras áreas e artes, quando entendemos de fato o rótulo mapear novos terrenos no lugar de mapear referências (MCLUHAN, 2009)
cinema expandido2 de Youngblood (1970), também se coloca em tempos para compreender as artes da projeção como resistência e memória.
eminentemente tecnológicos como maior que a realidade. Huyssen chega A sala escura como espaço da fruição cinematográfica se tornou o
a refletir sobre memórias imaginadas em seu célebre texto “Passados pre- locus da fruição do filme narrativo e passa há décadas por situações comple-
sentes: mídia, política, amnésia” (2000). De Dziga Vertov a Alain Resnais; xas, entre elas o papel do corpo e suas extensões em uma exibição de cine-
de Alice Guy-Blaché a Agnès Varda; de Woody Allen a Michel Gondry. ma.3 A concorrência para com a televisão nos anos 1950 e o assassino digital
De Humberto Mauro a Marcelo Masagão. Glauber, Godard, Greenaway. (GAUDREAULT; MARION, 2016) dos anos 2000 são dois exemplos que se
Chantal Akerman, Cindy Sherman, Rosângela Rennó. Memórias foram relacionam com mutações envolvendo os espaços de projeção de filmes.
imaginadas pelo(a)s artistas citado(a)s e pelo cinema quando aberto a Estamos diante de uma questão para a qual Walter Benjamin nos
outras formas. São tantos os nomes que optamos em nem mencionar filmes chamou a atenção. A relação entre interior e exterior pensada através dos
ou projetos e deixar que o leitor complemente esse trecho como o especta- cortes da linguagem cinematográfica e das passagens – relacionada tam-
dor contempla ou imagina um filme realizado, “performado”, remontado, bém aos lugares do espetáculo cinematográfico – como fortes expressões
ressignificado ao vivo. da modernidade parecem ter levado Benjamin a observar que “O intérieur
O espectador passa a ser um receptor diferente e mais resistente aos projeta-se para o lado de fora. É como se o burguês estivesse tão seguro de
ditames dos filmes narrativos que migram mais e mais para os serviços seu sólido bem-estar que desdenha a fachada para afirmar: minha casa, não
de streaming. Nesses, o que vimos é também filme, mas nas projeções de importa onde lhe seja feito um corte, é sempre uma fachada” (BENJAMIN,
live cinema, o produto audiovisual ganha a materialidade, a ambiência e a 2006, p. 450).
sétima arte torna-se enésima arte. O mito do cinema total (BAZIN, 2014) Em sua obra “Cinema”, de 1981, o videoartista Dan Graham já parecia
cada vez mais próximo, mais de 125 anos após seu nascimento, de sua ter compreendido as mudanças pelas quais o interior e o exterior da sala de
realização.
3 Vale aqui destacar que tal questão vai dos estudos do psicólogo e teórico do cinema Hugo
Mauerhofer com a criação do termo situação-cinema (XAVIER, 1983) às críticas feitas por
2 Expressão que designa formas de espetáculo cinematográfico nas quais acontece algo a mais Peter Greenaway (2007) sobre a passividade do espectador em parte devido ao desperdício
do que somente a projeção de um filme: dança, ações diversas, “happenings” etc. (AUMONT; da linguagem cinematográfica nos filmes que se configuram quase em sua totalidade como
MARIE, 2003). Jeffrey Shaw (2005) esboça uma ampliação do termo falando já de um cinema textos ilustrados. Trabalhos atuais que demandam na sala escura outras mídias como o celu-
digitalmente expandido que pode perfeitamente se aplicar às performances audiovisuais de lar e aparelhos de realidade virtual são cada vez mais importantes não só para narrativas
live cinema. transmidiáticas, mas para a própria dimensão material e ecológica do meio cinema.

62 63
cinema passariam. Como aponta Michaud (2014), Graham vê a sala como árvores nos trabalhos de Roberta Carvalho, nas jangadas do Cine Jangada4
um dispositivo de confinamento e retorna à estrutura Cine Handelsblad em Pernambuco entre outros, a projeção é a mensagem/massagem.5
de Johannes Duiker construída em 1934. Estrutura que inverte a relação O caráter de resistência das artes da projeção que buscamos tenta tor-
interior/exterior da sala escura mostrando “uma fachada envidraçada nar visível a demanda de um cinema que se pauta mais pela experiência,
que revelava a sala de projeção aos transeuntes” (MICHAUD, 2014, p. 35). pelo experimentalismo, pelas extensões de nós mesmos. Suportes mais
Benjamin também já falava dessa cultura do vidro, não pensando as cabi- eficientes parecem sugerir um cinema em trânsito que valoriza a vocação
nes de projeção, mas chamando a atenção para o destino transparente das artística. O dilema do cinema experimental seria o de colocar justamente
fachadas. No projeto de Graham, não a sala de projeção, mas a tela é que a vontade do artista em explorar suportes e formas. Esse mesmo dilema
fica exposta: perpassa a busca por novos locais para projeção, por novos lugares para
tornar o cinema visível dentro e fora da tela.
Em Cinema, ao contrário de outros cinemas, que têm de esconder dos espec- Voltemos ao videomapping. Mais conhecido entre os performers como
tadores seu próprios olhares e projeções, o arquiteto permite que os especta- mapping, esse mapeamento de imagens em superfícies através de progra-
dores, dentro e fora, percebam sua posição, seus corpos e suas identificações.
mas que captam o espaço como informação, torna-se uma prática esté-
No plano topológico, uma ‘pele óptica’, a um tempo refletora e transparente
por dentro e fora, funciona simultaneamente como uma tela para a projeção tica como “um vasto edifício de memórias” (PROUST apud TARKOVSKI,
dos filmes. Em termos dialéticos, ela tanto é visível da rua quanto no con- 1990, p. 67). Da fachada dos prédios a pequenos objetos, a tela está sem-
texto comum da sala, como ponto de transferência entre o olhar dos espec- pre em mudança. Speer batizou como “catedral de luz” as possibilidades
tadores sentados no interior e de pé no exterior, na relação que eles mantêm arquitetônicas que fundem luz e mídias (SALTER, 2010). Nos trabalhos de
um com os outros ou com as imagens fílmicas (GRAHAM, 1981, pp. 47-48). videomapping, a arquitetura se transforma em cinema configurando uma
cine-cidade, geocinema, vídeo-urbe.
Dan Graham leva a proposta benjaminiana para um projeto artís- No Rio de Janeiro, monumentos como Cristo Redentor e construções
tico que antecipa as projeções em fachadas. Hoje entendemos o cinema como o Parque das Ruínas e os Arcos da Lapa se tornaram telas para per-
não mais como ferramenta exclusiva da burguesia, mas à disposição do formances diversas.6 Flusser já chamava nossa atenção pensando que “as
proletariado da imagem, do precariado midiático que usa os muros e pré- superfícies adquirem cada vez mais importância no nosso dia a dia”. (2007,
dios como tela e que topologicamente e dialeticamente interroga o próprio p. 102). O mapping é afirmação disso. Uma importante ferramenta para a
cinema. Nos experimentos de videomapping, por exemplo, técnica que “lê” resistência do cinema.
espaço arquitetônico como tela, a superfície se torna um mapa e lugar onde O videomapeamento se assemelha à navegação inteligente e criativa
projetam-se imagens acompanhadas de som que seguem ou sugerem o precipitada por cineastas como Peter Greenaway, que, “através de uma
ritmo das projeções. A projeção se torna, como já observaram os cineastas tendência no uso das novas tecnologias que, ao contrário, potencializa a
experimentais Stan Brakhage e Hollis Frampton, uma performance.
A própria noção de performance traduz uma maneira de se dar vida,
4 Para mais detalhes, ver o blog https://cinejangadapernambuco.wordpress.com/. O projeto se
“expressão a conceitos e formas (...) sempre ao vivo, ainda é uma arma apresenta como “um jeito nordestino de se ver cinema”. As velas das embarcações se tornam
eficaz de oposição às convenções das artes mais tradicionais e consagra- telas nesse projeto idealizado pelo cineclubista Hermano Figueiredo.
das” (VIEIRA, 1996, p. 338). Estamos diante de fenômenos que desafiam 5 Para mais uma vez lembrarmos McLuhan que, através da semelhança das expressões message
e massage, propôs um curioso jogo de palavras pensando que o meio é uma massagem em
os lugares canonizados do cinema e de uma nova itinerância das imagens nossos sentidos e a própria mensagem.
em projetos como o “Projetação”, “Videurbe”, e o recente “Projetemos”, que 6 Respectivamente o “Abraço no Cristo” (2010) de Fernando Salis, o Festival Videoataq (2010) e
transformam a cidade em tela. Também em outras superfícies, como as a performance dos Vj’s Chico Abreu, Erms, Robson Victor e Roger S. para a Ecosport Parade
(2012).

64 65
imagem cinematográfica através da reinvenção da própria linguagem cine- linguagens dos programas que permitem recriar visualmente/tecnologica-
matográfica” (MACIEL, 1992, p. 256), desde seu filme “A última tempes- mente os espaços. Se “mega projeções mapeadas podem transformar a arqui-
tade” (1991) até seus experimentos como VJ,7 vem se destacando em pensar tetura em uma experiência, na medida em que uma sucessão potencialmente
novas possibilidades e resistências para o cinema. infinita de formatos e imagens acontecem em uma fachada (ANSATASIOU,
A técnica de mapeamento de imagens também pode ser compreen- s/d,. p. 45), as sinfonias das cidades que definiam certos filmes de vanguarda
dida na proposta de Pierre Lévy do “cinemapa”. Neste mapa em movimento como “Um homem com uma câmera” (Dziga Vertov, 1929) se “turbinam”
da aldeia global informacional (o banco de dados), nada é “estruturado a no contemporâneo. “Tudo está dito/ Tudo está visto/ Nada é perdido/ Nada
priori [...] Não é regulado tampouco por médias ou distribuições estatísti- é perfeito/ Eis o imprevisto/ Tudo é infinito. Esses versos de Augusto de
cas à maneira mercantil. O cinemapa desenvolve o espaço qualitativamente Campos são materializados nos videomapeamentos8 e em outras projeções
diferenciado dos atributos de todos os objetos do universo informacional” de imagens pelas ruas, praças, prédios e outras construções.
(LÉVY, 2007, 163-164). As imagens e as coisas projetadas “transformam-se, As performances mapeadas dão novos ares ao cinema, fazendo de
perdem e adquirem atributos o tempo todo” (Id., Ibid) na atual sociedade qualquer parte da cidade telas. Ao transformar superfície em tela, liberta-
da informação e nessas projeções ao vivo. O cinemapa e o mapping são sin- mos, de certa forma, o cinema e suas memórias para novas regiões. Essa
tomáticos de uma cultura audiovisual que repensa as questões do espaço. itinerância que o cinema dos primórdios nos revelou tem na técnica de
Ciberespaço e projeções multimídia, eis o cinema satélite que Jairo Ferreira mapeamento experiências sensoriais, mnemônicas e urbanas novas e ricas
(2006) imaginava. em reflexões sobre a relação cinema, poder e memória. São itinerantes não
Obras como “Tower of winds”, de 1986 de Toyo Ito, trabalhos como os só no espaço (e no tempo), mas no pensamento acerca do cinema. Até
de Christian Möller e dos irmãos Jan e Tim Edler já nos anos 2000 são refe- mesmo uma nova relação do cinema para com a natureza surge.
rências iniciais para compreender esse fenômeno do videomapeamento. Uma projeção envolvendo a natureza merece rápida menção. Ecologia
Com “Bix” (2003), os irmãos Edler, por exemplo, combinavam as deforma- das mídias em estado bruto através da projeção. O trabalho “Symbiosis”
ções das fachadas com as anamorfoses na imagem. No Brasil, para enten- (2011), de Roberta Carvalho no Festival Amazônia Mapping, pela própria
der a projeção em fachadas e mapeamentos muito criativos e que lidam artista idealizado, no qual a copa das árvores se torna tela para desenhos e
com a resistência através da projeção, vale lembrar o trabalho “Dogville” projeção de rostos. Muito além de “Avatar” (James Cameron, 2009), essa
(2011), de Eder Santos. O próprio artista advertia: “Cuidado com a ima- obra mostra como tão resistente pode ser a performance de live cinema
gem. É ela que domestica você”. A projeção em fachada como resistência à para repensarmos o meio ambiente. As árvores como suporte das imagens,
domesticação promovida pela imagem comercial. cada folha tornando-se parte de corpos e histórias de povos tradicionais.
Uma imagem projetada ao ar livre chama a atenção para essa situa- Essa obra pode ser associada a uma espécie de “shamanismo tecnológico”
ção incômoda dos meios de massa. A projeção em fachadas nos convida que ganha força em parte da cena live.
a repensar os espaços, nosso transitar neles. Habitar os espaços enquanto Desde os primórdios, antes da sala em si – ou o que costumamos
meios. O estudo das mídias como ambientes ou ecologia das mídias, como chamar Cinema –, o lugar para exibição de filmes se relaciona com certos
definiu Postman, traz o elemento tecnologia à cena. ordenamentos que a mídia traz para o espaço onde assistimos aos filmes.
As projeções evoluíram com o aumento da luminosidade dos pro- Experiências como as mencionadas anteriormente radicalizam as possibi-
jetores, a intensidade desse meio frio em termos mcluhanianos e com as lidades espaciais do cinema muito mais que o filme em 3D. São resistências

7 Visual Jockey ou Visual Jammer. Não mais o apresentador de videoclipes, mas o DJ das ima- 8 Literalmente isso aconteceu com o videomapeamento das poesias de Campos em evento rea-
gens que invadiu os clubes, shows e hoje é um termo para designar parte dos responsáveis lizado pelos United VJ’s e promovido pelo CCBB/RJ em 2011. Para mais detalhes ver OLIVEIRA
pelos trabalhos de cinema ao vivo. FILHO (2013).

66 67
do próprio cinema. Recupera-se e revitaliza-se o que acontecia nas feiras Projetação parte de suas intervenções. Um cinema que ocupa outros
de variedades, vaudevilles, cafés-concertos e parques de diversão onde nas- lugares da cidade é um cinema que resiste e que estabelece novos rumos
cem as atrações cinematográficas. O que acontece a partir dos nickelodeons para essa arte mnemônica por excelência. Híbrida, sensorial e envoltória,
e da constituição da sala de cinema nos palácios cinematográficos em ter- as artes transcinematográficas que lidam com a projeção mostram que o
mos materiais é a constatação de que algo precisa estar presente para que o cinema segue vivo, atento e forte, ocupando outros e novos espaços.
filme aconteça: o projetor.
Tais intervenções artísticas que usam as artes da projeção se afirmam referências bibliográficas
em projetos recentes como o Projetemos, uma “rede nacional de proje-
ANASTASIOU, Alexis. Mappingfesto. São Paulo: Visualfarm. s/d.
cionistas”, como podemos identificar nos perfis do guipo na internet. O
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campi-
uso da rede é fundamental para a resistência que as projeções pregam. No
nas, SP: Papirus, 2003.
site www.projetemos.org, o usuário conta com uma ferramenta para criar
BAZIN, André. O que é o cinema? Rio de Janeiro: Cosac e Naify, 2014.
frases com opções de fundos como templates para projetar. Durante a pan-
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
demia, projeções com homenagens a profissionais na linha de frente de
BESSA, Márcia. Entre achados e perdidos: Colecionando memórias dos cinemas
combate ao vírus, críticas ao descontrole promovido pelo governo e lutas
de rua da cidade do Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em Memória Social). Rio de
das minorias se tornaram quase que diárias. O grupo conta com mais de 65 Janeiro: UNIRIO/PPGMS, 2013.
mil9 seguidores em seu Instagram. BRAGA, Adriana; LEVINSON, Paul; STRATE, Lance. Introdução à ecologia das
Projeções como as que brevemente apresentamos são resistências a mídias. São Paulo: Loyola, 2019.
um hábito tripartido de se pensar o cinema: sala escura (herdeira do palco CINEJANGADA. Um jeito nordestino de ver cinema. Blog. Disponível em: https://
italiano do teatro), tecnologias de projeção e captação e o filme narrativo cinejangadapernambuco.wordpress.com/. Acesso em 16/05/2021.
(PARENTE, 2009). Essas imagens pela cidade, pela natureza ou no cha- CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio
mado “cinema de museu”, atestam um cinema em trânsito e em transe com de Janeiro: Contraponto, 2012.
outras estéticas e políticas. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
FELINTO, Erick. Sem Mapas para esses Territórios: a Cibercultura como Campo
Dito de outro modo transcinemas são formas híbridas entre a experiência de Conhecimento. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: http://www.intercom.
das artes visuais e do cinema na criação de um espaço para o envolvimento org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0770-1.pdf
sensorial do espectador. Representam o cinema como interface como uma FERREIRA, Jairo. Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun. São Paulo:
superfície que podemos ir através (MACIEL, 2009, p. 17). Imprensa Oficial, 2006.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Cosac e Naify, 2007.
Poder ir através da tela e superar o filme clássico-narrativo e sua lógica
GAUDREAULT, André; MARION, Philippe. O fim do cinema? Uma mídia em crise
da transparência através do clarão dos projetores que clamam através dos na era digital. Campinas, SP: Papirus, 2016.
artistas que todos nós somos (ou podemos nos tornar) evidencia que um GRAHAN, Dan. Buildings and signs. Chicago/Oxford, Renaissennce Society at the
outro espectador mais ativo ou “participador”, para lembrarmos a expres- University of Chicago/Museum of Modern Art, 1981.
são de Hélio Oiticica, emerge em projeções nas fachadas ou outras super- GREENAWAY, Peter. O cinema ainda está na pré-história. São Paulo: Revista Bravo,
fícies. “Ocupamos a Praça XV com luz”10 foi como sintetizou o Coletivo Out. 2007.
GUNNING, Tom. Uma estética do espanto: O cinema das origens e o espectador
9 De acordo com acesso feito em 15 de maio de 2021. (in)crédulo. Revista Imagens, São Paulo: Editora da Unicamp, nº 5, ago. / dez. 1995.
10 Para mais detalhes ver OLIVEIRA FILHO (2014).

68 69
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. VIEIRA, João Luiz. Cinema e performance. In: XAVIER, Ismail (org.). O cinema no
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 2007. século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997. XAVIER, Ismail. (org.). A experiência do cinema: antologia. São Paulo: Graal, 1983.

MACIEL, Kátia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa: 2009. YOUNGBLOOD, Gene. Expanded cinema. New York: E.P. Dulkton & Co, 1970.

MACIEL, Kátia. A última imagem. In: PARENTE, André (org.). Imagem-máquina.


São Paulo: Editora 34, 1992.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2002.
MCLUHAN, Marshall. The playboy Interview. Disponível em: http://www.nextna-
ture.net/2009/12/theplayboy-interview-marshall-mcluhan/ 2009.
MICHAUD, Phillipe-Alain. Filme: por uma teoria expandida do cinema. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2014.
OLIVEIRA FILHO, Wilson. Memórias vivas/Camadas híbridas: Cinema, colecio-
nismo e performance audiovisual em tempo real. Tese (Doutorado em Memória
Social). Rio de Janeiro: UNIRIO/PPGMS, 2014.
OLIVEIRA FILHO, Wilson. Mapeando a cidade com imagens: uma análise da per-
formance com mapping dos United Vj’s com as poesias de Augusto de Campos
na fachada do CCBB. In: FACCIN, Milton, NOGUEIRA, Maria Alive, VAZ, Élida
(orgs.). Narrativas da cidade: Perspectivas multidisciplinares sobre a urbe contem-
porânea. Rio de Janeiro: E-papers, 2013.
OLIVEIRA FILHO, Wilson. Lembrando das luzes da cidade: projeções mapeadas,
“geo-cinema” e performances audiovisuais em tempo real para além das salas de
exibição. In: Revista Rebeca. Socine, Vol. 3, número 2, 2014. Disponível em: https://
rebeca.emnuvens.com.br/1/article/view/141/51.
PARENTE, André. A forma-cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Kátia
(Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa: 2009.
POSTMAN, Neil. What is media ecology? Disponível em https://media-ecology.
org/What-Is-Media-Ecology. Acesso em 01/05/2021.
SALTER, Chris. Entangled: Technology and the transformation of performance.
Massachussets: Library of Congress, 2010.
SHAW, Jeffrey. O cinema digitalmente expandido: o cinema depois do filme. In:
LEÃO, Lucia (org.). O chip e o caleidoscópio. São Paulo: Senac, 2005.
SMITH, Murray. Espectatorialidade cinematográfica e a instituição da ficção. In:
RAMOS, Fernão. Teoria contemporânea do cinema – Vol.1. São Paulo, Senac, 2005.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
V MOSTRA Live Cinema. Rio de Janeiro: Oi Futuro, 2012. Disponível em http://
www.livecinema.com.br.

