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e a Diferença
Edward Lopes
Sabe-se que as modernas teorias da narrativa
filiam-se diretamente à autonomização da
esfera literária, operada pelos românticos no
século passado: foi a partir dessa dissociação
entre a narrativa e o "real" que ela
supostamente retrataria ou refletiria (ou,
dito de outro modo, dessa autojustificação
da literatura desvinculada de qualquer
conhecimento exterior a ela) que o lingüista
genebrino Ferdinand de Saussure (1857-
1913) pôde pensar a linguagem como um
objeto autônomo. É exatamente este o
ponto de partida do professor e crítico
Edward Lopes neste livro, que convida os
leitores a um fascinante percurso pelas
teorias estruturais da narrativa elaboradas ao
longo do século XX.
Recusando o postulado filológico de que
os textos conteriam uma "verdade" única e
transcendental, e que ao crítico caberia
apenas desvendá-la, penetrando nas
intenções recônditas de seus autores, este
livro de Edward Lopes propõe a
multiplicidade das leituras e a diversidade
das apropriações que um texto pode
sofrer. Assim, o leitor é inserido nos
modelos teóricos tomados em sua
historicidade específica e em seus "valores-
de-uso", diga-se assim, contemporâneos.
Também são descartados apriorismos,
A Identidade e
a Diferença
Reitor Flávio Fava de Moraes
Vice-Reitora Myriam Krasilchik
Edward Lopes
IMPRENSA
OFICIAL~
Copyright © 1997 by Edward Lopes
Direitos reservados à
Edusp - Editora da Universidade de São Paulo
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6" andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
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Te!. (011) 813-8837 r. 216
Introdução 11
Os Estudos Literários do Renascimento à Segunda Metade do Século XIX 11
Do Século XIX para o XX: Passagem do Pensamento do Contínuo
para o Pensamento do Descontínuo 19
A Revolução Estrutural do Cubismo 21
O Sentido Ideológico do Cubismo 24
Leitura Filológica e Leitura Hermenêutica '.' 25
PARTE I
OS MODELOS
A SEMIOLINGÜÍSTICA GERAL DE FERDINAND DE SAUSSURE
1. A Revolução Estruturalista 29
Semiologia e Semiótica 29
A Revolução Estruturalista: O Nome e o Epistema 32
PARTE II
AS TEORIAS
O FORNIALISMO RUSSO, O ESTRUTURALISMO TCHECO, O ESTRUTURALISMO
SEMIOLÓGICO FRANCÊS
Bibliografia 375
s. BECKEIT
PASCAL
Para lá, porém, das nomenclaturas que não serviram muito mais do que para iden-
tificar, em benefício dos arraiais sitiados, à época, o adversário a combater -
dizemos isso porque os assim chamados formalistas foram, a nosso ver, os pri-
meiros autores das teorias estruturalistas da narrativa - , e para lá mesmo dos fun-
dadores que, afinal, só interessam à história na medida em que permanecem
naquilo que fazem, importam sempre as fundações, instauradoras do novo epistema.
Nesse particular, a que emerge hoje no horizonte da história como a mais importante,
influen te e duradoura delas, por ter servido ao longo de quase todo o século como
ciência -piloto, fornecedora dos modelos cien tíficos a seguir pelas demais ciências
humanas e, particularmente, pela teoria da literatura, foi incontestavelmente a
lingüística ou, como talvez seja mais apropriado dizer agora, a semiolingüística
geral, fundada por Saussure.
Como todos os fundadores acima da bitola normal, Saussure tem um rosto
de Jano, com uma face voltada para o passado e outra para o futuro. É, pelo
menos, com esse semblante que ele redige a sua Mémoire, que, sendo o maior
livro jamais produzido pela escola dos neogramáticos, é, ao mesmo tempo, a obra
que joga a última pá de cal na sepultura deles. É assim que ele perfila a tradição
da sua ciência: retomando-a não para fazê-la estacar no que já estava feito, mas,
ao contrário, para, através do procedimento de soma e transporta de todos os
balanços, refazê-la, engrossando-a no seu cursus, a fim de que ela pudesse con-
tinuar, rejuvenescida.
E, de fato, até Saussure, a lingüística foi atomista: ela se dedicava a estudar, de
um ponto de vista genético e substancialista, um punhado de termos-objetos, tomando-
os em separado, um por um. Era o que fazia a lingüística histórico-comparativa.
Não sé pode negar, porém, que Saussure é um dos introdutores do pen-
samento da descontinuidade na história da ciência moderna e que esse pen-
samento está estreitamente associado' com o problema da desumanização das
ciências humanas. Na comunicação Les Fins de l'homme que apresentou a um con-
gresso de Nova York em 1968, Derrida afirmou a "destituição do humanismo"
(apudPJves Filho, 1988, p. 10); muito antes dele, Freud já havia posto no lugar
do homem o desejo; e Lacan, aprofundando-o, colocou a falta, a carência, reduzindo
o ser do homem à fala do outro, que é o inconsciente (l'être, l'autre, la lettre); não
de outro modo Foucault termina Les Mots et les choses (1966), afirmando a morte
do homem - não do ser humano, mas de uma concepção humanista, histórica,
que criou uma dada concepção do homem moderno sob o diktat do liberalismo
burguês, reacionário e proprietário, e a impôs, essa imagem, a todos nós, como
nossa identidade social, aquela que temos de vestir como uma pele sob as vestes apa-
renciais distintas de nossa identidade particular, para que nos identifiquemos como
entes "humanos", iguais e desiguais, iguais lla espécie e desiguais em nossas con-
dições societárias, nesse espaço de injustiças que é a sociedade.
16 • A Identidade e a Diferença
está, com todas as letras: "O mecanismo lingüístico rola inteiramente sobre iden-
tidades e diferenças, estas últimas sendo apenas a contraparte das primeiras" (Saussure,
1972, p. 151) (grifos nossos).
Assim, Saussure, que foi um dos arautos do moderno pensamento des-
contínuo, com ele criando todo um repertório de conceitos básicos das ciências
do espírito de hoje, os conceitos de oposição, contraste, substituição, comutação,
forma, substância, significante, significado, sincronia, diacronia, parole, langue,
traço distintivo etc. - conceitos esses que, retrabalhados, vieram a converter-se
no ponto médio dos debates formais do estruturalismo, no tema do descentramento
do sujeito e no da desumanização - escapou do descontinuísmo que o recon-
duziria aos postulados epistemológicos neogramaticais, pelo procedimento sis-
temático de enfatizar sempre a primordialidade dos conceitos unificadores, ope-
radores da continuidade, da solidariedade entre os elementos do sistema e da
relação; o conceito de relação: "o fato de sincronia é sempre significativo; ele apela
sempre para dois termos simultâneos: não é Gaste, 'hóspedes', que exprime o
Introdução • 17
plural, mas a oposição Gast: Gaste 'hóspede: hóspedes"'( idem, p. 122). E a solidariedade
entre os elementos do sistema: "Um sistema não é nunca modificado diretamente;
em si mesmo, ele é imutável; só certos elementos se alteram a despeito da solida-
riedade que os vincula ao todo. É como se um dos planetas que gravitam em torno
do sol mudasse de dimensões e de peso: esse fato isolado acarretaria conseqüências
gerais e deslocaria o equilíbrio de todo o sistema solar" (idem, p. 121).
Muito antes que outro qualquer viesse a pensar nisso, Saussure nos deixou
a lição de nunca começar um trabalho considerando os termos-objetos, mas, antes,
considerando as relações que os unem dentro do sistema. É com ele que os termos-
objetos - objetos do ato de conhecer - vão aparecer como feixes (ou, como ele
preferia dizer, plexus) , pontos de intersecção entre relações.
Para a constituição das teorias formais, estruturais, da narrativa, importa,
porém, mais que tudo, sua convicção de que "o que o signo lingüístico une não
é uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica" (idem, p. 98),
bem assim seu expresso reconhecimento de que "a lingüística pode tornar-se o
padrão geral de toda semiologia, ainda que a língua não seja mais do que um
sistema particular Idela/" (idem, p. 101). Se nesta citação o mestre de Genebra
reconhecia o caráter metateórico da lingüística, sua condição de modelo para as
demais semióticas, na citação anterior ele proclamava pioneiramente a "condição
autónoma do discurso", fundamental para o futuro surgimento das teorias estru-
turais da narrativa, bem como para a liberação da teoria da literatura de uma
incómoda servidão aos pressupostos culturológicos, como o de H. Taine que, ainda
na segunda metade do século passado (cf. a introdução à sua Histoire de la litté-
Tature anglaise) , insistia em não ver no texto literário mais do que "um documento".
Dizendo-o drasticamente, nunca houve na história das artes mais do que
duas maneiras de abordar a obra estética - a que a considera primariamente na
sua relação com o mundo (é o enfoque positivista de Taine, positivista porque
considera "o mundo" e a "obra" a priori como "dados", "isso que está aí") e a que
a encara como um discurso em relação com outros discursos. O enfoque posi-
tivista compreende a obra referindo-a a tudo aquilo de que ela deveria ser cópia
ou expressão (a teoria marxista ingênua do "reflexo"), o homem, a vida, o escritor,
a sociedade, o mundo, numa palavra, referindo-a a tudo aquilo que a ultrapassa
e se encontra fora dela. Essa relação, discurso artístico (texto) veTSUS mundo
(extratexto), que constitui a estrutura elementar sobre a qual se articulam todas
as teorias estéticas extrínsecas, instrumentaliza a obra de arte e a condena a ser
aquilo que ela não é - um documento, para usar o vocábulo de Taine.
Opondo-se a ela, está a reivindicação da autonomia da obra de arte, que,
tomada como um fim em si mesma, é a base de toda a teoria estética intrínseca.
Pois bem: uma teoria da obra de arte literária não tem por que colocar o
problema da existência do mundo exterior à obra, de "um mundo" que, dito seja
18 • A Identidade e a Diferença
de passagem, ser humano algum nunca viu, quanto mais "compreendeu" (porque
para ver alguma coisa é preciso que o sl~eito se coloque fora dela; e porque com-
preender alguma coisa exige compará-la com alguma outra coisa que a ela se
assemelha; mas "o mundo" é uma totalidade absoluta, que nada exclui e não se
parece com nada); assim, pondo entre parênteses qualquer "além da linguagem ",
a teoria da literatura não tem que se pôr o problema do "mundo fora da obra",
tem que se pôr, apenas, o problema do "mundo dentro dela" - um mundo que
não é constituído de coisas, mas de n outros discursos. Desse modo, a relação
discurso artístico (texto) versus discurso (intertextos), que é o fundamento das
teorias da literatura intrínsecas, como as estruturais, que encaram o discurso
literário como o resultado combinatorial de uma intertextualidade, tem seu suporte
teórico de base no pressuposto da condição autônoma do discurso.
A Saussure, que foi o primeiro a reconhecer a condição autônoma das
relaçôes estruturais, que de nada mais dependem exceto da perspectiva de sin-
cronização dos interlocutores (da sincronização forçosa do escritor e do leitor,
operada no ato da leitura), "A sincronia conhece uma só perspectiva, a dos sujeitos
que se comunicam ", Idem, p. 128) ficamos a dever o reconhecimento da autonomia
do texto - e, por extensão, do texto da obra literária, quando se consolidou, mais
tarde, via formalismo russo, a idéia de que o literário é da ordem sígnica. No
fundo,já a idéia da arbitrariedade do signo, saussuriana, emancipava a realidade
do texto de servidão a qualquer outra realidade extratextual que, por extratextual,
colocava emjogo um problema metafísico, da competência dos debates filosóficos,
mas não dos literários, nem da arte literária, que não tem por que se submeter a
nenhum princípio empiricista, cujo valor de verdade se mede não em termos de
adequação entre o discurso e a coisa de que ele é signo (condição empiricista
expressamente excluída por Saussure em sua definição de signo), mas, sim, em
termos de coerentização in terdefinicional- um problema de veridicção, portan to,
de veri-dictio, do "dizer verdadeiro", em que a verdade é construída como ade-
quação entre dizeres (porque para saber se dado discurso x diz a verdade, preciso
de outro discurso y que diga que o discurso x diz - ou não - a verdade), não
um problema de verdade.
Por si mesma, pois, a idéia da arbitrariedade da relação intra-sígnica se
resolvia na admissão de que os objetos semióticos, o discurso literário entre eles,
possuem um sentido e uma funcionalidade subordinados unicamente aos meca-
nismos de "dependência interna" - no dizer de Saussure, a modificação de um
planeta do sistema solar acarretaria a modificação do sistema todo. Nesses termos
é que a obra literária assume plenamente a sua "função transcendental", no
sentido kantiano.
Do conjunto das noçôes saussurianas emergia a possibilidade de elaboração
de uma teoria estrutural do discurso literário, capaz de possibilitar o conhecimento
Introdução • 19
le 'IIe crois jJas aux choses, mais aux relations entre les choses.
BRAQUE
século em que estamos começaria, portanto, bricoleU'!: Sua expressão científica pri-
vilegiada, dentro das ciências humanas, foi a lingüística geral e estrutural de
Saussure, que gerou e forneceu o epistema e o modelo a ser seguido pelas demais
disciplinas da linguagem que viriam a prolongá-lo, o formalismo russo, o estrutu-
ralismo tcheco, a glossemática, o estruturalismo e a semiologia franceses, até a
semiótica da Escola de Paris - escolas, tendências e movimen tos que englobamos,
aqui, por conveniência da exposição, sim, mas também por convicção de não
serem todas essas correntes senão expressões descontínuas, no nível da mani-
festação, de um mesmo pensamento estrutural contínuo, no nível subjacente,
imanente, sob o rótulo estruturalismo.
Se, assim, o estruturalismo foi a expressão do pensamento da desconti-
nuidade no círculo das ciências, sua expressão correspondente no território das
artes foi o cubismo - e nem é preciso lembrar que assim como houve um cubismo
pictórico (Picasso, Braque), houve, também, paralelamente, um cubismo literário
(J oyce, Gertrude Stein), um cubismo musical (Igor Stravinski, Schoenberg),
poético (Chklovski).
J. L. BORCES
lações a que o grupo submete todos e cada um de seus membros para neles inte-
riorizar a mesma visão de mundo, sua ideologia e seus esquemas de en tendimen to,
o repertório todo dos elementos cuja interiorização na mente do leitor virá a
compor sua particular competência para ver e para entender o mundo e os textos
produzidos por sua comunidade. Colhido na armadilha do efeito ilusionista que
Maupassant desvendou como o artifício crucial da arte realista, ''jai're vrai consiste...
ádonnerl'illusion completedu vrai" (Maupassant, "Préface" de PierreetJean) , o realista
desconhecerá que é esse designatum pictórico que diz, assinalando-se na imagem
pintada que o reproduz, "isto é uma maçã"; como aceitaria de bom grado, ele, a
impertinência de Magritte em que o designatum realista da "maçã" afirma, apontando-
se na figura pin tada ceci est unepomme, quando tal iden tificação vem, para escândalo
do bom senso (uma virtude realista), explicitamente negada na advertência escrita
que atravessa a tela a proclamar ceci n'est pas une pomme?
Debalde Magritte desmistifica a empulhação realista denunciando-a como
operadora de uma manipulação obtida à custa da redução do ser do objeto pin tado
ao seu parecer, para melhor reproduzir uma servidão do ver. Ver, de acordo com
os cânones do realismo, implica a tautologia ofuscante de ver o já-visto, de ver "o
que todo mundo vê" - paranóia do hábito, afirmada como bom senso pela
ideologia burguesa montada à base dos automatismos impostos por uma visão
autoritária do real, que força a exibição da aparência que nos faz ver o que já
vimos (exibir = fazer ver) para melhor camuflar o que deseja (camuflar = não fazer
ver). Reprodução exaustiva do mesmo, a visão realista se resolve num ver o parecer,
que é um parecer ver: mesmice paranóica da conformidade, que faz da pintura o
espaço reprodutor da dominação, um lugar imaginário de den tro do qual, quando
o miramos, "o poder Inosl vê sem ser visto" (Gluckmann).
O cubismo surgiu em 1907, com As Senhoritas de Avignon, de Picasso.
Inaugurando uma nova técnica, a tela dava um tratamento anti-realista a um
assunto tradicionalmente realista. Isso se fazia por meio de uma desestruturação
da forma realista, seguida de uma reestruturação dela em outros termos:
Montagem cubista
Desestruturação
Seleção da
figura-tipo realista
b
Análise por
segmentação das unidades
mínimas analógicas Reestru turação
Redução ou reinterpretação
das unidades mínimas
analógicas (realistas)
em unidades mínimas
d
cubistas
matemática, tudo o que é valor é valor de uma variável; creio que nenhuma obra
artística possua só o sentido que seu autor pretendeu lhe dar ao confeccioná-la:
um escritor é o autor do discurso, apenas, e tem toda a auctoritas do mundo para
organizá-lo como queira, mas uma vez que o fez e lançou sua obra ao mundo não
é mais "dono" dela do que ela mesma, ou do que eu; ele é o autor do plano de
expressão de sua mensagem, mas o autor do seu sentido, do seu plano de conteúdo,
é quem a lê: o sentido é, sempre, uma atribuição do sentido. E assim os discursos
de arte do passado são eternos não porque não mudem, mas, ao contrário, porque
vivem mudando: se o Dom Quixote continua a ter, depois de transcorridos quase
quatrocentos anos da sua composição, todo o sentido do mundo para o leitor de
hoje, isso não se deve a ter o romance permanecido inalterável durante esses anos
todos; deve-se, antes, ao fato de ter ele de algum modo "evoluído", acompanhando
a evolução dos tempos. É este o sentido do termo "histórico": só é histórico o ente
que se transforma de um ser em outro ser, à medida que os tempos velhos se trans-
formam nos novos tempos; e, finalmente, tampouco creio que possam existir
escrituras ou leituras "brancas", ideologicamente neutras ou "objetivas": escrever
compromete, ler compromete e -lembrando Camus - , mais que tudo no mundo,
não se comprometer compromete.
Quero dizer com tudo isso que não busquem aqui uma leitura filológica-
não estou nem um pouco interessado no sentido que tinha para um outro, mesmo
para seu autor, a obra que ele escreveu, quando a escreveu (de resto, por que seria
ele um leitor capaz de ler alguma coisa para mim melhor do que eu mesmo?); se
o sentido que ele pretendia dar ao seu trabalho me escapou, uma de duas: ou ele
não está incluído lá, no texto, hoje, e ficou no passado, caso em que seria inútil
procurá-lo ali, agora; ou ele está aí no escrito que leio e eu não o percebi, por
inépcia minha - mas, nesse caso, ele passou, também, ao menos para mim, e o
que se há de fazer? Como quer que seja, repito que não estou interessado no
sentido que o que eu leio tinha para o outro, outrora; estou interessado só no
sentido que ele tem para mim que leio, agora. Conseqüentemente, esta obra nasce
de uma leitura hermenêutica, expressão pela qual quero dar a entender que leio
o que leio interpretando o passado a partir do presente, consciente do caráter
produtivo (e não só reprodutivo) dessa prática significante que exerço, esse ato
de leitura que nos faz - a mim, que leio, e ao meu discurso-objeto - contempo-
râneos um do outro, contemporâneos no presente da minha leitura, quero dizer,
porque se o discurso que leio é do passado, eu, que o leio, sou do presente.
Conste, enfim, que o que me interessa nesses discursos com cujas reflexões
passo a repensar o que penso, agora, é saber o que deles sobrou, em termos de
raízes históricas das modernas teorias estruturais da narrativa, e se incorporou na
semiótica da narrativa destes nossos dias - matéria única em que eu, agora, estou
verdadeiramente interessado.
PARTE I
OS MODELOS
A SEMIOLINCÜÍSTICA CERALDEFERDINANDDE SAUSSURE
1
A REVOLUÇÃO ESTRUTURALISTA
SEMIOLOGIA E SEMIÓTICA
KJWEBER
PRADO COELHO
Aqueles que pensam como Kroeber, na epígrafe acima, vão, decerto, abanar
a cabeça, desalentados, diante da proposta deste livro: Que idéia! Escrever um livro
sobre uma teoria quando ela está começando a ficar fora de moda. Mas, um outro
autor, que no Brasil talvez não tenha estado nunca em moda,jean Charles (1968,
p. 27) escrevia na sua LaFoire aux cancres: "Estuda-se o fundo do mar com uma sonda.
Se ela traz de volta garranchos, o fundo é garranchento. Se ela volta enlameada, então
o fundo é lamacento. Se ela não traz nada, então o cabo da sonda é curto demais".
30 • A Identidade e a Diferença
Quero dizer com isso que nem todo mundo está tão certo assim da morte
do estruturalismo; há pelo menos uma meia dúzia para quem uma nova fase dele
está em gestação precisamente hoje:
Supondo que este trabalho tenha algum interesse e alguma originalidade, desejaríamos que
fosse os de COlwencer o leitor de que, longe de tornar-se obsoleto como gostariam de nos fazer crer
os incur,1veis fautores da moda, o estruturalismo está ao contrário a ponto de descobrir a Idéia
matemática correspondente ao seu Conceito. Entrevemos daqui para a frente a possibilidade de
prolongar o racionalismo físico em um racionalismo estrutural, matematicamente fundado, inte-
grando-a, por meio de sua legalização, na sua "parte maldita", fenomenológica, simbólica, e semiótica;
a possibilidade, no quadro de uma extensão objetiva da ontologia natural, de naturalizar uma ordem
racional do sentido [... ]; em suma, a possibilidade de uma nova filosofia natural retificadora da
clivagem (o "Yalta" transcendental) entre NatlllToissenschaften e a Geisteswissenschaften [... ] o caminho
e a abertnra para [...] uma nova Aujlildl'lmg (Petitot-Cocorda, 1986, pp. 21-22).
De fato, com Peirce a semiótica dá os seus primeiros passos para vir a cons-
tituir-se disciplina autõnoma. É dele a primeira definição moderna desses estudos,
datada de 1867, num trecho em que frisa orgulhosamente o seu próprio papel de
precursor: "Sou, tanto quanto sei, um pioneiro, ou, melhor, um abridor de picadas
(a bachwoodsman) , na faina de desbastar e de expor o que chamo Semiótica, ou
seja, a doutrina da natureza essencial e das variedades fundamentais das semioses
possíveis" (ajJudEco, 1971a, p. 16).
Essas palavras deixam claro que Peirce concebia a semiótica como uma clis-
ciplina da lógica - o que, de resto, ele próprio confirma: "ALógica é, em seu sentido
geral [... ], apenas um outro nome da Semiótica, a doutrina quase-necessária ou
formal dos signos" (ajJudLopes, 1976, p. 16). Enquanto isso, seu equivalente europeu
(Peirce escrevia nos Estados Unidos), o vocábulo semiaIagia, foi concebido, vinte
e tantos anos após, como uma disciplina da psicologia social. O termo semiologia
aparece, segundo Godel (ajJUd Amacker, 1975, p. 38), nas notas de Ferdinand de
Saussure, a partir de 1894,já para aludir a "uma ciência geral dos signos". A explanação
do fundador da semiologia e da lingüística estrutural se acha nas últimas páginas
do terceiro capítulo do Cours de linguistique générale. "A língua é um sistema de signos
que exprimem idéias [... ]. Pode-se pois conceber uma ciência que estude a vida dos
signos no seio da vida social: ela formaria parte da Psicologia Social; denominá-Ia-
emos Semiologia (do grego semeion, "signo") (Saussure, 1972, p. 33).
