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Beco das flores

01

As sereias dos barcos soavam desoladas ao largo da costa quando cheguei a Paraty.
Embora fosse maio, chovia sem parar; ninguém se aventurava pelas ruas alagadas
por causa do mau tempo; os hotéis pareciam acomodados à escuridão. Apesar disso
andei durante horas para encontrá-lo. No meio do nevoeiro era natural que a túnica
colasse ao meu corpo como uma armadura; as sandálias mergulhavam com ruído nas
poças mais fundas. Atendendo a um comando subterrâneo eu segurava o punhal na
mão direita: dentro de alguns instantes ia vê-lo diante de mim. Ao entrar no beco de
flores tive a certeza de que ele caminhava ao meu encontro. Pisei tensa nas pedras
lisas, as narinas abertas ao tóxico das plantas pendentes de muros e janelas. A essa
altura a visibilidade era quase nula e as cãibras paralisavam os dedos em volta do
punhal; no entanto não afrouxei nem um pouco a pressão. Isso não me impediu de
estremecer ao surpreendê-lo sentado no chão. De fato a vontade de golpeá-lo
enquanto ele estava anestesiado era muito grande: só a custo me contive. Por isso
esperei que ele voltasse a si para vencer a distância que me separava de seu
pescoço. Ao enterrar a lâmina na carne desprotegida percebi que as lágrimas me
subiam aos olhos; pois eu o odiava a ponto de saber que obedecia passivamente a
uma realização de desejo.

02

Senti que Erínia estava por perto quando cheguei ao centro comercial de Paraty.
Embora fosse maio a chuva caía sem parar; as pedras lisas impediam que os turistas
se aventurassem pelas ruas; além do mais faltava luz em toda parte e as sereias dos
barcos soavam desoladas ao largo da costa. Eu tinha armado o guarda-chuva de
plástico e caminhava em direção ao mar; surpreendido pelo nevoeiro percebi que não
chegaria à praia; tanto que depois de andar mais de uma hora estava no ponto de
partida. Foi nesse lance que desviei o olhar para o beco: parecia um jardim suspenso.
Os tufos de flores despencavam pelos muros e janelas; a primeira vez que os vi
pensei que fossem restaurantes; as casas no entanto estavam fechadas por causa do
mau tempo. Atraído pelo silêncio entrei no beco como quem sobe num navio
iluminado. O perfume das plantas era muito mais forte do que eu imaginava – em
poucos segundos sentei-me intoxicado no chão. Creio que só nesse instante Erínia
apareceu de corpo inteiro diante de mim: a túnica branca escondia a sandáliade couro
e uma luz de vinho vazava de seus olhos. Movido pela surpresa eu lhe disse alguma
coisa amável; não tive resposta. Lembro-me apenas de que ela avançou pisando nas
poças e enterrou o punhal no meu pescoço. Enquanto o sangue ensopava o colarinho
eu mantinha a calma; pois o crime de Erínia tinha as marcas usuais da alucinação
satisfatória.

CARONE, Modesto. “O Beco das Flores”. In: POE, Edgar Allan et all. Histórias Fantásticas. Editora ática:
1998. 2ed. p.141.

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