70 71
5. Resistência e poder: a emancipação do Hegemonia significa supremacia e domínio. Ao falarmos de hegemo-
nia cultural e estética, estamos nos referindo a uma dominação da indústria
espectador perante a imagem cinematográfica hollywoodiana nesses aspectos. O modelo das produções cinematográficas
Johanna Gondar Hildenbrand dos Estados Unidos se ajusta facilmente a culturas diversas; ele privile-
gia uma estética padrão, extinguindo todas as características particulares
Francisco Ramos de Farias
de determinados grupos, como, por exemplo, formas e gestos regionais
visando a propagação de um arquétipo. E esse modelo ficou popularmente
conhecido no final da década de 1970 como cinema Blockbuster. Podemos
afirmar que por meio de mecanismos de construção do consenso social,
estabelecido pela publicidade e pelos imperativos tecnológicos, e como de
práticas de colonização cultural (GOMES, 1980), Hollywood difundiu e
1. introdução modificou a percepção que as sociedades tinham de si. “A impregnação do
filme americano foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva
Existe, em todos as pessoas, alguma coisa indomável, que nenhuma forma de ocupantes e ocupados (...) que adquiriu uma qualidade de coisa nossa”
de dominação consegue eliminar totalmente. A resistência faz parte da (GOMES, 1980, p. 79). Segundo essa linha de pensamento, nada mais seria
nossa vida biológica, psíquica e social. Invasões de outros organismos, estrangeiro pois tudo se insere nessa rubrica.
políticas de cunho autoritário, perspectivas dominantes sobre modos de O cinema é considerado uma arte e uma indústria de extrema
enxergar e agir no mundo, tudo isso encontra em nós a capacidade de importância para o desenvolvimento social, cultural ou econômico de um
resistir, e através dela não permitimos que forças externas alterem ou des- país. Esta afirmação pode ser validada em estudos sobre a contribuição
truam nosso corpo, nossa singularidade, nossos princípios e valores. do cinema no desenvolvimento socioeconômico de países como Estados
A linguagem e suas representações também podem ser formas de Unidos e Índia. Porém, em países considerados “em desenvolvimento” ou
resistência. As palavras, por exemplo, são usadas para criar discursos de até mesmo “dependentes”, como o Brasil, a expansão, e consequentemente
resistência política, discursos estes que também podem ser representados a dominação da indústria cinematográfica, contribuiu para o crescimento
através da arte. Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” de uma cultura vinda dos Estados Unidos voltada para o consumo, o que
(1994), o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) chamou a nossa acaba levando ao aumento das heterogeneidades sociais.
atenção para a interpenetração entre estética e política. Afirmou que o fas- Nossa proposta é analisar como começa esse processo de domina-
cismo resulta em uma “estetização da vida política” à qual, em contrapar- ção pelo cinema hollywoodiano, para em seguida identificar distintos
tida, “o comunismo responde com a politização da arte” (BENJAMIM, 1994, movimentos cinematográficos, de diferentes nacionalidades, que têm em
p. 195-196). Os campos estéticos privilegiados por Benjamin neste trabalho comum uma mesma busca: uma política da imagem que resista a essa
são a pintura, a fotografia e o cinema. hegemonia estética e cultural proveniente dos Estados Unidos. Aqui ire-
Aqui, iremos privilegiar o cinema, ou melhor, o cinema que resiste ao mos privilegiar a resistência cinematográfica contemporânea no Brasil,
que iremos chamar de hegemonia cultural e estética da indústria hollywoo- que está sendo chamada por críticos e teóricos brasileiros de “Novíssimo”
diana, disseminada na contemporaneidade. Mas não vamos nos restringir cinema brasileiro.
a isso; iremos tratar também de outra forma de resistência. Uma resistência Podemos dizer que a resistência, tratada em um primeiro momento
por parte de nós mesmos, de nosso aparelho psíquico e de nossa memória. a partir de um contraponto à estética da indústria hollywoodiana, é ela-
borada pelos realizadores que compõem os movimentos cinematográficos

72 73
em questão. Sendo assim, uma questão se apresenta a nós: será que depen- o conflito da guerra, a estética hegemônica do cinema estadunidense –
demos apenas da realização desse contraponto para que alguma resistência baseada na padronização de sensações e modos de existência – já havia se
aconteça? Pois, se sim, estaríamos reduzindo toda possibilidade de pen- imposto. O cinema estadunidense conquistou o público burguês brasileiro
samento de quem recebe as imagens e concebendo os espectadores como por “suas histórias envolventes, maniqueístas e sensacionais, mas, acima
meros receptores passivos. Então, por último, iremos refletir sobre a exis- de tudo, por sua linguagem dinâmica e moderna” (FREIRE, 2018, p. 255).
tência de espaços de liberdade e criação por parte de quem assiste tanto aos De fato, nos primeiros anos do século XX, o cinema “testemunhou
filmes de estética hollywoodiana, conhecidos como blockbusters, quanto uma série de reorganizações sucessivas em sua produção, distribuição e
aos filmes que resistem a essa estética pretensamente hegemônica. exibição” (COSTA, 2006, p. 17), e em sua estética, até atingir a estabilidade
que caracterizou o cinema hollywoodiano clássico. Este teve sua técnica
2. a hegemonia cultural e estética aperfeiçoada por D. W. Griffth, que visava criar “grande impacto emo-
da indústria hollywoodiana cional em momentos decisivos da narrativa” (COSTA, 2006, p. 44), entre
1915 e o início da televisão nos anos 1950 com o fim da chamada “era de
A dominação hollywoodiana se iniciou, há muito tempo, após a ouro”. Mas, mesmo passando por um período difícil no fim dos anos 1950,
invenção do próprio cinema, na última década do século XIX, pelos irmãos até hoje Hollywood pode ser considerado o lugar que produz os filmes
Lumière (FREIRE, 2018). O marco da projeção pública de cinema foi no mais caros e mais rentáveis da indústria cinematográfica. Nesta, a principal
Sólon Indien do Grand Café, em Paris, onde os irmãos Auguste e Louis forma da intenção de dominação ocorre pelos filmes blockbusters, porém
Lumière apresentam para o público, em 28 de dezembro de 1895, o funcio- também fazem parte da chamada hegemonia estética hollywoodiana as
namento do cinematógrafo – o precursor do projetor. produções para TVs abertas e a cabo, séries, comerciais, clipes musicais,
No Brasil, especialmente no eixo Rio-São Paulo, nas primeiras déca- desenhos animados, brinquedos etc.
das do século XX, o mercado cinematográfico era dominado pelo cinema O americano Justin Wyatt, em seu livro High Concept: Movies and
europeu, principalmente o cinema francês e dinamarquês. Com o impacto Marketing in Hollywood (1994), ao definir a indústria cinematográfica
da Primeira Guerra (1914-1918) na distribuição de filmes europeus,1 distri- hollywoodiana, diz que esta tem a lógica dos conglomerados multimi-
buidoras de filmes como a Universal, Fox e Paramount encontraram recep- diáticos atuais, o que abarca tanto a comercialização da própria imagem
tividade no mercado para as novas produções estadunidenses. cinematográfica em diversas formas – desde o VHS passando pelo Blu-
ray e hoje em dia atingindo o streaming – até a comercialização do maior
O cinema acompanhava as transformações de costumes e hábitos dos cario-
número de itens atingíveis: trilha sonora, games, roupas, brinquedos, itens
cas ao mesmo tempo que influenciava essas mudanças. A imprensa reconhe-
cia nos filmes a origem de tipos como “almofadinha” e a “melindrosa”, que se de decoração, diferentes tipos de edições2 etc. Suas tramas, e sua estética,
multiplicavam entre os cariocas (FREIRE, 2018, p. 255). são idealizadas já pensando em ganchos de marketing através das diversas
mídias. É o econômico superando o artístico.
O cinema produz e expressa as singularidades de uma certa época e As produções hollywoodianas sempre tiveram em vista um mercado
cultura a partir do seu conteúdo e forma estética. Esta consiste nos modos global, e, por conta disso, privilegiam uma estética padrão, extinguindo
pelos quais a imagem cinematográfica afeta o espectador e os modos pelos todas as características particulares de determinados grupos – como
quais ela é construída para fazê-lo. Sendo assim, os temas adultos e trági- por exemplo formas e gestos regionais – pela busca de um modelo esté-
cos dos dramas franceses e dinamarqueses foram perdendo espaço e, após tico universal. Este modelo cinematográfico fomenta uma preferência ao
1 “Durante a Primeira Guerra Mundial a difusão do cinema europeu foi, em grande parte, 2 Novas versões de um filme já lançado. Geralmente é chamado de director’s cut ou versão do
refém de reprises de filmes antigos e cópias velhas” (FREIRE, 2018, p. 255). diretor.

74 75
espetáculo e à ação em relação aos personagens e à dramaturgia, o que 3. resistência cinematográfica e
pode levar a um menor investimento psíquico por parte dos espectadores. o “novíssimo” cinema brasileiro

Renuncia-se a uma exploração criativa das possibilidades temáticas e gené- Atualmente Hollywood pode ser a maior indústria cinematográfica
ricas do filme. O resultado disso é a incapacidade para propor figuras este- do planeta, mas com certeza não é a única produtora de filmes. Podemos
ticamente significativas na convergência entre imagem e narrativa. Enfim, identificar distintos movimentos cinematográficos contemporâneos, de
observa-se a aposta no espetáculo às custas da narração, sintetizável no par diferentes nacionalidades, tendo em comum a mesma busca: uma política
excesso visual / desnarrativação. (MASCARELLO, 2005, p. 70)
da imagem que se opõe, ou melhor, que resista ao espetacular e à pretensa
homogeneização de sensações imposta pela estética hollywoodiana.
Isso significa que fatores como o trabalho dramatúrgico – a arte de
Como exemplo, podemos citar o novo cinema asiático – e seus dire-
compor e de representar uma história em cena – e a caracterização dos
tores Hayao Miyazaki, conhecido por A viagem de chihiro (Sen to Chihiro
personagens, tão presentes no cinema europeu e em filmes independentes,
no kamikakushi, 2001, JAP), Naomi Kawase, conhecida por O segredo
ou seja, filmes que não são produzidos por grandes estúdios, são deixados
das águas (Futatsume no mado, 2014, JAP), Apichatpong Weerasethakul,
para segundo plano em função da espetacularização da imagem.
conhecido por Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas
O domínio hollywoodiano não se limitou à preferência, da parte dos
(Loong Boonmee raleuk chat, 2010, THA), entre outros; os filmes do
espectadores brasileiros, por filmes com uma narrativa linear e rápidos
cineasta alemão Michael Haneke – conhecido por Caché (2005, FRA, ALE)
cortes. O cinema estadunidense acompanhava, e acompanha, transforma-
e A fita branca (Das weiße Band – Eine deutsche Kindergeschichte, 2009,
ções de costumes e hábitos ao mesmo tempo em que influenciava, e ainda
ALE); o movimento nórdico Dogma 95 – e seus principais diretores Lars
influencia, essas mudanças. Sendo assim, podemos dizer que também se
Von Trier, Thomas Vinterberg, Kristen Levring e Sören Krag-Jacobsen; o
tratou de uma dominação cultural devido ao papel exercido pelo cinema
Novo Cinema Iraniano – e seus diretores Mohsen Makhmalbaf e Abbas
na produção de subjetividade, já que esses filmes insuflam os desejos e as
Kiarostami; o cinema independente europeu; e o “Novíssimo” Cinema
identificações do público com seus personagens. A vida dos artistas e o
Brasileiro3 que aqui iremos privilegiar.
glamour hollywoodiano se tornaram grande destaque na mídia brasileira
No Brasil podemos citar o novo cenário de produção independente.
desde o início do século XX até a atualidade. O apelo ao fascínio pela vida
Este se constrói como uma reação ao modelo mais típico de produção
dos artistas levou à fidelização de determinados públicos. Assistia-se ao
cinematográfica, o narrativo clássico, no qual as técnicas devem apagar-se
aumento da venda de revistas e cartazes dos artistas, o que aumentava o
frente à história para que o espectador possa se sentir como parte do filme,
lucro e a receita dos ingressos.
pois o que importa é transmitir informações de forma linear, orientando
Como era de se esperar, essa dominação perdura até os dias de hoje.
o telespectador a partir de uma narrativa contínua. Arquétipo vigente no
Mas, como dissemos anteriormente, como a resistência faz parte da nossa
país desde o chamado período da retomada.4
vida biológica, psíquica e social, não somos capturados por inteiro. Ao
Trata-se de um novo ciclo nacional chamado por alguns críticos de
mesmo tempo em que podemos observar a crescente intensão de domi-
“Novíssimo” Cinema Brasileiro e tornou-se possível devido aos avanços
nação da indústria hollywoodiana em diversos produtos – como filmes,
tecnológicos, tanto na parte de produção de audiovisual – novas câmeras,
séries, serviços de streaming etc. –, vemos também um aumento, em diver-
sas partes do mundo, na produção de filmes que apresentam possibilidades
3 Devemos chamar atenção para o fato de não haver um “programa” – como existe no Dogma
de resistência cultural e estética ao cinema hegemônico hollywoodiano. 95 – em torno do qual esse cinema se organiza, e os próprios grupos e realizadores não se
apresentam como movimento.
4 Período iniciado em 1995 devido a novos incentivos fiscais ao audiovisual brasileiro.

76 77
facilidade da edição, entre outros – quanto na parte de sua disseminação de independência (2014), o produtor de lançamentos da Vitrine Filmes,5
–, principalmente pela internet. Este novo ciclo está sendo um modelo de Ibirá Machado, declara que mesmo que não haja consenso da nomencla-
produção em diversas cidades brasileiras, o que diversificou o eixo de pro- tura desse novo tipo de produção, ou seja, desse novo ciclo, não se pode
dução que sempre se centralizou no Rio de Janeiro e São Paulo. negar que de fato esteja acontecendo algo novo no cenário cinematográfico
O termo “novíssimo”, uma alusão ao Cinema Novo, é usado para se brasileiro atual:
referir ao cenário de produções fílmicas feitas por jovens realizadores, com
orçamentos mais baratos e que circulam em mostras como a de Tiradentes Existe um fato que é o seguinte: mais ou menos por 2010, começam a surgir
primeiros filmes [longas] de novos diretores, jovens que tinham estreado
ou a semana dos Realizadores, além de festivais internacionais como
em Cannes, em Roterdã, em Veneza, mas simplesmente não apareciam por
Roterdã e Locarno – mais focados em produções independentes e fora aqui. Filmes que iniciaram uma carreira internacional e tinham uma nova
do eixo Rio-São Paulo. Podemos citar como exemplo Estrada para Ythaca estética. São filmes que voltaram a experimentar a linguagem, efetivamente,
(2010), Os monstros (2011) e No lugar errado (2013), de Guto Parente, Luiz porque os filmes brasileiros da Retomada para cá ainda tinham um apelo,
e Ricardo Pretti, e Pedro Diógenes; A fuga da mulher gorila (2011), de uma tentativa de ser um pouquinho comerciais, por mais ‘autorais’ que fos-
sem. (...) E independente das estéticas, o que também diferenciou foram os
Felipe Bragança e Marina Meliande; O céu sobre os ombros (2011), de Sérgio
coletivos: começaram a surgir coletivos por várias capitais do Brasil. Os fil-
Borges; Mãe e filha (2011), de Petrus Cariry, entre outros. mes desses coletivos começaram a fazer carreira internacional em festivais,
De fato, é importante ressaltar que formas de resistência ao cinema e até ganhar distribuição internacional. Tudo isso deu uma ressignificação
hollywoodiano não são características exclusivas da contemporaneidade. para o festival de Tiradentes e até para Brasília. (...) Enfim, essa nova geração
Podemos destacar, por exemplo, o Neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague está ressignificando os festivais. Então, eu entendo que seja delicado afirmar
francesa, o Cinema Novo alemão e o Cinema Novo brasileiro, todos de que haja uma “novíssima geração” porque precisa esperar mais tempo. Mas
o que eu posso afirmar é que existe um movimento novo nesses últimos 3, 4
meados do século XX. Estes movimentos foram impulsionados por um
anos, que ainda não terminou. (OLIVEIRA, 2014, p. 11-12)
certo inconformismo de jovens cineastas com a forma vigente da política
de produção audiovisual, e seus filmes rompiam com os padrões estéticos Ainda é cedo para reconhecermos esse “Novíssimo” cinema como
hollywoodianos que o público estava tão acostumado a assistir. movimento propriamente dito e estabilizado, mas com certeza algo novo
Na contemporaneidade, os movimentos já citados, principalmente o está em formação. Existe um novo cenário cinematográfico e devemos
“Novíssimo” Cinema Brasileiro, também surgiram a partir do inconfor- compreender suas características e, principalmente, desempenho estético,
mismo de alguns diretores que, diante de um recente cinema nacional que tendo como finalidade expor a relevância do presente artigo. Ou seja, den-
não se desvencilhava do padrão hollywoodiano, buscaram criar uma outra tro desse novo cenário cinematográfico, o que mais irá nos interessar é a
política das imagens. Filmes como Cidade de Deus (2002), de Fernando forma como sua estética atinge seus espectadores em nível sensível.
Meirelles e Kátia Lund, e Carandiru (2003), de Hector Babenco, haviam O que neste trabalho estamos chamando de cinema de resistência, na
projetado o Brasil no exterior através de sua participação em festivais inter- contemporaneidade, apresenta, grande parte das vezes, uma peculiar abor-
nacionais de prestígio, como o de Cannes ou Berlim. Contudo, jovens rea- dagem na qual os diretores usam a linguagem metafórica para tratar de
lizadores com projetos mais arriscados, ou seja, projetos que não se enqua- temas incômodos dentro de uma sociedade conservadora e dominada pela
dravam no padrão estético hollywoodiano, não conseguiam se inserir neste cultura hollywoodiana. Portanto, trata-se de uma produção que funciona
cenário cinematográfico. como uma ferramenta de luta dos artistas e da sociedade em um determi-
Em entrevista retirada da tese de Maria Carolina Vasconcelos nado espaço/tempo. São filmes que revelam às câmeras um lado ignorado
Oliveira, “Novíssimo” cinema brasileiro: práticas, representações e circuitos
5 Uma distribuidora que representa jovens realizadores brasileiros.

78 79
da realidade nacional em seus países e se alinham, diretamente, com uma independente e de resistência à hegemonia estadunidense, acaba por pos-
urgência de mudança que permanece negligenciada pela mídia hegemô- sibilitar novas expressões artísticos-culturais e novas manifestações de per-
nica. “A televisão e todos os recursos da mídia forçam a informação para tencimento. Com essa crescente promoção de visibilidade da cinematogra-
dentro de moldes cada vez mais padronizados” (MELEIRO, 2006, p. 19). fia independente, graças às novas tecnologias já citadas anteriormente, o
Com isso, o cinema se torna uma importante ferramenta de expressão dos público sente-se representado e ganha a oportunidade de conhecer dife-
realizadores cinematográficos brasileiros e mundiais. rentes culturas e regiões do próprio país. Novas possibilidades se abrem,
Com exceção do Dogma 95, o cinema de resistência aqui tratado, em possibilidades muito diferentes do lugar comum e do mais do mesmo.
sua grande maioria, debate questões da condição humana por meio de Como podemos perceber, até agora tratamos de uma resistência ela-
histórias do cotidiano e funciona como uma forma de intervenção social. borada pelos realizadores que compõe os movimentos cinematográficos
No caso do Novo Cinema iraniano e do “Novíssimo” Cinema Brasileiro, em questão. Mas será que dependemos apenas deles para resistir a uma
o cinema nasce e convive em meio a um turbilhão de empecilhos – como imagem cinematográfica que pretende impor um sentido pronto a nós
o econômico e o político. Logo, trata-se de obras que enfrentam barreiras espectadores? Ou possuímos de alguma forma espaços de liberdade, como
de produção e circulação. Com um crescente reconhecimento da crítica Walter Benjamin propôs (1994), mesmo ao nos depararmos com imagens
cinematográfica internacional, essas produções têm sido premiadas em pretensamente hegemônicas? Trataremos disso a seguir.
festivais internacionais, como os já citados Roterdã e Locarno, assim como
em eventos dedicados a essa cinematografia. Desse modo, nota-se um inte- 4. a resistência em nós ou o espectador emancipado
resse mundial em filmes que, a partir de um olhar sensível e contundente,
tratam de temas e situações de exceção. Walter Benjamin, na década de 1930, afirma que devido à velocidade
Muitas vezes, ao nos referirmos ao cinema de resistência, podemos das transformações tecnológicas na Modernidade o sujeito sofre transfor-
insinuar a entoação de um consenso generalizado do que é periférico, mações em seu aparelho perceptivo; o que acarreta em uma maior sujeição
pequeno, fragmentado, frágil, residual e mesmo disfuncional no mundo ao choque urbano. Cita, como exemplo, a experiência de mover-se através
contemporâneo (BRANCALEONE, 2015). A questão que há algum tempo do trânsito nas grandes cidades e a de observar a seção de anúncios dentro
anda em pauta entre os pesquisadores sobre o assunto é que ao privilegiar de um jornal.
outros lugares teóricos, ou outras estéticas que não sejam a hollywoodiana De acordo com ele, sofrer uma privação da experiência6 tornou-se
ou o cinema industrial nacional, podemos conferir uma legitimidade o normal, na medida em que o aparelho perceptivo se protege do efeito
a estes traços e perspectivas que chamamos de cinema de resistência. O traumático oriundo dos efeitos de choque aos quais o sujeito moderno é
que acaba por permitir sua representação não mais como algo fragmen- exposto diariamente: “quanto mais constante for a presença da consciên-
tado, secundário ou marginal, mas como algo concreto, vasto e de grande cia no interesse da proteção contra os estímulos (...), tanto menos essas
importância para a teoria cinematográfica. E que nem por isso deixa de impressões serão incorporadas na experiência e tanto mais facilmente cor-
cumprir seu papel na construção de novas subjetividades, sociabilidades e responderão ao conceito de vivência” (BENJAMIN, 2015, p. 114).
modos de vida. Ao abordar o cinema, em seu já citado texto “A obra de arte na era
Nas obras do que estamos chamando de “Novíssimo” Cinema de sua reprodutibilidade técnica” (1994), Benjamin aproveitará sua teo-
Brasileiro, “identifica-se uma pluralidade de identidades locais e proemi- rização sobre a transformação subjetiva nas grandes cidades. Dirá que o
nente diversidade cultural, o que o difere de padrões estéticos hegemôni- cinema também proporciona a vivência de choques. No entanto, o choque
cos do clássico cinema narrativo, pensado como produto” (SERRATE. 2020,
6 A verdadeira experiência, para Benjamin, seria a nossa capacidade de integrar as percepções
p. 27). Sendo assim, o “Novíssimo” Cinema Brasileiro, enquanto cinema às nossas memórias individuais e coletivas, ou seja, à sabedoria acumulada historicamente.

80 81
da imagem cinematográfica não precisa ser idêntico aos choques sofridos Assim, Benjamin tenta enxergar aquilo que, no interior de uma época,
na vida urbana – como no tráfego ou no trabalho nas fábricas. Ele pode não se consegue ver tão facilmente: a transformação positiva das grandes
despertar, tirar o espectador do torpor, despertar os sentidos adormecidos mudanças que produzem efeitos de choque. Ele destaca as possibilidades
pelos estímulos excessivos nas grandes cidades. abertas pela tecnologia e as consequências positivas desta percepção modi-
A arte cinematográfica abraça, como forma artística própria, os efeitos ficada. Para o filósofo, a arte cinematográfica possibilitaria inúmeras pos-
de choque que caracterizam a Modernidade. Diferentemente das obras de sibilidades de criação.
arte tradicionais, que convocavam o olhar a uma lenta contemplação, uma A estética hollywoodiana, aqui representada pelos blockbusters, tende
imagem cinematográfica não oferece este tempo nem convoca este modo a ir na contra mão desse pensamento benjaminiano. Ao invés de expan-
de percepção da parte do espectador, já que rapidamente será substituída dir, essa estética padronizada tenta estreitar as possibilidades de criação e
por uma outra imagem. Em sucessão brusca, essas mudanças provocam interpretação. Mas ela não triunfa no seu intento.
choques que atingem não apenas o olhar, mas todo o corpo do espectador, Como dissemos anteriormente, se pensarmos na existência de uma
como se os olhos se tornassem também órgãos tácteis (BENJAMIN, 1994). resistência apenas por parte dos realizadores cinematográficos, dos movi-
É desse modo que, de acordo com o filósofo, o cinema tem como uma de mentos que citamos, estaríamos reduzindo toda possibilidade de pensa-
suas principais funções despertar o espectador: as mudanças bruscas nas mento de quem recebe as imagens e concebendo os espectadores como
imagens funcionam como projéteis que devem ser interceptados por uma meros receptores passivos. Essa é a crítica feita por Jacques Rancière em O
atenção aguda. Essa seria, para Benjamin, a melhor forma de despertar espectador emancipado (2012): segundo essa fórmula, seria preciso “arran-
o sujeito moderno distraído pelos choques sofridos no ambiente urbano. car o espectador do embrutecimento do parvo fascinado pela aparência e
Ele acredita no potencial emancipador das novas tecnologias. Segundo conquistado pela empatia” (p. 10). O que supõe que os espectadores não
ele, “o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações seriam capazes de pensar por si próprios, interpretar ou criar por si pró-
exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua prios. Haveria, nesse caso, uma hierarquia de inteligências: uma superior,
vida cotidiana” (BENJAMIN, 1994, p. 174). Em outros termos, a montagem a dos intelectuais ou artistas, em contraste com uma inteligência inferior,
cinematográfica convoca os espectadores a um trabalho de elaboração psí- a dos espectadores, joguetes passivos nas mãos de uma indústria hegemô-
quica; a despeito dos choques que nos provoca, o cinema também é um nica. De acordo com essa ideia, “o que o espectador deve ver é aquilo que o
espaço de liberdade – e um espaço de criação –, já que nos faz “vislumbrar diretor o faz ver”, escreve Rancière (2012, p. 18). Nada mais distante de um
os mil condicionamentos que determinam nossa existência” (BENJAMIN, espectador emancipado. “É a lógica do pedagogo embrutecedor, a lógica da
1994, p. 189). transmissão direta e fiel: há alguma coisa, um saber, uma capacidade, uma
O mundo visto através da câmera pode ser registrado através de um energia que está de um lado – num corpo ou numa mente – e deve passar
milhão de nuances da realidade, que na maioria das vezes vão se situar fora para o outro” (RANCIÈRE, 2012, p. 18).
da nossa percepção normal. O cinema fez ser possível enxergar um mundo Pensamos que os espectadores não poderiam ser tão desqualifica-
que antes só existia na nossa imaginação e nos sonhos, e isso possibilitou dos, massa de manobra à espera de uma vanguarda esclarecida. É nesse
uma suavização nas tensões que sempre aparecem com os avanços tecno- sentido que mesmo um espectador suposto como parvo é capaz de, nas
lógicos (BENJAMIN, 1994). Então, o cinema também tem como função palavras de Rancière, furtar-se à energia ou ao sentido que a imagem deve
social criar um equilíbrio entre homem e aparato tecnológico. Essa fun- transmitir “para transformá-la em pura imagem e associar essa imagem a
ção se realiza, principalmente, na forma pela qual o homem representa o uma história que leu ou sonhou, viveu ou inventou” (RANCIÈRE, 2012, p.
mundo para si com a ajuda desse aparato, a câmera. O cinema abre espaço 17). A emancipação começa quando se questiona a oposição entre olhar
para novas perspectivas. e agir, escreve ainda Rancière. Não há de um lado alguém que age, um