Não são posições exatamente iguais, mas elas não se excluem necessa-
riamente; de certo modo são mesmo complementares. Como quer que seja, foram
elas que deram origem, em seus prolongamentos históricos, a duas tendências
diferentes, uma semiótica filosófica - Peirce era um filósofo profissional, de fato,
o verdadeiro fundador do pragmatismo quase sempre atribuído a seu amigo W.
James - e uma semiologia lingüística - e Saussure foi a vida toda, mesmo tendo
começado como lingüista, um semiólogo:
Nós [Greimas e Banhes] não fazíamos distinção entre semiologia e semiótica. O problema
terminológico surgiu mais tarde: quando os alunos de Banhes quiseram conservar "semiologia",
malgrado a decisão das "altas autoridades".
Para criar uma associação internacional de semiótica, seria preciso dispor de um termo
que tivesse correspondente em inglês, pois de outro modo teríamos tido uma associação de
semiologia em francês e de semiótica em inglês, oposição que, de algum modo, existe entre a
escola européia e a americana, mas que não era visível na época. Então ]akobson propôs esse
termo, e nós éramos quatro, Lévi-Strauss, Banhes e eu, para decidir. Logo, Banhes cedeu, eu
também, e isso se vê em meus textos anteriores onde o termo semiologia foi empregado muito
freqüentemente (1986, p. 43).
Broekman (1974, p. 35) informa que o termo "estrutura" surgiu pela primeira
vez em 1935, durante uma sessão do Círculo de Praga; Mounin (1973, p. 134),
assegura que a palavra vem de um artigo de Viggo Br0ndal, "Lingüística Estrutural",
publicado no número 1 da Acta Linguistica, periódico do Círculo de Copenhague,
em 1938; Benveniste, por sua vez, assevera que "estrutura" aparece já no título das
Teses de 29, do mesmo Círculo de Praga (1966, p. 94) e precisa que o fundador do
estruturalismo, Ferdinand de Saussure, nunca utilizou essa palavra no Cours:
"Saussure nunca empregou, em qualquer sentido, a palavra 'estrutura'. Aos seus
olhos, a noção essencial é a de sistema" (idem, p. 92). Contrapondo-se a todos eles,
Aguiar e Silva escreveu: "Alguns anos antes, porém, da publicação das Teses de 29,
já em textos de diversos formalistas russos, cujas relações diretas e cujas afinidades
doutrinárias com a Escola de Praga são bem conhecidas, a palavra' estrutura' surge
com algumafreqüência [... ]" (1973, pp. 631-632). E, completando sua informação,
Aguiar e Silva cita, além de um trabalho de Tinianov e um outro de Jirmunski,
algumas passagens de Brik, de Tomachevski e de Eikhenbaum.
Na verdade, nenhuma dessas informações está inteiramente correta, pois
se deixarmos de lado um punhado de escritos que há muito utilizavam "estrutura"
em um sem-número de acepções ocasionais, mas sempre num sentido próximo
e intuitivo de "organização", "conjunto", "agregado" e "construção", nenhuma
das quais rigorosamente estruturalista - veja-se, a propósito, Bastide, em Sens et
usage du terme "structure" dans les sciences humaines - o certo é que esse vocábulo
surgiu em pelo menos algumas de suas peculiares acepções estruturalistas, não
em Praga, 1935, como informa Broekman, nem, como diz Mounin, no artigo de
1938 de Br0ndal, nem nas Teses de 29, como afiança Benveniste, e nem mesmo no
trabalho de qualquer dos formalistas russos mencionados por Aguiar e Silva, mas,
antes, ainda, de todos eles, e pela primeira vez, precisamente no Cours de lin-
guistique générale, de Saussure, em que figura ao menos em duas ocasiões: "Empregam-
se freqüentemente os termos construçâo e estrutura a propósito da formação das
palavras" (Saussure, 1972, p. 244; d. também a p. 256 da mesma edição, a pro-
pósito das raízes monossilábicas do alemão, quando Saussure precisa que elas
obedecem "a certas regras de estrutura").
É preciso particularizar, todavia, na esteira de Tullio de Mauro, que Benveniste,
se desacerta na informação, acerta na interpretação ao advertir que o termo habi-
tualmen te utilizado por Saussure para designar a noção de "estrutura" - ao menos
na sua acepção de langue- é "sistema".
Posto isso, uma vez cunhada a expressão, ela vai ser cada vez mais utilizada
à medida que avança o século: raríssima em Saussure, ela aparece um pouco mais
com os formalistas russos (d. a citação de Aguiar e Silva supra) e cresce ainda mais
com os formalistas tchecos. Esse aumento na freqüência do uso e da circulação
do termo assinala uma progressiva tomada de consciência de que, do final do
34 • A Identidade e a Diferença
século XIX para o começo do XX, tinha-se operado uma ruptura epistemológica
crucial para as ciências humanas, com o aparecimento de um novo epistema de
que "estrutura", "estruturalismo" e derivados constituíam o plano de expressão.
Com o neologismo "epistema" designamos o esquema de entendimento
dominante, o diagrama ou noção geral que projeta no bachground histórico de
uma época o seu conceito-chave, em torno do qual gravitam e se ordenam seus
sistemas de pensamento (na série científica, na série artística, na série filosófica
etc.) e que funciona como o a priori metacognitivo definidor das possibilidades
teóricas de dado campo epistemológico. De um ponto de vista metodológico, o
epistema é o metaconceito dominante que opera a autenticação dos modelos ana-
lógicos que sob sua inspiração são produzidos por disciplinas conexas àquela em
que ele primeiro apareceu; encarregado, pois, de homologar e sancionar, positiva
ou negativamente, conceitos, princípios ou procedimentos análogos de outras
disciplinas, o epistema é o ideologema da moda: é ele que define tudo o que, nas
teorias coetâneas, tem sentido ou não, tudo o que é sensato ou insensato, racional
ou irracional-a ordem e a desordem. Finalmente, é do ponto de vista do epistema
dominante que analisamos, interpretamos, classificamos e, sumariamente, com-
preendemos o que há para compreender; ele unifica e dá sentido ao que fazemos,
ordena nosso próprio pensamento e o reconcilia com o pensamento do outro;
sem ele, tudo o que há em nossas vidas não passaria de um caos, um monte ata-
balhoado de materiais de construção, sem significação e sem utilidade - um caos,
não um logos, um monte de tijolos, não um edifício.
Como freqüentemente ocorre na história da cultura, a lingüÍstica e a teoria
literária eram já estruturalistas antes mesmo que os próprios cultores da nova meto-
dologia se tivessem dado conta disso. Pois acima de suas episódicas e compreensíveis
diferenças, havia um denominador comum a aproximar as mais distan tes tendências
estruturalistas, dos geralistas de Genebra, dos formalistas russos, dos funcionalistas
tchecos, dos glossemáticos dinamarqueses - e era seu comum entendimento de
que todos eles lidavam com o mesmo objeto, conjuntos significantes designados ora
como discursos, ora como textos, ora como obras ou composições, de um mesmo
ponto de vista intrínseco, tomando-os como construções articuladas por uma rede
de dependências internas, que se explicavam dentro de si mesmas, com o rechaço
sistemático dos delírios logomáquicos dos "ideólogos" ou dos "culturalistas".
O que era "novo" no pensamento deles era, primeiro, o mesmo rechaço da
verborragia oca dos teóricos e críticos extrínsecos e, segundo, mais do que a adoção
de um mesmo corpo de doutrina homogêneo ou estabilizado, ou de uma mesma
epistemologia que lhe desse sustentação, todo um conjunto de categorias teóricas
e críticas e uma mesma metodologia - ainda que diversamente utilizada. Porque,
ao contrário do que sempre assoalharam os seus detratores, o estruturalismo foi,
desde o seu nascimento, um método, uma teoria, um ponto de yista e uma ideologia.
A Revolução Estruturalista • 35
S [sexualidade]
Isso tudo evidencia que a relação (ou a função, como prefere Hjelmslev, ou a es-
tTUtura elementm; na terminologia greimasiana) é o metaconceito síntese do epistema estTU-
turalista; e é desse ponto de vista que a prioridade histórica na formulação do
conceito pertence indisputadamente a Saussure, que já observara, aliás, que a
relação não é um vínculo colocado entre coisas (termos-objetos) preexistentes,
que existissem independentemente da própria relação; que, ao contrário do que
comumente se pensa, é a existência da relação que põe a existência do objeto (e
do sujeito) do conhecimento (e não vice-versa); que, por isso, sem a existência da
relação não há como falar em objeto de conhecimento, dado todo importante
quando se atenta para o fato de que, em decorrência disso, tendo em mente a
dupla implicação do sujeito e do objeto, que são reciprocamente postulados -
A Revolução Estruturalista • 39
A SEMIOLINCÜÍSTlCA GERAL
DE FERDINAND DE SAUSSURE
L. SEllAC
Cenamen te, lendo os manuscritos, não se pode deixar de ser surpreendielo com tuelo o que liga
esses textos tão diferentes, pela constância e insistência de certas afirmações, o retorno, por vezes a anos
ele distância, ele certas fórmulas e certos exemplos. Essa il11pressão, contudo, se enfraquece à medida
que se estuelam mais intimamente as fontes do Cours de linguistiqlle générale: parece que o pensamento
46 • A Identidade e a Diferença
dc Saussure, como LOdo pensamento \ivo, deve ter variado e que a espantosa fIxidez de seus princípios
fez-se acompanhar, sobre outros pontos, de dll\idas crescentes: em maio de 1911, Saussure tinha dlwidas
que hesitava em participar a seus alunos. Os editores, com toda a e\idência, não poderiam ter feito coisa
diferente do que fIzeram, caso contrário teriam tido de renunciar a publicar o C01l/"5 de lingllistiqllegénéra!e.
Não depõe, porém, contra a memória deles, nem contra a de Sausssure, tentar apreender o pensamento
do mestre não "na sua forma defInitiva" mas, tanto quanto possível, no seu dc\ir, nas suas hesitações, e
suas variações, quiçá; sobretndo se transparecer, nelas, que certas difIculdades sobre as quais se concen-
traram as críticas de quarenta anos a esta parte não escaparam à sua clarividência (1957, p. 131).
Cert<tmente, um livro de ciência não vale pelo que ele fIxa, mas pelo que ele
põe em movimento; não pelo que ele colhe, mas pelo que semeia. Sabemos todos bem
que o futuro é caprichoso e se compraz em entortar hoje o que ontem pareceu correto
e em endireitar amanhã o que hoje nossa miopia entorta. EnfIm, como diz Godel,
suficientemente; isso não obstante, nas Sources, de 1957, Godel aponta cerca de
nada menos do que cinqüenta passagens do Cours glosadas por interpretações dos
editores, quase sempre interpolações expansivas, dedicadas ao generoso objetivo
de explicitar algum ponto particularmente abstruso ou controverso das anotações
- e todos nós, professores, sabemos bem o quanto terão de nos perdoar nossos
alunos pelos descaminhos em que nos metemos, quantas vezes, no fervor de nossas
pobres aulas! Por isso, é preciso fazer constar que, para honra deles, as inserções,
glosas e interpretações dos editores permanecem, via de regra, tanto quanto podemos
julgá-las, fiéis às linhas de força da doutrina de Saussure. Nada disso impede, todavia,
que se insinuem, assim, na obra, determinadas confusões - como, por exemplo,
algumas que dão azo à disputa sobre o caráter arbitrário do signo, ou à afirmação
final da obra que atribui à langue a condição de único objeto de estudo da lin-
güística, ou, suprema infelicidade de um descuido, o malfadado terceiro gráfico
- o gráfico do signo-árvore-, que Bally e Sechehaye acrescentaram, à sua conta,
no ponto que trata do signo (p. 99 da edição original, e da de 1972, de Tullio de
Mauro), que Saussure certamente nunca aprovaria (cf. Arnacker, 1975, p. 86).
Uma terceira dificuldade reside na possibilidade de operar-se, hoje, uma
perfeita interpretação da metalinguagem saussuriana, por vezes particula-
ríssima - uma metalinguagem científica de formalização "fraca", quer dizer,
de expressão conceptual, que vai buscar os itens de seu vocabulário em quatro
fon tes lexicais diferen tes:
e baixos que configuram o mapa da sua fortuna crítica, ao longo dos anos. Ao
sabor das modas e à medida que surgiam à luz seus inéditos, em que se publicavam
seus manuscritos ou se revisavam antigas concepções a seu respeito, foram pre-
cisando-se aos poucos, sucessivamente, os traços característicos de pelo menos
quatro Saussures diferentes, na mesma pessoa - um comparatista, um geralista,
um estruturalista e um semiolingüista.
O SaussuTe comparatista (1878 a 1916) foi o único conhecido por seus con-
temporâneos, professores, amigos e alunos, durante o seu tempo de vida. Para
eles, Ferdinand de Saussure era o brilhante, mas pouco conhecido, autor da
iVlé17loÍTe (Leipzig, 1878), de uma tese de doutorado defendida summa cum laude
em Leipzig, em fevereiro de 1880, SUT L'emploi du génitifabsolu en sanscrite (Genebra,
1881) e de alguns poucos artigos estampados nas JVIémoÍTes de la Société de Linguistique
deParis (MSL, III, 1877), da qual se fizera sócio desde 13 de maio de 1976. Brilhante,
pouco conhecido, e ainda menos festejado do que atacado, Saussure teve em vida
o destino que o mundo habi tualmen te reserva aos grandes inovadores - a incom-
preensão, a inveja e a Íl~ustiça.
É uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som
comum certo sentido. Defini-lo desse modo seria isolá-lo do sistema de que ele participa: seria crer
que se possa começar pelos termos e construir o sistema como se este fosse feito da soma daqueles,
quando, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir para obter, através da análise, os ele-
mentos que ele contém (Saussure, 1972, p. 157).
Nas línguas do Sul, encontram-se três fonemas, a, e, o, mas tal enumeração [... ] nada diz
acerca das relações funcionais. E esse déficit do diferencial, do distintivo concernente ao funcional,
designa a descoberta saussuriana tanto quanto a relativa incompreensão que marca a sua poste-
ridade. Sem que o princípio metodológico seja aqui tematizado, fica claro que para Saussure convém
ir das relações para os termos e não o inverso [... ] (1986, p.67).
Analogia ou Correlação
(x = 10)
A analogia, ou correlação (quer dizer, uma relação entre duas relações ante-
riores), ou quarta proporcional, ou, ainda, regra de três, conforme as diferentes
disciplinas que a empregam, foi abundantemente utilizada pela gramática his-
tórico-comparativa, para explicar, por meio do apelo à imitação do que havia
ocorrido em outros casos, casos anômalos, na evolução da língua, reduzindo-os a
uma condição de regularização. Assim se explicou, por exemplo, o rotacismo, isto
é, a mudança ocorrida a certa altura, no latim, do s intervocálico em r; como
explicar, por exemplo, a forma do genitivo honorisquando o nominativo da forma
era honos (o que deveria dar, por isso, honosis)? Muito simplesmente, por analogia'
com flos, floris: flos : floris: : honos: honmis.
E uma vez que a analogia poderia ser considerada um procedimento aplicável
a uma relação estática tão bem como a uma relação dinâmica, esse princípio
pareceu durante anos funcionar como o princípio diretivo e regularizador das
transformações históricas das línguas.
A própria língua, aliás, era então por toda a parte considerada uma espécie
de organismo vivo (por analogia) , que crescia, atingia um apogeu e a seguir en trava
em decadência- como um ser vivo, mesmo, condenado a desenvolver-se segundo
programações genéticas-e princípios biológicos mais ou menos darwinianos (nem
56 • A Identidade e a Diferença
foram escassos os lingüistas que pensaram dever incluir sua disciplina no elenco
das ciências naturais); um organismo animado, pois, em todo o caso submetido
às leis implacáveis da evolução histórica, leis essas que não admitiam exceções:
qualquer anomalia era, supunha-se, o efeito de uma outra lei ainda não explicada,
ou, então, o resultado de uma analogia.
Essa teoria da transformação das línguas à imagem e semelhança da trans-
formação dos seres vivos foi levada a extremos pelos neogramáticos. Por muito que
ela hoje nos faça sorrir, não se deve esquecer que a lingüística continuou a efetuar
progressos notáveis, com ou sem ela, durante a sua vigência. Dinneen recorda:
Quaisquer que tivessem sido os posicionamentos teóricos que dividiram os sábios desse período,
é certo que foram grandes os progressos no campo dos conhecimentos acumulados e no refinamento
da técnica descritiva. Esses progressos compreenderam 1) o estudo e o confronto sistemático de
muitas línguas, inclusive o sânscrito, o latim, o grego, o persa, e os sistemas verbais germânicos (Bopp,
1816); a descoberta de relações entre as línguas germânicas (Rask & Grimm, 1818, 1819); a inves-
tigação etimológica das línguas indo-européias (Schleicher, 1861; Bmgmann & Delbrüch, 1866-
1900); a descrição do céltico (Zeuss, 1853); das línguas românicas (Diez, 1836-1844) e do eslavo (von
Miklosich, 1852-1874); e 2) o desenvolvimento de acurados métodos de descrição de articulações
dos sons (Sweet, 1877; Ellis, 1869-1889; Sievers, 1888; eJespersen, 1904), assim como a descoberta
de dados físicos e fisiológicos concernentes às propriedades dos sons (von Helmholtz, 1862) e os
métodos instrumentais para registrá-los e descrevê-los (Rousselot, 1891-1908) (1970, p. 263).
Com efeito, não é pouco; e, mais importante, talvez, isso tudo representa o
bachground histórico dos anos de aprendizagem de Saussure, precisamente o
homem que iria revolucionar por inteiro a sua disciplina.
MOUNIN
grec, du latin, de l'allemand á un petit nombre de racines (que o próprio Saussure men-
cionou nos seus Souvenirs como Essai sur Zes Zangues, e que se julgava perdido).
O Essai consta de 41 páginas, escritas em 1872, nas quais, prenunciando seu
irresistível pendor para a sistematização racional e o reducionismo lógico, o jovem
pretendia ser viável reconstruir para grande número de línguas indo-européias,
se não para a generalidade do indo-europeu, pequeno número de esquemas
fonéticos de base:
Sua tese central era que, partindo da ,uúlise de qualquer língua, é possível remontar a raízes
bi e triconsonantais, com a condição de postular que
p b f v
h O'
to ch
t d th
potência violenta:
Até aqui, a audácia do jovenzinho pode parecer divertida; mas nunca para
os que ouviram falar,já bem entrado o século XX, na teoria do proto-semantismo
psicológico de Guiraud, que postula a existência de uma relação psicologicamen te
motivada entre determinado campo de significações genéricas e determinada
matriz bi ou triconsonantal, entre uma determinada proto-semantização e uma
determinada matriz radicallexicogênica (em português, por exemplo, à Inatriz
lexicogênica t - k corresponderia um proto-semantema "idéia de golpe":
conforme toque, taco, teque (golpear uma bolinha de gude com outra), ticar (sinal
que se apõe à unidade que está sendo conferida, numa lista de termos), tique,
tique-taqueetc.); recordar, também, a existência da correlação, conformeJakobson,
entre as dimensões relativas do plano de expressão de uma lexia e as distinções
morfêmicas de número:
Como quer que seja, Saussure desentranhou, com seu método, nove raízes
triconsonânticas fundamentais, "construídas mediante todas as combinações pos-
síveis de h, p, e t, com um a intercalado,
KAK,
KAP,
KAT,
etc.", e afirma que "dessas nove palavras primitivas vão derivar milhares de novas,
por meio de diversas operações que não impedirão reconhecer a forma de cada
raiz" aakobson, 1973, p. 288).
Apresentado o manuscrito ao professor Pictet, seu vizinho em Genebra, o
velho lingüista respondeu indulgentemente ao rapazinho aconselhando-o a pros-
seguir em seus estudos lingüísticos, tomando, no entanto, a precaução de manter
bem calculada distância de qualquer sistema universal da linguagem.
O episódio parece emblemático do que haveria de suceder com os caminhos
de Saussure nos anos que viriam; de um lado, a vocação extremamente precoce
para o desenvolvimen to de trabalhos científicos que visassem à construção de teorias
de longo alcance (sistemas universais, teorias semiolingüísticas gerais); de outro, a
total incompreensão do establishrnent caturra, aferrado a preconceitos embolorados,
encastelado contra a novidade na defesa de seu feudo, e incapaz, devido a isso, de
reconhecer no pensamento inovador o embrião do epistema dominante no futuro.
O rechaço de Pictet levou o jovem Saussure a encolher-se; ele se afasta, então,
da lingüística e pensa, durante um certo tempo, em retomar o caminhojá trilhado por
seus antepassados, cientistas célebres nos domínios das ciênciasfisicas e naturais: "Desde
esse momento (1872), eu me encontrava pronto para receber uma outra doutrina, se
a tivesse encontrado, e de fato esqueci a lingüística durante dois anos, bastante des-
gostoso com meu ensaio frusuado" (Saussure, apud Jakobson, 1973, p. 288).
Por felicidade, o jovem Saussure não seguiu o conselho de Pictet; graças a
isso, ele viria a fundar uma nova fase da sua ciência, a fase da lingüística geral, e,
de quebra, a metodologia-piloto para as ciências humanas e s.ociais de nosso século.
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 59
Um dia, numa aula do Colégio, lia-se uma passagem de Heródoto e o rapaz que não estava
ainda "maduro" deparou-se com uma forma da terceira pessoa do plural, uma das numerosas
"exceções" da gramática gTega:
"No instante em que vi a forma [...] , minha atenção, extremamente distraída em geral, como
era natural nesse ano de repetição, foi subitamente atraída de uma maneira extraordinária, por este
raciocínio[ ...]: ÀEyá)lE80'.: ÀÉ)'OV1:W, por conseqüência 1:E1:á)')lE80'.: 1:E1:áX<HCXl e por conseqüência
N=O'..
Com dezesseis anos [... ] Saussure descobriu, desse modo, na pré-história das formas gregas,
a nasalis sanans (1972, p. 324).
eu
o por dois ou três tra- Aos vinte anos, estando já relativamente conhecidi
- na maioria sobre par- balhos redigidos para a Société de Linguistique de Paris-
tando já um certo afas- (ele cita a "autoridade" de Bopp em um deles), mas denoi
lr te Systhne Primitij des tamento crítico - ele redige, finalmente, sua lVlémoire S1
60 • A Identidade e a Diferença
Voyelles dans les Langues Indo-EurojJéennes, que saiu publicado em Leipzig, em 1878.
