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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) MINISTRO(A) DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL

TATIANA MERLINO DIAS DE ALMEIDA​, brasileira, jornalista, RG nº 24.666.219-0 e CPF


nº 280.045.128-95, com endereço na Rua Padre Machado, 778, apartamento 111, São Paulo –
SP; ​ANGELA MARIA MENDES DE ALMEIDA​, brasileira, professora universitária
aposentada, RG nº 2.233.281-9 e CPF nº 021.480.438-03, com endereço na Rua Maria Antonia,
281, apartamento 1203, São Paulo – SP; ​JANAÍNA DE ALMEIDA TELES, ​brasileira,
historiadora, RG nº 16.111.919-0 e CPF nº 091.117.698-58, com endereço na Rua Coração da
Europa, 1439, São Paulo - SP; ​MARIA AMÉLIA DE ALMEIDA TELES​, brasileira,
aposentada, RG nº 4.976.428-7 e CPF nº 074.022.218-06, com endereço na Rua Coração da
Europa, 1395, São Paulo - SP; ​EDSON TELES​, brasileiro, professor, RG nº 173852646 e CPF
nº 12625764821, com endereço na Rua Cajaíba, 541, São Paulo - SP; ​CRIMÉIA ALICE
SCHMIDT DE ALMEIDA​, brasileira, aposentada, RG nº 7.991.581-4 e CPF nº
448.576.327-72, com endereço na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 993, apartamento 1008,
São Paulo - SP; ​INSTITUTO ​VLADIMIR ​HERZOG​, pessoa jurídica de direito privado,
inscrita no CNPJ nº 11.150.930/0001-48, com sede na ​Av. Brigadeiro Faria Lima, 1853, São
Paulo - SP, CEP: 01452-001​, na pessoa de seu Secretário Executivo Rogério Sotilli,
representados por seus advogados, vêm, respeitosamente, à presença de V. Exa, com fundamento
no artigo 5º, LXIX da Constituição Federal de 1988 e Lei 12.016 de 2019,

MANDADO DE SEGURANÇA

-com pedido liminar-

em face do Exmo. Sr. Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, por ato ilegal consistente
na determinação às Forças Armadas de comemoração do dia 31 de março de 1964, nos termos a
seguir expostos:
1. Breve síntese dos fatos

Na data de ​25.3.2019​, o Exmo. Sr. Presidente da República Jair Bolsonaro, doravante


denominado impetrado, determinou às Forças Armadas Brasileiras que adotassem providências
para a celebrar o Golpe Militar de 1964.

Tal determinação foi divulgada pelo porta-voz oficial da Presidência da República, Sr. Otávio
Rêgo Barros, em coletiva de imprensa transmitida pela TV Nacional do Brasil (NBR), veículo de
comunicação oficial do Governo Federal brasileiro.

O pronunciamento do porta-voz oficial da Presidência da República, Sr. Otávio Rêgo Barros,


está disponível na íntegra no sítio eletrônico oficial da Presidência da República
(​http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/porta-voz/2019/declaracao-a-imprensa-do-s
enhor-porta-voz-general-otavio-rego-barros-brasilia-df-25-de-marco-de-2019-brasilia-df​) ​(doc.)​,
dando certeza de tratar-se de comunicação oficial de ato determinado pelo Presidente da
república, ora impetrado.

O trecho pertinente ao ato ilegal está descrito da seguinte forma:

“O presidente não considera trinta e um de março de 1964 golpe militar. Ele


considera que as sociedade reunida e percebendo o perigo que o País estava
vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos
recuperar e recolocar o nosso País num rumo que, salvo melhor juízo, se isso não
tivesse ocorrido, hoje nós teríamos um tipo de governo aqui que não seria bom
para ninguém. E​ o nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que
faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo
uma ordem do dia patrocinada pelo Ministério da Defesa que já foi aprovada
pelo nosso Presidente”​ . ​(negritamos)
Tal determinação, além de constar dos canais oficiais de comunicação da Presidência da
República, foi amplamente divulgada pela mídia sem que houvesse qualquer tipo de correção ou
retratação por parte do impetrado.

Na sequência da entrevista, questionado por alguns repórteres sobre o que seriam “devidas
comemorações ao dia 31 de março de 2019”, assim respondeu o porta-voz: “Aquilo que os
comandantes acharem, dentro das suas respectivas guarnições, e dentro do contexto que devam
ser feitas”.