82 83
realizador, e de outro lado um espectador que não faz nada. Pois esse representação, mas sim certo movimento do observador em direção ao
espectador tem um olhar, o olhar é dotado de sujeito, e o sujeito que vis- mundo com o qual ele coexiste. Consequentemente, ao perceber o mundo,
lumbra a imagem, pensa. percebo-me. Merleau-Ponty vai refletir sobre a visão como forma de pensa-
mento, “inspeção do Espírito, julgamento, leitura de signos” (MERLEAU-
No espaço entre a imagem e o olhar que ela provoca, uma atmosfera pensa- PONTY, 2013, p. 31).
tiva se forma, um meio pensativo. Tal meio e tal espaço potencial, indeter-
A visão para Merleau-Ponty tem o poder fundamental de mostrar
minado ainda nas suas atualizações singulares, um meio de pensatividade
precedendo todo pensamento e que, assim, encerra o pensamento não pen- mais do que ela mesma. Assim como Rilke, Merleau-Ponty compreende
sado. (ALLOA, 2015, p. 9) o olho como a “janela da alma”: “(...) visão faz a alma ficar contente na
prisão do corpo, graças aos olhos que lhe apresentam a infinita variedade
Esse espaço potencial, indeterminado, é o espaço de nossa memória. da criação: quem os perde abandona essa alma numa escura prisão onde
É ela que, a cada vez que o potencial se atualiza, nos permite ter um olhar cessa toda esperança de rever o sol, luz do universo” (RILKE, 2003. p. 150).
diferenciado. Em outros termos, somos perpetuamente superexpostos às O filósofo diz que o olho tem a capacidade de “abrir à alma o que não
imagens, mas mesmo assim interagimos com elas devido ao trabalho de é alma” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 42), ou seja, é através da visão que
nossa memória. Não somos engolidos por uma imagem que tem como podemos tocar as coisas ao nosso redor; que podemos estar perto tanto de
intuito tudo nos mostrar de forma autoritária. Por mais que ela pretenda lugares distantes quanto das coisas próximas; é através da visão que temos
ser totalizante, não consegue nos capturar por inteiro. Permanece uma dis- “poder de imaginarmo-nos alhures (...). Somente ela [a visão] nos ensina
tância entre a imagem vista e aquele que a olha. Existe a distância do olhar, que seres diferentes, exteriores, alheios um ao outro, existem, no entanto,
e este implica uma atitude. O olhar nos permite uma posição não apenas de absolutamente juntos” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 43). A visão expande
ver, mas de “participar no espetáculo total da paisagem” (GIL, 2005, p. 48). nossa capacidade de imaginação e criação.
Ele não se limita a ver, ele interroga e espera respostas; ele transfere para Por mais que a indústria hegemônica hollywoodiana pretenda produ-
a imagem vislumbrada sua própria reflexividade mesmo que a imagem zir uma obra cinematográfica fechada, em relação às suas possibilidades de
seja construída com a pretensão de nos impor um sentido, ou uma inter- interpretação, cada espectador tem um olhar próprio. Ou seja, mesmo que
pretação, já determinado como no caso dos blockbusters hollywoodianos. a imagem seja usada com aspirações à padronização estética e às interpre-
O olhar é diferente dos outros sentidos, pois ele emite ao mesmo tempo tações previamente estabelecidas, o espectador ainda consegue criar um
que recebe; ele adquire assim uma profundidade interna, ou seja, “quando sentido próprio. É claro que o nível de liberdade interpretativa não será
recebe uma impressão exterior, [o olhar] emite uma outra por meio de igual ao da obra aberta como propôs Umberto Eco,7 ou das obras cine-
uma expressão (do interior)” (GIL, 2005, p. 50). matográficas provenientes dos movimentos de resistência aqui exempli-
De fato, isso se aproxima do que o filósofo francês Merleau-Ponty ficados, produzidos fora da indústria estadunidense. Pois nesses filmes o
escreveu em 1960 no texto O olho e o espírito, no qual ele diz que é atra- espectador tinha maiores possibilidades de escolha, criação e elaboração
vés do olhar que primeiro interrogamos as coisas, e devemos compreen- a partir da própria imagem, isto é, a partir das próprias lacunas e enigmas
der o corpo, de forma geral, como um sistema voltado para a inspeção
do mundo: “a visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os
7 Com a ideia de “obra aberta”, Eco aponta para a tensão entre fidelidade e liberdade interpre-
aspectos do Ser” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 44). Nesse texto ele não está tativa tanto na literatura, como nas artes plásticas e música. As obras de arte teriam como
falando do cinema, mas da pintura. Então, de acordo com ele, em um qua- característica a ambiguidade e a autorreflexibilidade, de tal maneira que, ainda que tomando
dro, sujeito e objeto se fundem. Ambos estão sobrepostos, o que faz com uma obra pronta como um corpo equilibrado, ela “é também aberta, isto é, passível de mil
interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração em sua irreproduzível singula-
que a visão de algo, como a de uma paisagem por um pintor, não seja uma ridade” (ECO, [1962] 2005, p. 40).

84 85
que a imagem apresentava. Porém essas lacunas ainda existem, mesmo MELEIRO, Alessandra. O novo cinema Iraniano: arte e intervenção social. São
quando a imagem pretende tudo abarcar. Paulo: Escrituras Editora, 2006.
No caso dos blockbusters hollywoodianos o nível de liberdade inter- MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
pretativa será menor devido ao excesso de sentido fornecido pela própria OLIVEIRA, Maria Carolina Vasconcelos. “Novíssimo” cinema brasileiro: práticas,
imagem. Mas, de qualquer maneira, seria justo dizer que não existe ainda representações e circuitos de independência. 314 f. Tese (Doutorado em Sociologia)
– Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo, 2014.
um espaço para criação? Devemos levar em conta que o sujeito do olhar
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF, 2012.
será diferente para cada espectador devido ao seu próprio conjunto de
RILKE, Rainer Maria. Auguste Rodin. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.
memórias e de vivências, isto é, de sua subjetividade. Aqui a resistência
SERRATE, Jéssica Santos. Revoada: o Design como ferramenta de visibilidade para
que se coloca é a do próprio espectador, e não da imagem.
o “Novíssimo” cinema brasileiro. 377 f. TCC (Bacharelado em Design Digital) –
Sendo assim, devemos pensar que, mesmo o filme sendo criado por Faculdade de Design Digital, Centro de Linguagem e Comunicação, Pontifícia
uma indústria pretensamente hegemônica, cada espectador sairá da sala de Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2020.
cinema com suas próprias impressões. Mesmo que o filme pretenda ter um TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997.
único sentido, cada espectador terá o seu próprio olhar sobre aquilo que WYATT, Justin. High concept: Movies and marketing in Hollywood. Austin: Univer-
está assistindo. Nunca somos capturados por inteiro. sity of Texas Press, 1994.

referências bibliográficas
ALLOA, Emmanuel. Entre a transparência e a opacidade – o que a imagem dá a
pensar. In: Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica. 2015.
BENJAMIN, Walter. (1936) A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
In: Obras escolhidas, v. 1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.
1994. (p. 165-196).
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire. In: Baudelaire e a
modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
BRANCALEONE, Cassio. Introdução. In: SOUZA, Fábio Feltrin de; BRANCA-
LEONE, Cássio (Orgs). Cinema e Sociedade: Resistência e jogos de poder. Jundiaí:
Paco Editorial, 2016.
COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando (Org.).
História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus. 2006.
FREIRE, Rafael de Luna. O cinema no Rio de Janeiro (1914-1929). In: RAMOS, Fer-
não Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila (Orgs). Nova história do cinema brasileiro. São
Paulo: Edições Sesc, 2018.
GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções: estética e metafenomenologia.
Lisboa: Relógio D’água, 2005.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de
Janeiro: Paz e Terra/Embrafilme, 1980.
MASCARELLO, Fernando. Dick Tracy, o filme high concept e o cinema brasileiro.
In: Contracampo, n. 13, Rio de Janeiro, 2005. p. 69-82.

86 87
6. Movimento de Justiça e Direitos Humanos de de identidade das comunidades – alvo que, por sua vez, pautam-se nas
memórias que o grupo vai construindo – e documentando – ao longo de
Porto Alegre: uma trajetória de resistências1 sua existência.
Evelyn Goyannes Dill Orrico Portanto, este capítulo tem como foco uma reflexão sobre o acervo do
MJDH reconhecido no contexto da compreensão da trajetória dos movi-
Roberta Pinto Medeiros
mentos sociais nas últimas décadas. Entende-se, então, que o MJDH é um
Eliezer Pires da Silva exemplo de resistência daqueles acontecimentos (repressão, censura, pri-
sões ilegais, desaparecimentos e torturas) que ocorreram no passado e que,
em alguns casos, ainda acontecem nos dias atuais.

2. movimentos sociais e regimes autoritários:


um breve relato
1. introdução Os movimentos sociais são redes dinâmicas e “têm fluxos e refluxos; na
Nesta pesquisa objetivou-se caracterizar o acervo de um movimento social realidade, eles constituem um campo de ação social coletiva [...]” (GOHN,
em defesa dos direitos humanos, sua função de lugar de memória, suas 2015, 08). Nesse dinamismo, a construção de “representações simbólicas
possibilidades de usos e efeitos sobre identidades de grupos, bem como de afirmativas por meio de discursos e práticas” (GOHN, 2015, 15) se tornou
resistência política. Esse percurso de investigação a partir do Movimento evidente. Portanto, entende-se que os movimentos sociais são resultado de
de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), que é uma sociedade civil e com uma ideologia coletiva de agrupamentos sociais, ou seja, originam-se de
sede na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, confirmou pressu- uma necessidade social, por exemplo a busca de igualdade na efetividade
postos sobre o papel dos documentos, e sua materialidade, em ações de de um direito civil ou social, ou o reconhecimento de uma política voltada
memória e informação por parte de grupos sociais. para diminuir desigualdades. Os movimentos sociais buscam mudanças
Os movimentos sociais representam no contexto das democracias na sociedade por meio de ações sociais, como o Movimento dos Sem Terra.
o seu pleno exercício, na medida em que ampliam a gama de atores que Pode-se reconhecer que os movimentos por buscas de melhorias civis
neles atuam e representam os anseios do grupo que os organiza. São funda- e sociais no Brasil tiveram seu início pautados em lutas existentes desde o
mentais também para o estabelecimento de políticas públicas e em muitos período colonial brasileiro, por exemplo a luta dos indígenas e dos africa-
casos funcionam como uma representação da realidade social. nos escravizados, mesmo que de forma mais sútil, tendo em vista o tama-
Ainda, os movimentos sociais no Brasil ligados à defesa dos direitos nho populacional da época. Posteriormente, as revoltas regionais durante
humanos têm contribuído desde o fim da ditadura militar para a rede- o período imperial – entre 1822 e 1889, pelos movimentos abolicionista e
mocratização do país e para a denúncia de violações cometidas contra os republicano. Já nos séculos XIX e XX, os movimentos foram marcados por
direitos civis e políticos. Essa contribuição recai sobretudo nos aspectos lutas políticas e sociais (Guerra de Canudos, Greve Operária e as tentativas
de golpe durante a Era Vargas) (MEDEIROS, 2015).
Sendo assim, o Brasil tem uma longa história de lutas por direitos, que
1 O estudo apresenta parte dos resultados da pesquisa de tese pelo Curso de Doutorado do
Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio
tiveram uma intensificação durante a ditadura militar na década de 1970,
de Janeiro (MEDEIROS, 2020) e compõe uma das linhas do projeto IMPACTOS DO DISCURSO quando surgiram o Movimento dos Sem Terra, o Movimento Estudantil,
DA CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL PELA MÍDIA (IMPACIS) (Processo:
o Movimento Feminista (empoderamento feminino). Tais movimentos,
307807/2018-5).

88 89
quando estudados, evidenciam em suas estruturas uma forte influência do bastante evidentes e mais numerosos. Essa onda de representações simbó-
marxismo, ideologia muito disseminada na década de 1960. Cada movi- licas levou ao encaminhamento da anistia (1979), assim como à criação de
mento tem seu objeto específico de luta. No entanto, todos expressam as encontros e movimentos sociais, inclusive à criação do MJDH. Em maio de
contradições econômicas e sociais da sociedade brasileira. 1975 houve a criação do Movimento Feminista pela Anistia em São Paulo
Diante do exposto, um dos desafios dos movimentos sociais está na e, após um mês, foi criado o núcleo gaúcho do Movimento Feminino pela
articulação conjunta, resguardadas as diferenças para a elaboração de pro- Anistia em Porto Alegre. Em fevereiro de 1978 cria-se o primeiro Comitê
postas que possam ir para além da globalização econômica, que avance na Brasileiro pela Anistia no Rio de Janeiro e, em abril do mesmo ano, funda-
direção de uma globalização social (SOUZA, 2010). Portanto, entende-se -se um semelhante comitê no Rio Grande do Sul, e em novembro, ocorreu
que um movimento social é uma sociedade civil organizada, que tem por a greve dos metalúrgicos do ABC paulista.
objetivo a busca por direitos e por políticas que buscam a igualdade desses Portanto, os movimentos sociais são resultados de uma ideologia cole-
direitos; nesse sentido, não deixa de ser uma forma organizada de articula- tiva de agrupamentos sociais, ou seja, nascem de uma necessidade social,
ção política, pois dentre suas atividades está o exercício da cidadania com como a busca de igualdade na efetividade de um direito civil ou social,
uma maior participação efetiva dos cidadãos em decisões políticas que os ou de reconhecimento de uma política de inclusão social e de reparação
afetam (MEDEIROS, 2015). das injustiças. Os movimentos sociais buscam mudanças na sociedade por
Para Gohn (1995), os “novos” movimentos meio de ações sociais, como o Movimento dos Sem Terra, o movimento
estudantil, o movimento feminino, e tantos outros movimentos que mar-
são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais caram a sociedade brasileira. Como afirma Alonso:
pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas
demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas
Os novos movimentos sociais seriam, então, antes grupos ou minorias que
ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e proble-
grandes coletivos. Suas demandas seriam simbólicas, gerando em torno do
mas em situações de: conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um
processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movi- reconhecimento de identidades ou de estilos de vida. Recorreriam à ação
mento, a partir de interesses em comum. Esta identidade decorre da força direta, pacífica, baseada numa organização fluída, não hierárquica, descen-
do princípio da solidariedade e é construída a partir da base referencial de tralizada, desburocratizada. Não se dirigiriam prioritariamente ao Estado,
valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo. (GOHN, 1995, p. 44) mas à sociedade civil, almejando mudanças culturais no longo prazo.
(ALONSO, 2009, p. 67)
Pode-se dizer que os movimentos sociais, devido ao seu caráter de
luta e dinamismo, surgiram a partir de reuniões de moradores, no final A partir do cenário político que a sociedade vivia durante a ditadura
dos anos 70, tendo sido talvez o esboço do que hoje se considera um movi- militar no Brasil e somando-se à repressão, principalmente, da falta de
mento social, ampliando-se em reunião de moradores de comunidades, e democracia e da presença da censura, certos agrupamentos sociais perce-
assim por diante, até chegar ao exemplo de movimentos de classe (estudan- beram a necessidade de criação de instituições que amparassem os excluí-
til, operária, entre outras). Durante a ditadura militar, na década de 1970, dos na obtenção dos seus direitos. Então, foram criados diversos movi-
houve uma intensificação da criação de movimentos sociais fortalecendo a mentos sociais e outras entidades com o objetivo de auxiliar as pessoas na
organização dos movimentos estudantis e da classe operária, sendo, então, busca da verdade e em prol dos direitos humanos, e em algumas vezes esses
conhecido como um “período propício para a efervescência dos movimen- locais atuavam de forma clandestina tendo em vista a situação política em
tos sociais” (MEDEIROS, 2015, s/p). que se encontrava o país. É fato que os movimentos sociais contribuíram
No final da década de 1970, os movimentos sociais ligados a direi- para a conquista de vários direitos sociais (GOHN, 2015) ao longo dos anos,
tos humanos ou de oposição e contestação à ditadura militar se tornaram além de serem espaços de resistência coletiva.

90 91
Antes de dar maior aprofundamento às temáticas deste estudo, A “Ditadura autoritária” (ou “simples”) baseia-se nos meios do poder coer-
entende-se por regimes autoritários aqueles que “privilegiam a autoridade citivo (exército, polícia, burocracia e magistratura), possuindo, por isso,
escassa capacidade de propaganda e penetração direta nas instituições e nos
governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso,
grupos sociais, conseguindo apenas reprimir a oposição aberta e contentan-
concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um só do-se com uma massa apolítica e com uma classe dirigente disposta a cola-
órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas” borar. (BOBBIO et al., 1998, p. 375, grifo nosso)
(BOBBIO et al., 1998, p. 94).
No caso do Brasil, houve, como primeiras medidas após o golpe de Esse trecho corrobora com o que foi dito anteriormente pelo mesmo
1964, o fechamento do Congresso Nacional, o cancelamento dos man- autor, que, para alcançar seus objetivos políticos, a ditadura militar recorreu
datos parlamentares e a suspensão dos direitos políticos. Além do dire- ao uso dos instrumentos tradicionais do poder político, ou seja, a natureza
cionamento de apenas dois partidos legalizados, a Aliança Renovadora do poder do regime era exercido pelo exército, pela polícia, pela burocracia
Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), sendo e pela magistratura, ao lado da elite dominante que detinha o poder interno
que o primeiro partido era aliado ao governo militar e o segundo fazia uma por apoiar esse tipo de regime. E no que diz respeito à ideologia, pode-se
oposição branda ao governo. Demais partidos, como o Partido Comunista caracterizar esse regime pelo grau de elaboração ideológica, no caso das
Brasileiro (PCB), viviam na clandestinidade (WASSERMAN, 2009). Esse “Ditaduras simples”, que “caracterizadas por uma distância máxima entre
método político pode ser compreendido no seguinte pensamento: regime e população, em que a elite dominante se mantém unida principal-
mente pelos interesses de exploração” (BOBBIO et al., 1998, p. 376).
Os regimes autoritários burocrático-militares são caracterizados por uma Nesse exemplo, o período da ditadura militar brasileira se encaixa
coalizão chefiada por oficiais e burocratas e por um baixo grau de partici- perfeitamente ao fazer grande uso do aparato estatal e utilizando, de certa
pação política. Falta uma ideologia e um partido de massa; existe frequente-
forma, algumas manobras liberais com o uso de anúncios ou de termos
mente um partido único, que tende a restringir a participação; às vezes existe
pluralismo político, mas sem disputa eleitoral livre. (BOBBIO et al., 1998, p. apelativos à população (propagandas), tais como: “Brasil, ame-o ou dei-
102, grifo do autor) xe-o”, “Quem não vive para servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil”,
“Pra frente Brasil”, dentre outros. Essas formas de propagandas eram comu-
Por isso, para alcançar seus objetivos, “os Governos autoritários mente vistas em adesivos de carros, músicas, hinos (durante a Copa mun-
podem recorrer apenas aos instrumentos tradicionais do poder político: dial de futebol, por exemplo), entre outros meios de comunicação. Isso era
exército, polícia, magistratura e burocracia” (BOBBIO et al., 1998, p. 100). muito bem utilizado pelo governo da ditadura militar de forma a coagir
Esses quatro instrumentos foram amplamente utilizados durante a dita- as pessoas a “amarem incondicionalmente” a pátria brasileira a ponto de
dura militar no Brasil, com características marcantes nos dois primeiros ficarem cegas às manobras políticas do governo. Esse era o período em que
que se fizerem muito presentes na sociedade por meio da violência policial, se encontrava o governo brasileiro e o contexto em que foi criado o MJDH.
da tortura e do desaparecimento de várias pessoas das quais muitas ainda
os familiares não sabem do paradeiro, se estão vivas ou mortas. 3. o arquivo do movimento de justiça e direitos humanos
Segundo Bobbio, “tende-se a designar [ditadura] toda classe dos de porto alegre: direitos humanos e memória
regimes não-democráticos especificamente modernos, isto é, dos regimes O MJDH foi criado, oficialmente (registrado em cartório), por um
não-democráticos existentes nos países modernos ou em vias de moder- grupo de advogados, engenheiros, arquitetos e professores, em 25 de março
nização” (BOBBIO et al., 1998, p. 372), como no Brasil. Ainda, seguindo o de 1979.2 Antes de sua criação oficial, o MJDH já se preocupava, desde a
pensamento do mesmo autor,
2 Relatório anual. MJDH, 1980.

92 93
década de 1960, em auxiliar pessoas perseguidas, não apenas pelos milita- financeira e contábil e à gestão de recursos humanos, portanto inclui as
res brasileiros, mas também pelas ditaduras militares dos países latino-a- mais variadas tipologias, tais como atas de reunião, listas de membros,
mericanos. Esse mesmo grupo formava um conselho, o qual decidia, em estatuto e regimento do MJDH, registro notarial, relatórios de atividades,
reuniões frequentes, as atividades do MJDH. agendas de trabalho, boletim informativo, correspondências com meios
O Movimento teve e tem como finalidade proteger e auxiliar os mais de comunicação, declaração de imposto de renda, relatórios financeiros,
necessitados quanto ao amparo da justiça. Na época em que foi criado registro de emprego, entre outros.
tinha como objetivo principal ajudar os denominados, pelo governo mili-
tar, de subversivos. Atualmente é mantido pelo grupo de criação original, Ao contrário do que ocorreu em São Paulo, onde a resistência aos crimes
possui o mesmo ideal, porém com outros focos, pois a ditadura militar no contra os direitos humanos cometidos pela comunidade de informações foi
construída desde a Arquidiocese com o incentivo e a participação direta de
Brasil terminou em 1985. Ou seja, continua a lutar pelos direitos humanos
Dom Paulo Arns, no sul, a constituição do Movimento de Justiça e Direitos
e sociais, e auxilia na aplicação e uso desses direitos tanto por entidades Humanos teve o apoio de setores da Igreja, mas não da hierarquia eclesiás-
públicas quanto privadas. tica. Assim, quando o MJDH começava a superar a sua “fase catacúmbica”,
Além disso é uma instituição em que se encontra um vasto acervo cresceu a aproximação entre os múltiplos humanistas não-organizados com
contendo documentos (dossiês, processos, fotografias, fitas VHS, entre uma corrente de militantes religiosos estruturados em setores de diferentes
outros), que possui informações de conteúdos sociais e políticos, sendo Igrejas cristãs, entre elas a Igreja Católica, a Luterana, a Presbiteriana e a
Metodista, que passaram a fornecer uma base de apoio tanto de infraestru-
que esses documentos também possuem o caráter de testemunho de fatos
tura como de militância. Suas ações, que nas duas primeiras décadas da dita-
passados. Esse conjunto documental reflete o significado do MJDH para a dura baseavam-se na solidariedade efetiva a perseguidos políticos, serviram
sociedade, ou seja, uma instituição que preserva fontes para a construção para preparar o surgimento de um grupo ao qual se incorporaram outras
de uma memória coletiva do passado e do presente, e que tem muito a forças sociais. (VIOLA, 2005, p. 198)
contribuir para o presente e o futuro da sociedade.
O princípio motivacional de sua criação era a proteção de persegui- O MJDH começou, junto com outras entidades e movimentos sociais
dos políticos da ditadura militar, como afirma o autor Solon Viola: do Brasil e da América Latina, a organizar campanhas como a da Anistia3
pela libertação dos últimos presos políticos brasileiros e pelas Diretas Já.
Nos primeiros tempos, as ações organizadas, mas não orgânicas, representa- Desde 1979 que o MJDH vem atuando em prol dos Direitos Humanos,
vam uma possibilidade de luta contra a ditadura ou uma tentativa de movi- desde a liberdade de expressão por todos os grupos sociais, inclusive pelas
mento em defesa da redemocratização. Tratava-se prioritariamente de um
lutas raciais e indígenas, e também por outros grupos sociais considerados
engajamento na defesa e na proteção da vida e da integridade física dos per-
seguidos pelas ditaduras militares do Cone Sul; mais do que a participação menos favorecidos pela sociedade atual.
formal nos movimentos engajados na confrontação com os governos milita- Além disso, não é apenas o pioneiro na luta pelos Direitos Humanos
res, esses protagonistas sentiam-se no compromisso de assumir com clareza no Rio Grande do Sul, mas também é o propulsor de diversas outras enti-
os riscos de exercer o direito humano à rebelião contra a opressão e a tirania dades afins, por exemplo, a instalação da Comissão de Cidadania e Direitos
(KRISCHKE, 2003). (VIOLA, 2005, p. 196-197, grifo do autor) Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a primeira da