E este é um livro verdadeiramente novo: aqui, opondo-se firmemente ao "bota-
nicismo" ingênuo de seus contemporâneos e predecessores, a Curtius, seu mestre
na Universidade de Leipzig', a Schlcicher, a Brugmann, que continuavam, como
sempre, a apelar para "reforços", "analogias" e "enfraquecimentos" para explicar
o aparecimen to do e a partir das três vogais do indo-europeu, a, i, u, Saussure se
impôs a tarefa "de trazer à luz o fato de que se trata na realidade de quatro termos
diferentes, e não de três; que os idiomas do Norte deixaram confundir-se dois
fonemas fundamentalmente diferentes e ainda diferenciados no Sul da Europa:
a, vogal simples oposta a e; e o, vogal reforçada, que não é mais do que um e na
sua mais alta expressão" (Zilberberg, 1986, p. 64).
A um observador atento não escaparia que, nos três trabalhos citados por
nós-tanto no Essai, quanto na descoberta da nasalis sonans, e mais concretamente
ainda nas páginas iniciais da sua lvIémoire-, transparecem duas das características
que as investigações de Saussure conservarão vida afora:
cobriu a existência da relação e do sistema que ele organiza para as línguas naturais,
na Nlémoire, em dias em que nem Lévi-Strauss nem Lacan pensavam em nascer.
Lepschy considera a leitura da JVlémoire "uma das aventuras intelectuais mais
excitantes na literatura indo-européia [...] e que permanece sem comparação até
1935, quando aparece o capítulo sobre a raiz indo-européia nas Origines de K
Benveniste" (1968, p. 45).
É com esse trabalho de um jovem suíço que mal acabava de sair da adoles-
cência, contudo, que
o quadro das correspondências entre os fonemas \'ocálicos da línguas históricas fica (oo.] definiti-
\'amente fixado: a dupla função, \'ocálica e consonântica, de uma série de articulações é isolada;
trata-se das sonantes i, II, I, 1; III, '//; duas fórmulas de alternância \'ocálica são atribuídas ao indo-
europeu comum (zero, elo, elo, e Ala, e, o), reconduzindo-se a segunda à primeira por meio da
atribuição ao elemento A (definido pela correspondência latim, grego a = a \'elho-ind. e irn. i) uma
função de "coeficiente sonântico" dotado da propriedade de se contrair com o ápice silábico pre-
cedente para dar a longa correspondente (assim *a < *m, '" e<'" eA, etc.) o que esclarece a estrutura
das raízes dissilábicas e permite isolar as sonantes longas (De Mauro, 1972, p. 328).
tural abstrata sobre cujas propriedades fonéticas ele [Saussure] não se posicionava"
(Malmberg, 1968, p. 61), entidade essa que, com o passar dos anos, meio século
depois, acabou sendo descoberta por um lingüista polonês:
Em 1927 (ou seja, catorze anos após a morte de Saussure), Kurylowics descobria em uma
i~t1ada do idioma, supõe-se haja sido uma laringal] o fonema definido cinqüenta anos antes por
Saussure como fonema sonântico indo-europeu. Essa bela observaçâo fazia ingressar na realidade
a entidade teórica postulada pelo raciocínio em 1878 (Benveniste, 1966, p. 36).
4 + 3 7
4 x 3 12
4 3 1
- o sentido, quer dizer, os valores resul tan tes, 7, 12 e 1, não é dado pelos elementos
intervenientes nas operações, seus termos-objetos, que são sempre, aqui, 4 e 3,
mas, sim, pelas relações (de adição, de multiplicação, de subtração) que estabe-
lecemos entre eles.
Percebe-se, aí, a existência de algumas "propriedades" (comutativa etc.)
dessas relações:
4 + x 7 (onde x 3 , porque 7 - 4 3)
4 - x 1 (onde x 3, porque 4 - 1 3)
Foi, de qualquer forma, como esse livro, escrito aos vinte anos, que Saussure
descobriu certos princípios fundamentais como a chamada lei das 1mlatais que [... ] revolucionava a
visão do indo-europeu, atribuindo com acerto ao sistema fonológico antigo a vogal E e, por conse-
qüência, O, considerados até então como secundárias (por causa da ilusória condição do sânscrito
no qual A representava tanto E quanto O antigos), como a existência de coeficientes sonânticos
capazes de alongar a vogal precedente, como a suposição, rica de conseqüência, de que a vogal fUI1-
damental do indo-europeu era E (Bolelli, a1md Lepschy, 1968, p. 52).
lo, em compensação, com uma certa aversão ou, mesmo, uma incompatibilidade
com a pesquisa aplicada.
Essa impressão, contudo, é ilusória - não corresponde, de modo algum,
à realidade.
E Saussure o demonstrou cabalmente ao defender, em 1880 - aos 23
anos - , sua tese de doutorado, De L' emjJloi du génitiJabsolu en sanscrit (publicada
pm.r~eflbmü;"cl")2861 };'l1crquh[\ía-mnJ'nçao exemplar'ae como realIzar Cien-
tificamente o estudo de um caso. Ele, que foi o primeiro investigador do âmbito
das ciências humanas a insistir no emprego do método hipotético-dedutivo,
como o único realmente científico - é ainda hoje, mais de cem anos passados,
o mais indicado para a pesquisa pura, de caráter teórico, nesse domínio (e isso
num tempo em que se utilizava com absoluta exclusividade, para o mesmo fim,
tão-só a metodologia empírico-indutiva) - ,
"é do todo solidário qne se deye partir para obter, atrayés da análise, os elementos qne ele
contém" (Sanssnre, 1972, p. 157)
Saussure, mas que nunca deu mostras de ser seu admirador incondicional, A.
Meillet) - fora recebida com má vontade e ressentimentos, com ataques tolos
e desarrazoados.
Agora, coroando tudo, sua tese de doutorado tornava a defrontar-se em toda
a parte com um muro de silêncio, quando não com um franco desdém - e, no
en tanto, enquanto isso se dava, certos pon tos especialmen te brilhan tes da il1éJnoire
"deslizavam" sorrateiramenete, e sem menção de autor, para dentro dos estudos
e tratados de certos neogramáticos, como a Griechische Grammatih (Leipzig, 1880),
de Gustav 1\'1eyer ("le premieI' à ignorer mon nom", dirá, jocosa e melancoli-
camente, Saussure).
O efeito cumulativo das injustiças renovadas levou Saussure, por volta de
1880, a pensar seriamente em abandonar de uma vez por todas seus estudos lin-
güísticos para consagrar-se unicamente ao estudo da epopéia germânica, que de
há algum tempo o atraía. Antes que pudesse pôr em prática sua decisão, resolveu-
se, con tudo, a deixar Leipzig, onde ficara quatro anos (exceto por um estágio de
alguns meses em Berlim), do outono de 1876 ao primeiro semestre de 1880.
Dirigiu-se, pois, a Paris, onde chegou, ainda em 1880; contava, então, 24
anos; ali em Paris residiria pelos próximos onze anos, até 1891.
Saussure, que deixara Leipzig esconjurando "a cabeça dura desses alemães",
estabelecera-se em 1880 em Paris, onde em 1881 reside no número 3, rue de
l'Odéon. Fez o possível para adaptar-se à cidade que, no testemunho de seus
amigos, o deprimia. A partir de fevereiro de 1881, ele freqüentou, na Ecole
des Hautes Etudes, os cursos de Michel Bréal (gótico e velho-aI to-alemão ), de
J. Darmesteter (iraniano), de A. Bergaigne (sânscrito) e de Louis Havet (filologia
latina). No mesmo ano, em 30 de outubro de 1881, Saussure foi nomeado
"maítre de conférences de gothique et de vieux-haut allemand", em substi-
tuição a Bréal. Tinha 24 anos e já estava com a responsabilidade de ministrar
o primeiro curso de lingüística histórica e comparada que se dava em uma UlÚ-
versidade francesa.
Além dos cursos que ministrava na Sorbonne, Saussure participava ativamente
das sessões da Société de Linguistique de Paris, na qual foi secretário-adjunto e
diretor de publicações - era ele quem organizava os números da revista da Société,
as Nlémoires de la Soáété de Linguistique de Paris.
Na Sociedade, Saussure apresentou, ao longo de dez anos, seIS ou sete
comunicações versando pontos obscuros do indo-europeu, da gramática com-
parada do velho-aI to-alemão e de línguas bálticas. Aqui e ali, nas raras comuni-
cações que apresentou à Sociedade, repontam fragmentos preciosos, como o
A Semiolingüística Geml de Ferdinand de Saussure • 67
Antes ele tuelo, não ele"emos nos apartar elo princípio segunelo o qual o "alor ele uma
forma está illteiramente no texto ele onele a romamos, quer dizer, no conjunto ele circunstâncias
morfológicas, fonéticas, onogrMicas, que a rodeiam e esclarecem (Saussure, ajmel De Mauro,
1972, p. 342).
Talvez não se saiba nunca quais foram os reais motivos pelos quais Saussurc
resolveu, em 1891, de uma hora para outra, abandonar tudo o que conseguira
construir em Paris durante onze anos e deixar definitivamente a França, para
regressar à sua terra natal. Ocorrendo nas circunstâncias em que ocorreu, ines-
peradamente, no auge de uma carreira brilhante, de que começava a colher os
primeiros frutos - acabavam de lhe oferecer uma cadeira no prestigioso College
de France, e, com ela, a naturalização francesa - , esse regresso tem tuelo de uma
fuga, que iria culminar em um afastamento do mundo ainda mais inexplicável.
De fato, a partir de seu retorno à Suíça, as publicações de Saussure se tornam cada
vez mais esc.assas, como se o mestre, cansado, tivesse se desgostado de vez com
tanto esforço baldado e tantas injustiças.
E, no entanto, ele nunca deixou de trabalhar. Que era, então, que o fazia não publicar?
Principiamos a sabê-lo. Esse silêncio oculta um drama que deve ter sido doloroso, que se agravaria
com os anos e nunca teve solução. Ele se prende, por um lado, a circunstâncias pessoais [... ]. Era
mais que tuclo UIll drama de pensamento. Saussure afastava-se de sua época, ã medida que domin,wa
pouco a pouco sua própria verdade, que o fazia rejeitar tudo o que se ensinava então a propósito
da linguagem (llemeniste, 1966, p. 57).
fundo escuro da floresta, os picos nevados das mon tanhas - domicílio que trocavam
às vezes com permanências mais ou menos prolongadas em Vuflens SUl' Morges,
onde os Faesch eram donos do castelo local.
Tirante contadas viagens - a Paris, em 1893, a Nápoles, em 1905, a Roma,
cm 1906, com sua mulher, e Paris, de novo, em 1909, com a esposa e uma cunhada,
à Inglaterra e a Paris em 1911 - , Saussure viveu sempre recluso, solitário e triste:
"Sua imagem derradeira é a de um gentilhommeque envelhecia, de modos dignos,
um pouco cansado, trazendo em seu olhar, sonhador, ansioso, a interrogação
sobre aqual se enclausurará daí por diante asua vida" (Benveniste, apudDe Mauro,
1972, p. 358). E De Mauro completa:
Uma vaga tristeza domina suas conversações com Riedlinger e Gautier. No Curso do verào
de 1912, Sanssnre é obrigado pela doença (câncer na garganta) a snspender snas anlas; retira-se
entào para o Castelo dos Faesch, em Vuflens, tenta ainda debrnçar-se sobre novos estudos, como a
sinologia (seguindo as pegadas, tah'ez, de sen irmão Leopoldo), mas sen estado se agnwa até a noite
de 22 de feyereiro de 1913, qnando falece (idelll, ibidelll).
semiologia forncce a sua célebre definição, eis o que diz, cntão, a respeito dela
a Nouvelle classijlcation:
1"1. ele Saussure insiste sobre a importância ele uma ciência amplamente gcral, a quc chama
semiologia, e nuo objeto seriam as leis ela criação e ela transformação elos signos e ele seus sentielos.
1\. semiologia é uma parte esscncial ela sociologia. Como o mais importante elos sistemas ele signos
é a linguagem convencional humana, a ciência se mio lógica mais avançada é a lingüística, ciência
elas leis da viela ela linguagem (l\aville, ajmel De Mamo, 1972, p. 352, nota 9).
Discutimos para saber se a lingüística pertenceria à ordcm das ciências naturais ou elas ciências
históricas. Ela não pertence a nenhuma das duas, mas a um compartimento das ciências que, se não
existe ainda, deveria existir com o nome de semiologia, quer dizer: ciência dos signos, ou cstudo elo
que acontece assim que o homem tenta significar seu pensamento por meio dc uma convcnção
necessária (apari Wunder1i, 1976, p. 34).
"Onde irá parar a semiologia? E difícil dizer. Essa ciência verá o seu domínio
ampliar-se sempre cada vez mais. Os signos, os gestos de cortesia, por exemplo,
serão parte dela... " (idem, p. 38).
Ele via no mínimo setenta anos à frente.
Logo no começo do século, Saussure tenta lançar os fundamentos de uma
teoria semiológica da narrativa, que (faz questão de sublinhar) nada teria a ver
com as pesquisas de caráter historicista, voltadas para a busca de fontes, origens
e influências: "Nossa afirmação não pode ser confundida nem com o reconhe-
cimento vago de que as legendas do Norte tenham tomado algo emprestado à
mitologia greco-romana [... ]" (Godel, 1957, p. 28).
Nesse intuito ele trabalhou ao redor de sete anos, no mínimo;já em 1957,
Godel identificava uma série enorme de rascunhos sobre esse tema:
Cerca de 150 fasquias [aparas de papel, compridas] em um enyelope com a indicação NibetulIgen;
14 cadernos inteira ou parcialmentc utilizados; 22 páginas de grande formato sobre Tlistan quc parecem
conter uma primcira ordenação de elementos nas notas e extratos. Uma das notas foi traçada sob Hm
começo dc carta elatada de 7 de dezcmbro de 1903; Hm elos caelernos tem a ela ta ele 1910 (idem, p.14).
dos mecanismos de geração do poema (em que o hipograma faz as vezes de matriz,
verso-tipo a reproduzir, enquanto o anagrama funciona como sua reescrita
expandida, no nível da manifestação).
O problema inicial que essa hipótese põe para o pesquisador é o de saber
como terá sido produzida essa transformação de um relato matricial, o relato-tipo
primordial e condensado, em n outros relatos posteriores, espécies de paráfrases
expandidas suas, de modo a constituir, o cOl~junto deles, "um dos grandes ramos
da legenda heróica germânica". Como se dá essa transformação da unidade em
diferença, em variedade?
Ao cabo de algum tempo... ela é aI" do alfabeto... mas aqui já ela começa a supor unidade.
Onde está agora a identidade? Responde-se geralmente com um sorriso, sem comumente observar
o alcance filosófico da coisa, que não é nada menos do que dizer que qualqllersíJllbolo urna \'ez posto
em circulação - est~l no mesmo instante na incapacidade absoluta de dizer em que vai consistir sua
identidade no instante seg'uinte.
É nesse espírito geral que abordamos uma questão de legenda qualquer, visto que cada um
dos personagens é um símbolo do qual se pode ver variar - exaramente como para a runa - a)
nome, b) a posição em face dos ontros, c) o caráter, d) a função, os atas; se um nome é transposto,
pode seguir-se que uma parte dos atas seja transposta, e reciprocamente, ou que o drama inteiro
mude por um acidente desse gênero (Saussure, ajJad De Mauro, 1972, p. 348).
Há muito que examinar, aqui. Causa surpresa verificar, por exemplo, que,
ao examinar os atares narrativos que, no caso, ele chama de símbolos, Saussure
identifique ao final, na alínea d, como um de seus componentes seu fazer, fazer
esse que denomina, exatamente como farão Propp e os formalistas russos todos,
de função; só que a idO/iologia de Propp e também as Formas SimjJles de JoIles,
que irão retomar, mesmo ignorando-as, as idéias de Saussure, são de 1928, ao
passo que o manuscrito supracitado do autor do Cours está datado de 1908. Mas
convém observar, também, que se há no particular uma coincidência COl1teu-
dística entre a concepção geral de Saussure e a concepção geral deJoIles, a coin-
cidência na utilização do termo "função" para o fazer do personagem é uni-
camente nominal e não conteudística entre Saussure e Propp: pois o suíço pensa
na função como uma variável, precisamente o inverso de Propp, que a concebe
como uma invariante narrativa - e, nesse particular, é o russo quem está no
melhor caminho.
A todas luzes, o que preocupava Saussure no instante em que redigia esse
apanhado, bem como ao longo de todos aqueles anos que passou debruçado
sobre as velhas sagas germânicas, foi quase exclusivamen te o problema da trans-
formação da iden tidade em diferença. Se mal se colocava em circulação um
personagem narrativo - um símbolo - , ele quase instantaneamente se con-
vertia em outra coisa: "(a runa Y que) é a letra número oito do alfabeto [... ]
ao cabo de álgum tempo ... ela é a lª do alfabeto ... mas aqui já ela começa a supor
unidade. Onde está agora a identidade?", então, o que foi feito de sua primitiva
identidade?
É claro que Saussure se dava perfeita conta de que tais transformações na
identidade do personagem narrativo eram modificações endogeradas, cl~a origem
se deveria buscar no interior dos fenômenos que ocorriam no nível dos meca-
nismos semiolingüísticos da própria narrativa, e não como o produto de modifi-
cações exogeradas, provocadas por alterações ocorridas no espaço-tempo social,
do mundo exterior às obras:
74 • A Identidade e a Diferença
"Como se vê" - particl1lariza ele no 111S. ü'. 3958-8, hoje na Biblioteca de Genebra - "no fl1ndo
a incapacidade de manter lima identidade certa nclo deve ser levada à conta dos eji'itos do TeJlljJo - aí está
o erro evidellte dos qlle se tém ocujJado dos signos - JIlas está di1Jositado de antemclO na jJlvjJlia constituiçclo do
ser qIII' se escolhe e se observa como l1m organismo, qllando ele nclO é IlIais do que a coJllbinaçâo fllgaz de dilas
011 tl'és idéias. Tl1do... é lima ql1eslão de difiniçâo. Longe de partir dessa l1nidade ql1e não existe em
nenhl1m momento, deveríamos perceber ql1e ela é a fórml1la ql1e damos de mIl estado momentãneo
de l1nificaç,lo - somente existindo os elementos. Assim, Dietlich, 'tomado em sua vel{ladeim eS.>I'lIcia',
nâo é 1lI1l jJelsollagem histólico ou a-histólico: ele é jJllmJllellte a coJllbinaçâo de tl'és ou quatro tmços que jJodem
dissoci({)Cse a qualqllel' IllOJIlellto, acarretando a dissolllçâo da unidade inteim." (Sal1ssl1re, ajmd W'nnderli,
1976, p. 54; com exceção de Jitgaz e de dejilliçâo, grifados no original, os ontros grifos são mel1s) ,
Convém parar um pouco, aqui. A grande questão que subjaz a todo o trecho
é a da coexistência, no discurso, da identidade com a diferença. Digamos, desde logo,
que Saussure lida, aqui, com uma questão central de toda a semiologia, nesse fragmento
figurando ora como um problema lingüístico, ora como um problema narrativo:
Os poucos fragmen tos que citamos atrás bastam para nos dar uma idéia aproxi-
mada das grandes linhas daquilo que poderíamos chamar de "projeto da teoria nar-
rativa" de Saussure. Claro q\le não qodemOS5abf'LJlOfSL:j.(lcvl.tll,,1[lr:-!1mSG\5srullwc~r
mentos, acerca dc quanto deixou ele escrito e anda ainda agora por aí, inédito, o
que teria acabado ela por sel~ no caso dc ter ele desenvolvido o que projetava. Mas,
não pode escapar a ninguém, com um mínimo de familiaridade com a sua obra, o
quanto se identifica ela, na recorrência de alguns temas e no retorno a certos con-
ceitos-chave do restante de suas reflexões, com determinadas passagens do Cours-
talo grande problema das relações entre a identidade e a diferença, noção-pivô
para o entendimento de todas as suas dicotomias - e, também, da sua teoria ana-
gramática - hé~a vista a mesma concepção básica da "reescrita em expansão", no
nível da manifestação do discurso, de um discurso cnunciado-tipo, o nível imanente.
De modo análogo, é assombroso comprovar que a despeito de nos termos
cingido ao cxame das poucas linhas que citamos, nelas se destaquem pistas ClUO
aprofundamento teria antecipado de mais de meio século algumas das questões
centrais do que hoje conhecemos como semiótica da narrativa. Nessas poucas
linhas, vimos, com efeito:
Longe de partir dessa unidade que não existe em nenhum momento, de"eríamos perceber
que ela é~ a fórmula que damos de um estado momentãneo de unificação - somente existindo os
elementos. Assim, Dietrich, "tomado em sua "erdadeira essência", não é um personagem histórico
ou a-histórico: ele é puramente a combinação de três ou quatro traços que podem dissociar-se a
qualquer momento, acarretando a dissolução da unidade inteira (idem, ibidem).
Não se pode fechar este tópico sem fazer constar que todos e cada um desses
princípios mantêm perfeita validade, ainda hoje, na semiótica da narrativa.
}\KOBSON
"o discurso consiste [... ] em afirmar um elo entre dois conceitos que se apresentam revestidos de
forma lingiiística, enquanto a língua jJreviamente apenas realiza conceitos isolados, que esperam
ser relacionados entre si para que h,"\ia significação de pensamento" (Saussure, ms. fr. 3961, ajmd
Starobinski, 1974, p. 12).
Imaginar que 111l1a lenda comcça por um sentido, quc ela te"e sempre desde sua primeira
origem o sen tido quc ela tem, ou melhor, imaginar quc ela não pode ter um outro sentido qualquer,
eis uma operaç,lo que me espalHa [... ] pois, cLulos cinco ou seis e1cmentos materiais, o sentido
mudará no cspaço de alguns minutos, sc eu pedir a cinco ou seis pessoas, trabalhando separa-
damente, para combin,l-los (idelll, ibidelll).
Saussure mesmo descobriu que o que ele próprio dizia a respeito da cons-
trução do plano de conteúdo pode, com igual adequação, ser dito a propósito do
seu plano de expressão. O mecanismo combinatorial trabalha do mesmo modo
as identidades e diferenças observáveis num e noutro plano. De fato, ele opera
em especial na modalidade de discurso poético, em que o mesmo elemento ante-
riormente dado apresenta a peculiaridade de reaparecer na seqüência dos versos
sob a forma de outro elemento parcialmente igual- e isso a tal ponto e com tal
constância, deséobriu Saussure, que bem se poderia afirmar que o discurso poético
é todo construído a partir do procedimento de fazer o mesmo, de outro modo.
N essa observação repousa o mecanis~110 fundamental do que será mais tarde
a teoria anagramática.