Desde então, ações populares e ações civis públicas foram propostas com o objetivo de barrar
tais comemorações.

Em ​26.3.2019, ​a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos emitiu nota com o título “​É
incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que
adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes
internacionais”​ (​doc.​).

Na referida nota, o Ministério Público Federal se posiciona contrário ao ato do Senhor


Presidente, declarando que a atitude pode caracterizar ato de improbidade administrativa:

Festejar a ditadura é, portanto, festejar um regime inconstitucional e responsável por


graves crimes de violação aos direitos humanos. Essa iniciativa soa como apologia à
prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo
das repercussões jurídicas. ​Aliás, utilizar a estrutura pública para defender e celebrar
crimes constitucionais e internacionais atenta contra os mais básicos princípios da
administração pública, o que pode caracterizar ato de improbidade administrativa, nos
termos do artigo 11 da Lei n° 8.429, de 1992.​ (negritamos)

Além disso, também em 26.3.2019, a Defensoria Pública da União ingressou com Ação Civil
Pública em face da União, distribuída perante a Seção Judiciária do Distrito Federal, pedindo que
fosse determinada a proibição da realização de festividades em qualquer evento de comemoração
ao Golpe Militar de 1964 (​doc. ​)

Sem prejuízo, por tal ato ser ilegal e afrontar direito líquido e certo dos impetrantes, passível de
conhecimento direto e imediato pelo Supremo Tribunal Federal, é que se intenta o presente
mandado de segurança.

2. Competência deste E. Supremo Tribunal Federal


O artigo 102, I, ​d da Constituição Federal de 1988 estabelece a competência deste E. Supremo
Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, o mandado de segurança proposto
contra atos do Presidente da República.

3. O ato ilegal

O ato ilegal objeto deste mandado de segurança é a determinação exarada pelo Presidente da
República Jair Bolsonaro, ora impetrado, dirigida às Forças Armadas, para “comemoração” do
dia 31 de março de 1964.

Esta determinação foi levada a público pelo porta-voz da Presidência da República, cargo cuja
função é falar em nome do Presidente da República e tão somente aquilo autorizado e orientado
pelo Presidente da República.

Tal ato está revestido de oficialidade e concretude suficientes a representar lesão ou ameaça de
lesão a direito. A ​oficialização de tal determinação de comemoração ​está representada não só
pela comunicação feita pelo porta-voz da Presidência da República, como pela reprodução de tal
conteúdo pela TV Nacional do Brasil e no sítio eletrônico da Presidência da República.

Não bastasse, o próprio Presidente da República, em sua conta oficial no Twitter, no próprio dia
25 de março de 2019, às 17h14min, reproduziu o inteiro teor da comunicação do porta-voz,
corroborando, tácita e evidentemente, todos os seus termos: “O porta-voz da Presidência da
República, General Rêgo Barros, resume alguns dos muitos pontos positivos internos externos
das últimas duas semana do governo Bolsonaro. Assista: [referindo-se à vídeo anexado à
mensagem, com a íntegra da comunicação]”.
A comunicação da Presidência da República menciona, ainda, uma ordem do dia sobre tais
comemorações que teria sido aprovada pelo Presidente da República no mesmo sentido, não
havendo, entretanto, sua publicação em qualquer canal oficial de governo.

Está-se diante, portanto, de ato ilegal exarado pelo Presidente da República através de seu
porta-voz, representando grave lesão à direito líquido e certo dos impetrantes.

A ilegalidade do ato se assenta em múltiplos fundamentos: reveste-se de imoralidade


administrativa, na medida em que frustra mandamento constitucional e legal que exige do Estado
o dever de reconhecer os períodos de exceção, seus crimes e suas vítimas e de promover a devida
reparação, seja através da Comissão de Anistia ou da Comissão Nacional da Verdade, instituídas
por lei, em atenção ao que exige o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Tal dever de reconhecer as violações perpetradas em períodos de exceção - que legal e


constitucionalmente incluem o período da Ditadura Militar, obviamente - está presente não só no
ordenamento jurídico pátrio como no direito internacional dos direitos humanos.
A este respeito, é importante destacar duas decisões da Corte Interamericana que dialogam de
maneira direta com o tratado neste mandado de segurança:

(i) ​Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (“Guerrilha do araguaia”):​

Tratou da responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e


desaparecimento forçado de cerca de 70 pessoas, dentre integrantes do PC do B e camponeses da
região do Araguaia (TO), entre 1972 e 1975. As vítimas integravam em sua maioria movimento
de resistência contra a ditadura (“Guerrilha do Araguaia”).