O arquivo do MJDH foi constituído a partir do desenvolvimento 3 “A Lei da Anistia, que abrange crimes políticos praticados entre 1961 a 1979, impede que os
de suas atividades iniciadas em 1979, ou seja, corresponde à documenta- torturadores e assassinos possam ser imputados judicialmente, embora a tortura seja crime
de lesa-humanidade. [...] A busca pelos corpos e as constantes idas e vindas de comissões
ção da administração constitutiva do Movimento. Esse conjunto contém estatais e de familiares rendem poucos frutos, e o tempo urge. Poucas ainda são as mães vivas.
documentos relacionados à fundação, à gestão administrativa, à gestão A grande maioria faleceu sem obter as respostas, ainda aguardadas por filhos e demais fami-
liares de desaparecidos políticos”. (RUBERT, 2014, p. 203)

94 95
história dos parlamentos brasileiros, em 25 de junho de 1980, por meio da o objetivo de promover e tutelar o homem enquanto tal (BOBBIO et al.,
Resolução nº 1.187.4 1998). Somente em 10 de dezembro de 1948 que foi adotada e proclamada a
Antes de elucidar algumas das ações que o MJDH realizou no passado, Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Declaração possui 30 arti-
é preciso trazer nesta seção uma breve reflexão sobre direitos humanos gos que preconizam o bem-estar social, a dignidade, os direitos iguais, a
– como nascem, sua importância e papel na sociedade, principalmente, liberdade mais ampla, o respeito aos direitos humanos, entre outros ideais
naquelas que têm ou tiveram regimes ditatoriais. Essa prévia sobre direi- com o intuito de atingir nacional e internacionalmente todos os povos.
tos humanos será substancial para entendimento de algumas das ações do Porém, sua maior dificuldade, digamos assim, foi a dimensão jurí-
MJDH que estarão alguns parágrafos mais à frente. dica: como declarar algo universal sendo que a realidade moral dos países
Para dar início a essa reflexão sobre direitos humanos, é preciso abor- é totalmente diferente, o que se justifica para um, não, necessariamente, é
dar sobre os direitos do homem, pois é a partir desses últimos que nasceram justificável para outro. Como bem exemplifica Bobbio et al. (1998, p. 356),
os primeiros. Quando se discute sobre direitos humanos, a primeira ideia “a dificuldade em encontrar fórmulas aptas a exprimir os ideais humani-
que vem à mente é sobre as obrigações que o Estado tem perante os cida- tários comuns aos Estados signatários, conciliando as diferenças referen-
dãos e, em alguns casos, esquece-se de que há também os deveres que os tes a tradições jurídicas, sistemas políticos e fé religiosa, é muito notável”.
cidadãos têm perante a sociedade. Apesar de se falar mais em direitos dos Por isso, as Nações Unidas promoveram e ainda promovem as chamadas
homens, há de se lembrar dos seus deveres. Não é possível discutir direi- convenções e conferências que acabam gerando cartas econômico-sociais
tos humanos sem iniciar com a Declaração dos Direitos do Homem e dos nos mais diversos ideais humanitários, resguardando a tutela de valores da
Cidadãos, promulgada pela Revolução Francesa, em 1789, quando houve a pessoa humana. É nesse sentido que o MJDH atua: o respeito à dignidade
separação dos poderes com a autonomia do judiciário e maior participação humana tanto no seu caráter social e econômico, como se poderá visuali-
dos cidadãos com representantes próprios na política (BOBBIO et al., 1998). zar nos próximos parágrafos.
Apesar do teor individualista da declaração, seu conteúdo foi trans- Uma das atuações mais famosas do MJDH foi sua participação ativa
formado pelo princípio de igualdade, abrindo novas dimensões ao tema na defesa dos uruguaios pelo sequestro de Lílian Celiberti, seus dois filhos
dos direitos humanos. Ou seja, menores e de seu companheiro, Universindo Diaz, ocorrido em Porto
Alegre, no dia 12 de novembro de 1978. O MJDH colaborou de diversas for-
[...] pôs-se em evidência que o indivíduo não é uma mônada mas um ser mas com as autoridades envolvidas, como na denúncia da ação ilegal, além
social que vive num contexto preciso e para o qual a cidadania é um fato de lutar pela condenação dos policiais envolvidos e pela libertação do casal.
meramente formal em relação à substância de sua existência real; viu-se que
O caso teve repercussão internacional, pois foi o primeiro em que uma
o indivíduo não é tão livre e autônomo como o iluminismo pensava que
fosse, mas é um ser frágil, indefeso e inseguro. (BOBBIO et al., 1998, p. 354) clássica ação da Operação Condor foi denunciada, investigada e levada até
o final, com a condenação de seus responsáveis.
Isso fica evidente quando um grupo de indivíduos passa a pensar em
O sequestro dos uruguaios teve o apoio do Serviço Nacional de Informação
melhorias das condições do homem em todas as esferas (sociais e civis) (SNI), do Centro de Informações do Exército e dos agentes do Dops de Porto
com o intuito de qualificar os ideais humanos e, ao mesmo tempo, assegu- Alegre. Naquele episódio ficou evidenciada a forma promíscua adotada nas
rar de fato o respeito aos direitos humanos. Portanto, é a partir da Segunda ações dos sistemas de informação das ditaduras do Cone Sul. (CONTREIRAS,
Guerra Mundial que foi possível ser criada uma ação internacional com 2010, apud RUBERT, 2014, p. 203)

Além desse caso, vale a pena destacar mais alguns outros casos
4 Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/com/comissa.asp?id_comissao=46&id_comissao-
pai=&id_tipocomissao=1&id_comitem=his> Acesso em: 19 Set. 2020. defendidos pelo MJDH e que obtiveram o êxito do seu apoio, como o

96 97
prestado às Mães da Praça de Maio; à Associação de Familiares Uruguaios documentação presente no acervo do MJDH pode atuar como recurso para
Desaparecidos; à fuga do cientista Cláudio Benech; à luta contra a edi- a memória, recurso para investigação judicial e testemunhal sobre as viola-
tora neonazista Revisão; à denúncia do Caso Sandro Yost. Entre muitos ções de direitos humanos, recurso de resistência política.
outros apoios que foram oferecidos, sempre tendo como principal objetivo De acordo com Schindel (2009), a memória pode ser caracterizada
a defesa aos direitos humanos, independentemente da nacionalidade dos pelos lugares, como os lugares de memória de Nora (1993). Schindel afirma
que participam do caso. Outras inúmeras circunstâncias vividas pelo MJDH que há três tipos de lugares de memória a partir das ditaduras nas socie-
estiveram relacionadas com a coleta de dados e depoimentos de familiares dades latino-americanas e que eles interagem entre si: a) locais de teste-
ou conhecidos próximos de mais de cinquenta pessoas desaparecidas. munho; b) monumentos, museus e memoriais; e c) estratégias locais e
Essas são apenas algumas das muitas ações que o MJDH já prestou performances como delimitadores de lugar de memória. Esses lugares de
para centenas de pessoas que recorreram e recorrem até hoje a seu auxílio, memória têm como objetivo principal fazer com que o passado não seja
tanto jurídico quanto humanitário na defesa dos direitos humanos. Essa esquecido, neste caso, lembrar que a ditadura militar ocorrida na América
pequena lista de casos reforça que, em sua maior parte, a atuação cotidiana Latina foi extensa e perversa.
do Movimento destina-se a proteger cidadãos da opressão e da repressão de Para este estudo, o MJDH é considerado um lugar de memória pelo
órgãos estatais, bem como buscar o fim da corrupção e injustiça que assola seu atuante papel envolvendo as dimensões de testemunho, prova e fontes
o país. Além disso, dentre outras atividades, inclui-se a criação de organiza- de memórias, conforme as categorias da autora Schindel. Por isso, hoje,
ções e associações de “moradores de bairros pobres da Grande Porto Alegre, esses lugares de memória (como o MJDH) são mecanismos e lugares de
o MJDH ajudou a criar 132 associações” (VIOLA, 2005, p. 200). registro, testemunho e memória do passado, pois muitos dos documentos
desse período não existem mais em órgãos governamentais ou privados,
Entre as ações planejadas pelo MJDH para reorganização da sociedade civil, por negligência ou interesse do Estado.
seu Estatuto destacava entre seus objetivos os de “promover a criação de Daí a importância que esses lugares de memória têm na sociedade
núcleos do Movimento ou órgãos assemelhados em todo o Estado” (MJDH,
atual, pois refletem o ambiente em que foram contextualizados, permi-
1980, p. 7). Foram criados núcleos nas cidades de São Leopoldo, Santa Maria,
Caxias do Sul, Pelotas, Alvorada, Venâncio Aires, Cruz Alta, Passo Fundo e tindo desde a reparação judicial ao conhecimento sobre parentes desapa-
Novo Hamburgo. O Movimento participou, também, como coordenador, na recidos, entre outros, conforme afirma a autora Jelin:
criação de entidades na Região Sul, organizando seminários de formação e
debate (MJDH, 1984, apud VIOLA, 2005, p. 200) As informações que podem existir neles (arquivos) ou que podem ser
encontradas são importantes para muita gente: as pessoas afetadas que estão
Além de criar parcerias com associações de jornalistas e a Ordem procurando documentos que servem como provas jurídicas; as pessoas afe-
tadas que querem algum tipo de reparação e precisam de documentos que
dos Advogados do Brasil, por exemplo, tendo como resultado dessa socie-
provem seu sofrimento; as pessoas afetadas que buscam informações para
dade o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, que acontece anualmente conhecer o destino final de seus familiares, colegas ou amigos; as pessoas
desde 1984, premiando notícias de valor notório pela concessão de um afetadas que desejam estabelecer a legitimidade de sua voz, mesmo que não
Prêmio que tem como enfoque valorizar a matéria do jornalista, sem lhe haja benefícios econômicos ou instrumentais de imediato. (JELIN, 2002, p.
incumbir um valor financeiro. 08, tradução nossa)
Portanto, “o MJDH tem disponibilizado seus arquivos, com docu-
mentos de toda América Latina, tanto para pesquisadores como para orga- Nesse sentido, a memória possui concomitantemente um caráter
nismos dos governos nacionais que se comprometem com a recuperação social e cultural, sendo então vista como uma ferramenta de construção do
da memória [...]” (VIOLA; PIRES, 2013, p. 338), tendo em vista que essa indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte. Portanto, o fenômeno social

98 99
da memória está associado a acionamentos do passado a partir do pre- professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O pro-
sente. Isso significa dizer que voltar-se para o passado é sempre estimulado jeto finalizou em 2013 e resultou na publicação do livro Memórias da resis-
a partir de algo que irrompe no presente, logo, esse passado é construído tência e da solidariedade: o Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra
a partir do presente. Este é o caso do MJDH, que, por possuir um vasto as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva.
acervo documental de relação muito estreita com o tema direitos huma- Portanto, o acervo está organizado conforme a estrutura e as ativida-
nos, se torna um ponto - chave para a construção de memória e identidade des desenvolvidas pelo MJDH, conforme o Quadro de Arranjo do MJDH. O
de um grupo, ou mesmo de um só indivíduo, pois ele valoriza determina- termo quadro de arranjo é definido, de acordo com o Dicionário Brasileiro
dos acontecimentos, de modo a não deixá-los cair no esquecimento. de Terminologia Arquivística, do Arquivo Nacional (2005, p. 141), como
Consequentemente, a partir dessas definições, entende-se que o “esquema estabelecido para o arranjo dos documentos de um arquivo(1),
MJDH contempla duas acepções de arquivo. Primeiro porque é um lugar a partir do estudo das estruturas, funções ou atividades da entidade pro-
de memória com a custódia de acervo com características arquivísticas. dutora e da análise do acervo. Expressão adotada em arquivos permanen-
Segundo porque acumula e preserva um conjunto de documentos que se tes(2)”. Logo, o quadro de arranjo do MJDH foi elaborado visando identifi-
relacionam entre si e refletem as atividades da instituição. Ainda, destaca- car as atividades do Movimento levando-se em consideração o contexto dos
-se a importância desse tipo de arquivo, como é o acervo do MJDH: documentos presentes no acervo, ou seja, sua formação orgânica e natural.
O Quadro de Arranjo do MJDH está definido por Séries e Subséries,
De fato, no caso dos países envolvidos em processos de transição de regimes assim definidas: 1 – Administração e Organização do MJDH: documen-
totalitários a sistemas políticos democráticos, a vinculação arquivos-direitos tação constitutiva, gestão administrativa, gestão financeira e contábil,
humanos adquire uma dimensão especial. Os arquivos, fundamentalmente
recursos humanos, política institucional; 2 – Promoção e intervenção na
os das instituições protagonistas na repressão ou na violação de direitos
humanos, como fiel reflexo das realidades sociais em que foram produzidos, defesa dos direitos humanos: segurança pública, crianças e adolescentes,
fornecem ou devem fornecer informações de extraordinário valor social nos discriminação social, condições de trabalho, ações de cooperação, con-
processos de transição para a democracia. (GONZÁLEZ QUINTANA, 1999, flitos de posse, meio ambiente, violação de direitos humanos, educação,
p. 372, tradução nossa) processos judiciais; 3 – Terrorismo de Estado no período da Ditadura –
Cone Sul: repressão, prisão, tortura, sequestro –, morte e desaparecimento
Assim, compreende-se a importância que esses acervos arquivísti- de pessoas, organizações sociais, depoimentos e testemunhos de vítimas e
cos custodiados em lugares de memória possuem, pois são ferramentas familiares ao MJDH, correspondências de vítimas e familiares ao MJDH,
fundamentais para a construção de narrativas a respeito da memória e da Operação Condor, intercâmbio de organizações sociais, exílio e refúgio; 4
história desse período, visto que os arquivos são instituições custodiadoras – Processo de Redemocratização no Cone Sul: distensão política no Brasil,
de documentos que relatam uma parcela da história do Brasil que permi- repressão e violência, anistia, transição democrática, abertura dos arqui-
tem construir a memória de um período tão autoritário para a sociedade vos, memórias/manifestos/entrevistas, reparação e indenização de vítimas;
brasileira. Lembrando que, “para as vítimas, esses documentos funcionam 5 – Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo: trabalhos premiados, tra-
como chaves da memória, já que permitem a reconstrução de um frag- balhos apresentados não premiados; 6 – Recortes de Jornais; 7 – Estudo e
mento de suas vidas e, muitas vezes, recompõem as identidades quebradas publicações; 8 – Acervo fotográfico e audiovisual.
pela situação extrema que viveram durante os anos de repressão política” Consequentemente, pelo quadro de arranjo não só se identificou a
(CATELA, 2002, p. 213, tradução nossa). trajetória do MJDH pela defesa dos direitos humanos, mas também foi pos-
O acervo do MJDH foi organizado e ordenado arquivisticamente sível identificar sua forte relação com a memória, com a memória daque-
em 2009, pelo projeto de extensão coordenado por Jorge Enrique Vivar, les que foram violentados pelo Estado, pelo governo, pela sociedade. A

100 101
memória do Movimento pode ser representada pelas atividades que estão refletem a pluralidade da memória e da identidade do MJDH, podendo,
registradas no seu acervo, já que podem ser consideradas testemunhos da inclusive, ser dispositivos de memória de um acontecimento passado, pois
violência, da discriminação, da ausência do Estado, da própria participação podem reconstruir o que estava fragmentado. Portanto, entende-se que o
do Movimento como representante dos direitos humanos em eventos, em acervo do MJDH funciona como um conjunto de símbolos para a memória
Comissões, em audiências, em processos, em manifestações. Esse conjunto e que este conjunto fornece evidências de um acontecimento, consequen-
de documentos deve estar à disposição da população para contribuir para a temente são fontes de investigação, além de fornecer fontes de pesquisas
construção de sua memória coletiva (GONZÁLEZ QUINTANA, 1999). quanto à tortura e prisão, aos direitos humanos, à violência policial, às
Além disso, entende-se que esses documentos podem ser utilizados denúncias políticas, à discriminação racial e social, entre outras.
como ferramentas para reconstrução da memória. Assim, podem ser instru- Sendo assim, pode-se dizer que o acervo do MJDH é resultado da
mentos para a rememoração de um grupo, já que os registros de atividades vontade de preservação do passado, logo possui valor social e de memória
encontrados no acervo do MJDH incluem os mais diversos assuntos, desde de lutas e defesas em prol dos direitos humanos de um grupo social. Ainda
denúncias políticas, violência policial, criação de associações, depoimentos cabe dizer que nada do que se preserva é neutro, o acervo do MJDH traz
e testemunhos de ex-presos políticos, entrevistas em jornais e rádios, grava- como assinatura da instituição a representatividade de um grupo por meio
ção de documentários, Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, palestras de símbolos.
em evento e universidades, entre outras atividades que o Movimento reali-
zou e realiza todos os anos. Todos esses documentos registrados refletem a Um arquivo pode parecer obscuro, onde pouco acontece até que um evento
pluralidade da memória e da identidade do próprio MJDH, assim como do difuso revele o significado mais profundo de sua existência. A comunicação
de significados que canalizam os arquivos tem implicações diretas nas for-
grupo que ele representa, na medida em que são testemunhos insubstituí-
mas de reconstrução das memórias e na afirmação das identidades sociais,
veis das atividades de que participou ou ainda participa. coletivas, nacionais e municipais. Mas os sentidos que condensam não são
O acervo (documental, fotográfico e audiovisual) que se encontra atemporais ou se manifestam a qualquer momento e diante de qualquer
no MJDH pode ser considerado como uma reafirmação democrática, pois observador. (CATELA, 2002, p. 215, tradução nossa)
exercem os direitos coletivos e individuais do grupo que ele representa
como um movimento social, assim como a sociedade no seu entorno. O Esses sentidos, os símbolos de que fala a autora, são capazes de alte-
acervo reflete o modo de operação da produção dos acontecimentos dos rar o rumo da história, mas, para isso, necessitam do desejo de um grupo
quais o Movimento participou, e desse modo, querendo ou não, o acervo (ou de uma pessoa/observador) que queira dar um significado, uma inter-
possui uma linearidade dos fatos que permite a transmissão desses aconte- pretação àqueles símbolos. Neste estudo, o grupo está sendo representado
cimentos ao longo do tempo. Como afirma a autora Catela (2002): pelo MJDH, o qual representa um movimento social em busca dos direitos
humanos e luta por essa causa desde a década de 1970. A própria trajetória
A passagem do tempo confere aos documentos um valor e um poder dife- do Movimento é uma representação da memória.
rente de sua origem. Dá-lhes valor histórico, o que os torna objetos deseja-
dos por pesquisadores e colecionadores, bem como por indivíduos em geral.
Também lhes dá um valor de identidade, permitindo que indivíduos e insti- 4. conclusão
tuições configurem memórias fragmentadas ou violentadas. (CATELA, 2002,
Neste capítulo discutiram-se os campos de movimentos sociais, regi-
p. 202 e 203, tradução nossa)
mes autoritários e direitos humanos com base no acervo do Movimento de
Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, a partir do papel dos arquivos
E essa transmissão de acontecimentos por meio dos documentos pos-
de movimentos sociais na busca e defesa pelos direitos humanos individuais
sui uma significação social, já que os documentos presentes nesse acervo

102 103
e coletivos. Essa proposta enfatizou as atividades do Movimento, ou seja, temática como categoria especial, como Meio Ambiente, Vida e Obra
evidenciou seu papel na luta pelos direitos humanos. de Leonel Brizola, Violência no Campo, Trabalho Escravo, 70 anos da
Destaca-se que a pluralidade de atividades que podem ser encon- Declaração Universal dos Direitos do Homem, Futuro Ameaçado, entre
tradas na trajetória do MJDH demonstram sua autonomia na sociedade e tantos outros. O prêmio não envolve premiação em dinheiro, ou seja, ao
nas atividades que desempenha, ou seja, o Movimento possui uma grande primeiro lugar é entregue um troféu e aos segundo e terceiro lugares um
articulação na sociedade em que atua, ficando evidente sua força e repre- diploma. Essas duas atividades, além de promoverem o MJDH, promovem
sentatividade no caso do sequestro dos uruguaios, na mediação entre as e fomentam ações de direitos humanos, principalmente em apoio àqueles
Mães da Praça de Maio com o Papa, na Comissão de Direitos Humanos da grupos e sujeitos cujos direitos foram violados.
Assembleia Legislativa do RS, na Comissão Nacional da Verdade, Comissão Os temas da ditadura civil-militar na América Latina e dos direitos
da Anistia, Projeto Marcas da Memória, entre outros casos. Essa articula- humanos são atuais e são debatidos constantemente na (e pela) sociedade,
ção do MJDH pode repercutir nos seus discursos de memória, da ditadura pois a relevância dos temas movimentos sociais, direitos humanos, memó-
militar, dos direitos humanos, de solidariedade, de resistência, dentre mui- ria e identidade está cada vez mais pertinente, principalmente após a rede-
tos outros que podem ser encontrados ao longo da sua trajetória. mocratização do país, quando os movimentos sociais tiveram relevante
Portanto, todos os discursos sobre o que o MJDH representa como papel na condução desse processo. Já os temas sobre direitos humanos,
um movimento social estão conectados direta ou indiretamente com suas memória e identidade, até hoje frequentam a agenda pública em campa-
atividades registradas em seu acervo, ou seja, isso categoriza o acervo do nhas amplamente divulgadas nas redes sociais. Ainda, os movimentos
Movimento como de utilidade social e como uma organização coletiva pela sociais, assim como as instituições criadas em sua defesa, podem ser consi-
defesa e resistência dos direitos humanos. Por consequência, os documen- derados lugares de memória, podendo ser caracterizados como memórias
tos presentes nesse acervo são como porta-vozes da memória de diversos vivas e testemunhos daqueles fatos que ocorreram no passado, pois impe-
grupos sociais, já que, além de transmitirem informação, carregam a tra- dem que a memória caia no esquecimento da sociedade.
jetória simbólica de grupos e sujeitos. Uma memória como recurso para Portanto, o acervo do Movimento faz desse lugar uma ferramenta
a justiça e para a verdade, como símbolo para a memória ausente, para o social e de resistência, bem como uma fonte de dados e de resguardo de
esquecimento. evidências por documentos que têm o caráter de testemunho e de prova de
Em quase na sua totalidade, as ações do MJDH fomentam apoio a gru- que aqueles fatos ocorreram. Além de ser um instrumento social, o arquivo
pos e sujeitos que tiveram seus direitos subjugados ou violados. Além disso, do Movimento é um lugar que mantém em exercício a memória, evitando
duas atividades de promoção tiveram maior destaque: ambas foram criadas que se torne ausente e, consequentemente, se torne esquecimento. Logo,
pelo Movimento com parceria com a OAB/RS e outras entidades, e repercu- os arquivos representam, por meio da informação que preservam, uma
tem em diversas outras ações, inclusive incentivando o conhecimento por memória de resistência de um determinado grupo ou sujeito, permitindo
meio da transmissão da informação sobre a violação de direitos individuais o respeito à pluralidade de memória e de identidades.
ou coletivos. Uma dessas atividades é o Projeto Marcas da Memória, que
tem por objetivo identificar com placas os locais que foram utilizados como referências bibliográficas
prisões e lugares de tortura durante a ditadura militar no Brasil.
ALONSO, Angela. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua
A outra atividade é o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, que
Nova, São Paulo, 2009, n.76, p. 49-86.
tem por objetivo premiar matérias jornalísticas que tiveram destaque em
ARQUIVO NACIONAL. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de
determinado ano, sempre levando em consideração o tema voltado aos Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
direitos humanos. A premiação ocorre todos anos e em cada ano há uma

104 105
BAUER, Caroline Silveira. Um lugar de memória no esquecimento: o monumento SCHINDEL, Estela. Inscribir el pasado en el presente: memoria y espacio urbano.
aos mortos e desaparecidos políticos em Porto Alegre. Revista Memória em Rede, Revista Política y Cultura, n. 31, 2009, p. 65-87.
v.7, n.13, jul/dez, 2015, p. 58-68. SOUZA, Maria Antônia de. Movimentos sociais no Brasil contemporâneo: parti-
BOBBIO, Norberto; MATYEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de cipação e possibilidades no contexto das práticas democráticas. Disponível em:
política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. <http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/MariaAntoniaSouza.pdf> Acesso em: 19 set.
CATELA, Ludmila da Silva. El mundo de los archivos. In: Ludmila da Silva Catela; 2020.
Elizabeth Jelin. Los archivos de la represión: documentos, memoria y verdade. VIOLA, Solon Eduardo Annes. Direitos Humanos e democracia no Brasil. 2005.
Madri: Siglo Veintiuno de España editores, 2002, p. 195-221. 343 f. Tese (Doutorado). Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São
CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor. O sequestro dos uruguaios: uma reporta- Leopoldo, 2005.
gem dos tempos da ditadura. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. VIOLA, Solon Eduardo Annes; PIRES, Thiago Vieira. Movimento de Justiça e
GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na História do Brasil. 5ª ed. São Direitos Humanos e reorganização da sociedade civil. Revista Sociedade e Cultura,
Paulo: Loyola, 1995. v.16, n.2, jul/dez, p. 329-339, 2013.
GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e WASSERMAN, Claudia. O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, “celeiro” do Brasil.
novos atores sociais. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015. In: Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e
memória. PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; FERNANDES, Ananda
GONZÁLEZ QUINTANA, Antonio. Archivos y Derechos Humanos. Boletín de la
Simões; LOPEZ, Vanessa Albertinence (Orgs.). Porto Alegre: CORAG, 2009. v.1.
ANABAD, Tomo 49, n° 3-4. Espanha, 1999, p. 371-389. Disponível em: <https://
dialnet.unirioja.es/servlet/autor?codigo=50027>. Acesso em: 10 mar. 2019.
JELIN, Elizabeth. Introducción. Gestión política, gestión administrativa y gestión
histórica: ocultamientos y descubrimientos de los archivos de la represión. In:
Ludmila da Silva Catela; Elizabeth Jelin. Los archivos de la represión: documentos,
memoria y verdade. Madri: Siglo Veintiuno de España editores, 2002, p. 01-14.
MEDEIROS, Alexsandro M. Breve história dos movimentos sociais no Brasil. Dis-
ponível em: <https://www.sabedoriapolitica.com.br/products/breve-historia-dos-
-movimentos-sociais-no-brasil/>. Acesso em: 10 ago. 2018.
MEDEIROS, Roberta Pinto. Fotojornalismo e memória no Prêmio Direitos Huma-
nos de Jornalismo (1984-1990) – Movimento de Justiça e Direitos Humanos
(MJDH). 2015. 124 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pelotas,
Pelotas, 2015.
MEDEIROS, Roberta Pinto. A construção da memória e da identidade pelos movi-
mentos sociais: a atuação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto
Alegre relatada em seu acervo. 2020. 246 f. Tese (Doutorado). Universidade Fede-
ral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
MJDH, Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Estatuto do Movimento de Jus-
tiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, RS (2009). Porto Alegre, RS: 2009.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História,
v. 10, n.2, p. 07-28, 1993.
RUBERT, Silvania. Para reconciliar é preciso esquecer?: reflexões sobre as possibi-
lidades de resgate da memória da repressão política no Brasil. In: Entre a memória
e o esquecimento: estudos sobre os 50 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil. Porto
Alegre: Editora Deriva, 2014, p. 191-210.