A teoria do anagrama foi precedida, porém, em um primeiro estágio, pelo
que vamos chamar de uma teoria do acoplamento - uma forma simplificada do
anagrama, que Starobinski vê assim:
Quanelo Saussure sc volta para os problcmas elas métricas do verso satllrnino, não podc mais
rcstringir-se por muito tempo ,15 considerações atincntcs à função preponderante do acento ou da
quantidade. Ele procura"a, além disso, outras regras, e as que lhe apareciam eram, em sentido
estrito, regras de ntilizaÇ<lo, de distribuição de um primciro matcrial. Percebe primeiro a lei do "aco-
plamento". Esta pretende que seja redobrado, 110 interior de cada "erso, o emprego de toda vogal
e dc toda consoante utilizadas uma primeira vez. A aliteração deixa de ser um eco ocasional: repousa
numa duplicação consciente e calculada. Uma carta de 14 de julho de 1906 anuncia com alegria a
constatação surpreendente (após dois meses de trabalho);
80 • A Identidade e a Diferença
"[... ] Todo fenômeno de aliteração (e também das rimas) que se observava no saturnino é
tão-somente uma parte insignificante de um fenômeno mais geral, ou melhor, absolutamente total.
A totalidade das sílabas de cada verso saturnino obedece a uma lei de ali te ração, da primeira à última
sílaba [... ]; bastam-me duas linhas para dar a lei:
1. Uma vogal não tem o direito de figurar no saturnino a não ser que tenha sua contravogal
em um lngar qnalqner do verso (a saber, a vogal idêntica e sem transação sobre a qnan-
tidade; há somente transação para o timbre, entre ii breve e i breve [... ]
2. Lei das consoantes. Ela é idêntica e não menos estrita, e nenhnma consoante, mesmo
entre as implosivas como stabant [... ]. I-lá sempre nm número par para toda consoante,
e sobretndo é preciso não esqnecer as consoantes que aparecem nos grnpos: assim, a
palavra IJvod será certamente seguida no verso: 1", de um outro IJ ou c, 2", de um outro
v; de um único d- a menos que haja 4, Gou 8 deles fazendo sempre par.
3. E há um resíduo irredutível qualquer, quer nas vogais [...] quer nas consoantes [... ] nada se
perde deste resíduo, ainda que seja um simples e ou um simples IlllUI1 grupo com jl [... ]
o poeta toma nota deste ii ou deste I e vemo-lo então reaparecer no verso segninte como
novo resídno correspondente à sobrecarga do precedente" (Starobinski, 1974, p. 18).
da pesquisa) tenta reagrupar o conjunto das regras técnicas da composição. O termo hipogral11a
ou anagrama não aparece(m) ainda, mas é exatamente disto que se trata. Entre as rasuras, umas
das mais significativas concerne ao antecedente da palawa lema: Saussure primeiro escreveu "texto"
depois riscou essa palawa para substituÍ-la por "tema". Ele portanto pensou num texto sob o texto,
llllm pré-texto, no sentido lato do termo (idem, pp. 18-19).
1. Antes de tudo, impregnar-se das sílabas e combinações fónicas de toda espécie que
que pag,wa a inscrição - é composto apenas de algumas palavras, quer seja unicamente
de nomes próprios, quer seja de uma ou duas palavras anexadas na parte inevitável dos
nomes próprios. O poeta deve então, nesta primeira operação, colocar diante de si, tendo
em vista seus versos, o maior número possível de fragmentosfônicos que ele possa tirar do
tema; por exemplo, se o tema, ou uma das palavras do tema é Hercõ lei, ele dispõe dos
fragmentos õ - Ie i - , ou - , có - ou e, T; por outro lado, de rc ou de cl etc.
2. Deve então compor seu trecho introduzindo em seus versos o maior número possível
desses fragmentos, por exemplo, afleicta para lembrar Hercó -lei e assim por diante.
Entretanto, esta é tão-somente a parte mais geral de sua tarefa, ou a matéria fónica geral que
ele deve levar em conta e de que deve se servir. É necessário que, especialmente em um verso ou
ao menos em uma parte do verso, a seqiiência vocálica que se encontra em um tema como Hercólei
ou Cornelius reapareça, quer na mesma ordem, quer com variação (idem, p. 19).
[I - TER~H"'OLOGIA]
Servindo-me da palavra anagrama [...] (qne) parece mais apta a prestar um outro serviço, a
saber, o de designar o anagrama incompleto, que se limita a imitar certas sílabas de uma palavra
dada sem ser obrigada a reproduzi-la inteiramente [... ]. No dado onde existe uma jJalmml a imitar
distingo, pois:
o anagrama, forma perfeita;
a anafonia, forma imperfeita.
(idem, p. 21).
Starobinski acrescenta:
o anagrama fonético percebido por Saussure não é um anagrama total: um verso (ou mais)
anagramatizam uma única palawa (em geral, um nome próprio, o de um deus, ou de um herói)
restringindo-se a reproduzir-lhe antes de mdo a "seqüência vocálica". Não se trata de solicitar
[empregar] todos os fonemas constitutivos de um verso: semelhante reconstrução fonética não seria
senão uma variedade de trocadilho (1974, p. 22).
o termo anagrama é substituído, a partir deste caderno, por este, mais justo, de jJaragrama.
[... ] anagrama, por oposição a paragrama, será reservado ao caso em que o autor se contenta
em dispor num pequeno espaço, como aquele de uma palavra ou duas, todos os elementos da
palavra-tema, aproximadamente como no "anagrama" segundo a definição [...] (Saussure, ajJud
Starobinski, 1974, p. 24).
84 • A Identidade e a Diferença
Toda peça bem composta deve apresentar, para cada um dos nomes importantes que ali-
mentam o hipograma, um !OCllS jJríncejJs: uma série de palavras, estreita e delimitável, que se pode
designar como o lugar especialmente destinado a este J1ome. [... ]
1. A forma mais perfeita de que se pode revestir o locus jJrincejJs é a do manequim unido ao
silabograma, isto é, do manequim fechado em seus jJrójJrios limites, claramente dados pela inicial e pela
final, o silabograma completo (Sanssure, ms. f1'. 3966, ajJ1(c! Starobinski, 1974, p. 37).
Sanssnre procnra o índice elo hipograma em nm grnpo de pala\Tas Cl~Os fonemas inicial e
final correspondam aos ela snposta pala\Ta-tema. Designa esse grnpo com o nome ele manequim; nm
maneqnim realmente completo, como vimos, não terá somente o mesmo começo e a mesma ter-
minação qne a palavra-tema, conterá também a maior parte de sens constitnintesfônicos. [... ] Notar-
se-á qne o nome qne aparece no texto é o de Vénus e não o de Afi"odite. Tndo leva a crer que a palavra-
tema presente no espírito elo poeta tenelia a se reprodnzir traduzindo-se (1974, p. 56).
A Íll\'ocação a Vênl1S qne abre o De Rel'l/m Natura se inspira, para o anagrama e as assonâncias,
no nome grego da densa - assim como faz Virgílio nos trechos relativos a Vênns.
Os treze primeiros versos dividem-se, pela pontnação, em três frases:
frase 1 - 5,
fi'ase 6 9,
frase 10 - 13.
Nota (1) : O verso 12 no seu todo forma um manequim. O complexo citado mais acima é apenas um
primeiro compartimento, mais característico, porém, pelo seu te que o complexo total:
/ Aeriae prinmm uolucres tE / diua tutumquE/
(Saussnre, a/md Starobinski, 1974, pp. 56-57).
O hipograma (ou palavra-tema) é um subconjunto verbal e não uma coleção de materiais ".
brutos". Vê-se logo que o verso desenvolvido (o conjunto) é ao mesmo tempo o portador do mesmo
subconjunto e o vetar de um sentido absolutamente diferente. Da palavra-tema ao verso, um processo
deve ter produzido o discurso desenvolvido sobre a ossatura persistente do.hipograma (1974, p. 45).
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 87
A pergunta que se coloca é: o que existe imediatamente atrás do verso? a resposta não é: o
indivíduo criador, mas: a jJalm1ra (ou jJarole, discurso) indutora. Não que Ferdinand de Saussure
chegue ao ponto de apagar o papel da subjetividade do artista; parece-lhe, no entanto, que ela não
pode produzir seu texto a não ser depois de passar por um jJré-texto.
Analisar os versos na sua gênese, não será, iJortanto, remontar imeditamente a uma intenção
psicológica: antes será preciso pôr em evidência uma kltência verbalsob as palavras do poema. O hipograma
é um h)jJolwilllenon verbal: é um subjectlllll ou uma substantia que contém em germe a possibilidade do
poema. Este é tão-somente a jJossibiliclacle cll'senvolvicla de um vocábulo simples (idem, p. 107).
Qual não será a sua surpresa ao abrir uma coleção de epigramas traduzidos do grego para
o latim e publicados em 1813 para o Colégio de Eton. O tradutor se chama Thomas Jolmson. Os
hipogramas aí chovem literalmente. Assim, num poema ele Heráclides (nO 141 da coleção eleJ ohnson):
mas também: Artiwll jliagistel; e além elisso, esta fórmula que figura sobre a página de rosto da obra;
in 1lSWIl scholae Etonellsis. O que é ainda melhor, os mesmos hipogramas se eleixam ler através do
Era demais. Saussure fica perplexo. Pára. Pensa. Torna a refazer seus ras-
cunhos, confere. Não há possibilidade de engano. Preenche desigualmente onze
cadernos, estudando os versos latinos deJ ohnson. Desconcerta-se, chega a escrever
ao diretor do Colégio de Eton, em 1º de outubro de 1908, pedindo informações
sobre ThomasJohnson; não se sabe se a carta foi enviada, e se foi, se teve resposta.
Nos meses seguintes, procura testar sua hipótese nos poemas modernos escritos
em latim. Encontra anagramas em uma Elegia de Rosati, encontra outros mais em
poemas latinos de Giovani Pascoli, então professor na Universidade de Bolonha.
Em 19 de março de 1909, envia-lhe uma carta, na qual expõe a dúvida qtie o ator-
menta: "Tendo me ocupado da poesia latina moderna a propósito da versificação
latina em geral, encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema: - Serão
certos pormenores técnicos que parecem observados na versificação de alguns
modernos puramente fortuitos ou desejados e apli'cados de maneira consciente?"
(Saussure, ajJudStarobinski, 1974, p. 104).
Em 6 de abril de 1909 manda uma segunda carta, mais extensa; nela, abre-
se com Pascoli:
Esses exemplos [... ] são suficientes. Há qualquer coisa de decepcionante no problema que
propõem porque o número de exemplos não pode servir para verificar a intenção que pôde presidir
o fato. Ao contrário, quanto mais o número dos exemplos se torna considerável, mais motiyo existe
para pensar que é o jogo natural das possibilidades sobre as 24 letras do alfabeto que deve produzir
quase regularmente essas coincidências (idem, p. lOS).
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 89'
Starobinski elucida que Giovani Pascoli deixou sem resposta essa segunda
carta. Segundo o depoimento de um aluno, Leopold Gautier, que Saussure associara
à sua pesquisa, o silêncio do professor italiano foi interpretado por Saussure como
uma desaprovação; em conseqüência, a investigação sobre os anagramas foi inter-
rompida (Starobinki, 1974, p. 106).
Pouco importa saber, hoje, se Saussure se deparara com um mecanismo
automático ou com um artificio composicional; seu engano não foi o de uma
superinterpretação - ele, de fato, viu naquilo mesmo, que todo o mundo olhava
mas em que não reparava, aquilo que ninguém nunca vira antes, uma certa lei
de repetição de formas originais etc.; seu verdadeiro engano foi, como sublinhou
Starobinski, ter colocado de modo tão drástico a alternativa en tre "efeito do acaso"
e "procedimento consciente":
Por que não dispensar, no caso, tanto o acaso como a consciência? Por que não se "cria, no
anagrama, um aspecto do jJrocessus da palana [da jJarolel do discurso] - processo nem puramente
fortuito nem plenamentc conscicnte? Por que não cxistiria uma iteração, uma j)a[ita[ia gcradoras
que projetariam e redobrariam, no discurso, os materiais de uma primeira palana, ao mesmo tcmpo
não pronunciada e não calada? Por não ser uma regra consciente, o anagrama pode, contudo, ser
considcrado como uma Il'gulmidade (ou uma lei) em que o arbitrário da palana-tema é confiado à
necessidade de um processo (Starobinski, 1974, p.108).
Como quer que seja, Saussure fornece, com seus exercícios anagramáticos,
o primeiro exemplo do que viria a ser, nos porvindouros anos:
Poema
_ _ _1_ _-
HIPOGRAMA
Silabograma Silabograma
vocabular transvocabular
DEMARCADOR I I
INICIAL Paráfrase Paráfrase
fônica fônica
condensada expandida
DEMARCADOR
.--_1_-, 1
FINAL I.
ANAGRANLA PARAGRAl\LA
Língua eFala
Diacronia e Sincronia
A -------:--f------B
D
Figura G: Representação esquemática da sincronia (eixo das simultaneidades, A- B) e da diacronia (eixo das
Conclusão provisória: tudo o que é sincrónico se resume pelo termo de gramática (cf. gra-
mática do jogo de xadrez, de la Bom-se), que implica um sistema que põe em jogo valores. Não há
gramática histórica: o que se entende por essa expressão é a lingüística diacrónica, que não será
jamais gramatical. Pilas, identificando sincronia e gramática não adotamos cegamente as divisões
tradicionais (morfologia, sintaxe, lexicologia) (Saussnre, apud Godel, 1957, pp. 73-74).
rentes frações estruturalistas. Foi ela que sustentou, por exemplo, a separação que
todo o século XX fez, nem sempre do melhor modo, entre a visada dos fatores
ir/'tenws e a visada dos fatores externos a um discurso ou a um sistema; estes últimos con-
dicionam histórico-culturalmente as mudanças ocorridas em um sistema, mas não são esse
sisterna- exatamente porque são, como diz o título do quinto capítulo do Cours,
"Elementos Externos da Língua":
Uma comparação com o xadrez fará compreender melhor. Aqui, é relativamente fácil dis-
tinguir o que é interno do que é externo: o fato de que ele tenha passado da Pérsia para a Europa
é da ordem externa; interno é tudo quanto seja concernente ao sistema e às suas regras. Se substituo
umas peças cle macieira por outras de marfim, a troca é indiferente para o sistema, mas se diminuo
ou aumento o número de peças, essa troca afeta profundamente a "gramática" do jogo (Saussure,
1972, p. 43).
Prado Coelho parafraseia assim essa passagem do Cours: "o intervalo entre
umajogada e ajogada seguinte pode corresponder à visão sincrônica (i. e., a um
estado da língua). Note-se também que, para passar de uma fase do jogo para a
fase seguinte, basta a alteração da posição de cada pedra [leia-se: de uma pedra],
porque tal alteração repercute em todo o sistema, dando origem a uma nova sin-
cronia" (1968, p. XVI).
Visto que nenhum fato, fenômeno ou elemento da língua deve ser tomado
como um fato isolado, a sincronia surge como "relação entre coisas coexistentes",
o conjun to das quais constitui, na metalinguagem saussuriana, um sistema (ou uma
estrutura, se dirá depois). Pertence ao sistema, diz o autor do Cours, tudo quanto
seja interno; e define o que entende por "interno": "em cada caso, colocaremos
a questão da natureza do fenômeno, e para resolvê-lo observaremos esta regra: é
interno tudo o que transforma o sistema em um grau qualquer" (1972, p. 43).
Ora, Saussure, que tem sido renitentemente acusado de a-historicista -
acusação que pesará, mais tarde, repetida sem maiores critérios pelos marxistas
vulgares, contra todo o estruturalismo e todos os estruturalistas - , mostra aqui
que, ao contrário, sempre se preocupou com as transformações do sistema, preo-
cupação essa característica da visada historicista: o que está emjogo, aqui, de fato,
são dois diferentes conceitos de historicidade:
Imaginar que uma lenda começa por um sentido, que ela teve desde sua primeira origem o
sentido que ela tem, ou melhor, imaginar que ela não pode ter um outro sentido qualquer, é uma
operação que me espanta [00'] pois, dados cinco ou seis elementos materiais, o sentido úmdará no
espaço de alguns minutos, se eu pedir a cinco ou seis pessoas, trabalhando separadamente, para
combiná-los (ajmd Starobinski, 1974, p. 16).
A descrição sincrânica não pode excluir, tampouco, a noção de evolução,já que mesmo num
corte considerado sincronicamente existe a consciência do estado em formação; os elementos lin-
güísticos percebidos como arcaísmos e, em segundo lugar, a distinção entre formas produtivas e não
produtivas são fatos de diacronia que não se podem eliminar da Iingüística sincrânica (1972'1, p. 32).
forma e Substância
Não outra coisa dizia Saussure em um dos ensaios que dedicou ao estudo
de dialetos lituanos, ao insistir que, em toda e qualquer análise,
não se deve abandonar o princípio de que o valor de uma forma reside inteiramente no texto de
onde a tomamos, quer dizer, no conjunto das circunstâncias morfológicas, fonéticas, ortográficas,
que a rodeiam e esclarecem (1972'1, p. 11).
Outro exemplo, extraído de Arcaini (1972, p. 6): bad é uma palavra que
aparece, isoladamente, com o mesmo sentido, em inglês e em persa:
é impossível que o som, elemento material (substância), pertença por si mesmo à língua. Para ela,
ele é uma coisa secundária, uma matéria que a língua utiliza
uma das definições possíveis (e até mesmo, conforme pensamos, a mais fundamental) de uma língua,
na acepção saussuriana do termo, é a que consiste em defini-la como uma forma específica orga-
nizada entre duas substâncias: a do conteúdo e a da expressão (1971, p. 44).
Glosando-o, à nossa moda: a língua cria formas a partir da relação que ela
articula entre duas substâncias amorfas, uma do plano de expressão - o som - ,
outra do plano de conteúdo - o designatum ("conceito", em Saussure), que ela
põe em conjunção para formar as unidades diferenciais do sistema, que são os
signos. Assim ligados como termos-objetos, funtivos, que contraem dada função
ao instalar-se entre eles esta ou aquela relação, tais signos funcionarão como as
100 • A Identidade e a Diferença
Esse termo de imagem acústica parecerá talvez demasiado estreito, já que ao lado da
representação dos sons de uma palaYra, há também a da sua articulação, a imagem
muscular do ato fonatório. Mas, para F. de Saussure, a língua é essencialmente um dejJósito,
uma coisa recebida de fora (,oer p. 30). A imagem acústica é por excelência a repre-
sentação natural da palana enquanto fato de língua virtual, efora de qualquerrealizaçâo jJela
parole (Em Saussure, 1972, p. 98, nota 1; grifos meus).
A idéia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um
termo simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria
isolá-lo do sistema de que ele participa; seria crer que se pode começar pelos termos e construir o
sistema fazendo a soma deles, quando, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir para
obter por análise os elementos que ele encerra (idem, p. 157).
ARBOR
Para certas pessoas, a língua, reportada a seu princípio essencial, é uma nomenclatura, ou
seja, uma lista de termos correspondentes a outras tantas coísas. Por exemplo:
ARBOR
104 • A Identidade e a Diferença
Essa concejlçâo é Cliticável a muitos resjleitos. Ela sujlõe idéias cOllljlletamente feitas jJreexistentes às
Era a leitura de Saussure que era diferente. Nós não o sabíamos. Pensávamos que tínhamos
lido o mesmo Saussure. Só que ele [Barthes] tinha lido Saussure pelo começo e eu pelo fim. Quer
dizer, ele começou pelo signo, pelo exemplo da árvore. Basta ler cinqüenta páginas mais adiante
para encontrar que a língua é como a folha de papel. Com Hjelmslev foi um pouco a mesma coisa.
A língua é uma rede de relações negativas e não uma rede de signos (1986, pp. 42-43-).
Assim, desde que se acoplem na parole, para compor o signo discursivo, esse
valor realizável da langue, paradigmático, vai se visibilizar como entidade realizada,
valor sintagmático, dotado de uma sua própria positividade, na cadeia da fala: "O
que há de idéia ou de matéria fónica em um signo importa menos do que aquilo
que há ao redor dele, dos outros signos [Saussure alude ao que já chamei, em
outro lugar, de interpretante contextuaI]. A prova disso é que o valor de um termo
pode ser modificado sem que se toque nem em seu sentido nem em seus sons,
mas apenas pelo fato de que tal outro termo vizinho tenha sofrido uma modi-
ficação (idem, ibidem).
resulta da coexistência de décréjJi, "sem reboco" (1[n lI111rdécréjJit, "uma parede que perdeu o reboco").
Assim, o valor de qualquer termo é determinado por aquilo que o rodeia [nesta última frase, o eixo
sintagmático] (idem, pp. 160-161).
t
art. art.
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 107
t
genit.
t
passivo de amo
"vá, garota" !
puella!
lmper. de eo
108 • A Identidade e a Dzferença
. escola
en~no ~uno
j - - - - - professor
t
a + b
t t
faz-nos recordar faz-nos recordar
....
t. pressuponente + t. pressuposto
o moleque ...
palavra que devo escolher entre as várias que o contexto [... ] nos permite utilizar:
o eixo das palavras possíveis é o jJamdigma" (Coelho, 1968, p. XVII).
O procedimento articulatório da fala como uma seqüência de mecanismos
de seleção no eixo paradigmático + combinação no eixo sintagmático aplica-se,
é claro, não só às lexias (palavras), mas a toda e qualquer unidade lingüística. Para
realizar a palavra mm; por exemplo, escolhi dentre os 33 fonemas do português
brasileiro apenas três unidades: I mi 11/, digamos, nem I di que me for-
e não
neceriam lar e dar; para combinar com Iml, que ocupa a primeira posição,
escolhi, na segunda, I ai e não I J I (lê-se ó), que me daria I moI' I; e escolhi,
finalmente, para combinar na terceira posição com as duas anteriores, 11'1 e não
Iwl nem Izl, que me dariam mau e mas etc.
Chamamos correlação a função ou dejJendência existente entre os membros de
um paradigma, e denominamos relação a função existente entre os constituintes
de um sintagma; assim, temos dois eixos da fala:
INTERPRETAÇÃO DA OBRA
DE FERDINAND DE SAUSSURE
CíCERO
Em lingüística, a necessidade de não empl~egaT um termo p~r outro é única: o qU~ temos
para designar não são com efeito unidades concretas já dadas, como um ser vivo para o zoólogo,
mas resulta sempre de uma combinação, é complexa [... ] e designando-as por um lado e não por
outro, quer dizer, por abstração, arriscamo-nos a perceber, a certo instante, que aquilo que tínhamos
distinguido é idêntico (ajJUdGodel, 1957, p. 29).
parecem,já, dois dos pontos de apoio capitais da revolução científica que o pro-
fessor de Genebra provocou em sua ciência, a saber, a questão do ponto de vista
e a questão aparentemente paradoxal da unidade e da diferença; sem o prévio
entendimento desses pontos não há como compreender o real alcance e o ver-
dadeiro sentido das dicotomias enquanto construtos - quer dizer, enquanto
"construções teóricas próprias para dar conta, no quadro de uma unidade con-
ceptual mais profunda, das dualidades evidentes no fato lingüístico quando
abordado ingenuamente. Convém sublinhar imediatamente [... ] que as antinomias
[... ] são aparências a explicar" (Amacker, 1975, p. 49).