Em ​24.11.2010​, a Corte Interamericana considerou que, além de ter sido responsável pelo
massacre, o Brasil ainda deixou de dar cumprimento ao dever de investigar e julgar os
responsáveis pelo massacre ao promulgar a Lei da Anistia (Lei Federal nº 6.683/79), o que
representa violação aos arts. 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pessoal), art. 7º (direito à
liberdade pessoal), art. 8º (garantias judiciais), art. 13 (liberdade de pensamento e de expressão) e
art. 25 (proteção judicial) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

No que toca ao direito à verdade e à memória, ponderou a Corte Interamericana que é dever do
Brasil tomar medidas para que eventos como o massacre não mais ocorram. Dentre tais
obrigações, está a educação das próprias Forças armadas a respeito das graves violações de
direitos humanos que o evento representou:

283. A Corte considera de maneira positiva a informação do Brasil sobre os programas de


capacitação das Forças Armadas. Este Tribunal julga importante fortalecer as
capacidades institucionais do Estado, mediante a capacitação de integrantes das Forças
Armadas sobre os princípios e normas de proteção dos direitos humanos e os limites a que
devem ser submetidos. P​ ara essa finalidade, o Estado deve dar prosseguimento às ações
desenvolvidas e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente
e obrigatório sobre direitos humanos, destinado a todos os níveis hierárquicos das
Forças Armadas. Como parte dessa formação, deverá ser incluída a presente Sentença,
a jurisprudência da Corte Interamericana a respeito do desaparecimento forçado de
pessoas, de outras graves violações aos direitos humanos e à jurisdição penal militar,
bem como às obrigações internacionais de direitos humanos do Brasil, derivadas dos
tratados nos quais é Parte.
Ora, é evidente que a determinação da autoridade coatora é frontalmente contra o dever do
Estado Brasileiro imposto pela Corte Interamericana, na medida em que glorifica um passado
que o Brasil tem o dever de tomar medidas para que não se repita. Portanto, para além de uma
dimensão individual, que sustenta o presente mandado de segurança, o direito à verdade também
encontra fundamento em uma dimensão social e política, que também foi violada pela autoridade
coatora.

(ii) ​Caso Vladmir Herzog vs. Brasil​:

Tratou da responsabilidade do Brasil pela detenção ilegal e execução do jornalista Vladmir


Herzog em 24.10.1975 nas dependências do DOI/CODI em São Paulo. A morte do jornalista foi
apresentada à sociedade brasileira, inicialmente, como “suicídio”. Em 1976, familiares
impetraram ação declaratória perante a Justiça Federal de São Paulo, que desconstituiu essa
versão. Em 1992, o Ministério Público de São Paulo requisitou inquérito policial para apurar os
fatos, mas foi arquivado pelo Tribunal de Justiça com fundamento na Lei da Anistia. Em 2008,
houve nova tentativa de investigação, mas o processo foi novamente arquivado, sob o
fundamento da prescrição. Por fim, em 2012, a família obteve a retificação da ​causa mortis n​ a
certidão de óbito de Vladmir.

Em 15.3.2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao analisar o caso sob o prisma do


direito à verdade, declarou que o expediente de se ocultar e distorcer a verdade merece especial
reprovação:

Nesse sentido, a Corte observa que não foi senão no final do ano de 2007 que o Estado
finalmente divulgou a verdade extrajudicial dos fatos, com a publicação do relatório da
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Até esse ano, as instituições do
Estado – em especial o exército – sustentaram uma versão dos fatos cuja falsidade havia
sido estabelecida judicialmente desde 1978, quando foi emitida a sentença da Ação
Declaratória (par. 132 a 134 supra). A Corte também constata que os familiares das
vítimas conseguiram, em 2013, uma retificação da causa mortis no atestado de óbito de
Vladimir Herzog. Isso implica que foram necessários 15 anos desde o reconhecimento da
competência contenciosa da Corte para que os familiares do senhor Herzog deixassem de
suportar – ainda que formalmente – manifestações do poder público que negavam a
verdade dos fatos e, pior ainda, forjavam uma falsidade.
Em ambos foi reconhecido e reafirmado o dever do Estado brasileiro em garantir o direito à
memória e à verdade e a tomar providências para que os crimes cometidos por agentes do Estado
durante a ditadura não fossem esquecidos e para que eles não se repetissem.