106 107
7. Entre nós, o bem e o mal A construção social do ódio apoia-se em dramas e tragédias pes-
soais. Sua pedra fundamental é o sofrimento; sua argamassa, a capaci-
Lucas Graeff dade humana de narrar; e sua força de trabalho, as relações sociais. Com
os devidos ingredientes em seu lugar, a construção cresce e se fortalece,
ganhando ares de obra coletiva. Do alto da edificação, um novo horizonte
se estabelece para todos verem: um domínio delimitando um espaço de
pertencimento comum. Uma vez identificados os culpados, será fácil pro-
teger a comunidade, sua narrativa e o sentido da obra: bastará indiciá-los e
expurgá-los para longe ou mantê-los cativos e sob observação.
1. no princípio era a dor
Entre fevereiro de 2020 e março de 2021, cerca de 400.000 mil pessoas 2. das dores que mobilizam
morreram de COVID-19 no Brasil. Um número equivalente ao da popula- “Nada pior que uma revolução que falha.” (Pierre Bourdieu2).
ção da cidade de Olinda/PE.1 Se estimarmos em seis, em média, o número
de familiares e amizades de todas essas pessoas, chegamos a um número de Em 6 junho de 2013, cerca de 2 mil pessoas se mobilizaram na cidade
2,4 milhões de pessoas que foram afetadas imediatamente por essas mortes. de São Paulo para protestar contra o aumento da tarifa da passagem de
Para quem sofre com a morte de um familiar ou de uma amizade, ônibus que acabara de ser aprovado pelo Prefeito Fernando Haddad, do
números costumam não bastar para dar sentido à perda. O que aconte- Partido dos Trabalhadores. A mobilização de pessoas foi organizada pelo
ceu? Houve descuido de alguém? Foi um acidente? Há culpados? Alguns Movimento do Passe Livre, um coletivo criado na Plenária Nacional pelo
encontrarão respostas no destino e no azar das circunstâncias: suas perdas Passe Livre, que teve lugar na cidade de Porto Alegre, no sul do Brasil, em
resultaram de processos impossíveis de antecipar pela razão humana; de janeiro de 2005. Cerca de dez dias depois da mobilização do Passe Livre,
uma sequência de circunstâncias inadiáveis e invisíveis; do infortúnio e centenas de novas manifestações eclodiram no Brasil, chegando a um
do acaso; de potencialidades e prescrições já presentes, talvez, no código ponto espetacular em 17 de junho, com mais de 70 mil participantes em
genético, nas leis ou nos costumes, que se atualizaram no momento e nas São Paulo e outras dezenas de milhares no Rio de Janeiro e outras capi-
circunstâncias em que deveriam se atualizar. Mas outras direcionarão sua tais brasileiras. Segundo as informações e cálculos da imprensa e da polí-
busca de sentido para dirigentes e representantes políticos, para especia- cia, reuniram-se naquele dia mais de 1 milhão de pessoas em todo o país
listas da área da saúde ou, simplesmente, para a maldade essencial de uma (ANTUNES; BRAGA, 2014).
pessoa qualquer, do próximo, de um vizinho, de um concidadão ou de um Os movimentos de protesto contra o aumento da tarifa de ônibus são
estrangeiro. incomparáveis com a mobilização de busca por respostas gerada pela dor
A dor é um afeto poderoso. Ela mobiliza a busca por respostas. Ela da perda de uma pessoa próxima. Ainda assim, não podemos dizer que
transforma o desespero em narrativa: eis a causa, a decisão original que não há mal-estar na sua origem ou, como no caso da dor da perda, que é
girou o mundo de ponta-cabeça; eis as consequências funestas do gesto, ilegítima a sua busca por respostas e responsáveis. Os protestos contra o
que ceifou a vida de meu próximo. A tristeza não tem fim, mas ao menos aumento das tarifas de ônibus trouxeram à tona as ambivalências do desen-
podemos dar conta do que se passou, justificar o ocorrido e, quem sabe, volvimento urbano e social nas grandes cidades brasileiras (CAMPELLO;
evitar que se reproduza. GITTEL, 2016), assim como foram reveladoras da evolução do capital

1 https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pe/olinda/panorama. 2 “Rien de pire qu’une revolution ratée” (BOURDIEU, 2006).

108 109
cultural nacional – que pode ser medido, ao menos parcialmente, pelo nos importa imediatamente é notar que as rápidas mudanças demográficas
acesso de jovens e adultos aos diplomas de ensino médio e superior.3 e culturais pelas quais o Brasil passou nas últimas duas décadas oferecem
Somados às novas mídias de socialização e comunicação que emer- um quadro particular às mobilizações de dores e mal-estares que, a nosso
giram e se consolidaram ao longo da primeira década do ano 2000,4 esses ver, servem de fundamento à (re)construção social do ódio no Brasil. Isso
dois fatores são os principais ingrediente às ebulições políticas que se pro- porque essa “massa crítica” é necessariamente dotada de mais capital cultu-
duziram a partir das eleições de 2014. As ambivalências frente ao desen- ral que a geração de jovens e adultos nascida no final da ditadura militar e
volvimento urbano e social no Brasil estão presentes nas mídias tradicio- durante o período de redemocratização – e isso pelo acesso tanto ao ensino
nais e nas conversas informais transfiguradas de noções típicas da política formal quanto à internet e às novas mídias de socialização e comunicação.
moderna: segurança, emprego, educação, saúde e previdência social.
Apesar de estar entre os quinze países recordistas em mortes violentas no 3. das mobilizações à corrupção
mundo, a população do Brasil cresceu cerca de 50% entre 1991 e 2018 –
cerca de 70 milhões de pessoas a mais no período, em números absolutos. Dor, mal-estar, demografia, ensino superior, internet e mídias digi-
Considerando que mais de 80% dos brasileiros vivem em cidades (IBGE, tais: eis alguns dos ingredientes sem os quais não temos como compreen-
2018) e que, no mesmo período, o número de matrículas no ensino supe- der a construção social do ódio no Brasil contemporâneo. Dores: além da
rior quadruplicou no país,5 podemos inferir que o perfil sociocultural dos perda de um próximo, o desprezo social (HONNETH, 2006), a tirania do
jovens e adultos brasileiros não apenas se transformou, mas tornou-se uma instante (VIRILIO, 2002), a injunção da adaptação em um mundo liberal
massa crítica para novos pleitos sociais e plataformas políticas. (STIEGLER, 2018), a hiperdivisão do trabalho em cliques (CASILLI, 2019).
Em que consiste essa massa crítica e em que medida ela é mais ou O número crescente de jovens e adultos que sofre dessas dores ou que as
menos heterogênea é uma questão do presente. Há pesquisas finalizadas pressente leva a reações e mobilizações de massas de indivíduos que, em
e em andamento a esse respeito, mas, posto que o nosso objetivo não é muitos casos, não se conhecem pessoalmente mas se reúnem por meio de
perfilar a população, mas compreender a construção do ódio no Brasil, plataformas e aplicativos digitais. Esses, por sua vez, servem de contrapo-
nos limitaremos a indicar algumas delas nas referências deste artigo.. O que der face às mídias impressa, radiofônica e televisiva, cuja imagem se carica-
turiza em bloco: são elas, as mídias “tradicionais”, que abandonaram a sua
3 “(…) o conjunto de bens culturais, quadros, monumentos, máquinas, objetos trabalhados vocação: representar a opinião pública e contrabalançar a representação
e, em particular, todos aqueles que fazem parte do meio ambiente natal, exercem um efeito política. As mídias ditas “sociais” revogam essa vocação, pois, através delas,
educativo por sua simples existência, é, sem dúvida, um dos fatores estruturais da explosão
escolar, no sentido em que o crescimento da quantidade de capital cultural acumulado no podemos expressar diretamente nossas opiniões pessoais que, quando
estado objetivado aumenta a ação educativa automaticamente exercida pelo meio ambiente. associadas à de outras pessoas, revelam autenticamente quem somos e o
Se se acrescentar a isto o fato de que o capital cultural incorporado cresce constantemente,
vê·se que, em cada geração, cresce o que o sistema escolar pode considerar como aquisição. O
que queremos.
fato de que o mesmo investimento educativo terá um rendimento crescente é um dos fatores É nesse caldo de ingredientes amargos que, em outubro de 2014, o
estruturais da inflação de diplomas (ao lado dos fatores conjunturais que estão ligados a efei- Brasil preparou-se para uma nova eleição presidencial. À época, a pola-
tos de reconversão do capital).” (BOURDIEU, 1999, p. 221, nota de rodapé).
4 Não é preciso citar os nomes das plataformas digitais e aplicativos de comunicação digital
rização entre o Partido dos Trabalhadores e o Partido Social Democrata
aqui. Basta mencionar a expressão “redes sociais” para pensarmos nos nomes das empresas Brasileiro reiterava-se nas candidaturas da então presidenta Dilma Roussef
que criaram ou adquiriram essas plataformas e aplicativos que, hoje, ocupam boa parte da e o ex-governador de Minas Gerais, Aécio Neves. A eleição foi decidida no
vida social brasileira nas grandes, médias e pequenas cidades.
5 Em 1991, o número de matrículas no ensino superior no Brasil foi de 1.565.056. Em 2017, o
segundo turno e por uma pequena margem de votos: cerca 3,5 milhões, ou
número foi de 8.286.663 (INEP, 2019). Segundo estudo recente publicado na Revista FAPESP, 3% do eleitorado. E, o que é mais importante, a presidenta reeleita contaria
“Cerca de 20% da população entre 18 e 24 anos de idade estão matriculadas em um curso com uma base frágil no Congresso Nacional e, sobretudo, uma composição
superior” (QUEIROZ, 2019, s/p).

110 111
de deputados federais considerada como a mais conservadora desde o final As explicações históricas e culturais confortam a visão daqueles e
da ditadura militar, em 1985. daquelas para quem há pessoas que são naturalmente imorais e, por falta
O ano de 2015 iniciou-se tenso e difícil para o Governo Federal. O de leis e punições adequadas, causam males a tantas outras, tidas como
candidato perdedor Aécio Neves continuava defendendo a tese de fraude inocentes ou “de bem”; elas confortam também a crença em causas sociais
eleitoral e recontagem de votos; o Partido do Movimento Democrático da corrupção, em particular o papel das instituições e políticas que pre-
Brasileiro, que compunha a chapa de Dilma Roussef, acabara de vencer miam a corrupção. Neste prisma, a corrupção é endêmica no país porque:
uma batalha com o Partido dos Trabalhadores, elegendo o Deputado 1) há pessoas corruptas por natureza; 2) há pessoas que se tornam cor-
Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara dos Deputados. Além dele, ruptas quando a oportunidade se apresenta; e 3) não há instituições sufi-
nomes como Waldir Maranhão (PP-Pernambuco), Beto Mansur (PRB-SP), cientemente estabelecidas para punir a corrupção e premiar a boa conduta
Felipe Bornier (PSD-RJ) e Mara Gabrilli (PSDB-SP) foram eleitos para vice- moral. Conclusão: somos corruptos em nosso dia a dia e/ou quando ocu-
-presidência e secretaria do mandado de Eduardo Cunha. Todos de par- pamos posições institucionais seja porque há algo de imoral em nós, seja
tido de oposição, portanto. porque a situação apresentou-se de tal forma que foi impossível nos esqui-
Em março de 2015, um novo episódio de protestos de massa se pro- varmos dela. E, ao final, contribuímos cada um de nós ao ciclo reprodutivo
duziu no país. Desta vez, a palavra de ordem foi “corrupção”. À imagem da corrupção.
das vésperas do golpe civil-militar de 1964, a palavra corrupção impôs- Como resistir a um mal que se encontra em nós, em nossa cultura e
-se como significante “mais real que aquilo que simboliza”, parafraseando em nossa história? Um leitmotiv é fazer desse mal uma categoria de acu-
Claude Lévi-Strauss (2003). Neste caso, a palavra corrupção circulou na sação. Ao invés de aceitar a corrupção como uma luta entre o bem e o
televisão, nas rádios, nos jornais e nas redes sociais tanto para determinar o mal central em nossa existência, acusa-se o Outro de corrupção. O Outro
significado das experiências subjetivas de desprezo social, quanto para lhes corrupto não deixa de ser o mal interior contra o qual precisamos, mas ele
dar sentido, endereçando-as a tal responsável político, tal especialista, tal torna possível a expiação desse mal. O Outro corrupto, quando sacrificado,
concidadão ou tal estrangeiro. Uma categoria de acusação, portanto, indi- confirma as virtudes do grupo que o sacrifica. Em outras palavras, é como
cando as origens das dores e do mal-estar que muitos de “nós”, brasileiros, se “nós”, a “comunidade”, dispuséssemos de valores universais desafiados
sentíamos em nossas vidas àquela época. pelos cidadãos de mal – “seres caídos do paraíso”, seres amorais, monstros,
estrangeiros... Ou melhor: é justamente a violação dos valores universais
4. o mal entre nós que caracteriza o corrupto e, por extensão, os próprios valores da comuni-
dade. Afinal, o que é o corrupto senão um “cidadão do mal” que rompe e
Desde março de 2015, circularam textos, falas e imagens indiciando coloca em crise a comunidade na qual se inscreve?
a corrupção não apenas como a causa maior de nossos males, mas como
algo que “nós”, brasileiros, gestamos e reproduzimos em nossa cultura.
5. desatando o “nós” da corrupção
Das mortes por desnutrição ou pela falta de atendimento em hospitais
aos homicídios e vidas ceifadas nas estradas brasileiras, a corrupção está Para desatar o nó do mal entre nós e ir além do círculo vicioso da
sempre lá, na origem. Os desvios de dinheiro público, a imprudência ao corrupção, o Código Penal Brasileiro categoriza a corrupção em outros
dirigir e a decisão de puxar o gatilho passam por esse mal que, para algu- termos. Não como um problema moral ou constitutivo, mas como uma
mas pessoas, está nas raízes do Brasil: colonização portuguesa de “explo- ação em prol de interesses particulares. Além disso, nos termos do Código
ração” (PRADO JR., 2011), cordialismo (HOLANDA, 2015), relações afetivas Penal, apenas o agente público, ligado ao Estado por voto ou concurso,
patriarcais (FREYRE, 2015), patrimonialismo (FAORO, 2012)… pode ser indiciado como corrupto. A luz do Código Penal, podemos

112 113
esperar de um representante público – um “político”, como se costuma essa ruptura implica uma falta moral de um indivíduo. Ao afirmarmos que
chamar no Brasil – que ele se comporte em nome dos interesses coletivos. “somos” corruptos (ou que os políticos são corruptos), consubstanciamos
Ele não deve, no exercício de seu mandato, agir em nome ou em prol de a narrativa, fazendo dela uma realidade. Em outras palavras, subscrever a
seus interesses pessoais. Ao contrário: ele deve sacrificar a sua pessoalidade narrativa implica em confundir um processo ou ato com um estado, com
em nome do grupo, da comunidade, da sociedade. É quando ele é incapaz uma natureza.
de fazer isso, quando ele falha moralmente nesse “papel” que lhe incumbe, Essa natureza do “somos todos corruptos” pode até gerar um mea
que ele incorre em corrupção. culpa, como se tal reconhecimento indicasse que, afinal de contas, aquele
A vantagem dessa definição de corrupção em relação à anterior é que que indiciamos de corrupção não é tão diferente de nós mesmos. Por outro
ela nos permite remobilizar o discurso sobre a corrupção. Se a corrupção lado, ela nos libera de refletir criticamente sobre o fato que uma narrativa
é o mau uso da função pública para a obtenção de uma vantagem pessoal, coletiva é uma construção coletiva que se sustenta pela argamassa das rela-
então a corrupção é um problema político – não moral ou ético. Político ções sociais. Assim, ao invés de retirar sua força de trabalho da construção
porque ela é estabelecida por consensos e dissensos. Afinal, uma lei ou e, desse fato, colocá-la em risco de ruir, o “somos todos corruptos” lembra
uma norma republicana não é uma decisão monocrática, mas discutida. a fábula do escorpião que, ao picar o sapo ao longo da travessia do rio,
Fosse uma norma monocrática, bastaria aplicá-la sem discussão, debate ou declara ao afogar-se junto com sua vítima: “é da minha natureza!”
problematização; bastaria aperfeiçoar os procedimentos legais previstos na
lei e – abracadabra – o mal entre nós seria controlado gradativamente na 6. se a corrupção não somos nós, o que somos, afinal?
medida de nossa capacidade de repressão e punição.
Se todos estamos de acordo que é preciso nos livrarmos das ervas A política, insisto, é o consenso de que há dissenso. A construção
daninhas por meio de repressão e punição, não há dissenso entre nós. Tudo social do ódio e o discurso contra a corrupção, por sua vez, são narra-
se passa como se estivéssemos de acordo que o problema da comunidade tivas. Sua finalidade como obra coletiva é ocultar o dissenso para fazer
fosse estranho a ela. Como se viesse de fora. Como se fosse estrangeiro… comunidade. Ao indiciarmos nossas ervas daninhas, ao atacarmos nos-
Um paradoxo, aliás, para quem crê na corrupção entre nós – afinal, se sos algozes, ao reconhecermos que “somos todos corruptos” – mas alguns
“todos somos [potencialmente] corruptos”, se a corrupção é capilarizada mais corrompidos que os outros –, garantimos a argamassa de nossa obra
em nosso país, então como ela nos seria estranha? Ou viria de fora? comum e retomamos a fé em nossa comunidade. O indiciamento do mal
Não, a corrupção não está entre nós, nem vem de fora. A corrup- é uma catarse coletiva: chega de conflitos, chega de incerteza, podemos
ção é um ato que infringe uma norma coletiva. Um ato que, sim, pode ser eleger novos porta-vozes. E se eles se revelarem corruptos, bem, começa-
praticado por qualquer indivíduo investido de uma procuração para agir remos novamente. Até porque assim não faltará argamassa para a nossa
em prol do público, do coletivo, à condição que tenhamos acordado em construção.
que consiste essa procuração e, sobretudo, em que consiste o “público” e As narrativas coletivas têm esse poder de unanimismo. É um poder,
o “particular”. Porque a ênfase na corrupção como um problema político uma potência. Precisa, portanto, ser efetivada. A sequência incessante de
passa pelo processo que evocamos no início deste texto: a construção de indiciamentos de corruptos e de males é um ato de efetivação da potência
uma narrativa que envolve dores e sofrimentos vividos intimamente, mas da nossa narrativa comum entre os anos de 2013 e 2019. Mas o unanimismo
que são ressignificados como um problema de toda uma comunidade. alimenta-se sobretudo de promessas de salvação. Porque o fundamento
Levar a sério a ideia de que “somos corruptos no cotidiano” significa da sua construção são as experiências subjetivas de dor e sofrimento.
subscrever a narrativa de que a corrupção é um ato de rompimento de Ninguém assentaria uma obra coletiva sobre elas não fosse a promessa de
um valor universalmente aceito pela comunidade em que vivemos – e que que “amanhã será melhor do que hoje”, que o “Brasil é o país do futuro”

114 115
ou que “o futuro é para os justos, os trabalhadores e para os homens (e pedágio ou uma morte no trânsito fosse justo. Tudo se passa como se fosse
mulheres?) de bem”.6 possível medir o quanto vale cada uma dessas coisas. E tudo se faz para
A nossa obra coletiva, a nossa narrativa comum demanda a fé em um calcular os custos dessas transações.
futuro melhor. Cada um de nós já parou para pensar que a vida está difí- Porém, o preço, o valor e o custo de nossas existências não estão
cil; que o trabalho é penoso; que o futuro aqui, neste país ou no planeta, é dados. Eles são instituídos. Ora, a instituição do preço, do valor e do custo
incerto; que, talvez, tudo o que estamos passando seja o presságio do final opera pelo mesmo mecanismo de construção de consenso que vimos
de uma maneira de ser e de existir. acima. Nós acreditamos em nossas dívidas porque nossas dívidas são nos-
Pensando em cada uma de nossas vidas: quanto elas valem? Elas se sos créditos. A crença no preço da maçã, do refrigerante, da passagem e da
equivalem? A cada mês, quanto cada um de nós gasta para viver? Quanto morte no trânsito nunca varia. Nós sempre acreditamos que as coisas têm
pagamos para existir? Como vimos durante a crise da COVID-19, nem valor monetário. Assim como acreditamos na legitimidade da variação do
todas as vidas valem a mesma coisa. Algumas custam mais, outras menos. valor monetário por efeito de forças que nos escapam. Em outras palavras,
Mais para seguir trabalhando e produzindo, menos para cuidar e curar. podemos considerar que o preço da maçã ou do refrigerante está barato ou
E quando os custos ultrapassam os benefícios, as vidas que persistem se caro, mas nunca duvidamos de que é preciso pagar pelo que comemos e
endividam. No final das contas e no final do mês, muitas vidas vivem no pelo que nos faz existir.
limite de seus créditos (sejam eles “especiais” ou não). Há os que ultrapas-
saram o limite há tempos e terão de trabalhar o resto da vida para tentar 7. o ódio tem preço
pagar parte de seus juros. Há outros, ainda, que herdam as dívidas de seus
pais e mães ou de seus filhos e filhas e que, por consequência, precisam Ao longo dos últimos anos, foram-nos apresentados alguns rótulos
seguir trabalhando sob a pena de perder essas relações. para as razões do ódio e das divisões sociais no Brasil. Um deles é “cor-
A vida de cada um não como um valor, mas como os limites de um rupção e crise ética”; outro, “elitismo e preconceito de classe”; um terceiro,
crédito. Pensemos agora no caso de instituições como países e, especial- “patrimonialismo e fisiologismo”. Cada um desses rótulos tem o seu valor
mente no quadro brasileiro, como dos estados e municípios. Como se fos- e o seu preço. Os três recobrem, à sua maneira, uma parte da explicação
sem pessoas ou “famílias” endividadas, cada um desses entes sociais precisa sobre os males do Brasil, em geral, e sobre a corrupção, em particular. Em
produzir riquezas e viver de créditos para manter aquilo que chamamos de comum, cada um deles participa da convicção de que é preciso pagar pelo
soberania – que é um análogo da nossa autonomia individual de entreter que se come, pelo que nos faz existir. Em outras palavras, eles conformam
nossas próprias vidas (ou dívidas?). O país, seus estados e municípios pre- a visão de um mundo fundado no crédito e na dívida e que é mal romper
cisam fazer exatamente o que as dívidas lhes obrigam a fim de entreter uma com ela. O mal vem de quem ataca esse fundamento de nossas existências
sensação de liberdade: “eu devo tudo, mas ao menos o que devo é meu. É individuais e coletivas.
fruto das minhas escolhas. Ao menos eu tenho o que dever.” Os rótulos “corrupção e ética” e “patrimonialismo e fisiologismo”, por
Ora, essa imposição da dívida nossa de cada dia – da obrigação exemplo: corrupto é a pessoa que falha como zelador da coisa comum, da
de honrá-la com o sangue e o suor que nos fizeram merecê-la – é uma res publica, que nada mais é que a crença fundamental de que as coisas
dimensão fundamental, ainda que nem sempre visível, da construção do têm um preço, um valor e um custo. Fisiólogo é o indivíduo ou partido
ódio e do discurso contra a corrupção. Tudo se passa como se o preço que cuja vitalidade depende do vampirismo institucional – vampirismo que,
nos cobram por uma maçã, um copo de refrigerante, uma passagem no bem entendido, enfraquece a res publica e, sobretudo, aparece como um
desrespeito ao valor das coisas e às regras do jogo. Denunciar a corrupção
6 Ironia da história: os justos e as pessoas de bem elegeram um Messias para a presidência em e o fisiologismo é, portanto, uma estratégia de confirmar e assegurar essa
2019.