Da explicação dessas dicotomias depende uma correta interpretação da
obra de Saussure; é o que nos ocupará no decorrer deste capítulo.
objeto e o sujeito são depende do ponto de vista por meio dos quais os rela-
cionamos em nossa mente: o signo A designa ora a primeira letra do alfabeto,
ora a primeira posição, ora uma quantidade conhecida, ora o símbolo do argônio
etc., conforme eu a interrogue do ponto de vista "alfabético", do ponto de vista
"ordinal" numa seqüência enumerativa, do ponto de vista algébrico, do ponto
de vista químico etc.
Assim, para Saussure, a primeira das singularidades da lingüística é preci-
samente esta, de não apresentar ela nenhum objeto dado de antemão:
Outras ciências operam sobre objetos dados de antemão, que se pode considerar em seguida
de diferentes pontos de vista: em nosso domínio, nada há de semelhante (1972, p. 23).
Em uma das notas inéditas de seus manuscritos recolhidos por Godel, reitera
ele a mesma linha de pensamento:
Saussure enumera [... ] três maneiras de raciocinar, das quais só a terceira é admissível:
1. Tomar como dada a palavra (cantare) para considerá-la em seguida de diferentes pontos
de vista;
2. Escolher um ponto de vista julgado fundamental (a figura vocal kan-ta~re).
3. Afirmar que nada é dado, que nenhum ponto de vista é a p'imi mais fundamentado
do que outro. E conclui:
"Pretendemos que qualquer espécie de operação,justa ou falsa, sobre a língua [...] encontra
sua fórmula com o auxílio dos princípios que colocamos. (II) Há diferentes gêneros de
identidades. É o que cria diferentes ordens de fatos lingüísticos. Fora de uma relaçâo qualquer
deidentidadezwljata lingiiístico nâa existe. Mas a relação de identidade depende de um ponto
de vista variável que se decide adotar: não há, pois, nenhum rudimento de fato lingüístico
fora do ponto de vista que preside às distinções" (Godel, 1957, pp. 42-43).
Estamos proibidos, na lingüística, embora não deixemos de fazê-lo, de falar 'de uma coisa'
de diferentes pontos de vista ou de uma coisa em geral, porque é o ponto de vista que faz a coisa
(Saussure, ajJlld Amacker, 1975, p. 28).
E ainda:
Na língua, não há objeto imediatamente dado como os que surgem em qualquer ciência
diferente - não há objeto anterior à análise (Saussure, ajJUd Godel, 1975, pp. 46-47).
114 • A Identidade e a Diferença
Não se de"e abandonar o princípio de que o "alor de uma forma reside inteiramente no
texto de onde a tomamos, quer dizer, no cOl"Úunto das circunstâncias morfológicas, fonéticas, orto-
gráficas, que a rodeiam e esclarecem (1972a, p. 11).
Pois bem, há duas maneiras de agrupar, duas esferas de relações entre as pala"ras: na memória,
o tesouro interior, e no discurso, a cadeia da jJarole. Há
Os diferentes elementos de uma palavra têm um sentido pela combinação: é nas suas
relações recíprocas que se estabelece o sentido. Seria mais justo aqui, falar de função: o sentido se
reduz muito jí-eqiientelllente a 11 llzajllnçâo (v{niante de valor e de sentido) (Saussure, lvIo/jJh.: R 5-6, ajnld
A ênfase, como sempre que lida com o termo valor, é dada pela inserção do
termo no contexto de dado discurso: "Cada unidade não vale e não realiza sua
função senão pela combinação que lhe é dada [no discurso] [... ]. Cada elemento
não dispõe livremente de seu sentido, mas somente por combinação" (idem, ibidem).
Godel precisa que a palavra função - que Saussure utilizava, segundo
pensamos, na acepção de sentido variável que o significado do signo da língua
adquire no discurso - surge várias vezes nos "Cursos I e II de Lingüística Geral"
e no "Curso de Morfologia" em aI tenúncia com sentido e significação, funcionando
como a contraparte de forma. A partir daí poderemos, talvez, entender:
a) NO SISTEMA
unidade de valor invarian te Significante Significado
na langue
Outras ciências operam sobre objetos dados de antemão, que se pode considerar em seguida
de diferentes pontos ele yista; em nosso domínio, nada há de semelhante. Alguém pronuncia a
palavra francesa 1IU: 1I1Il obsenJadorsuperficial será tentado a yer nela um objeto lingüístico concreto;
mas um exame mais atento fará encontrar aí sucessivamente três ou quatro coisas perfeitamente
diferentes, conforme a maneira [o ponto de vista] pelo qual o consideremos: como som, como
expressão de uma idéia, como o correspondente do latim 1IuduIIl etc. Longe de o objeto preceder
o ponto ele vista, diremos que é o jJonto de vista que cria o objeto (1972, p. 23; os grifos são meus).
A condição de qualquer fato lingüístico é ocorrer entre dois termos no mínimo, os quais
podem ser sucessivos [diacrânicos] ou sincrânicos. A ausência do segundo termo [... ] é só aparente
(Sanssme, ajJlldGodel, 1957, p. 51).
Em lingüística, a necessidade de não empregar um termo por outro é única: o qne temos
para designar não são com efeito unidades concretasjá dadas, como um ser vivo para o zoólogo, mas
resulta semjJre de 'IlIlla combinação, é comjJlexa [sintética] [... ] e designando-as por um lado e não por
outro [perspectiva analítica], quer dizer, por abstração, arriscamo-nos a perceber, a certo instante,
que aquilo que tínhamos distinguido [na análise] é idêntico [da perspectiva da síntese] (idem, p. 29).
Pois bem, h,1 duas maneiras de agrupar, duas esferas de relações entre as palavras: na memória,
o tesouro interior [paradigma], e no discurso, a cadeia da jJarole [sintagma]. Há
~ ~
síntese paradigmática síntese sintagmática
118 • A Identidade e a Diferença
Figura 9: Produção da Forma e do Sentido (das unidades idênticas da iang'," e diferenciais da j)(l)"oie, a partir
qualquer qne seja o domínio da linguagem que se enfoque, há sempre uma dupla face que se
corresponde perpetuamente, uma parte "ale unicamente pela outra (Saussure, ajJud Amacker,
1975, p. 28).
No domínio da linguagem não há "coisas que sejam naturalmente dadas", logo, não há subs-
tância: é o ponto de vista apenas que cria o objetoo Pois bem, não estando fundado na consideração
de uma substância, o ponto de vista só pode invocar uma certa relação de identidade, a, por exemplo,
de uma seqüência de sons como nii, abstração feita de seu valor em talou qual sistema (f1'. nu ou
g1'. vu [0.0] oEm que consiste a ielentidade quando não se lida com um ente material? (Saussure,
a/md GoeleI, 1975, po 136).
Godel pensa, com razão, que essa questão deve ter representado um aspecto
filosófico crucial no domínio das reflexões saussurianas em torno da linguagem:
é das suas especulações sobre os "diferentes gêneros de identidades" que procedem
as "distinções primeiras", a determinação de pontos de vista apropriados, criadores
de ordens de fatos que correspondem a realidades" (1975, pp. 136-137).
Na maior parte das vezes, Saussure pensava que as identidades só se esta-
belecem no nível do sistema, quando se encontram as unidades mínimas da
língua. Em um nível inferior, o das descontinuidades recortadas sobre o con-
tinuurn linear da cadeia da fala, as unidades idênticas do sistema viriam a mani-
festar-se como diferenças - isto é, como elementos da paroZe que contraem uma
relação de descontinuidade:
A questão das identidades é pois a primeira e mais geral; pois, de um lado, é o problema da
língua (natureza do signo, caracteres das entidades lingüísticas) e da semiologia inteira que está
colocado desde o instante em que se reflete sobre o laço de identidade que faz com que, em el1l111-
dados diferentes e sucessivos [da jJarole] se reconheça a mesma palavra, a mesma unidade signifi-
cativa (idem, p. 128).
tese
j
-- antítese
j
-- síntese
j
langue
-- parole
-- linguagem
Creio, da minha parte, ter deixado claro que um dos modos mais eficientes
de normalizar a questão das identidades e das diferenças nas especulações saus-
surianas consiste em explicá-las mediante a correlação:
quan to, ainda, den tro da correlação estabelecida pela analogia (análogo é o termo
que está em relação a um outro na mesma proporção que um terceiro em relação
a um quarto):
Godel comenta:
Essa idéia de 1/J1/{/ relação de identidade entre dijàénças de sentido não foi retomada nem desen-
volvida alhures. É, no entanto, mna visão inteiramente saussuriana, perfeitamente de acordo com
a concepção da língua como uma álgebra, que opera unicamente com termos complexos. E é uma
visão ele grande alcance, que permite ultrapassar a unidade concreta sem perdê-la de vista e sem
substituir a abstração de um conceito; que esclarece a noção de motivação relativa; que torna inúteis,
enfim, as penosas e frustrantes análises a que se entregam os teóricos do "morfema" para ligar os
"alomorfes" a uma unidade contestável. Pena que Saussure, voltado mais para as antigas línguas
indo-européias que devia ensinar, tenha-se aferrado por demais exclusivamente ao problema das
unidades concretas, em detrimento das entidades não delimitáveis, mas exatamente determináveis
pela identidade das "distâncias de sentido". Mas vê-se que a partir dos dados saussurianos, só pela
consideração de diferentes gêneros de identidade, chega-se a um verd~deiro estruturalismo que
ln telpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 125
poderia fornecer, para a descrição dos sistemas como para a teoria geral da língua, fecundos prin-
cípios de análise e de classificação (1957, p. 141).
Amacker navega nas mesmas águas, lamentando que Saussure nunca tivesse
chegado a escrever o livro capaz de explicitar cabalmente essa teoria que, não
obstante, ficou implícita em tudo o que escreveu.
Uma boa idéia do que poderia ter sido semelhante obra nos ficou nas
reflexões que o lingüista fundador da Escola de Genebra nos deixou acerca do
mecanismo das oposições fonológicas:
tomias constituem a mais próxima expressão que temos dos axiomas sobre os quais
repousa a teoria saussuriana" (Amacker, 1975, p. 50).
a b
b'
em que as linhas horizontais indicam a sincronia no estado 1 (a - b) e a sincronia no estado 2 (a' - b'),
compreendendo por sincronia a relação de dois elementos diferentes coexistentes den tI'O do mesmo
estado histórico, ao passo que as linhas verticais indicam a diacronia (quando a se transforma em a',
o sistema se reequilibra fazendo b, seu correlato, transformar-se em b), compreendendo, pois, por
Interpretação da Obra deFerdinand de Saussure • 127
diacronia, a relação existente entre dois estados históricos sucessivos por referência ao mesmo
origem dessa cristalização social? [... ] Se pudéssemos abarcar a soma das imagens verbais depositadas
em todos os indivíduos, tocaríamos o vínculo social que constitui a langue (iciem, pp. 29-30, jJassilll).
Na palawa há a associação de mna impressão acústica e de uma idéia. Tudo ocorre no cérebro.
Separemos a impressão acústica e retenhamos dela só uma lembrança. Quando separamos o que
produziu essa impressão [i. e., a jJeifo17nance] existe ainda toda a língua na mente [a competência],
por exemplo, do homem que dorme. Alguém que não esteja a falar [perfo17nance] possui em si todo
o sistema de valores (Saussme, ajJUci Godel, 1957, pp. 151-152).
evolucionista de seu tempo. Ainda que os respeite e cite como luminares de seu
ramo de saber, Saussure não concorda em absoluto com a convicção de seus pares
de que fora da explicação do historicismo genético, exogerado, não haja explicação
lingüística - e o futuro encarregou-se de demonstrar que ele tinha razão:
Saussure faz uma diferença entre "arbitrário absoluto" e "arbitrário relativo" (CLG 180-184)
e invoca a noção de motivação relativa, que implica relações sintagmáticas e/ou associativas entre
os termos (CLG 182). De fato, Saussure marcou bem o alcance de seu princípio, na perspectiva sin-
crónica (imutabilidade do signo) como na perspectiva diacrónica (mutabilidade). Mas o COlll:neflete
aqui o transcorrer incerto das lições sobre La Languede 25 de abril ao 13 dejunho de 1911 (Godel,
1973, p. 61).
Saussure passou, sem perceber, da distinção arbitrálio/silllbólico, que concerne aos signos em
geral [ponto de vista semiológico] para a distinção arbitrálio (illlotivado)/relativallle1lte lIlotivado, que
vale para os sistemas de signos que são as línguas [ponto de vista lingüístico]. É que os editores [do
COlll:5] introduzindo "imotivado" na lição em que o signo é ainda considerado no estado isolado
(CLG, p. 101; cf. SM, p. 125) niio esclareceram as coisas (idelll. p. 62).
Pode-se pois conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social [oo.];
nós a denominaremos sellliologia (do grego, séllleion, "signo"). Ele nos ensinará em que consistem os
signos, que leis os regem. [oo.] A lingüística não é mais do que uma parte dessa ciência geral, as leis
que a semiologia descobrirá serão aplicáveis à lingüística [oo.] (1974, p. 33).
132 • A Identidade e a Diferença
a falta de vínculos naturais e de semelhança entre signos e objeto designado [correção: na teoria
saussuriana, entre significante e significado, já que para ele "o que o signo lingüístico une não é
uma coisa e um nome, mas um conceito de luna imagem acústica", COZIIS, 1972, p. 98] e a cons-
tatação de uma certa arbitrariedade em suas relações não só não supõem um obstáculo para a
importante função que o signo desempenha no processo cognoscitivo, senão que constituem a
Intelpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 133
condição necessária para a formação de noções que reflitam adequadamente os objetos e fenômenos
[... ] em seus aspectos gerais e essenciais (1972, pp. 18-19).
o princípio fundamental elo arbitrário elo signo não impeele ele elistinguir em cada língua
o que é radicalmente arbitrário, quer dizei; imotivado, daquilo que o é relativamente. Uma parte apenas elos
signos é absolutamente arbitrária; em outros interyém um fenômeno que permite reconhecer g:-aus
no arbitrário sem o suprimir: o signo poele ser relativamente motivado.
Assim, vinte é imotivado, mas dezenovenão o é no mesmo grau, ,isto que ele evoca os termos elos
quais se compôem e ontros que lhe são associados, por exemplo, dez, nove, vinte e nove [...] (1972, p. 181).
Arbitrário
I I
Arbitrário Imotivado Arbitrário Relativamente
_ _ _ _ _1 _ Motivado
I SÍM~OLO I
SIGNO VERBAL ISOlADO
SIGNO VERBAL
CONTEXTUALIZADO
Esses dois fatos são inseparáveis. A qualquer instante, a solidariedade com o passado põe em
xeque a liberdade de escolhas. Dizemos homem e [{Ia porque antes de nós se dizia homem e cão. Isso
não impede que h,~a no fenômeno total um vínculo entre esses dois fatores antinâmicos: a con-
venção arbitrária em virtude da qual a escolha é livre, e o tempo, graças ao qual a escolha se acha
fixada. É por ser arbitrário que ele não conhece outra lei além da tradição, e é por fundar-se na
tradição que ele pode ser arbitrário (Saussure, 1972, p. 108).
[... ] comparação [da história de uma língua] com um boulevardque recebeu um nome único,
ou vários nomes que o dividem em segmentos. Assim também, na evolução de uma língua, só se
podem fazer divisões arbitrárias. Não há nunca caracteres permanentes; há somente estados de
língua que são perpetuamente a transição [sínteses] entre o estado da véspera [o passado] e o de
amanhã [o futuro] (ajmd Godel, 1957, p. 39).
Por oposição à parole [... ] a langueé compreendida como a rede abstrata que, através de suas
malhas arbitrárias, dá uma forma à substância da parole, nos dois planos de expressão e do conteúdo:
assim, os significantes são, na langue, classes de realizações fonéticas da parole, como os significados -
são, na lnngue, classes de realizações semânticas (os sentidos) da jJarole, como mostrou Prieto (Amacker,
1975, p. 95).
É assim que essa massa amorfa, por meio de "um conjunto de delimitações,
de articulações (articuli) [recortes] que tornam descontínua a massa das reali-
zações fõnicas e a massa dos sentidos" (Saussure, 1972, cap. VII), se converte em
pensamento articulado, verbalizável.
Através da enunciação das unidades-identidades assim construídas, dessa
transformação do caos originário em logos - "no princípio era o verbo" - , se
cumpre a função modelizante da língua natural:
O ponto de partida do circuito [da fala] está no cérebro de uma [pessoa], por exemplo, A,
em que os fatos de consciência, que chamamos conceitos, acham-se associados ãs representações [... ]
ou imagens acústicas que servem para a sua expressão [ ] um conceito dado instala no cérebro
[do destinatário] uma imagem acústica correspondente [ ] no cérebro [dá-se] a associação psíquica
dessa imagem com o conceito cOlTespondente (Saussure, 1972, p. 28).
A cada instante [em sincronia], ela [a língua] implica ao mesmo tempo um sistema esta-
belecido [que provém do passado] e uma eyolução [que a arremessa no nlmo do futuro]: a cada
momento [em sincronia] ela é uma instituição amaI e um produto do passado (idem, p. 24).
Enunciação
I
o fazer sincrético (sintetizador) obtido pela sincronização
do "falar/ ouvir" constitutivo do turno
I
Vê-se bem que estão em jogo, aqui, duas ordens de coisas complementares,
constituintes da visão dialética de Saussure:
A questão das identidades é pois a primeira e a mais geral: pois, de um lado, o problema da
langue (natureza do signo, características das entidades lingüísticas) e da semiologia inteira que está
em jogo desde o instante em que se reflete sobre o laço de identidade que faz com que em enun-
ciados diferentes e sucessivos [na descontinuidade diferenciadora da jJarole] se reconheça a mesma jJalavra,
a mesma unidade significativa [as mesmas identidades da langue] (Saussure, ajJud Godel, 1975, p. 128).
Como sevê (escreve ele no ms. fI'. 3958-8, hoje na Biblioteca de Genebra), no fundo, a inca-
pacidade de manter uma identidade certa não deve ser levada à conta dos efeitos do TemjJo - aí está o
erro evidente dos que se têm ocupado dos signos - mas está dejJositado de antemão na jJrójJlia consti-
tuição do ser que se escolhe e se obserua como um organismo, quando ele não é mais do que a com-
binação fugaz de duas ou três idéias [... ] (ajJud WunderJi, 1976, p. 54).
Assim, de qualquer lado que se aborde a questão, em nenhuma parte o objeto integral da
lingüística se oferece a nós; encontramos em toda a parte esse dilema: ou nos atemos a um único
lado de cada problema, arriscando não perceber as dualidades atrás assinaladas [a saber, as dico-
tomias forma/substância, língua/fala, sincronia/diacronia]; ou, então, se formos estudar a lin-
guagem por vários lados ao mesmo tempo, ° objeto da lingüística vai parecer um emaranhado
confuso de coisas heteróclitas, sem vínculo entre si (1972, p. 24).
Tudo isso lhe valeu ser reconhecida, a tempo, como a ciência-piloto por
excelência do século XX, fornecedora de categorias críticas, conceitos, processos,
métodos e modelos explícitos para as demais disciplinas contidas nas áreas daquilo
que, antes de Saussure, só metaforicamente era chamado de "ciências humanas
.. "
e SOCIaIS.
Hegel não nega a lógica formal. Ele querreconciliar o princípio de identidade com seu oposto,
a contradição. A lógica formal está limitada por suas afirmações [... ]: A é A. É a lógica de um modo
144 • A Identidade e a Diferença
simplificado, abstrato, definido, incapaz de eXjJlimir o movimento, o devil~ a contradição inerente às coisas.
A lógica dialética não diz A é mio A, o que seria absurdo, mas se A corresponde a uma realidade, se
não for uma tautologia sem significação, A possui em si mesmo um devir qne o ultrapassa: A é it e
tambémlllais do que A (Grawitz, 1976, p. 4; grifos meus).
Como diz H. Lefebvre: "Enquanto a lógica formal afirma que uma proposição
deve ser verdadeira ou falsa, a lógica dialética declara que toda proposição que
possui um conteúdo real é ao mesmo tempo verdadeira efalsa, verdadeira na medida em
que ela é ultrapassada, falsa se ela se afirma absolutamente" (apud Grawitz, 1976, p. 5;
grifos meus). É o pensamento de Hegel, para quem "nada há sobre a terra e no
céu que não con tenha em si mesmo o ser e o nada" (idem, ibidem); mas é, também,
o pensamento de Saussure. Com efeito, o autor da Nlémoire e do Cours poderia
perfeitamente bem firmar a página em que Lefebvre descreve o percurso do pen-
samento dialético, segundo Hegel:
Ao primeiro termo imediato da afirmação sucede um segundo termo no mesmo plano, mas
que o completa, negando-o. Os dois termos agem e reagem um sobre o outro. O terceiro regressa
ao primeiro negando o segundo e os ultrapassa também, a ambos. A unidade do mundo exprime-
se em Ulll princípio de identidade que se tornou concreto e vivo por meio de sua vitória sobre as
contradições (idem, ibide/ll).
sI /vocalicidade/ s2 / consonanticidade/
-----
VOGAL CONSOANTE
52 / nào-consonanticidadei Si / nào-vocalicidade/
146 • A Identidade e a Diferença
presença de uma coisa positiya na sua ordem. [... ] Apesar de que o significado e o significante sejam,
tomados cada qual cm separado, puramente diferenciais e negatiyOS [na Zangue], sua combinação
é um fato positi\'O [na jJarole] (Saussure, 1972, p. 166).
Não é preciso muito esforço para compreender, aí, o significado como tese,
o significante, sua "contraparte acústica", como antítese (os dois diferenciais e
negativos) e o signo como síntese, resultado de sua "combinação" como um "fato
posi tivo" da parole.
Até aqui tomamos o termo de "lei" no sentido jurídico. Mas existiriam talyez na língua leis
no sentido em que as compreendcm as ciências físicas e naturais, quer dizer, relações que seycrificam
em toda a pane e sempre? Em uma palavra, não se poderia estudar a língua do ponto de yista pan-
crônico? [onde "pancronia" é uma coveHuord que sintetiza a oposição sincronia versus diacronia].
Sem dúvida. Desse modo,já que se produz e se produzirão sempre mutaçôes fonéticas, pode-
se considerar esse fenômeno em geral como um dos aspectos constantes da linguagem; é pois uma
de suas leis. Na lingüística, como no jogo de xadrez [... ] há regras que sobrevivem a todos os aCOI1-
tecimen tos. l\'las, trata-se dc j)lincíjJios gemis que existem indejJendentemente de fatos concretos: desde que se
faZe defatos jJarticulams e tangíveis, niio há j)onto de vista j}{[ncrânico (idem, pp. 134-135).