Nunca é demasiado lembrar que os tratados internacionais possuem ​status supralegal e


infraconstitucional por força da decisão deste E. Supremo Tribunal Federal no RE 466.343 e sua
violação importa não apenas responsabilização internacional como também frente ao sistema de
justiça nacional.

Para além destas ilegalidades, o ato combatido viola direito líquido e certo dos impetrantes à
memória e à verdade, como a seguir será demonstrado.

4. A violação do direito líquido e certo à memória e à verdade

Os impetrantes são vítimas da Ditadura Militar inaugurada em 31 de março de 1964, momento


execrável que o Exmo. Sr. Presidente da República pretende comemorar.

TATIANA MERLINO DIAS DE ALMEIDA ​e ​ANGELA MARIA MENDES DE


ALMEIDA​, são, respectivamente, sobrinha e viúva de ​Luiz Eduardo Merlino​, morto em 19 de
julho de 1971 nas dependências do DOI na Rua Tutóia, em São Paulo. Luiz, jornalista, tinha 23
anos na época; foi torturado até a morte e teve seu corpo vilipendiado por Ustra e seus
comparsas.

JANAÍNA DE ALMEIDA TELES e EDSON TELES são filhos de ​César Augusto Teles​,
militante político, preso em dezembro de 1972. Foi torturado, além dos danos psíquicos sofridos
foi obrigado a efetuar transplante de pele em razão das queimaduras que sofreu. Ambos foram
obrigados a assistir às sessões de tortura do pai e da mãe, ​MARIA AMÉLIA DE ALMEIDA
TELES, ​militante política, presa em dezembro de 1972. Foi torturada por um agente da
Operação Bandeirantes, tendo sofrido violência sexual, física e psicológica, além de ter sido
separada dos filhos pequenos, Janaína Teles, que tinha 5 anos e Edson Teles, que tinha 4 anos,
no momento da prisão.

CRIMÉIA ALICE SCHMIDT DE ALMEIDA​, militante política, presa em São Paulo, em


1972, grávida de 6 meses, sofreu tortura em São Paulo e em Brasília até dar à luz a seu filho,
quando foi separada deles, só o reencontrando 53 dias após o parto, quando ele estava desnutrido
e dopado.

INSTITUTO VLADIMIR HERZOG foi criado em junho de 2009 por amigos e familiares
em memória de ​Vladimir Herzog​, jornalista, foi preso e assassinado nas instalações do
DOI-CODI, em 1975, em São Paulo.

Todos estão reconhecidos como vítimas da Ditadura Militar brasileira ou são familiares de
vítimas, conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade, disponível em projeto digital
chamado de Memórias Reveladas: ​http://cnv.memoriasreveladas.gov.br​.

A todos os brasileiros, mas especialmente aos impetrantes, é garantido o direito à memória e à


verdade, isto é, o direito “​reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano
da cidadania e dever do Estado​”; deveres estes que se desdobram em dois: o dever de
“preservar a memória histórica e a construção pública da verdade”; e de “modernizar a legislação
relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia”, nos
termos do artigo 2º, Eixo VI do Plano Nacional de Direitos Humanos 3, publicado no Decreto
7.037 de 2009, ainda em vigor.

O ​direito à memória e à verdade tem sido sistematicamente reconhecido pelos tribunais


brasileiros como parte indissociável da dignidade humana​, seja na perspectiva da proteção da
identidade e, portanto, da formação da autonomia, seja como um forma de ver-se livre do medo,
da angústia, da incerteza, em uma noção mais ampla de preservação e proteção da integridade. A
proteção da dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado brasileiro, conforme prevê o
artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988.
Vários casos, inclusive movidos pelos impetrantes deste mandado de segurança, tem conseguido
amparo judicial reconhecer, por um lado, o direito subjetivo, líquido e certo, à memória e à
verdade; e, por outro, o correspondente dever do Estado em respeitar (não violar diretamente),
proteger (preservar a integridade do direito face terceiros) e realizar (promover ativamente
medidas para concretização) o direito à memória e à verdade.