116 117
crença no preço, valor e custo das coisas. É uma estratégia que, quanto mais há outros desvalorizados (pela “sociedade”? pelas “elites”?). Há trabalhos
unanimista for, mais capaz será de assegurar essa crença no crédito e na valorizados que custam pouco e há trabalhos desvalorizados que custam
servidão pela dívida. muito. Há trabalhos lícitos sem valor e trabalhos ilícitos altamente valo-
Mas quando se fala de elitismo e preconceito de classe, o que se visa rizados. Em comum, todos geram créditos e dívidas. E, frente às opções
é a igualdade ou a equidade. Considera-se injusto que um grupo social que aparecem aos nossos olhos, cabe a cada um escolher. Quanto mais
exercite o poder sobre outros por meio de um capital econômico (dívidas) informados e preparados para esse mercado de trabalhos, melhor faremos
desigual. Mas visar à igualdade e à equidade não implica em perceber o as nossas escolhas.
preconceito de classe como o exercício de poder simbólico – isto é, de um Neste mundo, quem não paga devidamente suas dívidas é acusado:
discurso que naturaliza as vidas e as diferentes maneiras de viver e que pro- “você não trabalhou o bastante!”; “você se informou mal”; “você fez esco-
move o desconhecimento dos mecanismos (ingredientes e fermento) que o lhas erradas!”. Por outro lado, quem paga largamente suas dívidas, podendo
sustentam. No final das contas, o rótulo do elitismo e preconceito de classe inclusive multiplicar a sua carteira de investimentos (isto é, de dívidas),
confirma também, à sua maneira, a visão de mundo fundada no crédito: o então é porque “trabalhou direitinho” e “informou-se bem”.
que se deseja é que todos tenham acesso a esse mundo e que possam existir Mérito próprio. Não há nada além disso. Nada além do mérito nosso
nele sem barreiras econômicas e simbólicas. de cada dívida.
O fundamento da vida a crédito age silenciosamente, fazendo cres-
cer o ódio contra espantalhos e cortinas de fumaça. Porque, afinal, é disto 8. da dor viemos, a ela voltaremos
que se trata quando se aponta o dedo para os “corruptos”, os “bandidos”,
o “povo” e as “elites”: garantir as bases ideológicas de nossa existência Iniciamos este ensaio com um número: 400.000. Acompanhado
comum. O ódio é a nossa illusio, aquilo que embaça nossos olhos frente à das palavras “morte”, “Brasil”, “COVID-19” e “perda”, pressentimos que o
crença no crédito e na servidão pela dívida. Livrando-nos dos indivíduos melhor não viria por aí. Tratamos, então, de dores e afetos. Não no sentido
e grupos a quem atribuímos as causas de nossos sofrimentos, a questão de reapresentá-los ou de descrevê-los (afinal, são experiências intransferí-
que resta é como escolher os melhores caminhos para dar conta de nossas veis), mas de compreendê-los em sua capacidade de mobilizar narrativas
dívidas e para perpetuar a nossa servidão. Não tanto no sentido de pagá-las de sentido, justificação, de revolta ou de punição.
definitivamente, mas de como fazer para nunca deixar de pagá-las. É dessa capacidade de mobilização própria aos afetos que vislumbra-
Eis as premissas da ideologia de nossa existência comum: 1) Todos mos o ódio no Brasil como uma construção. Isto é, como uma edificação
nascemos livres para escolher como iremos pagar nossas dívidas; 2) Todos construída sobre as pedras dos dramas e das tragédias pessoais e por meio
somos livres para escolher a natureza do trabalho que faremos para pagar de discursos e relações sociais. Do alto dessa edificação, observamos, como
nossas dívidas. A partir delas, ingressamos na escola: para descobrir o próximos, os protestos sociais de junho de 2013 e o discurso contra a cor-
nosso “talento” (o que cada um faz ligeiramente diferente dos outros) e rupção. E, sobretudo, definimos o domínio do nosso projeto coletivo, de
como fazê-lo render mais. Bem formados, tomaremos decisões racionais nosso campo de pertencimento comum.
– isto é, bem informadas e necessárias – com vistas a existir longamente Ao longo das páginas deste texto, porém, desconstruímos o ódio. De
entretendo nossas dívidas. obra inerte, passamos a vê-lo como algo orgânico. Sua base: nossas dìvidas
Eis o preço de nosso ódio: viver bem, com nossas dívidas e os juros e méritos de cada dia; seu movimento: a vida de cada um.
pagos pela nossa pessoa – isto é, nosso trabalho. Há trabalhos legais e ile- A dor, dizíamos no início deste texto, é um afeto poderoso, que mobi-
gais, lícitos e ilícitos; há trabalhos parcialmente legais ou parcialmente líci- liza a busca por sentido e transforma as narrativas que tramamos sobre nós
tos. Há trabalhos valorizados pelo grupo (por “nós”? pela “sociedade”?), e mesmos, nossas origens e nossos destinos. Em várias delas, hoje, o ódio é

118 119
construído como categoria de acusação. “Há ódio de ambos os lados”, escu- pela autoconservação. E na brasileira, como em qualquer outra, o ódio será
tamos por aí. Mas que dois lados são esses? Eles existem realmente? Como desconstruído por concessões, por reconhecimentos mútuos, por recuos e,
identificá-los senão por meio dessa construção narrativa circular? sobretudo, pela criação de novos modos de viver juntos.
Outras narrativas buscarão na história e nas relações sociais suas
explicações sobre os males do Brasil. Evocarão “nosso” cordialismo, referências bibliográficas
patriarcalismo ou patrimonialismo, como se valores e práticas fossem
ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy. Os dias que abalaram o Brasil: as rebeliões de
transmitidos como características genéticas. Acusarão as “redes sociais”:
junho, julho de 2013. Revista de Políticas Públicas, v. 18, p. 41-47, 2014.
mas, nesse caso, o que se passa ali não tem nada a ver com “nós”, mas com
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2a Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
uma multiplicidade de indivíduos que, até então sem voz ou influência,
BOURDIEU, Pierre. Entrevista com Gabi Reich e Pierre Carles. Paris: C-P. Produc-
tornaram-se influenciadores – ou que simplesmente passaram a ser vistos tions, 29 de setembro de 2006 (audiovisual). Disponível em: https://www.facebook.
e ouvidos. com/Pierre.Carles.Officiel/videos/1752479978168506/. Consultado em 22/4/2019.
Porém, se o ponto de vista que trabalhamos neste texto faz sentido, há CAMPELLO, Filippe (Org.); GITTEL, Benjamin (Org.). Modernizações ambivalen-
outras maneiras de abordar o problema de como vivermos juntos. Porque, tes: perspectivas interdisciplinares e transnacionais. Recife: Editora UFPE, 2016.
afinal de contas, é disto do que as dores e os mal-estares são sintomáticos: CASILLI, Antonio A. En attendant les robots. Enquête sur le travail du clic. Paris:
a perda de um próximo, a tristeza que compartilhamos com uma tragédia Seuil, 2019.
alheia, o desprezo que sentimos quando passamos horas em trânsito para FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 5a ed. São Paulo: Globo, 2012.
trabalhar, as situações de desrespeito que testemunhamos ou passamos FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2019.
quando as hierarquias sociais se manifestam. Nenhuma dessas experiên- HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
cias subjetivas é falsa. A maneira de explicá-las, de dar-lhes um sentido, HONNETH, Axel. La société du mépris. Paris: La découverte, 2006.
por outro lado, pode ser. Principalmente se definirmos como falsas as solu- IBGE. Brasil em síntese. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br. Consultado em
ções que não apenas não colaboram para superar a dor e o mal-estar, como 12/03/2019.
tendem a intensificá-los, a multiplicá-los e a fazê-los durar. INEP. http://portal.inep.gov.br/inep-data. Consultado em 12.3.2019.
Se o problema a enfrentar é como vivermos juntos, a resposta não pode LEVINAS, Emmanuel. Totalité et Infini. Essai sur l’extériorité. La Haye: Martinus
ser a da autoconservação e a da destruição do Outro. A vida em sociedade Nijhoff, 1984.
se realiza pela reciprocidade e pela confiança, pelo face a face (LEVINAS, LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel.
Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
2012), pela ética do encontro e do reconhecimento mútuo (RICOEUR,
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras,
2004). Acontece que, posto que a dor e o mal-estar são experiências pes-
2011.
soais intransferíveis, não podemos esperar que o Outro as reconheça como
QUEIROZ, Christina. Engrenagem complexa. Revista FAPESP. Disponível em:
algo compartilhado. É preciso se arriscar na relação e, durante o encontro, http://revistapesquisa.fapesp.br/2019/03/12/engrenagem-complexa/. Acesso em:
debater se as vidas de cada parceiro ou parceira de relação valem o crédito 12/03/2019.
e os méritos que lhes são atribuídos. RICOEUR, Paul. Parcours de la reconnaissance. Paris: Editions Stock, 2004.
A desconstrução do ódio no Brasil, hoje, passa pela ética do encontro; STIEGLER, Barbara. Il faut s’adapter. Paris: Gallimard, 2018.
pelo arriscar-se no face a face; superação da luta de uns contra outros. É VIRILIO, Paul. La tyrannie de l’instant. L’Humanité, 22 de fevereiro de 2002. Dispo-
evidente que baixar a guarda pode levar à destruição, que o recuo pode nível em: http://www.humanite.presse.fr/journal/2002-02-22/2002-02-22-29345.
ser fatal, que se colocar a mercê pode ser visto como sinal de fraqueza e de Acessado em: 12/03/2019.
abandono de si. Acontece que nenhuma sociedade se pacifica pela força e

120 121
8. A violência e o inominável: movimentos avançam por geografias nas quais viu-se eclodir uma série de
pautas diversas difundidas nas redes sociais. Porém qual teria sido a moti-
da utopia social à utopia monumental vação para mobilizar milhares de pessoas a participarem das manifestações
Octave Debary na cidade do Rio de Janeiro? São inúmeras explicações, mas focalizemos
uma: a elevação do custo de vida sem aumentos de renda provavelmente
Francisco Ramos de Farias
foi o estopim para a eclosão dessas manifestações, aliado a um descrédito
na gestão dos governantes que assumiu proporções que ultrapassaram o
limite das reivindicações. A mídia difundiu a ideia de que os protestos são
um estorvo e a opinião pública posicionou-se contrária aos movimentos
sociais, razão pela qual os governantes ordenaram a polícia responder com
força do que resultou pessoas mortas e feridas. Enfim, entraram em cena os
prólogo1 Black Bloc que, como forma de protesto estética dirigida para a depredação
de símbolos estatais e do capitalismo, em resposta à violência policial, aca-
Hamburgo, Alemanha, 1986. baram também causando a morte de um cinegrafista. Não podemos deixar
O monumento contra o fascismo concebido por Jochen Gerz e Esther de indagar: por que movimentos contra a violência culminaram com for-
Shalev-Gerz fica em uma das praças da cidade de Hamburgo. Uma coluna mas violentas de destruição do patrimônio público e de vidas?
com mais de 12 metros de altura aguarda para receber as assinaturas dos
transeuntes. Uma verdadeira petição a céu aberto sobre a qual serão gra- introdução
vados os nomes dos comprometidos contra o fascismo. À medida que o
tempo passa e as assinaturas são inscritas, a coluna destina-se a afundar Distância
no solo, para um dia desaparecer. A vida e a morte do monumento fazem
A vida em sociedade configura arranjos coletivos complexos e bas-
parte do dispositivo. Depois de algumas semanas de existência, as assina-
tante problemáticos, pois a pessoa, para viver, requer ser reconhecida e, por
turas sobrevêm. Então, são riscadas, barradas. A coluna também se torna
isso, engaja-se em um movimento de aproximação com seus semelhantes.
o lugar de expressão de apoio ao fascismo. Suásticas aparecem. A coluna é
Contudo, essa aproximação deve acontecer no escopo de uma distância
vítima de violências, vandalizada?
ideal de si mesma e dos outros, visto que a máxima aproximação traz em
si embutida a ameaça da anulação de aspectos subjetivos que configuram
Brasil, Rio de Janeiro, 2013.
a singularidade. Por outro lado, o grande afastamento é igualmente pro-
Manifestantes em protesto, policiais e black bloc deixam cicatrizes de
blemático, uma vez que precisamos de atores sociais que testemunhem a
violência. Desde maio de 2013, ouvem-se ecos de manifestações nas redes
nossa existência. Sendo assim, não temos outra escapatória, senão tentar
sociais que se intensificaram com reinvindicações em passeatas de pro-
construir coletivamente pactos para que mantenhamos nossas relações,
testo em áreas nas quais é visível um grande desgaste da urbanização. Os
sem sermos completamente anulados em um espaço e em um tempo onde
1 Uma primeira versão deste texto é oriunda da conferência a duas vozes (“Como pensar as
nos possamos nos movimentar e sermos reconhecidos. Quer dizer, con-
políticas de memória e dos monumentos?”) que fizemos no Consulado Francês do Rio em forme afirma Rey-Flaud (2002, p. 8), “o destino do indivíduo não pode ser
13 de dezembro de 2017. Este texto é o resultado de uma colaboração entre os dois auto- estudado fora do da comunidade na qual ele se insere, um e outro estando
res que foi permitida graças a muitas pessoas. Gostaríamos de agradecer a Leticia Ferreira
(Universidade de Pelotas), Philippe Michelon (Consulado Francês), Evelyn Orrico (Unirio) e de forma solidária numa mesma estrutura”. Haveria uma distância ótima a
Antonio Tostes (Unirio).

122 123
ser estabelecida em nossas relações sociais, tanto individualmente quanto com o grupo (uma dessubjetivação) ou com uma distância muito grande
coletivamente? (dessocialização), o conflito se torna objeto do mal-estar.
Eis o preço que pagamos para viver: querer o impossível, buscar o O preço deste “contrato social”, para retomar a fórmula de Rousseau
inacessível, mesmo ante a ciência que possamos jamais encontrar aquilo (2001), provoca um conflito constitutivo da distância e constituído pela dis-
que buscamos. Desse modo, somos constantemente arrancados de nossa tância. A distância existente no seio das relações sociais é estrutural, ou seja,
zona de conforto, por uma espécie de inquietude que nos sinaliza, cons- condiçao sine qua non para a vida em coletividades, não podendo jamais ser
tantemente, a nossa condição de incompletude (Heidegger, 1986) diante da abolida, nem mesmo negada, sendo a certeza constante de uma insatisfação
qual não poupamos esforços na busca de soluções, a começar pelo projeto insolúvel. Sendo assim, essa distância é constitutiva de conflito primordial,
de viver em coletividades que, ao se formarem, reportam para seu âmago na busca de reconhecimento. Somos condenados à inquietude traduzida
o mal-estar que cada um experimenta em seu percurso de vida, conforme em termos de buscarmos a plenitude e somente dispormos de satisfações
postulou Freud (2010). Sob este prisma, queremos sinalizar que a incom- efêmeras e parciais. Este é o cenário da cultura que, a todo momento, se
pletude é a transposição de um suposto estado do universo compreendido esmera em deixar rastros, restos, dejetos incômodos para nossa existência.
em termos de uma fissura primordial (Eddington, 1949) presentificada Indaguemos: nomear os restos, identificar os rastros, significar os dejetos
simultaneamente no ser humano e em qualquer coletividade sendo a raiz (Debary, 2017) produz algum tipo de alívio para nossas angústias? Caso
do estado de tensão que aciona tanto o ser quanto os coletivos à ação, sendo fosse completamente possível, caminharemos para um estado de “purifica-
esta a faceta positiva desse processo. ção”, livrando a natureza dos entulhos produzidos pela cultura?
Falar de distância é evocar a figura da alteridade (interior, aos outros,
ao grupo), evocar o que me separa ao mesmo tempo como uma condição Utopias
da minha própria apercepção (aqui e agora), mas também da minha rela- A história da humanidade nos deixou verdadeiro legado sobre as inú-
ção com a sua perda, seu outro lugar. Esta ruptura para as ciências sociais meras conquistas e travessias além do insondável que podem, muito bem,
é fundadora, ela está no cerne da lógica que articula o indivíduo ao grupo, serem pensadas como soluções de enigmas, os quais eram considerados
ao mesmo tempo como sua condição de possibilidade (socialização), mas grandes impedimentos nas tentativas de preenchimento da distância pró-
também de seu enigma ou, dito de outra forma, de sua distância para si pria das relações estabelecidas no viver em coletividade. São verdadeiros
mesma marcada pela coerção, pela subordinação da identidade individual sonhos dantescos, mas sobretudo importantes realizados em uma tempo-
a um pertencimento coletivo.2 Se a filosofia nietzschiana anuncia a emanci- ralidade que, simultaneamente, faz advertências quanto ao modus vivendi
pação da teocracia com a morte de Deus, as ciências sociais anunciam uma de uma época já vivida e lança inquietações quanto ao futuro. Neste con-
outra desapropriação (NIETZSCHE, 1982). O sujeito está de novo em luto texto situamos o progresso, considerando as grandes invenções e as subse-
por sua liberdade na subordinação que o liga ao grupo. Mas seria equivo- quentes transformações, mas igualmente a sinalização marcada pelas mes-
car-se ver apenas uma má notícia. Pois esse laço com o grupo também deve mas de que ainda há algo para ser feito e que, talvez, num futuro próximo
ser entendido no que é possibilitado em termos de apego, a articulação ou longínquo, encontraremos o bálsamo para nossas inquietudes.
entre o indivíduo e o grupo questiona a distância, a boa distância para si Eis o que se depreende do que é possível em um tempo presente mar-
mesmo, para os outros? Mas o rompimento permanece. Ele abre o con- cado, por um lado, pela dinâmica de negociações e por outro, pela confron-
flito entre uma distância que não pode ser resolvida com uma identificação tação contínua com o mal-estar. Situação curiosa: as negociações visam
minimizar ou mesmo encontrar uma solução para o mal-estar, porém, à
2 2 Essa subordinação e essa coerção são fundamentais na sociologia, como Emile Durkheim
enfatizará em sua definição de “fato social” como um fenômeno “externo” e “coercitivo” do medida em que ocorrem, o potencializam, considerando que “todo ato é
indivíduo. Ver E. Durkheim, As regras da metodologia (1895), p. 15.

124 125
um ato de violência” (SOFSKY, 2006, p. 9). Será que o ser humano estaria dizer que a violência é onipresente e “domina do princípio ao fim a histó-
cometendo erros de cálculo? Provavelmente não, pois estaria tão-somente ria da espécie humana. A violência engendra o caos e a ordem engendra
tentando expressar, de algum modo, o que foi possível até então, sem a a violência” (SOFSKY, 2006, p. 8). Entendendo a questão por esse ângulo,
pretensão, para os mais advertidos, de que haveria uma solução completa- somos levados a concluir que a experiência da violência está sempre pre-
mente satisfatória ao alcance de todos. sente na vida humana, sendo a sociedade um aparato construído para pro-
Assim nos encaminhamos para pensar duas materializações de fei- teção mútua, tanto entre os indivíduos quanto em relação às coletividades,
tos humanos que decorrem de esteios pautados em utopias. Por um lado, principalmente quando anuncia a regra fundamental: fim do estado de
temos a dinâmica dos movimentos sociais assentada em um tipo de utopia liberdade absoluta, com limites a serem observados e seguidos.
circunscrita em um tempo futuro, ou seja, como as formas de protestos pre-
sentes nos movimentos sociais expressam, de certo modo, uma tentativa Violências
de preenchimento da distância ineliminável no seio das relações sociais,
Os movimentos de pacificação da história (sejam do futuro, sejam
mediante um projeto coletivo que vislumbra um estado de pacificação em
do passado) provocam uma segunda violência e reproduzem exatamente
futuro incerto e ameaçador mesmo que seja uma modalidade de violência
aquilo que tentam evitar ou escapar, pois, conforme afirma Sen (2006, p.
empreendida como meio de solucionar igualmente outra forma de violên-
37), “a busca de paz mundial, mesmo fundamentada em uma intenção lou-
cia. Contudo, convém lembrar Reemtsma (2011, p. 119), “todo ato de vio-
vável, pode revelar-se contraproducente quando se apoia em uma apreen-
lência é um posicionamento social”. É provável que esse projeto expresse,
são bastante restrita do gênero humano”. Desse modo, tanto a utopia do
mesmo que de forma ínfima, ódio ou seus derivados, pois como então
futuro quanto a utopia concernente ao passado compõem um tipo de
explicar as ações violentas que acontecem, em muitas situações, pautadas
lógica bastante paradoxal: são mobilizadas por um tipo de violência, às
em nome da pacificação? Contudo, como afirma Rey-Flaud (2002, p. 36):
vezes conhecido, às vezes não, mas que a realização acaba sendo produtora
[...]a expressão pura e simples do ódio no espaço social gera o estado de bar- de uma segunda modalidade de violência, não apenas pela demarcação de
bárie que pode ser restabelecido em tempos de guerra mesmo nas culturas uma temporalidade sinalizada pelo aspecto de monumentalidade, quanto
mais avançadas. A civilização se substitui à barbárie por meio de recalca- pelos destroços produzidas nos movimentos de protesto que não apresen-
mentos que sobre a capa do amor visam reprimir o ódio. Esse empreendi- tam qualquer potencial de suporte na constituição de laços sociais.
mento deve ser incansavelmente recolocado em funcionamento, pois o ódio
Não estamos propondo o fim dos empreendimentos monumentais,
reprimido, alimentado pela fonte inextinguível da pulsão, está sempre amea-
çando arrebentar as barragens encarregadas de contê-lo. nem a proibição das ações referentes aos movimentos sociais, somente
lembramos que devemos estar cônscios que a violência da qual nos quere-
Por outro lado, temos a utopia monumental que se desenvolveu mos nos livrar bate mais uma vez à nossa porta travestida de outros disfar-
na Europa desde a década de 1980, expressa pelos antimonumentos que ces, mas não consegue evitar o enfrentamento dos coletivos sociais com o
podem ser considerados uma tentativa de preenchimento da mesma dis- mal-estar próprio da condição humana. Em certo sentido, conforme nos
tância, porém em um processo cujo horizonte é o passado doloroso. Tanto lembra Zizek (2009, p. 11), “a alta potência do terror diante dos atos vio-
em uma modalidade quanto em outra estamos diante de empreendimen- lentos e a empatia com as vítimas funcionam inexoravelmente como um
tos mobilizados pela violência, mas que se destinam a produzir, de algum engodo que nos impede pensar”. O impacto traumático causado por uma
modo, soluções para um tipo de violência que não pode ser erradicada da circunstância dessa natureza é então uma nuance de recrudescimento da
condição humana, visto que, se acurarmos o nosso olhar para nós mesmos, violência, razão pela qual faz-se necessária certa distância da experiência
seremos levados a concluir que, enfim, somos todos violentos! Isso quer traumática para que seja possível a reflexão.