Em termos visuais:
148 • A Identidade e a Diferença
Pancronia
I I
Sincronia Diacronia
versus
Linguagem
Língua
------,------- Fala
Intelpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 149
No começo da lição de 28 de abril, retomando a conclusão de sua lição precedente, ele lhe
elen a forma de um esquema:
Passiva e residindo na
coletividade. Código social
LINGUAGEM que organiza a linguagem
FALA e forma o instrumen to
necessário ao exercício
da faculdade da linguagem
Ativa e individual
Signo Forma
I I
I [
Em resumo, acreditamos que Saussure tentou levar a efeito, através das dico-
tomias, a recuperação dialética da unidade de nível superior, S, como o momento
de síntese da diferença que opõe, no nível menOl~ dois termos-objetos que se pensam
associados entre si por serem constituintes (funtivos) de uma mesma categoria cons-
tituída (uma mesma função), S. Mas, pensamos, também, como Moreau, que
os objetos sensíveis aparecem grandes ou pequenos, iguais ou desiguais, segundo o ponto de vista
a partir do qual se considerem, segundo o termo a que se comparem; mas a relação de igualdade,
por exemplo, tem uma significação sempre idêntica a sí mesma; e por ísso demonstra que, na sua
origem, é distinta das impressões sensíveis. Não é da comparação de linhas iguais que induzo a idéia
de igualdade: não somente, como nota o Fedon, porque os objetos sensíveis não apresentam jamais
uns relativamente aos outros uma igualdade absoluta e perfeita, mas, mais profundamente, porque
a igualdade consiste em uma relação e 1111la relação jamais se dá, à maneira de uma imjJressão: só 1Jode ser
1JeJlsada [cf. com o que, duas págínas atrás, dizia Saussure acerca das categorias constítuídas por
síntese, S, representadas, no caso, pelo conceito de pancronia: "trata-se de princípios gerais que
existem independentemente de fatos concretos" etc.]; defini-la é tarefa do entendimento. Assim se
encontra o princípio da distinção entre o sensível e o imeligível, e percebemos que o inteligível está
constituído jJJ7mitivamenle de relações: o igual, o desigual [sei!., a identidade e a diferença], maior ou
menor, o dobro ou o triplo, metade ou um terço, todas as relações expressas pelos números, relações
que condicionam a medida e a objetividade da represemação. Pois essas relações, que permitem a
constituição de uma experiência objeti\'a, não poderiam derivar da experiência; são conceitos a
1))7017 (1953, p. 486).
Como vimos, pode-se mostrar que as unidades da língua são classes de realizações concretas
na jJarole e que essas classes repousam sobre um julgamento de identidade pronunciado pelos sl~eitos
falantes. Esses julgamentos explicitam e constituem ao mesmo tempo um saber lingüístico que se
re\'ela diferente para cada sociedade; é que as classificações das realizações concretas não repousam
- não, pelQ menos, exclusivamente - sobre características objetivas das próprias realizações. Pois
está claro que esse problema das identidades (e portanto das unidades) [e, acrescentamos por nossa
conta, das diferenças] lingüísticas é só uma outra apresentação, um ontro aspecto, do ponto de vista
antinomenclaturista de Saussure. O problema das identidades ressentidas pelos sl~eitos falantes éa
forma sincrônica do arbitrário; a questão das evoluções, das mudanças lingüísticas, sobre as duas faces
do signo (o que Saussure chama o problema das "identidades diacrônicas") é a sua forma diacrônica.
O arbitrário radical é a construção teórica que permite explicar todas as dualidades da lin-
giiística e que ordena o conjunto das dicotomias saussurianas em um todo coerente; o arbitrário
exprime com efeito a maneira pela qual se estabelecem e subsistem as identidades lingüísticas, do
ponto de vista diacrônico como do ponto de vista sincrônico; as identidades traduzem as classificações
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 151
abstratas de realizações concretas, reconhecidas pelos slueitos falantes (forma e substância, langue e
jJalvle); os signos lingüísticos sem relaçâo necessária com a realidade extralingüística, são, por conse-
guinte, entidades determinadas relativamente e de dupla face (expressão e conteúdo); o seu aspecto
formal deve ser sublinhado em cada um dos dois planos (significante e significado) (1975, p. 84).
Uma vez que se está persuadido de que as dicotomias saussurianas correspondem a pontos
de vista teóricos do lingüista e não a oposições enraizadas nas próprias coisas, boa parte das críticas
que lhe foram dirigidas perde sua razão de ser, pois se revelam falsas (idem, p. 50).
5
Que estranho destino o das idéias e como elas parecem por vezes viver uma vida própria,
revelando, desmentindo, ou recriando a figura de seu criador! Podemos devanear longamente em
torno desse contraste: a vida temporal de Saussure comparada àsorte de suas idéias. Um solitário naquilo
que pensou durante quase toda a sua vida, um homem que não se permitia ensinar o que achava falso
ou ilusório, sentindo que é necessário tudo refundir, cada vez menos tentado a fazê-lo, e finalmente,
após muitas distrações que não conseguem liná-lo do tormento da sua verdade pessoal, comunicando
a alguns ouvintes, acerca da natureza da linguagem, idéias que não lhe parecem nunca estar suficien-
temente maduras para ser publicadas. Morreu em 1913, pouco conhecido fora do círculo restrito de
seus alunos e de alguns amigos. Já quase esquecido de seus contemporâneos. Meillet, no belo comen-
tário que lhe consagrou, deplorou ter-se findado essa existên.cia deixando uma obra inacabada:
"Após mais de trinta anos, as idéias que expunha Ferdinand de Saussure no seu trabalho
de estréia não esgotaram ainda a sua fecundidade. E, contudo, seus discípulos têm o sentimento
154 • A Identidade e a Diferença
de que ele não ocupa na lingüística do seu tempo o lugar que lhe era devido por seus dons
geniais [... ]"
E terminava assim essa triste evocação:
'Tinha produzido o mais belo lino de Gramática Comparada quejamais se escrevera, semeara
idéias e firmara cerradas teorias, tinha assinalado com sua marca a numerosos alunos, e, contudo,
ele não tinha preenchido todo o seu destino" (Benveniste, 1966, pp. 44-45).
Hoje, cinqüenta anos passados desde a morte de Saussure [... ] o que vemos nós? Alingüística
tornou-se uma ciência maior entre as que se ocupam do homem e da sociedade, uma das mais ativas
na pesquisa teórica e nos seus desenvolvimentos técnicos. Pois essa lingüística renovada, é em
Saussure que ela tem origem, é em Saussure que ela se reconhece e se congrega. Em todas as cor-
rentes que a atr,wessam, em todas as escolas em que ela se divide, o papel iniciador de Saussure é
proclamado. Esse embrião de lmuinosidade, recolhido por alguns discípulos, transformou-se em
uma grande luz, que ilumina toda uma paisagem que se preenche só com a sua presença.
[... ] Saussure pertence doravante à História do pensamento europeu. Precursor de dou-
trinas que vêm h{\ cinqüenta anos transformando a teoria da linguagem, ele abriu horizontes insus-
peitados para a mais alta e mais misteriosa faculdade do homem, e ao mesmo tempo [... ] contribuiu
para o aclvento do pensamento formal nas ciências da sociedade e da cultura, e para a constituição
de uma semiologia geral.
Volvendo os olhos para esse meio século transcorrido, podemos dizer que Saussure preencheu
bem o seu desti'no. Para lá de sua \'ida terrestre, suas idéias irradiam mais longe do que ele jamais
teria imaginado; e esse destino póstumo tornou-se-lhe como que uma segunda vida, que agora se
confunde com a nossa (idelll, ibidelll).
A lei cabalmente final da linguagem é [oo.] que não existe nunca nada que possa residir em
11111 termo, como conseqüência direta do fato de que os símbolos lingüísticos não possuem nenhuma
relação com aquilo que eles devem designar, logo, que a nada pode designar sem o auxílio de b, do
mesmo modo que este sem o auxílio de a, ou que ambos valem [o que valem] graças à sua recíproca
diferença, ou que nenhum deles valha, ainda que seja em uma parte qualquer sua (penso "na raiz",
etc.) senão em virtude desse mesmo jJlexo de diferenças eternamente negativas (Saussure, ajmel
Benveniste, 1966, pp. 40-41).
o rol dos termos acima está longe de repertoriar sequer a metade dos termos
metalingüísticos que ficamos devendo a Saussure; por outro lado, é lógico que nem
todos os termos ali arrolados foram cunhados por ele, mas ali figuram unicamente
os metatermos que ele "recondicionou", cuja primitiva concepção reelaborou (é
o caso, digamos, da palavra signo, utilizada desde a Antiguidade, mas apenas na
acepção de significante, não de complexo que articula significante e significado
156 • A Identidade e a Diferença
une mitre, et que cela reussit de sOlte qll ' il 'II I)' a jJlus
CORDHIOY
A ieléia ele \''1101' [ ... ] nos mostra que é uma granele ilusão consielerar um termo sim-
plesmente como a união ele um certo som comum certo conceito. Defini-lo assim seria
isolá-lo elo sistema ele que ele participa, seria crer que se poele começar pelos termos
e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, ao contrário, é do lodo solidário que
se deve jJarlirjJam ohlerjJor análise os elemenlos que ele encerra (idem, p. 157).
Antes de tudo, não devemos nos afastar do princípio segundo o qual o valor de uma
forma está inteiramente no texto de onde a tomamos, quer dizer, no conjunto das
circunstàncias morfológicas, fonéticas, ortográficas, que a rodeiam e esclarecem
(idem, p. 342).
Conclusão provisória: tudo que é sincrónico se resume pelo termos de gramática (cf.
a gramática do jogo de xadrez, de la Bonsse), que implica um sistema que põe emjogo
valores. Não há gramática histórica: o que se entende por essa expressão é a lingüística
diacrónica, qne não será jamais gramatical. Mas, identificando sincronia e gramática,
não adotamos cegamente as divisões tradicionais (morfologia, sintaxe, lexicologia)
(Sanssme, ajJudGodel, 1957, pp. 73-74).
É claro, por outro lado, que a descrição sincrânica da língua não exclui
sua descrição do ponto de vista diacrânico:
158 • A Identidade e a Diferença
Tudo são só diferenças fonéticas, não significativas em si mesmas, utilizadas como opo-
sições [significativas], as quais dão os valores (Saussure, ajmd Godel, 1957, p. 198).
160 • A Identidade e a Diferença
Essa significação (da alternância em cajJio: fJercif}io) é uma oposição que se funda sobre
uma diferença [... ]. Há um certo grau de significatividade ligada à diferença [que, ijJSO
facto, é uma oposição]" (idem, ibidem). Como "há perpetuamente oposição de valores
por meio de diferenças fónicas - por elementos fonicamente diferentes [... ]" (idem,
ibidelll), poder-se-ia, em conclusão, "definir a oposição como uma diferença significativa
(Godel, 1957, p. 198).
É impossível que o som, elemento material, pertença por si mesmo à língua. Para ela,
ele é uma coisa secundária, uma matéria que a língua utiliza (1972, p. 164).
10. Ter indicado que essa análise formal deveria ter o caráter componencial,
de modo a definir a identidade dos elementos do plano da expressão
e do plano de conteúdo em termos de traços distintivos (expressão que
se esquece, aliás, ter sido cunhada por ele):
E, em outra passagem:
fosse efetuada por meio de uma análise componencial (cf. aqui mesmo
projeto da teoria narrativa de Saussure):
Longe de partir dessa unidade que não existe em nenhum momento, deveríamos
perceber que ela é a fónllula que damos de um estado momentãneo de unificação,
somente existindo os elementos. Assim, Dietrich, "tomado em sua verdadeira essência",
não ê um personagem histórico ou a-histórico: ele é puramente a combinação de três
ou quatro traços que podem dissociar-se a qualquer momento, acarretando a dissolução
da unidade inteira (Sanssme, ajmd IVunelerli, 1976, p. 54).
A abordagem topológica
"não são as coisas que importam, mas suas relações"
é decisiva para a metodologia da fonologia. Não se pode definir o fonema I pi elo
francês sem se referir aos demais fonemas - por exemplo, ao restallte elas obstrutivas
smdas (Jakobson, 1973, p. 139).
12. Ter chamado a atenção para o fato de que, em qualquer análise, é mais
relevante considerar o valor realizado, no nível da manifestação da fala,
do que o valor realizável, no nível imanente da língua - quando se
trata·de aprender "a significação em construção" na jJarole, e não "o sig-
nificadojá construído" da langue (um dos motivos que orientam, como
vimos, a sua opção pela sincroi1ia - "a cada momento, ele [o valor]
depende de um sistema de valores contemporâneos"): "Aquilo que faz
a nobreza da legenda [lenda] como a da língua é que condenadas uma
e outra a se servir apenas de elementós colocados diante delas e com
[dotadas de] um sentido qualquer [elementos estocados em compe-
têilcia, na língua], elas os reúnem [na jJarole] e tiram deles conti-
nuamente um sentido novo" (Saussure, ajJud Starobinski, 1974, p. 16).
E, corroborando outra assertiva sua, que mostra uma penetrante
observação do valor do contexto:
o que há de idéia ou de matéria fônica em um signo importa menos elo que aquilo que
há ao redor dele, elos outros signos. A prova disso é que o valor de um termo pode ser
moelificado sem que se toque em seu sentido 'nem em seus sons, mas apenas pelo fato
de que tal outro termo vizinho tenha sofrido uma modificação (Saussure, 1972, p. 166).
162 • A Identidade e a Diferença
No interior de uma mesma língua, todas as palavras que exprimem idéias \'izinhas se
limitam reciprocamcnte: sinônimos como redollfer "hesitar", craindre "temer", avoir
jJellr "ter mcdo", só possuem um \"alor próprio graças à sua oposição; se redollfer nào
cxistisse todo o seu conteúdo iria para os seus concorrentes. (Até aqui, o eixo paradig-
mático, o das classes de membros que se associam na memória.) Inversamente, lü
termos que se enriquecem pelo contato com outros [... ]. Assim, o valor de qualquer
termo é determinado por aquilo que o rodeia [na cadeia da fala]. (Aqui, o eixo sin-
o que importa na palavra não é o som em si mesmo, mas as difcrenças fônicas que
permitem distinguir essa pala\Ta ele todas as outras, pois são elas que contêm a signi-
ficação. (COl/lo: 169) Uakobson, 1973, p. 232).
o que importa na palavra não é o som em si mesmo, mas as diferenças fônicas qne
permitem distingnir essa palavra de todas as outras, pois são elas que comportam a sig-
nificação (Sanssure, 1972, p. 169).
Ainda agora não seria fácil apontar quem o possa dizer melhor.
Jakobson diz acreditar que Baudouin de Courtenay e Nikolai Kruszewski
tenham inf1uenciado Saussure a respeito do fonema. Mas lembra,
também, que Baudouin mesmo cOllfessou em 1895 ter abandonado
sua própria concepção de fonema alguns anos antes (por volta de 1880),
164 • ii Identidade e a Diferenra
o signo lingüístico une não uma coisa e mn nome, mas um conceito e uma imagem
acústica (Saussure, 1972, p. 98).
Pode-se pois conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social;
[... ] charna-la-emos de semiologia [... ]. Ela nos ensinará em quc consistem os sig'nos,
qnc leis os regem. [... ] as leis quc a semiologia vier a descobrir serão aplicávcis à lin-
güística [... ] (idem, p. 33).
18. Ter dado o primeiro passo para a fundação de uma semiologia da nar-
rativa (ou teoria semiótica da narratiya, como diríamos hoje).
19. Ter dado o primeiro passo para a fundação de uma scmiologia com-
parada, ao definir a lingüística e a ecoilomia como duas ciências fundadas
,na noção de valor: "é que aí (na lingüística) como na economia política;
cstamos diante da noção de valor; nas duas ciências trata-se do sistema
de equiyalência entre coisas de ordens diferentes: numa, o trabalho e
o salário; na outra, o significado e o significante" (idem, p. 115).
Aqui, a correlação do trabalho com o salário deye, antes, ser com-
preendida como relação entre o trabalho e a moeda Uá que é a moeda
que serye para pagar o trabalho); com o que se entenderá que Saussure
propõe, por intermédio da correlação
Práticas
Trabalho Ideologia
SI~NO
Objeto-valor produzido Objeto-valor prod mido
pelo trabalho pela ideologia
I I
I
Plano versus Plano Plano versus Plano
Expressão Conteúdo Expressão Conteúdo
I MO~DA I: I
I
TRABALHO I:: SIGNIFICADO
A granele elescoberta ele Saussurc é a ela linguagem como ol~jeto duplo, do caráter dia-
lógico ela linguagem, elo diálogo como o único campo onde a linguag-em é possível.
Se a linguagem aparece como um sistema articulado é que nela a diferença existe como·
elemento de origem [... ] (Coelho, 1968, p. XV).
A pergunta que se coloca é: o que cxiste imediatamente atrás do verso:- A resposta não
é: o indivíduo criador, mas: a parole (ambiguamente: o discurso c/ ou a palawa) indutora.
Não que Ferdinand de Sanssure cheguc ao ponto de apagar o papel da subjetividade
do artista; parece-lhe, no entanto, que ela não pode produzir seu texto a não ser depois
de passar por um jmi-texto.
Analisar os versos na sua gênese não será, portanto, remontar imediatamentc a uma'
intenção psicológica: ames será prcciso pôr em evidência uma latência vcrbal sob as
palavras do pocma. O hipograma é um lI)jJolieimenon \'erbal; é um sllbjectlll11 ou uma
substantia que contém em germe a possibilidade do poema. Este é tão-somente a pos-
sibilidade desenvoh'ida de um vocábulo simples (Starobinski, 1974, p. 107);
511AIZESPEARE
pelo diálogo nem sempre pacífico entre dois epistemas que se defrontam, alternando
a posição de dominador com a de dominado, como tese e antítese, construindo
cada qual, nessa defrontação, especularmente, sua própria identidade: uma vez
que é o outro que nos constitui - 'Je suis un autre", exclama Rimbaud - toda
identidade deverá definir-se diferencialmente, fatalidade que a compele a fazer uma
referência explícita ou implícita ao "outro" ideológico com que se defronta no
interior da mesma comunidade.
No século XX, o oponente primário do epistema estruturalista foi o epistema
histórico-marxista. Não foi o único, nem de longe, pois que todos se recordam,
ainda, com facilidade, para ficar em dois exemplos, da fenomenologia e do exis-
tencialismo; mas foi o mais tenaz e intolerante e, por isso mesmo, o mais útil dentre
todos os movimentos contra-estruturalistas.
A despeito de muitos estruturalistas terem negado sempre qualquer oposição
doutrinária entre os conceitos de história e de estrutura, a verdade é que tal oposição
foi introduzida pelos marxistas e, portanto, existiu, estando sempre orientando,
bem ou mal, claramente ou não, os debates que os historicistas travaram com os
estruturalistas. Apesar disso, é inegável que essa oposição nunca existiu na mente
dos adeptos elo estruturalismo - a começar por Saussure, que propugnou pela
distinção entre a perspectiva sincrónica e a diacrónica, sem nunca ver nisso mais
do que o reconhecimento de uma questão de método, uma opção epistêmica,
imposta pelo dihtat metodológico, de ter de escolher o ponto de vista que vai presidir
à descrição, dihtat esse de que o descritor não tem como se esquivar, já que um
objeto não nos é dado nunca de qualquerjeito, mas, ao contrário, é dado sempre
observado a partir de determinado ponto de vista, que, como Saussure foi o primeiro
a .bzer notar, 'é quem verdadeiramente constrói o objeto a descrever.
Daí ter-se referido ele sempre textualmente quer à perspectiva sincrónica,
quer à perspectiva diacrónica, pelo terni.o jJersjJectiva, "perspectiva" significando a
relaçâo cognitiva instituída entre o lugar do sujeito observador e o lugar do objeto observado.
Mais do que isso mesmo, contudo, o que afirma na doutrina saussuriana a inexis-
tência de qualquer oposição essencial entre as duas abordagens é o fato de que,
no seu entendimento, ambos os ajJjJmaches se definirem como ângulos de ataque'
igualmente estruturais, ficando um ou outro justificado apenas pelo propósito que
anima, em cada caso, o interesse local do descritor. O propósito de estudar as cova-
riações que se alternam num sistema entre dois de seus elementos ali coexistentes,
no interior de um mesmo estado de língua, portanto, levaria à abordagem na pers-
pectiva sincrónica, tão naturalmente como o propósito de estudar a transformação
observada em um elemento (ou na relação entre dois elementos vinculados por
dupla implicação) , em dois estados de língua sucessivos, induziria o Sl~ eito observador
a adotar a perspectiva diacrónica. Cem anos àntes de Ayer, Saussure reconhecia,
assim, que
· 176 • A Identidade e a Diferença
não tem sentido falar de coisas em si mesmas, sem considerar sua relação com nossa maneira ele
concebê-las (Ayer, 1975, p. 24).
Nos tempos que correm, a crítica acha de bom tom acusar a incerteza elo que se chama a
ciência Fonnali'sta ela Literatura. Parece que essa escola não compreende os vínculos da arte e da
vida social, parece que ela preconiza a arte pela arte e marcha nas pegadas ela estética kantiana. Os
críticos que fazem tais objeções são, em seu radicalismo, tão inconseqüentes e precipitados que
esquecem a existência ela terceira dimensão, e vêem tudo no mesmo plano. Nem Tinianov, nem
Muk,üovski, nem Chklovski, nem eu pregamos que a arte se basta a si mesma; ao contrário, mos-
tramos que arte é uma parte do eelifício social, uma componente em correlação com as outras, uma
componente vari,'tvel, pois a esfera da arte e seu vínculo com os outros setores ela estrnturasocial
se moelificam sem cessar, dialeticamente. O que enfatizamos é não um separatismo da arte, mas a
autonomia da função estética (1971, p. 307).
ao contrário da imagem que a pr<'ítica dos modelos de análise estrutural '.'eio fazer crer a seguir,
descobre-se [nos textos formalistas] uma concepção poderosamente historicizacla. Para ficar só nos
textos de Jakobsoll, é fácil encontrar, enunciados Yigorosamente em alguns artigos que datam do
princípio do século, Yárias modulações elo yínculo do texto poético com suas determinações históricas
e sociais. Em 1919, num artigo intitulado "A Nova Poética Russa" adianta-se a idéia de que "a teoria
da linguagem poética só poderá se desem'olver se tratarmos a poesia como fato social, se criarmos
Ullla espécie de dialetologia poética". Jakobson consagra assim o écla/elllen/ de um gênero poético
monolítico para sugerir o estudo, para uma dada época, dos fenõmenos de predomínio exercidos por
certos autores, do jogo de empréstimos e imitações e do de dissidências (Pelletier, 1977, p. 61).
MAX WEBER
A literatura das boas intenções perde, então, a condição de álibi das culpas
e adquire um novo sentido histórico na medida em que o que as pessoas passam
a procurar compreender na obra literária não é mais, simplesmente, o que é que
ela diz, mas sim, e antes, o que é que ela faz com as pessoas com isso que ela diz.