Tais decisões judiciais lidam com o direito à memória e à verdade em diversos aspectos: na
necessidade de se promover uma investigação criminal sobre as graves violações a direitos
humanos, identificando fatos e partícipes; no acesso a documentos antes classificados como
sigilosos; na declaração civil de nexo de causalidade entre a atuação de agentes do Estado e
danos sofridos pelas famílias e vítimas de violações de direitos humanos na Ditadura
civil-militar; na retificação de certidões de óbito, como no emblemático caso Herzog.

O E. Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de se manifestar sobre o assunto,


reconhecendo o direito à memória e à verdade como direitos subjetivos:

“A pretensão formulada pelos demandantes encontra-se em plena


consonância com um Estado Democrático de Direito, que busca resgatar a
sua memória acerca de gravíssimos fatos ocorridos no período militar
iniciado em 1964.

A recuperação da memória histórica é fundamental para uma nação para


evitar que essas graves violações aos direitos humanos voltem a ocorrer.

Tendo lastimavelmente ocorrido esses gravíssimos fatos praticados por


agentes a serviço do Estado brasileiro, devem ser devidamente desvelados
em suas circunstâncias para que não se relegue o sofrimento das vítimas a
um desconhecimento pela sociedade.

(...)

As violações aos direitos humanos que aqui se enfrentam, narradas pelos


autores da presente ação declaratória, deram-se no período militar
brasileiro, iniciado em 1964, período em que se estima - e, não se olvide,
aqui se tem mera estimativa - consoante anotou Flávia Piovesan, no artigo
Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o Caso Brasileiro, inserto em
livro intituladoCrimes da Ditadura Militar (Organizado por Luiz Flávio
Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli, Ed. RT, 2011, p. 81), "houve o
desaparecimento forçado de 150 pessoas, o assassinato de 100 pessoas, ao
que se soma denúncia de mais de 30.000 casos de tortura."

Nessa vertente de apuração da verdade, desde 1995, criou-se a Comissão


Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, mediante a Lei
9.140/1995, com o objetivo de promover a busca de informações e
instrumentos para elucidar as violações contra os direitos humanos
ocorridas durante a ditadura militar brasileira, comissão esta cujo objetivo
era, e ainda é, reconhecer pessoas mortas ou desaparecidas, promovendo a
identificação e, mais importante, a devolução dos seus restos mortais aos
familiares.

(...)

Imputou-se ao Estado, pois também de seus agentes partiram as violações


verificadas no lapso ditatorial - e o réu era um deles -, o dever de
reparação de tais máculas, expondo-as à sociedade.

(...)

Com apoio no direito à memória, à reconstrução histórica do período


ditatorial com base na verdade dos fatos e direitos violados, ao
aprendizado com os erros do passado (para prevenir violação de direitos
humanos e assegurar sua não repetição), à co-responsabilidade que possui
o Estado em face dos atos dos seus agentes, cumpre ao ente político
explicitar tudo o quanto possível acerca dos nefastos acontecimentos do
período ditatorial”.
(STJ, REsp 1.434.498, 3ª Turma, Relator para acórdão Paulo Sanseverino,
j. 9 de dezembro de 2014)

No mesmo sentido, este E. Supremo Tribunal Federal tem

EMENTA: RECLAMAÇÃO. CONSTITUCIONAL.


DESCUMPRIMENTO DE JULGADO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE
SEGURANÇA N. 23.036. DETERMINAÇÃO DE ACESSO A
REGISTROS DOCUMENTAIS DE SESSÕES DO SUPERIOR
TRIBUNAL MILITAR OCORRIDAS NA DÉCADA DE 1970.
INEXISTÊNCIA, NO PARADIGMA DE CONTROLE, DE RESTRIÇÃO
ÀS SESSÕES PÚBLICAS DE JULGAMENTO. ACESSO AOS
DOCUMENTOS RELATIVOS ÀS SESSÕES SECRETAS.
RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. A decisão proferida no
julgamento do Recurso Ordinário no Mandado de Segurança n. 23.036 não
restringiu o acesso dos então Impetrantes aos documentos e arquivos
fonográficos relacionados às sessões públicas de julgamentos do Superior
Tribunal Militar ocorridas na década de 1970, assentando que todos os
julgamentos seriam públicos e que as gravações dos áudios dessas sessões
deveriam ser disponibilizadas aos Impetrantes, também no que se refere
aos debates e votos proferidos pelos julgadores. 2. Injustificável a
resistência que o Superior Tribunal Militar tenta opor ao cumprimento da
decisão emanada deste Supremo Tribunal, que afastou os obstáculos
erigidos para impedir fossem trazidos à lume a integralidade dos atos
processuais lá praticados, seja oralmente ou por escrito, cujo
conhecimento cidadãos brasileiros requereram, para fins de pesquisa
histórica e resguardo da memória nacional. 3. ​O direito à informação, a
busca pelo conhecimento da verdade sobre sua história, sobre os fatos
ocorridos em período grave contrário à democracia, integra o
patrimônio jurídico de todo cidadão, constituindo dever do Estado
assegurar os meios para o seu exercício​. 4. A autoridade reclamada deve
permitir o acesso do Reclamante aos documentos descritos no
requerimento administrativo objeto da impetração, ressalvados apenas
aqueles indispensáveis à defesa da intimidade e aqueles cujo sigilo se
imponha para proteção da sociedade e do Estado, o que há de ser motivado
de forma explicita e pormenorizada pelo Reclamado, a fim de sujeitar a
alegação ao controle judicial. 5. Reclamação julgada procedente.