126 127
No contexto das ideias apresentadas, nosso encaminhamento é for- 1. a utopia social: os movimentos sociais no rio de janeiro
mulado a partir da hipótese de que a segunda modalidade de violência
pode e deve ser considerada uma tentativa de produzir arranjos subjeti- Existem inúmeras situações em regiões do planeta que transpõem
vos que acondicionem e produzam sentido e significações para o inomi- fronteiras, na atualidade, dentre as quais cabe situar o panorama político
nável da distância relativa à vida em coletividade, vivida tanto individual mundial que se caracterizou, no começo do século XXI, por expressivos
quanto coletivamente. Em certo sentido, trata-se de um esforço para acio- movimentos sociais, com reivindicações e protestos múltiplos em contex-
nar potencialidades criativas ante as circunstâncias de vida, em relação às tos diversos, principalmente em países da Europa, do Oriente Médio e da
quais presentifica-se a impossibilidade de nomear sentimentos que, uma América do Sul. Tomando o Brasil como campo de problematização, uma
vez presentes no viver, escapam ao processo de circunscrição em termos peculiaridade merece ser assinalada: nas duas últimas décadas os indicado-
de produção de sentido. Quer dizer, qual o destino a ser dado para nossas res econômicos registravam cifras positivas, ao lado da aplicação de políti-
afecções quando não dispomos de palavras para inscrevê-las no contexto cas sociais cujo intuito era acabar com a miséria, com o fim dos bolsões de
das relações sociais? pobreza. Contudo, em junho de 2013, momento em que o país sediou um
Considerando que o mal-estar, além de ineliminável, é igualmente grande evento, a Copa das Confederações, assistiu-se a uma continuada
inominável, por qual motivo seríamos acionados a produzir criações série de manifestações e protestos sociais multitudinários. O motivo que
para tentar significá-lo? Se encaramos o mal-estar, expresso pela distân- conclamou milhares de pessoas às ruas e que certamente desencadeou
cia, como uma espécie de violência que incide em nós, então recorremos essas manifestações foi o aumento de passagens de ônibus, além de outras
à violência na tentativa de solução para o nosso vazio estrutural, sem nos modalidades de insatisfação no tocante às questões relativas à cidadania e
apercebermos que, nessa operação, constantemente deixamos marcas de ao bem-estar social.
nossas pegadas? A partir da expressiva massa de pessoas que passaram a ocupar deter-
As soluções vislumbradas para a violência quase sempre apareceram minadas regiões das grandes metrópoles brasileiras, de forma pacífica, as
mescladas de fúria de destruição, sendo uma expressão direta de uma mis- autoridades recuaram com relação ao aumento de passagem, na tentativa
tura de sugestão e, ao mesmo tempo, de choque. Quer dizer, conforme de recuperar um estado de calmaria. Porém isso não aconteceu: as mani-
alerta Reemtsma (2011), cada um de nós não participa de atos violentos festações mudavam repentinamente de causas, sendo desencadeadas com
simplesmente pela sensação de prazer mediante uma vitória, pois o que muita força, no sentido do aumento gradativo do contingente de pessoas.
move cada pessoa ou coletividade em um projeto de violência é um prazer A cada manifestação mais e mais pessoas faziam adesão aos movimentos
que decorre do reconhecimento da derrota causada pelo vencedor, consi- de protestos. Por esse motivo, as cidades passaram a conviver com um coti-
derando os rastros de destruição produzidos. diano configurado pelo convívio de pessoas mesclado com os destroços
Assim, postulamos que, seguindo as vias sinuosas de um percurso decorrentes de ações violentas que não pouparam o patrimônio público, ao
traçado pelo destino, vamos deixando rastros, produzindo restos e dejetos mesmo tempo em que representavam um alto custo subjetivo.
que se acumulam, no processo que denominamos história, mas que, quase O cenário dos acontecimentos dava a entender que as manifesta-
sempre, ao receberem uma significação, insistem em denunciar que o pro- ções e protestos jamais cessariam. Quer dizer, quando uma reivindicação
cesso está em aberto, quer dizer, outras tantas significações são possíveis e era atendida surgia outro motivo, difundido, principalmente, pelas redes
que o sonho de um projeto em direção a uma unificação pacífica não passa sociais, para desencadear uma nova manifestação, tanto em território
de um devaneio, ou mesmo de um grande pesadelo, embora jamais pos- nacional quanto em países estrangeiros solidários à causa em pauta. E
samos abrir mão de nossas utopias, para conservar a possibilidade de um assim, as manifestações e protestos foram paulatinamente incorporados ao
projeto comum, de uma unidade (mesmo sonhada). cotidiano das cidades, tendo reflexos positivos e negativos significativos

128 129
em diferentes setores. Havia aqueles que voluntariamente aderiam à par- modalidades de violência impostas pelos aparatos estatais a determinadas
ticipação e outros, por temor à destruição, trancavam-se em suas casas e camadas da população, cujas vozes são prontamente silenciadas.
mantinham as portas fechadas. A despeito dessas ações estatais praticadas em nome do progresso,
Passados quase dois anos dos primeiros movimentos de protesto, indagamos como ocorreu o acondicionamento de pessoas removidas que
avolumou-se o número de manifestações, com participações significativas passaram a habitar em regiões distantes de seus postos de trabalhos, por
tanto nas grandes metrópoles quanto nas pequenas cidades do país. A situa- não disporem de condições econômicas para continuarem vivendo em
ção assumiu uma dimensão alarmante quando as motivações das diversas locais onde estavam ambientadas?
organizações encarregadas pela convocação e execução dessas manifesta- As remoções impostas pelo processo de revitalização produziram fra-
ções eram bem diversificadas e muitas vezes contraditórias, porém mesmo turas e estranhamento com dificuldades marcantes para as pessoas, desa-
assim continuavam. Diante dessa circunstância cabe indagar: qual seria a lojadas de suas antigas habitações, construírem novos hábitos visando a
verdadeira motivação que desencadeou esses movimentos de protestos? integrarem-se à nova situação, como, por exemplo, passar horas em trans-
Será que essas motivações eram conhecidas pelos organizadores e parti- portes coletivos para irem e retornarem do trabalho. Nesse sentido, cabe
cipantes? Possivelmente, esses movimentos, bem como os episódios de salientar que não houve programas para resgatar os significados das perdas
violência decorrentes que os acompanhavam, devem ser um indicador de relativas às mudanças. Poderiam ser os movimentos sociais a expressão de
uma espécie de mal-estar, em relação ao cenário político e social, que as uma resistência diante de uma circunstância dessa natureza?
pessoas sequer conseguem nomear, sendo, pois, uma via de expressão sub- Somos inclinados a responder essa questão positivamente, uma vez
jetiva da insatisfação diante de situações econômicas, políticas e sociais. que consideramos os contornos do mal-estar social, expresso nas manifes-
Considerando esse panorama, podemos admitir que as significações tações, indicativos de insatisfações subjetivas a aplicações de determina-
das manifestações e protestos sociais elaboradas por moradores das cida- das diretrizes para a transformação do país. A esta altura seria importante
des são indícios do posicionamento desses cidadãos em relação às deter- focalizar a compreensão que escolhemos acerca da noção de cidadania,
minações do capitalismo mundial, amplamente difundidas pelos meios bem como de suas repercussões.
de comunicação nacionais e internacionais. De certo modo, tratando-se Quando falamos de cidadania, estamos diante de um mecanismo
da cidade do Rio de Janeiro (caracterizada por um estado de globalização relativo a direitos e obrigações que são instrumentos utilizados para pau-
periférica em movimentos centralizados e centralizadores, em função dos tar as regras sociais, principalmente se considerarmos os aspectos relativos
três grandes eventos em épocas bem próximas: a Copa das Confederações, aos processos de segurança e à liberdade. Essa é uma nuance positiva que
a final da Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos), temos de considerar, sob transparece nos movimentos sociais: pertencimento a um determinado
esse aspecto, certas peculiaridades. grupo, busca de reconhecimento, além da garantia de condições de pro-
Para a realização desses eventos a cidade deveria atender a uma teção. Mas como podemos acompanhar pela sua trajetória, o conceito de
cidadania transformou-se historicamente de modo a representar avanços,
exigência: estar inserida em uma rubrica cujo processo de transforma-
como também fez insurgir conflitos e tensões sociais bem diversas.
ção registrou contradições pela valorização urbana, cuja consequência
Se considerarmos a dinâmica da vida civil, vemos surgir, com a pro-
foi a imposição de um processo de remoção de pessoas. Acrescente a
posta de nacionalismo, mecanismos de proteção, liberdade de expres-
esse fator o implemento da indústria turística massificada catalisada em
são, culto religioso, possibilidade de negociação e venda, como também
nome do desenvolvimento, mas de forma predatória, imposto às pessoas
o direito de participação política na condução das decisões acerca do
que, na maioria das vezes, sequer dispunham de condições de reação, a
Estado. Analisando a dimensão social da cidadania, conforme sinalizou
exemplo dos programas de revitalização de regiões urbanas marcados por
Santos (1998), em países considerados centrais, assistiu-se à conquista, da

130 131
parte das classes trabalhadoras, de direitos sociais no âmbito das relações diferente em comparação àquela que é extraída dos documentos oficiais”.
de trabalho, de segurança social, de educação, habitação, configurando-se Nesse sentido, as grandes obras de transformação das cidades tiveram e
como uma espécie de bem-estar social, aparentemente estável depois da têm um alto custo subjetivo apenas para a parcela mais pobre da popula-
II Guerra Mundial. No entanto, em países periféricos ou semiperiféricos ção. Situações semelhantes aconteceram em outras grandes metrópoles do
como o Brasil, o processo de benefícios e garantias sociais aconteceu de planeta, como Paris, Nova York, Bogotá, para citar algumas.
forma parcial, mantendo uma parcela da população excluída dos direitos Todavia, a parte da população que se envolveu nas manifestações
da cidadania social. sociais consistiu de jovens da classe média que não viveram o processo de
Vale destacar uma particularidade bem interessante a esse respeito: remoção, mas que participavam dos protestos como forma de resistência à
nas três últimas décadas, assistiu-se, em países que alcançaram um status implementação de determinadas políticas, ao mesmo tempo que expressa-
de bem-estar em função das condições de cidadania, à perda gradativa de vam insatisfação. Cabe aqui alertar acerca de uma curiosidade: nesse con-
parte dos direitos, em especial no contexto das lutas pelas reformas traba- texto de transformações políticas e sociais, no âmbito mundial, podemos
lhistas, com cortes de benefícios, causando então crises econômicas das nos indagar se, mesmo considerando posturas calcadas no individualismo,
quais derivaram grandes protestos e manifestações cidadãs. Esse fato acon- essas não seriam expressões coletivas, signos e respostas à insatisfação e ao
teceu simultaneamente com a disseminação de uma ordem política mun- mal-estar que não conseguimos nomear e que reagimos com violência, na
dial disseminada com finalidade de reorganização como aconteceu pela tentativa de pôr fim a determinadas modalidades de violência? Algumas
formação de blocos de países na Europa e na América do Sul. A entrada dessas expressões, consideradas como modalidades de resistência, são os
dos chamados países emergentes ou países pobres, nesses blocos, objeti- movimentos sociais, entendidos como “ações sociais coletivas de caráter
vava produzir um novo vigor econômico em face da conjuntura relativa sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas da população se
aos acordos políticos. Para tanto, fazia-se necessária a implementação, em organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2011, p. 335).
termos de melhorias, nas grandes cidades, difundidas nos programas esta- Essas ações adotam diferentes estratégias como marchas, mobiliza-
tais como revitalização e entendidas criticamente como gentrificação. A ções, passeatas, perturbações da ordem e se caracterizam pela indepen-
esse respeito, focalizamos a situação da cidade do Rio de Janeiro na prepa- dência dos aparatos estatais e de partidos políticos, podendo estar repre-
ração para a Olimpíada. sentando uma tendência social dessas pessoas de se relacionar com o
Em matéria divulgada na revista @metrópoles, Gaffney (2013) afirma cenário mundial que impõe a novidade que deve ser aceita, sem maiores
que famílias de 24 comunidades cariocas foram removidas para preparar questionamentos.
a cidade para receber grandes eventos. O rastro de segregação que esta Entendendo a questão por este prisma, podemos admitir que as
prática ocasionou deveu-se, sobretudo, às obras dos corredores exclusivos manifestações sociais da atualidade são respostas e expressões de resistên-
de ônibus, além da revitalização da zona portuária. Para atingir seus obje- cia que denunciam uma modalidade de insatisfação própria da época em
tivos, a Prefeitura do Rio de Janeiro decretou que determinadas regiões da que vivemos devido ao desespero e ao estado de desamparo que se agra-
cidade, nas quais viviam populações pobres, fossem declaradas de utilidade vam, acentuadamente, em função de vivermos na mira de uma ameaça
pública para fins de desapropriação, realçando as práticas de gentrificação em relação à qual sequer sabemos a sua procedência. Esse seria um dos
com a consequência imediata de construção de novos edifícios valorizados sentidos que podemos depreender, mas não devemos esquecer que essas
do que decorre a expulsão, pela remoção, da população de baixa renda do manifestações têm também significados individuais. De uma forma ou de
local, conforme podemos acompanhar a indicação de Abrahão (2018, p. 93) outra, são ações coletivas que denotam e expressam uma modalidade de
de que, “sob os escombros desse novo cenário, há indícios que sinalizam a arranjo subjetivo próprio do tempo atual, cuja característica principal é o
passagem de vidas potencialmente capazes de produzir uma história bem mal-estar que se propaga indiscriminadamente.

132 133
Compreender esse mal-estar requer entender as alternativas a serem quanto à aplicação de políticas neoliberais. Conforme aponta Castells
produzidas no contexto atual, seja como reordenamento político (con- (2017), no início da segunda década do século XXI, muitas rebeliões eclo-
forme aconteceu com a formação de blocos de países), seja pela atenção diram e protestos de massa aconteceram pelo mundo: a Primavera Árabe,
a determinados grupos que expressam suas insatisfações, mas que não os Indignados na Espanha, os movimentos Occupy nos Estados Unidos,
encontram ecos no plano dos projetos políticos desses mesmos países. Islândia, Tunísia, Egito. Embora os contextos divergissem, a crise era basi-
Nessa linha de reflexão há uma constatação que devemos considerar: nas camente a mesma, quer dizer, as pessoas não confiavam mais nas institui-
duas últimas décadas, o mundo assistiu a uma onda de protestos simultâ- ções públicas e buscavam novas formas de participação na vida política.
neos em países separados por milhares de quilômetros. Indagamos: a difu- Ao examinar esses diferentes movimentos, Castells (2017) oferece
são das convocações, pelas redes sociais, teria contribuído para as ações uma análise pioneira de suas características sociais: conexão e comuni-
reivindicativas, sendo também um fator de facilitação? cação horizontais; ocupação do espaço público urbano; criação de tempo
Sem dúvida, as mobilizações pelas redes em países com culturas e sis- e de espaço próprios; ausência de lideranças e de programas; aspecto ao
temas de governo diferentes são iniciativas que denotam conflitos sociais mesmo tempo local e global, tudo isso propiciado pelo modelo da internet.
clássicos, formas de indignação, mas igualmente expressam modalidades Ainda reconstitui passo a passo os movimentos, no Brasil, apresentando
de violência, pelo menos, nas cidades brasileiras com o grupo fundado dados conservados apenas no âmbito da imprensa e dos canais tradicionais
na ideologia anarquista Black Bloc (DUPUIS-DERI, 2014), que, embora de informação.
seja constituído para protestar contra a globalização e o capitalismo, des- Ao lado dessas reflexões, devemos estar cônscios de que ainda o meio
viou-se, em certo sentido, dessa função pelas ações violentas praticadas acadêmico não produziu, de forma convincente, uma explicação unâ-
como destruição do patrimônio público e morte de pessoas. Contudo, é nime para os protestos e manifestações nas cidades brasileiras, pois se, na
preciso entender que os ativistas Black Bloc não são manifestantes, nem Europa, as explicações consideram a crise econômica e a redução de pri-
fazem protestos. Suas metas consistem em intervir diretamente contra os vilégios e, no Oriente Médio, os protestos são respostas aos regimes tota-
mecanismos de opressão e nesse contexto organizam-se para danificar ins- litários, no Brasil o cenário é outro completamente diferente, visto que os
tituições opressivas. Contudo, é preciso que analisemos a responsabilidade protestos iniciaram-se no momento em que o país encontrava-se em um
das autoridades estatais, dos manifestantes e dos Black Bloc, visto que, fre- estado de prosperidade econômica, como também difundia-se a ideia da
quentemente, esses protestos culminaram com práticas de ações violentas redução da taxa de miséria, do desemprego, vinculada à expectativa em
erigidas em nome de transformações sociais, reivindicações ecológicas, sediar grandes eventos.
mudança de governantes, melhores condições de segurança. Há ainda que se considerar que circulava nos meios de comunicação,
Em uma reflexão sobre essa questão, Jesus (2013, p. 494) admite que em destaque, o fato de o Brasil estar ocupando um lugar privilegiado no
“as ações de movimentos sociais, principalmente os de multidões sem uma mapa geopolítico mundial. Então como pensar a eclosão dos movimentos
liderança determinada, têm chamado cada vez mais a atenção dos meios
sociais e protestos diante de circunstâncias, aparentemente, positivas?
de comunicação, que buscam, junto a especialistas, explicações para a sua
Comecemos por esmiunçar a questão. Certamente, a proliferação de
ocorrência”.
manifestações e protestos multitudinários, em cidades com características
Contudo, não podemos excluir no rol das explicações a possibilidade
econômicas, sociais e culturais diversas, deixa transparecer a existência
de serem essas manifestações a expressão legítima de uma modalidade de
de expressões bem específicas de mal-estar social. Vendo a questão por
mal-estar produzido nos escombros da destruição das tradições e banali-
esse prisma, podemos aludir que existem diferenças na maneira como os
zação de valores. Não podemos, pois, deixar de especular que indignação
cidadãos experimentam e evidenciam suas insatisfações, em contextos
é o novo mal-estar da cultura, ou seja, a expressão mais clara da incerteza

134 135
diferentes, mas em um país no qual a desigualdade social e a segregação de A utilização dessa metáfora nos faz pensar que um tipo de cultura
pessoas alcançam níveis estruturais alarmantes. Essa desigualdade refle- dessa natureza pode muito bem ser analisada em termos dos sangrentos
te-se também entre regiões e populações da mesma nação, estando umas acontecimentos que marcaram o século XX. Quer dizer, trata-se de um
inseridas nos processos da globalização e outras sendo mais ou menos projeto que nos apresentaria uma possibilidade de confronto com o deses-
periféricas. Sendo assim, os fenômenos sociais recentes, ancorados na pero que marca o curso da história do tempo presente que, cada vez mais,
ocupação de espaços públicos, difundidos no amplo uso das redes sociais, acirra o desamparo que nos assola. Esse cenário que se afigura diante de
têm sido constantes e causado inúmeras consequências, por vezes, devas- nós é bastante incômodo e nos convoca à ação, sendo este um dos possíveis
tadoras com marcas precisas de ações comparáveis a práticas terroristas. significados dos movimentos sociais e seus efeitos nefastos.
Esses movimentos retratam um cenário social que é o reflexo do tempo Essa articulação pode muita bem ser explicada pela ação do grupo
em que vivemos, visto que, de acordo com Finnazi-Agro (2012, p. XX), Black Bloc, que culminou com a morte de um jornalista devido ao lança-
“neste tempo privilegiado e funesto que estamos vivendo ou que nos vive, mento de um rojão, tipicamente utilizado, com restrições, em festividades
neste fim que é um trânsito ou nesta passagem intransitável; nesta dimen- e comemorações, pois como afirmam Solano, Manso e Novaes (2014, p. 12)
são sombria, enfim (...) deveríamos ter a coragem de desfazer velhos nós, “a tática dos Black Bloc virou protagonista de cenas violentas no centro da
atados ao longo do século passado”. Essa advertência nos faz prosseguir cidade, de desafios políticos sem resposta, inquietudes e polêmicas sociais,
nossa reflexão indagando se podemos considerar os movimentos sociais contínuos duelos na rua com a polícia e inúmeras matérias jornalistas”.
como manifestações de grupos e setores sociais tratados socio-historica- O olhar diferenciado para movimentos dessa natureza que, a princípio,
mente como marginais e invisíveis? são expressivos de violência, devem e podem ser considerados como formas
Do ponto de vista dos estudos que consideram restos passíveis de de resistência que deixam rastros de ações em relação aos quais podemos
se transformarem em memória, questionamos como o processo do qual refletir sobre a conjuntura de análise, considerando as divulgações midiá-
decorreu o recente reconhecimento, devido à implementação de políti- ticas como restos que sinalizam dinâmicas sociais cujo alvo são matrizes
cas públicas, como o aumento do salário mínimo, as políticas de cotas na patrimoniais, na esfera do poder público. Por essa vertente, considera-se que
educação superior destinadas a camadas outrora tidas como segregadas, o âmbito da memória tem suas bordas traçadas, em termos metodológicos,
construiu terreno fértil para a eclosão de movimentos sociais e protestos. no confronto de informações sobre os movimentos sociais e seus restos a
Essa seria uma nuance da questão. Porém, por outro lado, não devemos partir de determinantes culturais e políticos. Nesse contexto, o fio condu-
esquecer que a crescente marginalização de determinados grupos também tor das nossas observações se alinha em uma modalidade de pensamento
colabora para práticas violentas de afirmação de diferenças econômicas, acerca do processo de atuação da memória na seleção do que deve ser lem-
religiosas, políticas e sociais que, conforme afirma Morin (2012, p. 16), “há, brado ou esquecido na relação entre movimentos sociais e a violência.
portanto, uma barbárie que toma forma e se desencadeia com a civiliza- Por esse viés indaga-se: o que suscita a atribuição da pluralidade de
ção”. Isso nos faz pensar que a barbárie que se instalou com esses movi- sentidos que reside sob o rótulo de violência aos movimentos sociais apro-
mentos, em alguns de seus efeitos devastadores, deve ser considerada com priando-se dos mesmos e tornando-os objetos passíveis de serem lembra-
um aspecto inerente ao processo civilizatório, ou seja: a civilização produz dos ou esquecidos? A esse respeito vale salientar que para Becker e Debary
barbáries e, ainda, “a civilização não é mais somente mortal, mas mortí- (2012, p. 9) “no seio de uma tensão entre lembrança e esquecimento se ins-
fera. Para se livrar do mal-estar que inspiram essas grandes palavras sem creve a diferença entre uma memória apaziguada e uma memória falsifi-
conteúdo, alguns, fazendo humor negro, chegaram mesmo a falar de uma cada, domesticada ou banalizada”. Em outras palavras, conforme assinalam
cultura de exterminação” (LE RIDER, 2002, p. 143). Farias e Pinto (2016), a memória, em sua faceta de construção social, não