Para poder responder a tal desiderato, os formalistas surgem lembrando
que, do ponto de vista do seu ser, a literatura é antes de tudo um tipo de mensagem
e como tal terá de ser estudada como precondição para que possamos responder
o que ali se pergunta. Provém daí o fascínio que os formalistas sentiram pela pro-
priedade da construtibilidade do texto literário. Já do ponto de vista do seu fazer,
a literatura se revelará como um agente manipulador e transformador da cons-
ciência de classe, na medida em que ela pode patentear os conflitos, que as relações
sociais tiveram em mascarar, entre o capital e o trabalho, entre uma ideologia que
dá a ver seu lado positivo e uma ideologia que esconde ao mesmo tempo, nesse
gesto, seu lado negativo.
A revelação desse artifício implica a automática desmistificação do mito
humanista da arte, exibido como um penhor da sua boa intenção humanitária,
mas que funciona, na verdade, como a válvula de segurança que deixa escapar a
pressão interiorizada no sentido de culpa das camadas libcrais capitalistas. Que a
literatura perca, em decorrência disso, o antigo prestígio e entre em crise, que
ela, como todo fenômeno ligado às tomadas de autoconsciência, se torne mais do
que nunca critica e, passando a falar de si mesma, metalingüística e autocrítica,
tudo isso funciona apenas como o corolário inevitável, na marcha dos tempos,
das conclusões que tais desmistificações impunham ao teórico da literatura cons-
ciente. O fato é que esse desvcndamento lhe permitia recuperar a noção do fazer
próprio de séu ofício, a noção do exercício todo penoso, que os novos tempos lhe
reservam, de erguer-se, agora, em primeiríssimo lugar, contra as funções conso-
ladoras outrora atribuídas à crítica e à teoria literária tradicionais, de "maquilar
o defunto"; cai por terra, agora, um dos pilares de sustentação do microuniverso
ideológico que racionalizava e justificava o mito do privilégio cultural das elites e
o prestígio dos objetos simbólicos acessíveis só aos espaços ocupados pela bur-
guesia triunfante. Como Adorno vai acentuar mais tarde, "o favor que o estrutü-
ralismo em literatura recebeu está ligado ao desaparecimento da função que a
burguesia assegurava ao objeto literário (apud Lima, 1983,1'01. II, p. 227).
Nessa linha de entendimento, o surgimento dos diversos estruturalismos,
que se anunciam já em embrião no primeiro e segundo decênio da centúria, como
o formalismo russo e, logo, como o estruturalismo tcheco, se explica como o
resultado de uma mudança de nível de consciência, uma ruptura epistemológica,
uma transformação da ideologia.
N esse contexto histórico-cultural de ernergência do estruturalismo, emerge,
também, uma propriedade exaltante da atividade humana, a que habitualmente
Formaçâo do Pensamento Científico no Século XX • 179
não prestamos muita atenção, a não ser para lastimá-la, quando deveríamos, ao
contrário, louvá-la: é a impelfeição, estigma característico de toda prática do homem,
tanto da especulativa, das ciências ditas, pretensiosamente, "exatas", baseadas no
exercício do juízo analítico da razão, quanto da prática mítica, das ciências ditas,
em termos discutíveis, "sociais e humanas". Mas é exatamente por ser a imper-
feição uma marca de origem do trabalho do homem que não há, nunca houve,
nem poderá h;wer, de fato, ciência alguma "exata"; se houvesse alguma - do que
o bom Deus queira nos linar - , ela saberia tudo o que há para saber e tornaria
inúteis todas as demais, visto que necessariamente as compreenderia; em conse-
qüência, o tipo de ser, bom ou mau, que o homem foi até então estaria pronto
para ser atirado à lata de lixo da história.
Mesmo a matemática. Acostumamo-nos a pensar que a matemática oferece
uma só solução para cada problema colocado e que, portanto, ela constitui uma
ciência exata. Mas essa é uma concepção ideal da matemática, da matemática que
gostaríamos que existisse mas que é inexistente na realidade; no fundo, é um pre-
conceito contra tudo o que não seja "matematizável"; um preconceito que cor-
responde à opinião vulgar, ao bom senso comum do povo, que, como todo
enunciado do senso comum, é também simplório.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento de qualquer disciplina depende do
atual estágio de conhecimento que ela alcançou. É esse estado atual que coloca
para ela seu próprio horizonte de probabilidades, no interior do qual tais ou quais
soluções são possíveis e não outras: sem a anterioridade da teoria do cálculo de
Lagrange, Einstein nunca teria podido elaborar a teoria da relatividade.
Por outro lado, como demonstra a passagem da geometria euclidiana para
a não-euclidiana, por exemplo, muito depende dos postulados de partida. Um
conjunto de postulados se coerentiza à base de um conjunto de pontos de vista
interdefiníveis, cl~a mobilização torna possível dado equacionamento dos pro-
blemas. É comum que as pessoas pensem que, uma vez bem equacionado um
problema, o arranjo de relações daí resultante equacione, também, pelo menos
metade da sua futura solução; um problema bem-equacionado é um problema
meio-resolvido,julgam elas; mas Bachelard lembra que é quando três quartos do
problema já estão resolvidos que ele pode ser bem-equacionado.
Outro preconceito a respeito da posição especial da matemática e da con-
sideração que ela desfruta no seio das ciências supõe que ela seja lógica e racional.
Mas isso tampouco é verdadeiro. De fato, como qualquer outra ciência, a mate- .
mática é uma linguagem que se vê obrigada a construir a metalinguagem que
utiliza para falar do seu objeto e, ao fazê-lo, não há nunca muita lógica nisso -
assim, o símbolo da raiz de menos um, por exemplo, é completamente irracional e
não tem qualquer sentido asseverar que o círcülo tem 360 graus, depois que nós
o dividimos em 360 graus.
180 • A Identidade e a Dijérença
R. BARTHES
O que liga esses nomes todos é sua comum adesão ã tese muito geral de que
a literatura é um fato lingüístico, em primeiro lugar, uma modalidade de discurso,
e como tal deve ser tratada. E, na verdade, a aplicação dos modelos lingüísticos à
teoria, à análise e à in terpretação da obra literáriafoi tão extensa, a partir dos fins
do século XIX, que nenhuma das grandes escolas que se ocupam da literatura a
partir de então até os anos 60 do século XX deixa de estar inspirada, de um ou
outro modo, pela lingüística, desde as tendências que vão orientar-se de prefe-
rência pela metodologia mais propriamente filológica ou estilística (como a esti-
lística suíço-alemã de L. Spitzer, 1V1. Hatzfeld, K. Vossler, E .. Auerbach, ou a esti-
o Estruturalismo Fonnalista Russo: O Círculo Lingüístico de Nloscou e a OPOIAZ • 183
lística espanhola, de Dámaso Alonso, Amado Alonso, Carlos Bousollo), até as que
vão buscar subsídios nos modelos mais propriamente lingüísticos, da lingüística
saussuriana ou russa - como os formalistas russos, os formalistas tchecos, os estru-
turalistas e semiólogos franceses.
É certo que a semiolingüística de Genebra exerceu, desde o início, influxos
mais poderosos do que os que lhe foram sempre reconhecidos e que seu peso no
processo não pode ser subestimado; isso não obstante, é também verdade que a
Rússia czarista possuía de longa data uma preciosa tradição no estudo dos sistemas
modelizan tes primários (o das línguas naturais) e secundários (o dos demais
sistemas de signos), não-verbais, trabalhos que incidiam costumeiramente sobre
a área do folclore, dos relatos, das canções populares, das obras literárias, plásticas
e visuais. E é na deriva dessa tradição autóctone que se situam mais precisamente,
para ficar em dois nomes cimeiros, a contribuição de Chklovski (que escreveu
sobre a literatura de inspiração popular e fescenina de Boccaccio, da Panchatantm
e das JVIile UlllaNoites, e, ao mesmo tempo, sobre a arte literária culta de um Sterne,
um Cervantes e um Tolstói), bem como a de Propp (que timbrou em se consideral~
do início ao fim de sua vida, basicamente um folclorista), quanto a de Bakhtin,
dedicado, ele também, às investigações sobre a cultura do riso popular na Idade
Média e de suas manifestações na arte da palavra - no romance - e nas festas
ritualizadas do povo, como o Carnaval.
O desenvolvimento dessa venerável tradição foi, contudo, brutalmente sec-
cionado pelas medidas "moralizantes" de enquadramento partidário-ideológico
adotado pelo Estado soviético no final dos anos 30. A contar daí, da violenta mzzia
promovida pela repressão stalinista, por cerca de trinta anos, as brilhantes con-
quistas do pensamento russo do início do século deixam-se, aos poucos, sufocar
pelo obscurantismo. Centenas de artistas, e de investigadores, mas principalmente
os que trabalham com a arte da palavra, lingüistas, filólogos, escritores, pro-
fessores, Cl~as idéias não se alinhavam com a ortodoxia do momento, foram
presos, expulsos de seus empregos, banidos de suas casas, removidos para regiões
ermas, conduzidas ao degredo ou à prisão - e não é possível esquecer o caso de
Evguéni Dmitrievitch Polivanov (1891-1938), um dos maiores poliglotas do mundo
(dizem que conhecia mais de trinta línguas, mas não nos deixou senão alguns
artigos nos Travaux du Cercle Linguistique de Prague) , que foi execu tado pela polícia
de Stalin.
Só no decênio de 60, superada a era obscurantista, se reata o fio partido
da tradição dos estudos estruturais formalistas. Reeditam-se, então, as obras mais
importantes de 20 e 30, de Propp, de Bakhtin, de Eikhenbaum, de Tinianov, de
Tomachevski, além de inéditos daqueles anos, como a importante Psicologia da
Arte, de Vigotski, e outras dezenas de dispersos inovadores que tinham sido
relegados para folhas inexpressivas e que por felicidade não se perderam, como
184 • A Identidade e a Diferença
CIIKLOVSKI
Logo veremos que, no que concerne ao requisito (b), o formalismo dos anos
seguintes iria adotar uma postura menos rígida, mais conciliatória; em especial,
a reivindicação do princípio dajúnçâo autónoma (ou comparativa) obedeceu à neces-
sidade de nuançar mais e melhor o livre jogo de dependências e citações de uma
obra em relação a outras.
Como quer que seja, sem nunca ter chegado a constituir um grupo intei-
ramente coerente, os principais expoentes do formalismo se entendiam na defesa
solidária de uns quantos princípios quase-doutrinários básicos, dentre os quais
destacamos os mais importantes.
Talvez o mais elevado desses princípios tivesse sido, em todo caso, aquele
que serviu de emblema para a imediata e, às vezes, apressada, identificação do
membro do grupo, a saber, a premissa que afirmava a necessidade de se colocar a
obra, enquanto objeto semiolingüístico autonomamente construído (e não enquanto
objeto histórico, sociológico, biográfico etc., culturológico, enfim), no centro das
jJreocujJações dó crítico e do teórico da literatura, erigindo-a como o único objeto de trabalho
deles, para lá dos interesses outros que pudessem vir a relacionar-se de fora dela
com ela, únicos fatores realmente focalizados pelos estudos culturológicos. Por
isso, precisamente, é que os primeiros formalistas, mas também alguns dos últimos,
como Pro pp, cuja obra máxima é de 1928, consideravam-se fautores de uma mor-
fologia literária, com preendendo pelo termo "morfologia" o estudo das conexões
funcionaisdas partes em uma totalidade orgânica, bem nos termos de um modelo -
botânico defendido, desde 1800, por Goethe, e, antes dele, por Geoffroy Saint-
Hilaire: qual é o princípio unificador dos processos subjacentes à organização
esquemática especificadora dos organismos - à Ulpflanze, nas palavras de Goethe
- , graças aos quais podemos efetuar a classificação deles em espécies diferentes?
o objelo ela ciência literária não é a literatura, mas, sim, a literarieelaele, ou seja, aquilo que
faz ele uma obra elaela uma obra literária.
A existência ele um fato literário elepenele ele sua qualielaele diferencial (ou seja, ela sua cor-
relação com a série literária ou com uma série extraliterária) ou, por outras palavras, ela suafll1lçr7o
(Tinianov, ajJlld Toelorov, 1965).
Não admira que o mesmo Tinianov, um dos mais destacados vultos do for-
malismo inicial, tivesse tido a ousadia de formular, em 1928,juntamente com R.
Jakobson, um certo número de teses programáticas focalizando o problema da
relação entre as séries de obras literárias e extraliterárias (históricas, políticas,
econâmicas), pondo de parte o determinismo da infra-estrutura econâmica,
elevado a dogma nos altares da ortodoxia marxista. Estava já então claro para
eles que todo escritor submete seus discursos'a um trabalho de seleção e de trans-
formação estilísticas intratextualmente motivadas, visando a dar a tais elementos
---
o Estrut uralismo Formalista Russo: O Círculo Lillgiiístico de i\loscou e a OPOJAZ • 193
Afonna da obra literária de"e ser sentida como forma dinâmica. Esse dinamismo se manifesta
o Luor promo"ido [ao primeiro plano] deforma aqueles que lhe estão subordinados.
Pode-se dizer, então, que sempre percebemos a forma no curso da evolução da
relação entre o fator subordinante e construtivo e os fatores subordinados. Não
estalnos obrigados a introduzir a dimensão temporal no conceito de evolução [con-
fronte-se com a posiç,'ío de Saussure, pronunciando-se a favor da adoção de um
critério de evolução interna, endógerada: "no fundo, a incapacidade de manter
uma identidade certa não de"e ser levada à conta dos efeitos do TemjJo [ ... ] mas está
depositado de antemão na própria constituição do ser" - vide capítulo 4 desta obra]
(idem, ibidem).
Cada fato da linguagem poética contemporânea é apreendido por nós em confrontação ine-
vitável com três momentos- a tradição poética existente (que veio do passado), a linguagem prática
do presente, e a tendência poética subjacente ao respecti"o enunciado (i. e., o embrião, no presente,
dos sucessivos desdobramentos do discurso no futuro) (ajJlld Kloepfer, 1984, p. 55).
194 • A Identidade e a Diferença
Assim como a árvore do futuro está contida de antemão, ainda que na forma
de um programa - uma Ulpflanze-, na semente que germina hoje, o embrião dos
textos de amanhã contido nos textos do presente. Assim, pôde dizer Tinianov que
A concepção formalista de forma não pode, pois, ser confundida com a velha
divisão que a lingüística expressivo-intuitiva exprimia na antinomia forma versus
conteúdo,já que os formalistas ignoram a existência de qualquer forma a jJriori,
que pudesse subsistir como um recipiente ou um molde vazio em que se vertesse
a posteriori o conteúdo. Nem se trata, a rigor, aqui, de uma postura teórica exclusiva
das metodologias estruturalistas. Pelos mesmos anos, um sábio romeno insuspeito
de contaminaçôes formalistas, Michel Dragomirescu, considerando o discurso
literário um fenômeno psicofísico, advertia:
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingiiistico de lvIoscou e a OPOIAZ • 195
Esses fenômenos não podem ser encarados como físicos por causa do fundo, nem como psí-
quicos por causa da forma. Cada elemento físico só pode ser compreendido em sua essência com
o sentido psíquico que ele toma emprestado de sua relação com os outros elementos e com o todo:
cada elemento psíquico, por sua vez, não pode ser isolado do elemento material pelo qual ele se
exprime. Tentando separar o fundo da forma, falseiam-se os sentidos das obras-primas que são antes
do mais unitárias. O fundo e a forma da obra-prima são absolutamente inseparáveis [... ] e o fenômeno
que eles constituem por sua síntese absoluta, que é a harmonia, não é nem físico nem psíquico, mas,
antes, um fenômeno psicofísico (1928, vaI. I, p. 46).
nenhuma frase da obra literária pode ser, em si, expressão direta dos sentimentos pessoais do autor,
ele é sempre construção ejogo (ajJudTodora\', 1969, p. 32).
lin(Yuao'em
b b
l)oetlca ' quer dizer, literária. No ver da OPOIAZ, o discurso é o
resultado de uma construção conscien te dos meios de expressão: "A obra literária
é asoma total dos procedimentos artísticos que nela se aplicam", é um enunciado
de alcance geral, dele; e Chklovski reitera: "A obra (literária) é inteiramente
construída".
Firmando-se no postulado da construção, o teórico mais coerente da nar-
rativa, e por vezes também o mais exaltado de todo o movimento, V. Chklovski,
não raro rejeita tanto as transcendências inefáveis da crítica impressionista, sim-
bolista, quanto as teses marxistas que se aferravam à decisão partidária de só enxergar
na obra um reflexo ideológico, supra-estrutural, das condições materiais da exis-
tência social. Para o autor de Sobre a Teoria da Prosa, portanto, o que a arte faz é nos
proporcionar a sensação das coisas "como elas são percebidas, e não como são
conhecidas", dirá ele em um artigo de 1917 (ajmel lvlerquior, 1974, p. 221). Não
estamos distantes, aqui, nesse remoto ensaio de 1917, da versão ultra-romântica da
função estética, na sua suposta qualidade de "desinteressada contemplação do pro-
cedimento técnico em si mesmo". Por esse caminho, apregoando a autonomia da
arte em face das motivações psicossociais que atuaram em seu autor, para pôr no
lugar delas o desvio das percepções automatizadas como o supremo procedimento
artístico, o pensamento de Chklovski vai fatalmente desembocar na reivindicação
do avatar romântico da arte pela arte, cujo caráter alienado e anti-historicista será
ressaltado, em 1924, no artigo "Literatura e Evolução ", que Trótski redigirá expres-
samente contra os "desvios" (ideológicos) formalistas.
Não que os formalistas negassem qualquer relação do texto com o seu espaço
p.y;tr?c\ey.. t\.wLrlP.~p.!-"1J?.tptn('i<.l.:Irulcedell(LoJdevo qarticular à funcionalidade, vale
dizer, ao princípio da utilidade apresentado porum elemento ou um procedimento
construtivo no_ interior de um sistema (uma "obra", na sua terminologia), eles se
valiam das relações extratextuais mais especificamente para o fim de caracterizar
o discurso utilitário, que supunham caracterizar-se pelo que Jakobson chamará,
depois, de função referencial, marcando~a algo ambiguamente, como aquela em
que o enunciado se dirige predominantemente para o contexto (a ambigüidade
decorre, aqui, do fato de muitos confundirem, então - e o próprioJakobsonnào
foi imune a isso - , os conceitos distintos de contexto e de situaçâo de fala).
Talvez não seja inútil abrirmos parênteses aqui para recordar que o que os
formalistas preferiam chamar de Junçâo, Saussure e os genebrinos tinhamjá batizado
de lJalor- o exemplo do jogo de xadrez, no Cours; assim, como faz notar Borillo,
"o termo funçâo [... ] vem provavelmente de que a análise era aplicada na origem
o r-struturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingúístico de 111oscou e a OPOIAZ • 197
ao russo, onde a palavra traz consigo sua função na forma de desinência; nós pre-
ferimos o termo "valor" (1969, p. 106, nota 6).
Nas Teses de 29, de Jakobson, Trubetzkoi e Karcevski (os dois primeiros
estiveram originalmente vinculados ao formalismo russo, e o último ao estrutu-
ralismo saussuriano da Escola de Genebra), essa especificação funcional vem
sublinhada: "Em seu papel social, é preciso distinguir a linguagem segundo a
relação existente entre ela e a realidade extralingüística. Aquela desempenha ou
bem uma função de comunicação, quer dizer dirigida para o significado [... ] ou
bem uma função poética, dirigida para o próprio signo".
Se, assim, os sons da língua são utilizados com um valor instrumental do
poema, no qual vêm a adquirir uma utilidade sui generis, subordinada ao todo, é
do in terrelacionamento da totalidade dos elemen tos no poema que resulta o verso
como a forma da construção mais perfeita.
Também os sociólogos estruturo-funcionalistas da década de 50 anotariam
que, conforme ensinara Saussure, "toda função dentro de um sistema é uma
variável relativamente a qualquer outra função do sistema, de modo que qualquer
mudança em uma função repercute na estabilidade geral do sistema. É o que se
denomina jJrincípio da reciprocidade funcional" (Badía, 1968, p. 112).
O poético passa a residir, então, não mais naquilo que se diz, no conteúdo
da mensagem, como ocorre no discurso utilitário, mas, antes, no modo específico
de dizê-lo. As repetições de sons idênticos ou análogos em um poema, por exemplo,
aportados na forma dos procedimentos da rima, da assonância, da aliteração etc.,
não têm outra finalidade que a de organizar essa mensagem como uma construção
unificada pelo princípio da melhor OIganizaçâo: "os sons e as consonâncias não são
um puro suplemento eufõnico, mas o resultado de ym planejamento poético
autõnomo [... ]. A rima, a aliteração etc. são apenas uma manifestação aparente
[... ] de leis eufõnicas fundamentais", diz Brik ("Les Répétitions des sons". Em
Recueils SUl' la théorie de la langue jJoétique, fase 2, Petrogrado, 1917).
Nesse caso, a repetição dos sons desempenha, por si só, um papel estético.
Tais idéias, comuns a todos os estruturalismos Uá as vimos na primeira
parte desta obra, quando da explanação da teoria anagramática formulada por
Saussure, e vemo-las agora no formalismo russo), serão mais amplamente dis-
cutidas no formalismo tcheco, notadamente na obra deJan Mukafovski, sendo
notória a sua importância para a melhor conceituação da função estética (ou
função poética).
Brik, um dos melhores teóricos e críticos de poesia entre os formalistas,
afirmará, contrariando o sentimen to então predominan te fora das cidadelas estru-
tm-alistas, que a construção do verso seria governada pelo ritmo. No seu sentir, o
verso nasceria do ritmo inerente a uma particular comoção íntima do poeta, que
se exprime na "linha melódica" característica do ritmo. Construindo-se sobre este,
198 • A Identidade e a Diferença
na arte, avaliamos cada componente à luz da estrutura da obra em questão, e o ponto de referência
estará determinado cm cada caso particular pela função que dito componente desempenhe na
estrutura (Muk<üovski, 1970, p. 110, nota 29).
É certo que nem Mukarovski, que é um formalista tcheco, nem a data desse
pronunciamento (que é de 1932) se inscrevem no movimento que ora estudamos,
do formalismo russo dos 20; não menos certo é, porém, que tanto Muk<:üovski
quanto o decênio de 30 são herdeiros diretos, continuadores e intérpretes auto-
rizados do que se passara poucos anos antes na União Soviética.
o objetivo da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;
o procedimento da arte é a singularização dos objetos, o que con~iste em dificultar [a percepção]
de forma a aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção na arte é um fim
em si mesmo e deve ser prolongado (Chklovski, ajJlldTodorov, 1965, p. 83).
utilizadas pela "linguagem figurada" (já que os tropos desse tipo de linguagem,
metáfora, metonímia, sinédoque, ironia etc., são, por igual, empregados tanto na
poesia quanto na prosa, na linguagem poética como na utilitária); referem-se,
mais, aos modos de utilização contextuaI desses metaplasmos, procurando isolar
sua função local.