(STF, Rcl 11949, Relatora Carmen Lucia, j. 16 de março de 2017, grifo


nosso).

No âmbito internacional, então, não há dúvidas de que o direito à memória e à verdade é um


direito humano fundamental que deve ser garantido pelos Estados.

A Organização das Nações Unidas no documento ​Question of the impunity of perpetrators of


human rights violations (civil and political), d​ e 1997, reconheceu o direito à verdade como
inalienável, devendo haver a garantia de sua efetivação, de modo a cumprir com o dever de
“lembrar”. Em outros documentos, como a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as
Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, ratificada pelo Brasil em 2007 (Decreto nº 8767/16),
destacou-se o direito das vítimas de conhecerem a verdade sobre desaparecimentos forçados,
reforçando a importância da verdade para a prevenção e combate a desaparecimentos. A
Resolução 2005/66 do Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH), por sua vez, reconheceu
o direito à verdade em casos de graves violações de direitos humanos (​gross violations)​ . A
previsão de tal direito é um investimento na transparência presente, no não esquecimento,
portanto, na memória, bem como em políticas voltadas à preservação de arquivos e à
investigação de violações passadas visando a sua não repetição no presente.
Ao determinar que as Forças Armadas Brasileiras adotem providências para a celebrar o golpe
militar de 1964, o presidente, que reiteradamente faz apologia à ditadura em seu cotidiano,
especialmente em seus discursos e nas redes sociais, viola de forma incisiva o direito à verdade,
pois conclama que um regime que notoriamente torturou e matou milhares de pessoas seja
exaltado com honrarias.

Sua postura ironiza vítimas da ditadura, desrespeitando suas memórias da violência vivida. Ao
celebrar o golpe que desembocou na ditadura militar brasileira que durou 21 anos (1964-1985),
o presidente coloca em cheque as provas inquestionáveis de tortura, homicídios, suicídios
forjados e desaparecimentos relatadas por sobreviventes e seus familiares em documentos como
a Comissão Nacional da Verdade (CNV), questionando a memória e a verdade dessas histórias
trágicas que ainda são feridas abertas neste país.

Memória e verdade estas que, repita-se, são direitos que se revestem de liquidez e certeza e que
impõem ao Estado brasileiro o dever de agir de forma a preservá-los, garanti-los e respeitá-los.

Exaltar o golpe é desdenhar do passado e, abertamente, causar insegurança quanto ao futuro da


democracia. Exaltar o golpe é fazer com que cada uma das famílias, impetrantes e muitas outras,
bem como todas aquelas que vivenciaram os horrores da repressão, sejam questionadas
publicamente em suas versões e memórias, desrespeitando-se de forma direta o direito à verdade,
pois questionando a veracidade do que se viveu na pele, na carne, nos ossos e na alma.

É inadmissível em um Estado Democrático de Direito que a autoridade maior do executivo


queira reescrever uma história há muito escancarada em sua perversidade e violações. O lema do
direito à memória e à verdade “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”
conclama a lembrança do que foi o período, justamente para que violações como aquelas não
mais aconteçam. Ao lembrar do episódio pelo avesso, a razão pode também se deturpar -
celebrar o golpe que desembocou na ditadura é tê-la como um acontecimento possível.