136 137
cessa de explicitar sua dificuldade na cobertura dos fatos, do mesmo modo 2. a utopia monumental:
que, em alguns casos, deixa em segundo plano os estragos produzidos por o antimonumento de hambourg (1988)
esses fatos.
As formas atuais de contestações sociais e resistência no Brasil que
Continuando, indagamos em que medida a noção de resto, como
desejam ser libertadoras, emancipatórias, também mobilizam padrões de
aquilo que não se deixa aprisionar, como aquilo que sobra, o indesejável
ação baseados na violência, transmitidos do passado, de seus restos. Em
que insiste em retornar, tornando-se visível, emergindo nos contrafluxos
uma palavra, transmitidos pela história que nos remete a diferentes epi-
sociais, nos auxilia na reflexão sobre a relação entre memória, movimento
sódios marcados pela violência, desde os primórdios do processo coloni-
social e violência urbana? Essas indagações se ancoram na premissa de
zador. Contudo, as pessoas nascidas em solo brasileiro ao lançarem mão
que, segundo Becker e Debary (2012), no âmbito de ações violentas, o ser
de expressões de violência estão, de certo modo, tentando enunciar que
humano é capaz de realizações em relação às quais jamais poderia imagi-
esse modo de proceder com o recurso à violência pode ser considerado
nar ser, delas, o autor.
como uma modalidade de posicionamento moral, social, subjetivo e
Essa indicação nos adverte quanto à possibilidade de repensar a vio-
político, principalmente como uma resposta às formas de dominação do
lência, de forma a não tomar como categorias estanques quem produz e
colonizador.
quem sofre violência, uma vez que o mais fundamental deve-se centrar-
Deste ponto de vista, as políticas da história e da memória são tam-
-se sobretudo na análise do ato, razão pela qual ator e agente devem ser
bém constitutivas de nossa relação com a violência do presente. Na Europa,
igualmente ouvidos, pois como afirmam Huggins, Haritos-Fatouros e
essas memórias frágeis foram construídas ao longo do século XX por uma
Zimbardo (2006, p. 75):
resposta monumental. Após as guerras, especialmente as guerras mun-
diais, depois do fascismo e do nazismo, erigiram-se estelas em uma praça
Sem desculpar a flagrante violência de torturadores e assassinos, o pesquisa-
dor, ao abandonar a rigorosa dicotomia entre vítimas e perpetuadores, pode em Berlim, para homenagear os mortos. O século XX na Europa “cobriu-
estar em melhores de investigar a gama de papéis associados a esse status e, -se de monumentos”, para usar a fórmula de Becker (1988). Aos mortos
desse modo, documentar e reconstruir os aspectos sistêmicos do trabalho da em massa responderá a indústria dos monumentos, um culto dos mortos
violência. Afirmamos que restringir o estudo da atrocidade à divisão binária mantido pelo culto dos monumentos.
entre as condições de vítima e perpetrador pode limitar a pesquisa, princi- Mas esta resposta não pacificou em nada a história. Teria mesmo apa-
palmente a esses dois status opostamente complementares, que são definidas
ziguado? Ela provocou uma segunda violência, a da pretensão das pedras
de maneira estreita.
em se tornar lugar da memória, em vez dos mortos. Já há muito tempo, o
Em face dessas circunstâncias, consideramos de suma importância escritor austríaco Robert Musil havia enfatizado o quanto os monumentos,
refletir sobre a patrimonialização de restos, resíduos e vestígios conside- mesmo se dedicados à memória da história, caem no esquecimento. Como
rados objetos de memória em arquivos construídos a partir de cenários ele observa, “nada no mundo é mais invisível do que um monumento. Não
políticos que motivaram ações de movimentos sociais na cidade do Rio há dúvida de que os criamos para que eles sejam vistos, melhor ainda, de
de Janeiro, mas considerando uma posição que não se alinha, necessaria- modo que eles forcem a atenção, [...] mas a atenção escoa sobre eles como
mente, aos extremos de uma dada ação, ou seja, não podemos focalizar a água em uma roupa encharcada, sem se deter por um instante” (MUSIL,
violência sem abordar a díade que faz parte dessa ação: agente que pratica 2013, p 76). Os vilarejos da França e da Europa constroem seus monumen-
a violência e agente que sofre a violência, sem mesmo problematizar a rela- tos aos mortos perto das igrejas ou das prefeituras. Sabemos que eles estão
ção que existe entre ambos. lá, mas não os olhamos mais. A Europa está repleta de monumentos, assim
como silêncios sobre sua história. As pedras são abandonadas com o passar

138 139
do tempo, renunciando a sua função. O passado mais cruel se torna dócil Em sua criação em 1986, o Monumento tem a forma de uma coluna
e banal; sofremos, depois dos gritos mortais, os silêncios do monumento. de 12 metros de altura e coberta com placas de chumbo virgem de 1 metro
Então, como romper esse silêncio, como falar novamente? Como de cada lado. Gerz convida os habitantes e transeuntes a assiná-la, a assinar
encontrar a memória? Uma resposta foi proposta a partir da década de este monumento contra o fascismo. Um texto em sete idiomas propõe aos
1980, com o que chamaremos de “contramonumentos” (YOUNG, 1993). transeuntes que escrevam seus nomes usando um estilete especial dispo-
A arte contemporânea veio para revisitar e desestruturar a arrogância e a nibilizado para gravar o nome na coluna. Se normalmente a assinatura na
violência monumental clássica, criando novos monumentos, abertos, par- arte identifica o autor da obra, aqui, afirma Gerz (1993, p. 6), “as assinaturas
ticipativos e que, às vezes, têm como destino o seu desaparecimento. O são a própria essência do trabalho”. Esta regra do jogo é continuada pelo
artista alemão Jochen Gerz, nascido em 1940 em Berlim, é um dos princi- fato de que a coluna afunda 1,5 m por ano, gradualmente, à medida em que
pais representantes dessa corrente de arte monumental.3 as assinaturas são inscritas. O monumento foi criado e feito para desapa-
O que o objeto não consegue dizer ou transmitir, Gerz, de uma forma recer. Em 1993, após sete anos de existência e oito descidas sucessivas, o
mais geral, no âmbito da arte contemporânea, apropriou-se dessa questão dispositivo de afundamento chegou ao fim, a coluna desapareceu em um
por mais de 40 anos. Uma geração de artistas (sobretudo europeus e nas- poço de concreto de 14 metros de profundidade. Nesse ínterim, tornou-se
cidos durante a guerra) dedica suas obras à relação entre arte e memória, um lugar de expressão e de protesto. Nesse ínterim, o monumento tem
tropeçando na difícil representação da história, especialmente a das vio- uma história.
lências de guerra. Contra a evidência de uma presença e de uma represen- As pessoas começaram assinando seus nomes, mas outros vieram ris-
tação exata do passado, essa arte prefere as sobreposições, a compressão, a cá-los. Alguns voltaram para reinscrever seus nomes. Como explica Gerz
recomposição ou, por vezes, o desaparecimento dos objetos. A ausência é (1993, p. 8), “ficamos surpresos com a violência do público. Todas as assi-
cultivada como um jogo. O objeto da arte contemporânea é instável. A arte naturas foram imediatamente riscadas e arranhadas com insultos. Pessoas
conceitual radicaliza essa dúvida colocando uma ideia no cerne da prática atiraram no monumento, outras usaram serras, facas”. A coluna tornou-se
artística. A criação é pensada em torno de um pacto que implica o ato de um local de expressão pública privilegiada. “Pouco a pouco, as assinatu-
recepção como momento constituinte da obra. ras se transformam em algumas palavras e em seguida frases”, podia-se ler
“Nós somos contra o fascismo”, em outros lugares, “Somos pelo fascismo”,
2.1. O monumento contra o fascismo, Hamburg (1986/1993) “fora estrangeiros...” (GERZ, 1993, p. 8).
Um dos exemplos mais célebres da arte contramonumental é O Fotos da coluna mostram-na coberta com nomes, frases, sinais, ris-
monumento de Harburg contra o fascismo (Das Harburger Mahnmal gegen cos. Sua superfície é coberta por traços. Como uma pintura? “Rabisco ou
Faschismus). Ele foi construído e realizado em Harburg, um distrito de obra de arte?”, “Arte ou infâmia?” questionam os jornais. Se a imprensa
Hamburgo, na Alemanha. O Departamento de Cultura da cidade queria local denuncia o vandalismo do qual a coluna é vítima, o debate também
um monumento no final dos anos 1970 e desejava instalá-lo no meio de um resvala para a dimensão pouco estética do monumento e a importância de
grande parque. Gerz, com sua esposa artista Esther Sahlev-Gerz, venceu seu custo público. Um debate se abre: o monumento deve ser reparado? O
o concurso em 1984 e decidiu instalá-la no meio das pessoas, em pleno pagamento da obra com os impostos dos moradores é criticado.
centro da cidade, em uma praça animada, um bairro pobre desta periferia. Quando suásticas apareceram na coluna e o artista considerou que
os nazistas também haviam assinado, pois “uma suástica é também uma
assinatura”, afirma Gerz. Quaisquer que sejam as reações perante a coluna
3 Ver a obra que nós lhe dedicamos: Octave Debary, La ressemblance dans l’œuvre de Jochen (de apoio ou protesto), elas falam e testemunham a situação de recepção da
Gerz/Resemblance in the Work of Jochen Gerz, (ouvrage français-anglais), Paris, Créaphis,
2017, 224 p. obra, elas documentam. O monumento é um “espelho social” do presente

140 141
face ao passado, a “resposta atual à memória deste passado”, para usar as da coluna significa a recusa de uma ética da memória fundada sobre o ver
palavras de Young (1994, p. 87). em benefício de uma ética do saber.
Em 19 de novembro de 1993, o dispositivo de afundamento chegou É preciso ousadia e coragem política para financiar Gerz, para finan-
ao fim, a coluna desapareceu. Desde então, esta petição contra o fascismo ciar monumentos destinados a desaparecer. Renunciar ao visível para
chama a lembrança pelo seu contrário: o desaparecimento e o esqueci- financiar o invisível. Trabalho da história e da memória que Gerz chama de
mento. Os signatários do monumento encontram no desaparecimento da “passado negativo”. A história dos outros – inatingível enquanto passado –
coluna a necessidade de contar sua história, a história do monumento é é alcançada enquanto memória revisitada no presente. A memória sempre
transmitida àqueles que não a conheceram, àqueles que não estavam lá se conjuga no presente, aqui e agora.
para vê-la. Tendo assinado seus nomes e tendo sido enterrados vivos, os A arte é um convite, uma tomada da palavra, uma resposta inespe-
signatários estabelecem uma ligação entre eles e a história do monumento. rada ao seu próprio mutismo. Mutismo da arte, do artista ou do objeto
Esta obra, provocando o seu próprio desaparecimento, porta-se como que agora questiona, mas não responde por nós. Trata-se de fazer uso da
memória. As pessoas contam a história do monumento, a lembrança de arte e de seus objetos para um convite a um encontro. O espaço privile-
uma memória invisível. giado deste encontro acontece fora do museu, no meio das pessoas. Um
Por outro lado, os memoriais clássicos estão fadados ao esquecimento retorno às pessoas e à rua, como espaço de expressão e de encontro mais
e, com eles, a história que devem lembrar. Os memoriais pensam e lem- livre. Fazer desaparecer os objetos, como essa coluna, ressoa como um eco
bram para nós. É preciso ir vê-los para se lembrar. O monumento delega a e um retorno às ruínas da infância de Gerz: “o espaço público é, para mim,
lembrança à memória de suas pedras; como afirma o psicanalista Gérard sempre um retorno. É um terreno menos subjugado. Isso tem a ver com
Wacjman (1998, p. 201): “ocupa uma função de depósito, como uma conta a infância, o tempo passado no bairro em ruínas de Düsseldorf, com os
bloqueada da memória social. Nisto, ele contribui à repressão que ele favo- segredos, os conhecimentos íntimos, no meio daquilo que não pertence
rece e abençoa; um pouco como aqueles vigias que antes percorriam as nem a um e nem ao outro” (GERZ, 1996, 172). Na Alemanha, Inglaterra,
ruas das cidades durante a noite repetindo ‘durmam, pessoas de bem!’, França, Irlanda, em toda a Europa, Gerz concebe monumentos dedicados
qualquer monumento dizia a todo cidadão, esqueçam, eu me lembro”. aos vivos. Para que depois dos momentos dedicados aos mortos, à arte
O monumento nos dispensa da lembrança. Essa rejeição da função funerária, suceda uma arte de voltar à vida. Ele lista os nomes dos vivos, às
monumental clássica em Gerz (1996, p. 157) é dirigida “às pessoas que há vezes suas assinaturas, outras vezes suas palavras. Esses inventários escritu-
muito tempo disseram ‘não vimos nada, não estávamos aqui’, o objeto res- rários se convidam para as ruas, registram a vida, discretamente.
ponde: eu também não estou aqui”. O que fica aparente em Harburg é a ins-
crição ao lado do monumento cuja última frase é: “No dia em que ela desa-
3. conclusão
parecer, a localização do monumento de Harburg ficará vazia. Pois nada
pode erigir em nosso lugar contra a injustiça”. Gerz defende uma poética Começando, em um tom irônico, pela afirmação de que somos todos
do desaparecimento do objeto sacrificando sua visibilidade. Trata-se de violentos, que alternativas teríamos para lidar como essa situação? Não
restabelecer a história através da narrativa, a falta e a ausência tornam-se temos precisamente uma resposta, mas podemos entabular um debate
as modalidades de presentificar a história: alguma coisa está acontecendo, acerca da violência que considere fundamentalmente o ato violento como
alguma coisa está questionando. a situação que produz, ao mesmo tempo, o ator que realiza e aquele em
Precisamos ver para saber? A testemunha, o responsável da história, quem incide o ato, ou seja, existe a violência que circula, podendo tanto
não é aquele que vê, mas aquele que sabe ou deve saber, mesmo que a his- estruturar quanto inviabilizar os laços sociais.
tória, como a coluna, permaneça escondida, fora de vista. A invisibilidade

142 143
Hipoteticamente falando, a única condição para não sermos violentos da violência no contexto social. Embora saibamos ser difícil admitir que
seria a eliminação total do mal-estar e, como se trata de uma tarefa impos- somos violentos, em um grau maior ou menor, temos que nos avir para
sível, a violência faz parte do nosso percurso de vida, bem como da histó- refletir e agir de modo a não causar marasmos na vida social, considerando
ria edificada por nossos ancestrais, sendo também possível de ser lançada que uma mesma ação pode ser violenta em um contexto e uma época e não
para o futuro. A esta altura, não podemos evitar de nos questionarmos: sê-la em outro. Contudo, queremos assinalar que a ameaça que paira sobre
andamos em círculos, ou essa seria a única possibilidade de vivermos na nós, nos dias atuais, não é simples a passividade e nem a pseudo-atividade.
condição humana, em uma espécie de aprendizado que, a cada dia, somos Temos que ser atores com participação ativa para não cairmos no engodo
obrigados a reconhecer a existência do nosso semelhante, tão legítima de mascararmos o vazio estrutural que nos move, lembrando que a omis-
quanto a nossa? Indagação espinhosa, visto ser um dos tipos de ferida nar- são em ações é forma de violência mais virulenta que pode existir.
císica cravada no âmago de nossa vaidade, desde que foi decretado que não Enfim, a insistência de grupos sociais em não abrir mão da prática de
somos os senhores donos de nossa própria casa, mas que não pode deixar ações violentas na tentativa de combater outras vertentes da própria violên-
de ser formulada. cia pode muito significar a perpetuação de uma paixão, mas, com isso, não
À violência de uma separação inicial entre os seres, de um indivíduo estamos afirmando que, nas ações violentas, a pessoa tenha perdido os seus
diante de seu coletivo e de suas instituições reais e simbólicas, a tentativa de sentidos. Apenas, nestas condições, ao tentar buscar esteios para dar conta
dizer esse rompimento, do qual as guerras como as violências destrutivas do mal-estar inominável, pode acontecer de a pessoa sequer saber mais
constituem as formas mais radicais e espetaculares de expressão, responde quem é, mesmo sendo cônscia de tudo o que faz movida por uma espécie
a uma violência da utopia. Utopia como lugar impossível de anulação dessa de excitação que se apodera de seu ser na ilusão de busca de liberdade.
distância, como um projeto de paz (cuja formulação paradoxal de Kant
(2010) de um projeto de paz perpétua, exigia saber preparar a guerra). Dar referências bibliográficas
um lugar público (na rua, em uma praça pública), dar um nome comum
ABRAHÃO, J. V. S. Memórias do Porto Maravilha: o eclipsamento de violências
em resposta à violência, é produtor de ações que estruturam nossas expe-
traçado por elegâncias estéticas. Dissertação (Mestrado em Memória Social). Pro-
riências coletivas e produz um resto compartilhado. grama de Pós-Graduação em Memória Social. Universidade Federal do Estado do
Para Gerz, este lugar da utopia, essa utopia monumental não poderia Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.
ter outro destino a não ser desaparecer. A coluna será enterrada, desapa- BECKER, A. Les monuments aux morts, mémoire de la Grande Guerre. Paris:
recerá da e sob a terra. Só ficam na terra nós mesmos e a lembrança de Errance, 1988.
uma coluna que nos uniu, um tempo, como um lugar de expressão escrita BECKER, A; DEBARY, O. Montrer les violences extrêmes. Paris: Creaphis, 2012.
/apagada /riscada de nossas violências. Resta-nos apenas a lembrança de CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
uma utopia desaparecida, “pois nada pode se erguer em nosso lugar contra DEBARY, O. Antropologia dos restos. Da lixeira ao museu. Pelotas: UM2 Comuni-
a injustiça”. A praça do monumento de Harburg agora está livre, liberta, as cação, 2017.
ruas do Rio ainda estão livres. Cabe a nós ocupá-las. DEBARY, O. La ressemblance dans l’œuvre de Jochen Gerz/Resemblance in the Work
É preciso salientar que estigmatizar a ação dos participantes de movi- of Jochen Gerz. Paris: Créaphis, 2017.
mentos sociais e protestos, em uma vertente puramente violenta, seria o DUPUIS-DERI, F. Black Bloc. São Paulo: Veneta, 2014.
equivalente a considerar essas expressões como meras operações ideoló- FARIAS, F. R.; PINTO, D. S. Memória social e situação traumática. Morpheus. 9
(15), 2016.
gicas, ou seja, não podemos deixar de considerar o impacto e o sentido
FARIAS, F. R.; et ali. Quatro questionamentos sobre a violência. Rio de Janeiro: Con-
dessas manifestações e protestos. Não podemos nos perder em um pro-
tra Capa, 2014.
cesso de mistificação que concorra para inviabilizar o caráter estruturante

144 145
FINNAZI-AGRO, E. Cultura e democracia. Violência e direito no Brasil contem-
porâneo. In: SELIGMANN-SILVA, M; GINZBUR, J; HARDMAN, F. F. Escritas da
Sobre os(as) autores(as)
violência. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
GERZ, J. Mahnmal gegen rassismus. Saarbrücken: Hatje, 1993.
GERZ, J. La question secrete. Arles: Actes Sud, 1996.
GOHN, M. G. M. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de
Educação, 16 (47), 2011.
GAFFNEY, C. Forjando os anéis: a paisagem imobiliária pré-olímpica no Rio de
Janeiro. @metropolis. 15 (4), 2013.
HUGGINS, M. K.; HARITOS-FATOUROS, M.; ZIMBARDO, p. G. Operários da vio- Adriane Roso: Psicóloga. Mestra em Psicologia Social e da Personalidade
lência. Brasilia: EdUNB, 2006.
(PUC-RS). Doutora em Psicologia (PUC-RS). Estudos de Pós-Doutorado
JESUS, J. G. Psicologia das massas: contexto e desafios brasileiros. Psicologia &
em Psicologia Social (Harvard University) e em Comunicação (UFSM).
Sociedade, 25 (3), 2013.
Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação
KANT, E. Projet de paix perpétuel. Paris: Nathan, 2010.
em Psicologia (UFSM). Currículo: http://lattes.cnpq.br/5781004524826262.
LE RIDER, J. Cultivar o mal-estar ou civilizar a cultura? In: LE RIDER, J.; PLON, M.;
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7471-133X.
RAULET, G.; REY-FLAUD, H. Em torno de O mal-estar na cultura de Freud. São
Paulo: Escuta, 2002.
Ariany Villar: Psicóloga. Candidata a doutora em Psicologia (PUC-Chile).
MORIN, E. Cultura e barbárie europeias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5275-9033.
MUSIL, R. Œuvres pré-posthumes. Paris: Seuil, 2013.
NIETZSCHE, F. Le gai savoir. Paris: Gallimard, 1982. Auterives Maciel Junior: Mestre em filosofia pela Universidade do Estado
REEMTSMA, J. p. Confiance et violence. Paris: Gallimard, 2011. do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade
REY-FLAUD, H. Os fundamentos metapsicológicos de O mal-estar na cultura. In: Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trabalha atualmente no Programa de
LE RIDER, J.; PLON, M.; RAULET, G.; REY-FLAUD, H. Em torno de O mal-estar na Pós-Graduação (mestrado e doutorado) em Psicanálise: Saúde e Sociedade
cultura de Freud. São Paulo: Escuta, 2002. da Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ) e no departamento de psi-
ROUSSEAU, J-J. Du contrat social. Paris: Flammarion, 2001. cologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
SANTOS, B. S. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SEN, A. Identité et violence. Paris: Odile Jacob, 2006.
Eliezer Pires da Silva: Arquivista. Mestre em Ciência da Informação
(2009) pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
SOFSKY, W. Tratado sobre la violencia. Madrid: Abada, 2006.
(IBICT), no convênio estabelecido com a UFF. Doutor em Memória Social
SOLANO, E.; MANSO, B. p. ; NOVAES, W. Mascarados. São Paulo: Geração Edito-
rial, 2014. (2013) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
YOUNG, J. The texture of memory. New Haven and London: Yale UP, 1993. Professor efetivo do Departamento de Arquivologia, do Programa de Pós-
YOUNG, J. The Monument Vanishes. In: GERZ, J.; SHALEV-GERZ, E. Das Harbur-
Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos e do Programa de Pós-
ger mahnmal gegen faschismus/ The Harburg monument against fascism. Hamburg: Graduação em Memória Social da UNIRIO.
Hatje, 1994.
Evelyn Goyannes Dill Orrico: Mestre em Linguística (1995) pela UFRJ.
WACJMAN, G. L’objet du siècle. Paris: Verdier, 1998.
Doutora em Ciência da Informação (2001) pelo Instituto Brasileiro de
ZIZEK, S. Violência. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.
Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no convênio estabele-
cido com a UFRJ. Professora Associada IV, atualmente Pró-Reitora de

146
Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação da Universidade Federal do Estado Roberta Pinto Medeiros: Mestra em Memória Social e Patrimônio
do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atua no Programa de Pós-Graduação em Cultural pela UFPel (2015). Doutora em Memória Social pela Universidade
Memória Social da UNIRIO. CNPq/PQ2. Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO (2020). Professora Adjunta
no Instituto de Ciências Humanas e da Informação da Universidade
Francisco Ramos de Farias: Doutor em Psicologia pela Fundação Getúlio
Federal do Rio Grande – FURG.
Vargas, professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal Wilson Oliveira Filho: Doutor em Memória Social (PPGMS/UNIRIO)
do Estado do Rio de Janeiro, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 CNPq. com Bolsa PDSE/Capes na Universidade de Chicago (2012), sob supervi-
são de Tom Gunning. Em 2018 finalizou pesquisa de Pós-Doutorado na
Jô Gondar: Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio
ECO/UFRJ, onde concluiu o mestrado em 2006 e foi professor substituto de
de Janeiro. Professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de
Linguagem Audiovisual (2014/2016). Professor e pesquisador na UNESA
Janeiro. Mestre e doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela PUC-Rio,
desde 2005; atualmente coordena o curso de graduação tecnológica em
doutorado-sanduíche na Université Paris VII (1992) e pós-doutorado em
Fotografia.
Psicologia – Universidad de Deusto, Espanha (2000).

Johanna Gondar Hildenbrand: Pós-doutoranda em Memória Social


pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sendo bolsista do
Programa Pós-Doutorado Nota 10 FAPERJ. Doutora e mestre também em
Memória Social pela UNIRIO. Graduada em Comunicação Social com
habilitação em Cinema pela PUC-RIO (2011).

Lucas Graeff: Psicólogo, Antropólogo e Doutor em Etnologia e Sociologia


Comparada pela Université René Descartes (Paris V, Sorbonne). Pesquisador
associado ao Laboratoire PACTE – SciencesPo Grenoble.

Michelle Bernardino: Psicóloga. Mestranda em Saúde Pública na Escola


Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Candidata
a doutora em Psicologia (PUC-Chile). Currículo: http://lattes.cnpq.
br/3538145979098135. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6494-755X.
Atualmente bolsista CAPES.

Octave Debary: Docteur en Anthropologie Sociale et Ethnologie pela


École des Hautes Études en Sciences Sociales, Professeur d’Anthropologie
à l’Université de Paris SHS Sorbonne, Directeur du CANTHEL UPR4545.

Ricardo Salztrager: Psicanalista. Mestre e Doutor em Teoria Psicanalítica


pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

148 149
impresso na gráfica eskenazi
para viveiros de castro editora
em novembro de 2021.

Você também pode gostar