Inadmissível porque desconstrói os fundamentos que fizeram nosso país retornar à democracia;
intoleráveis porque violam direitos líquidos e certos dos impetrantes; ilegais e inconstitucionais
porque desprezam todo o regime jurídico inaugurado pela Constituição Federal de 1988 que
obriga, sem espaço para incertezas, o Estado a adotar medidas de reconhecimento das violações
perpetradas, de reparação das vítimas e de garantias de não-repetição.

5. Liminar

Estão presentes os requisitos legais para concessão da ordem liminar para que a autoridade
coatora não determine ou, se tiver determinado, suspenda a ordem de realização de
comemorações no dia 31 de março de 2019 relacionadas ao Golpe Militar de 1964.

A demonstração do perigo na demora está no seguinte: ​(i) a data em que as comemorações seria
no domingo próximo, dia 31.3.2019 ou mesmo em data anterior; ​(ii) há declaração pública,
constante no site da Presidência da República, por parte do porta-voz da presidência,
confirmando que a autoridade coatora deu a ordem, ​in verbis,​ “​o nosso presidente já determinou
ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964,
incluindo uma ordem do dia patrocinada pelo Ministério da Defesa que já foi aprovada pelo
nosso presidente”​ . (​doc. ​)

A demonstração da fumaça do bom direito está vastamente demonstrada: ​(i) ​na evidente
ilegalidade em ordem de comemoração de regime de exceção, rechaçado pela Constituição, pelas
leis e por decisões internacionais baseadas em tratados internacionais do qual o país faz parte,
por promover graves violações de direitos humanos no Brasil; ​(ii) ​no direito dos impetrantes em
verem respeitado o seu direito subjetivo, líquido e certo, à verdade e à memória em relação aos
fatos ocorridos durante o regime de exceção que a autoridade coatora pretende, agora,
comemorar e dos quais foram vítimas.

O Superior Tribunal de Justiça e este E. Supremo Tribunal Federal já se manifestaram nesse


sentido, assim como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Presentes, assim, os requisitos autorizadores da medida liminar: o perigo na demora da prestação


jurisdicional e a fumaça do bom direito. Além disso, é importante destacar que promover atos ou
comemorações sobre o Golpe Militar pode trazer grave instabilidade para a ordem pública,
devendo este E. Supremo Tribunal agir com presteza na análise da liminar.

6. Pedidos

Diante de todo o exposto, requerem os impetrantes:

a) Liminarmente, inaudita altera pars, requer-se seja expedida ordem para que a
determinação do Presidente da República Jair Bolsonaro, ora autoridade coatora,
oficializada em pronunciamento de seu porta-voz, reproduzida pela TV NBR e pela
página oficial do governo, dirigido às Forças Armadas, para que sejam adotadas as
providências para comemoração do Golpe Militar (dia 31 de março de 1964) seja
imediatamente suspensa, nos termos do artigo 7º, III da Lei 12.016 de 2009;
b) Ainda em sede liminar, inaudita altera pars, determinar que a autoridade coatora se
abstenha de editar qualquer ordem no sentido de quaisquer órgãos públicos federais
realizarem comemorações ou atos que violem o direito à memória e à verdade dos
impetrantes no dia 31.3.2019 ou qualquer outra data, em razão do aniversário do Golpe
Militar de 1964 ou, se já o tiver feito, que sejam cassados os efeitos da ordem para que
ela não seja cumprida no dia 31.3.2019 ou em qualquer outra data, nos termos do artigo
7º, III da Lei 12.016 de 2009;
c) A notificação da autoridade coatora, o Exmo. Sr. Presidente da república Jair Bolsonaro,
para prestar informações, nos termos do artigo 7º, I da Lei 12.016 de 2009.
d) Ao final, seja confirmada a ordem, garantindo-se o direito dos impetrantes à memória e à
verdade e impedindo a realização de festividades em razão do aniversário do Golpe
Militar de 1964.
e) A intimação do Ministério Público Federal para intervir no processo como fiscal da lei.
f) A intimação da Advocacia Geral da União para que atue no processo e a intimação da
autoridade coatora para que preste informações no prazo de 48 horas.

Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00 para fins fiscais.


Termos em que pede deferimento.

De São Paulo para Brasília, 27 de março de 2019.

Eloísa Machado de Almeida

OAB SP 201.790

Bruna Angotti

OAB SP 317.688

André Ferreira

OAB SP 346.619
Luciana Gross Cunha

RG 21.516.301-1

Nathalie Fragoso

OAB SP 338.929

Isabela Labre Moniz de Aragão

OAB SP 389.211

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