Caracteristicamente, o que todo desvio faz é provocar um estranhamento,
e a primeira função dele é, de modo também característico, a desautomatização
da percepção, sem a qual não existe arte digna desse nome:
A arte é feita para dar a sensação de coisa enquanto coisa que está sendo vista e não enquanto
coisa reconhecida; o procedimento da arte é o procedimento da "representação estranha"; a arte
é o meio de viver a coisa no seu processo de fazer-se; em arte, o que foi feito não tem importância
(Chklovski, 1973, p. 16).
Brecht visitou a União Soviética em 1935 e lá ouviu falar pela primeira vez
nisso. São esclarecedoras a esse respeito as notas que ele deixou para a montagem,
em Copenhague, da peça Cabeças Redondas; Cabeças Pontudas, sátira encenada em
1936 contra o agigantamento do nazismo. Nessas notas surge o termo VeTfremdung,
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingiiistico de i\1oscou e a OPOIAZ • 203
Como quer que seja, qualquer que possa ser a acepção particularmente
visada pelo anis ta - (a) quebra de expectativa, (b) subordinação do todo à
dominan te construtora, (c) evidenciação de algo habi tualmen te despercebido,
ou (d) ou distanciamento "debreativo", o contrário dajunção embreativa- duas
características se mantêm intocadas ao longo da tradição de utilização do desvio
pelo autor do discurso artístico: a primeira é concernente à infração a uma
norma qualquer, mediante a qual (inüação) o artista visa a substituir uma lógica
comprometida com os esquemas de visão impostos, todos feitos (desde Valéry,
que definia o poeta como "um agente de desvios", até Banhes, para quem "a
tarefa revolucionária da escrita não é repetir, mas transgredir" [Banhes, 1982,
p. 56]); e a segunda característica invariante do desvio envolve a definição com-
ponencial que propusemos para a descrição desse procedimento (Lopes, 1987,
pp. 16 e ss.) enquanto princípio de composição que reúne uma decepção com
uma surpresa:
desvio +
CASAIS MONTEIRO
eles que entre os dois terrenos, o da série dos Ditos literários e os das demais séries
de fatos sociais, não-literários, existissem vínculos e conexões, mas lhes importava
principalmente assinalar que as alterações sofridas pelas formas artísticas derivam,
antes do mais, de mudanças verificadas nos procedimentos construtivos e/ou nas
funções que tais procedimentos vinham desempenhando, dentro das obras, no
decorrer do tempo.
Amainadas as paixões dos extremismos que se exprimem nos movimentos
de ataque e defesa próprios a todo e qualquer novo estilo de arte, é fácil perceber,
hoje, conforme deixamos acentuado no início desta segunda parte, que nenhum
estruturalismo, inclusive o formalista, foi, de fato, refratário à história, nem, muito
menos, francamente anti-historicista, como proclamavam, à época, seus adver-
sários. O que Jakobson escreveu a esse respeito é bastante significativo:
No interior de cada classe hierárquica, as formas e as funções constituem sistemas [... ]. Cada
sistema reflete um aspecto homogêneo da realidade, chamado por Tinianov "série". Assim, numa
época encolllramos, ao lado da série literária, uma série ulllsical, teatral etc., mas também uma série
de fatos económicos, políticos e outros. Ainda uma \'ez, a ordem lógica das relações desempenha
aqui um papel primordial: é apenas por seu conhecimento que chegaremos a abarcar a totalidade
dos fatos. Semelhante ponto de partida permite integrar a dimensão histórica no estndo estrutural
da literatura (ou de qualquer outra atividade social) (1965'1, pp. 20-21).
Se admitirmos que a evolução é uma nmdança de relações entre os termos do sistema, quer
dizer, llIna alteração de funções e de elementos formais, a evolução se desvenda como uma "substituição
de sistemas". [... ] Fenõmenos que parecem totalmente diferentes e que pertencem a sistemas funcionais
diferentes podem ser anftlog·os na sua função e vice-versa (Tinianov, ajJlldTodorov, 1965, p. 136).
B.-\KI-ITIN
Cada época literária contém n<10 uma, mas várias escolas literárias. Elas existem simulta-
neamente na literatura e uma dentre elas toma a dianteira e é canonizada. As outras existem como
não-canônicas [... ] (ajJllc/ Toelorov, 1965, p. 69).
Ela é relegada para um lugar ele espera, mas poele ressurgir uma outra vez [... ]. As coisas se
complicam [... ] pois a nova hegemonia não consiste em mero restabelecimento ela forma antiga,
visto que outras escolas mais novas e traços herdados de sua preelecessora vêm enriquecê-la, ocupando
um papel auxiliar (idelll, ibidelll).
o discurso encontra o discurso elo outro em toelos os caminhos que conduzem ao seu objeto
e ele não poele deixar ele entrar em interação viva e intensa com ele (1981, p. 98).
Cada nova obra que vem à luz, acreditavam eles, tem a pretensão, declarada
ou não, de começar de novo a história da literatura, fundando-a ex ovo. A obra do
presente inclui, portanto, uma intenção fundadora, que na ambição mesma de
se ver publicada confessa sua veleidade de substituir todas as obr.as análogas, ainda
208 • A Identidade e a Diferença
em vigência, do passado. Estas, por sua vez, que foram, em razão mesmo do peso
da sua autoridade, erigidas em modelo, reproduzidas sem cessar até a exaustão,
teriam, assim banalizadas, acabado por perder sua eficácia original, passando à
condição de lugar-comum, depósito de clichês e estereótipos; assim sendo, toda
obra de arte conteria o germe da sua própria negação.
Não é difícil ver a conexão disso tudo com a teoria do estranhamento, que
vinha robustecer tais convicções. Incessantemente reproduzida, a obra-prima se
esvaziaria aos poucos do seu poder de causar um peculiar estranhamento, que
era o garante da sua eficácia artística; era o tempo, então, de ser substituída por
uma nova obra, um nov~ estilo.
Aqui também tem aplicação uma lei geral: "[Oo.] toda obra artística se cria como paralela
e oposta a um modelo anterior. Nenhuma forma nova surge para exprimir um novo
conteúdo [alusão a um dos postulados defendidos por Vesselovski e Fortunatov], surge
para substituir uma forma antiga que perdeu seu caráter de forma artística (ajmcl
Eickenbal1l11, 1970, p. 35).
A função autônoma, quer dizer, a correlação de um elemento com uma série de ele-
mentos semelhantes que pertencem a outras séries, é uma condição necessária à função
sínoma, à função construtiva desse elemento.
Assim,
b. A função sínoma se define, nesse fragmento, como função construtiva
da totalidade da obra, vale dizel~ como a capacidade que dado elemen to
ou segmento de um discurso tem de entrar em relação com outro
elemento ou segmento correlato, dentro do mesmo discurso.
o primeiro passo para a sistematização disso tudo fora dado por Tinianov,
ao conceber a júnçâo como o pajJel construtivo que determinado item ou elemento da·
obra desempenhava no conjunto dela:
Chamo jl/nção construtiva de um elemento da obra literária como sistema, sua possibilidade
de entrar em correlação com os outros elementos do mesmo sistema e, em conseqüência, com o
sistema inteiro.
210 • A Identidade e a Diferença
[... ] essa função é uma noção complexa. O elemento entra ao mesmo tempo em relação
com a série dos elementos semelhantes que pertencem a outras obras-sistemas, ou a outras séries
e, por outro lado, com os demais elementos do mesmo sistema (função autônoma e função sínoma).
Assim, o léxico de uma obra entra simultaneamente em correlação [... ] com o léxico literário
e o léxico em seu conjunto, de outra parte com outros elementos dessa obra (ajJlldJakobson et al.,
1970, p. 32).
Tinianov introduz uma distinção importante na noção de função: esta pode definir-se
seja relativamente às outras funções semelhantes que poderiam substituí-la (função paradig-
mática), seja relativamente ás funções vizinhas, com as quais ela entra em combinação (função
sintagmática) (Todorov, 1965, p. 20).
O sincronismo puro demonstra ser hoje (sic) uma ilusão: cada sistema sincrônico contém o seu
passado e o seu futuro que são os elementos estruturais comparáveis do sistema (A. o arcaismo como
fato de estilo; o conjunto lingüístico e literário que se percebe como um estilo morto, passado de moda;
13. as tendências inovadoras na língua e na literatura percebidas como uma inovação do sistema. [... ]
A noção de sistema sincrônico literário não coincide com a noção ingénua de época, já que
ele se constitui não só de obras de arte próximas no tempo, mas também de obras carreadas para
o sistema e que provém de literaturas estrangeiras ou de épocas anteriores (1965, p. 139).
que integram a competência semiótica das pessoas); e aJunçâo sínoma remete à intratextua-
lidade sincrônica (em nossos termos pessoais, fundada no contexto posto, que é da ordem da
pelformance enunciativa - do enunciador e do enunciatário - da mensagem).
Para deiinir a função autônoma in tertextual no terreno da poesia, basta atentar
para o fato de que cada poema é gerado ou pré-escrito de algum modo por todos os
outros poemas de seu mesmo gênero, que o precederam no tempo, servindo agora
de seu modelo formal: um soneto de hoje é feito a partir do molde formal de outro
soneto-tipo, de duzentos ou trezentos anos atrás, que tem catorze versos divididos
em dois quartetos e dois tercetos, com o esquema de rimas abab + abab + ale + dcd
(ou abba+ abba+ cdd+ ceeetc.), do mesmo metro (decassílabo, do decassílabo etc.),
e assim por diante - tudo o que se estoca, na competência das pessoas afeiçoadas ã
poesia como um contexto pressuposto para fazer sonetos a partir de esquema de um
dado discurso-tipo (soneto-tipo, no caso), Cl~a reprodução permitirá a todos nós,
leitores, reconhecer determinado discurso, com tais e quais características, como um
discurso-ocorrencial daquela mesma classe (um soneto-ocorrencial, no caso). É,
assim, a júnçâo autônoma que nos permite comparar cada discurso-ocorrencial, da ordem da
performance, com n discursos-tipo, da ordem da competência, tomando o primeiro como rea-
lização local, variável, do segundo, esquema invariante.
Se postularmos, agora, que existe, em cada ato de com posição de um discurso,
uma diacronia curta (cremos que a expressão é de J. Starobinski), de breve duração,
é possível afirmar que o mesmo princípio de reescrita se mantém; foi isso exatamente
que levou Saussure a investigar anos a fio, na sua teoria anagramática do poema, a
recorrência de uma palavra-tema, o hipograma, que funcionando como uma espécie
de sinopse reapareceria no todo ou em parte no espaço descontínuo do anagrama
e do paragrama. Não quer isso dizer, de modo algum, que os formalistas tivessem
sido diretamente influenciados por Saussure, mas é inegável que, nesse particulal~
com os temas mínimos ou motivos, que são, por definição, indecomponíveis, já que
cada motivo constitui, jJraticamente, o tema de cada enunciado.
Desse modo, o tema geral da integração do sujeito no espaço social como
espaço próprio é divisível, no Lazarillo, nos temas parciais da /integração ao modo
do parecer/ + /não-integração ao modo do ser/ etc.; a /não-integração ao modo
do ser/subdivide-se, por sua vez, enquanto tema parcial, outras vezes mais até
produzir o tema mínimo, que se corporifica no motivo do "vilão aceito" (inverso ao
motivo do "herói réjJrobo", de tantos mitos e contos infantis): no final da história,
Lázaro está casado com uma senhora que é criada e amante de um abastado arci-
preste: ao modo do ser, ela é aman te do patrão; mas, ao modo do parecer, é apenas
criada dele. Con-.o Lázaro viu, porém, por toda a parte, que a sociedade é um
espaço de imposturas, que ninguém vale grande coisa ao modo do ser, mas que
todos simulam ser muito virtuosos, ao modo do parecer, e que lhe convém, se
quiser viver segura e confortavelmente o resto de seus dias, continuar a gozar da
proteção e das comodidades que lhe são proporcionadas pelo "emprego" da esposa
junto ao arcipreste, ele finge não saber de nada; por isso jura, cinicamente, numa
frase de duplo sentido, que "sua mulher é tão boa quanto outra qualquer que viva
dentro das portas de Toledo" e afirma- é o final da história e da narração: "Nesse
tempo eu estava no auge da minha boa fortuna".
Com esse motivo do "vilão aceito", Lázaro, que começara por ser um "herói
réprobo", expulso de casa ainda criança, se reintegra, finalmen te, no espaço social
de que fora banido.
A noção de tema é uma categoria sumária que une o material verbal da obra. Esta possui
um tema, e ao mesmo tempo cada uma de suas partes possui o seu. A decomposição da obra consiste
em isolar as partes caracterizadas por uma unidade temática específica. Assim, o relato de Pushkin,
O Disj){{rD, pode ser decomposto em dois relatos: o dos encontros do narrador com Sílvio e com o
conde, e o que se refere ao conflito entre Sílvio e o conele. O primeiro, por sua vez, se eleixa decompor
na história da vida no regimento e na história ela vida no campo; no segundo distinguimos o primeiro
duelo ele Sílvio com o conde e seu segundo encontro.
Por intermédio dessa análise ela obra em unidades temáticas chegamos finalmente às partes
não mais analis<lyeis, a saber, às menores unidades do material temático: "A tarde caiu", "Raskolnikov
[protagonista do C/illle e Castigo, de Dostoiéyski] assassinou a yelha", "O herói morreu", "Chegou
uma carta" etc. O tema de uma das partes não analisáveis da obra chama-se /Ilotivo. Na realidade,
cada proposição possui seu próprio motivo (Tomacheyski, ajJ1ld]akobson et aI., 1970, p. 203).
Os motivos livres e estáticos, que não sãà necessários para contar a história,
surgem em virtude de outro tipo de motivação qualquer que llão as puramente
218 • A Identidade e a Diferença
..
como evento não de uma primeira seqüência, Seq. 1, mas de uma segunda, Seq.
2, converter-se em motivo associado ou dinâmico. É o caso, que acabamos de ver,
do motivo "leitura de livros de cavalaria", que, narrando um fazer do fidalgo don
Alonso, transforma-o em dom Quixote - motivo dinâmico e associado, pois - ,
mas que, relatando um fazer do cura da aldeia, serve apenas para marcar uma
motivação indiciaI ou informacional, constituindo, desse ponto de vista, um
motivo estático e/ ou livre.
jetiva do autor (i. e., do enunciador, não do enunciatário), em uma etapa moderna,
estruturalista jus sui, fundada na estética intrínseca, do efeito no destinatário.
Repudiando qualquer normativismo e reconhecendo que os elementos-objetos ana-
lisados, do jJrocedimento construtivo ao motivo, não possuem nenhum valor absoluto, que
eles nada signijicam isoladamente, senão que só adquirem um valor em Júnção de sua uti-
lidade local dentro de um dado contexto e em razão do papel que desempenham na cons-
(I trução da totalidade do relato, os formalistas elaboraram o primeiro modelo semiolingiiístico
da análise estrutural da narrativa.
Dois elos pontos altos mais puros e mais maduros de todo o movimento vão
corporificar-se nas obras ele Propp e Bakhtin, que estudaremos no próximo capítulo.
8
Vladimir Iakovlevich Propp (1895-1970) passou boa parte de sua vida repu-
diando o rótulo de "formalista" que volta e meia lhe pespegavam, para tormento
seu. Mas, aquele que lembra que "formalista" era, na União Soviética de 1915 até
1930, designação tão perigosa - senão mais - quanto "comunista" em certas'
partes da América Latina entre 1960 e 1980, não deve se deixar impressionar por
isso; se não pela intenção subjetiva, pela sua própria obra Propp foi certamente
não só um formalista, mas um dos maiores dentre eles. E a tal ponto que não é
de modo algum exagerado dizer que ele apresenta hoje para o estudioso da lite-
ratura, e especialmente para o da narrativa, importância comparável à que Saussure
222 • A Identidade e a Diferença
o caminho de Propp foi exemplar, não só no plano cicntífico e no sentido ético. Motivo de
ref1exõcs deve se tornar, igualmcntc, o seu apego de estudioso ao marxismo, não tanto pelo par-
ticular cmprego que na sua pesquisa ele fez dos conceitos orinndos desse sistema intelectnal, quanto
do ponto dc vista de UIll vínculo correto entrc uma Í1westigação científica específica cm ato e aquele
conjunto de resultados de uma pesquisa prático-científica em devir que deve ser o marxismo. Propp
não partiu de uma "aplicação do marxismo ao seu campo de pesqnisa, não se preocupou com ela,
nem tentou combinar o marxismo com um ontro iSlIlo em circulação. No curso de uma investigação
em qne nsou instrumentos então disponíveis e antecipon outros então infieli, ele se deparou natu-
ralmente cOIllnoções marxistas essenciais e as acolheu, adaptando-as ao seu próprio horizonte de
análise, perseverando em um trabalho concretamente original. E hoje já não suscitam nem mesmo
cnriosidade as acnsações dc "idealismo" e de "formalismo" qne os "dogmáticos" lançaram contra o
sábio leningradcnse Q,movic, 1975, pp. VIII-IX).
É certamente um erro procurar na yida real uma correspondência à narratiya realista. Ex.:
está errado considerar a personagem Penélope e as ações ele seus pretendentes como correspon-
dentes à yida real grega e aos costumes gregos do casamento. Os pretendentes de Penélope são os
falsos pretendentes [i. e., o actante que na i\101fologia do Conto AIamlJi!lzoso surgirá como o illljJostOl]
que a poesia épica do mundo intciro bcm conhcce. É preciso isolar os elementos folclóricos (Propp,
1971, p. 245).
Aquilo que é narrado pelos contos - ou que escondem em suas metamorfoses - tem seus
paralelos: atingida uma certa idade, os mcninos eram separados da família e levados ao bosque
(como Pequeno Polegar, João e Maria, Branca de NC\'e), onele o chefe da tribo, assustadoramente
vestido, com o rosto coberto por horrÍyeis máscaras (que nos remetem logo aos mágicos c às bruxas),'
submetia-os a provas difíceis [oo.] os meninos escutavam a narrativa dos mitos da tribo e recebiam
armas em consignação (os objetos mágicos, distribuídos por doadores sobrcnaturais aos heróis em
perigo) [oo.] e finalmente retornavam às suas casas, freqüentemente com um outro nome (também
o herói das fábulas rcaparece incógnito) [oo.] maduro i)ara o casamcnto (nove entre dez contos
terminam com uma fcsta de núpcias) (Rodari, 1982, p. 65).
224 • A Identidade e a Diferença
As L'íbulas [os contos], em suma, teriam nascido da 'descida' do mundo sacro ao mundo
laico: o mesmo aconteceu com os objews (]lle no mundo infantil transformaram-se em meros brin-
qncdos, quando em eras pretéritas eram objetos culturais e rimalísticos - por exemplo, a boneca
e o pião. E na origem do tcatro, não houve o mesmo percnrso do sagrado ao profano? (idelll, ibidelll).
outros trinta anos até ressurgir numa tradução em inglês que a tornou acessível
para o Ocidente - a jl,lmjJlwlogy oJtheFolktale (Bloomington, Indiana University
Research Center in Anthropology, Folklore and Linguistics, 1958) - , para que
aí começasse a exercer sua imensa influência.
No prefácio do livro, Propp adverte que a matéria de seu trabalho é o conto
de magia, o conto de fadas popular, russo, nome pelo qual abrange os relatos que
estão classificados no Índice de Aarne e Thompson entre os números 300 e 479.
No atinente ao método, ele se dispõe a comparar entre si os temas de uma certa
centena desses contos, analisando suas partes constituintes de um ponto de vista
que se afasta dos pressupostos históricos, sociológicos ou genéticos, que, conforme
vimos, são o objeto de As Raízes, para se ater a um estudo descritivo, Cl~O resultado,
pensa ele, será a produção de uma morfologia, no sentido goethiano (ou seja, da
descrição das partes constituintes de um organismo - a palavra rnorfologíaremetia,
então, dircto para um modelo botânico - e das relações existentes entre elas):
Propp não crê nisso. Ele pensa, inversamente, que o motivo citado por
Vesselovski se deixa subdividir em quatro segmentos distintos, "o dragão", "o
rapto", "a filha", "o rei", 'que são, todos, independentes entre si no sentido de
admitirem individualmente muitíssimas substituições: em certos contos, o dragão
é substituído por um redemoinho, pelo diabo, por um falcão, ou por um bruxo;
o rapto pode ser trocado por um encantamento; em lugar da filha, a vítima pode
ser uma irmã ou uma noiva do rei; em lugar do rei poderíamos encontrar, em
outros racontos, um lavrador; e assim por diante.
Antes de prosseguirmos descrevendo o trabalho de Propp, compreendamos
o que ele está fazendo aqui: está reconstruindo paradigmas de elementos nar-
rativos - no caso, de personagens ou atores - estocados na competência do
escritor; é, portanto, o mesmo método de Saussure (que Propp, com quase certeza,
não conhecia, entre 1927 e 1928), de reunir elementos semelhantes em classes
onde eles vinham a vincular-se por meio de relações associativas (paradigmáticas).
De fato, Propp reconhece os quatro paradigmas do "dragão", do "rapto", da "filha"
e do "rei", Cl~OS elementos são eqüipolentes, podendo se substituir mutuamente
em dado ponto do mesmo contexto.
Desse modo, selecionando-se de dentro de cada um deles um membro da
classe e combinando-o, a seguir, com outro membro da classe seguinte, sobre o
mesmo eixo sintagmático, obtemos 17 motivos diferentes. Para ficarmos nos exem-
plos que Propp fornece:
I II III IV
o drag'ão o rapto a filha o rei
~ ~ ~ t
a. um redemoinho um encantamento a irmã um lavrador
b. o diabo um ferimento a nOIva
c. um falcão um envenenamento
d. um bruxo
Propp não fez exatamente isso, mas fez coisa bem parecida: começou por
demonstrar que a unidade mínima do relato não é o motivo: "Apesar de Vesselovski
[... ] o motivo não é uno, nem indivisível" (idem, p. 21).
Disposto a encontrar essa unidade mínima, Propp principia a comparar os
resumos de quatro segmentos narrativos que ele condensou assim:
Propp faz notar que em cada um desses resumos se localizam partes que se
repetem, trechos que se conservam invariavelmente os mesmos, de um conto para
outro, ao lado de partes variáveis, que aparecem de um jeito em dado relato mas
não nos demais. Assim, selo variáveis os:nomes dos protagonistas e os das coisas dadas,
"rei", "águia", "herói", no primeiro lllOtiVO, "velho", "cavalo" e "Sutchenko", no
segundo motivo, e assim por diante. O conjunto dos elementos variáveis do motivo
constitui a trama (a tradução brasileira editada pela Forense-Universitária, do Rio,
em 1984, teve certamente boas razões para traduzir o russo siujét por enredo, mas
preferimos trama), componente que exatamente por ser variável não pode cons-
tituir a base de nenhum estudo científico, ao passo que há um outro conjunto de ele-
mentos invariantes, que constituem j}ropriamente a fábula (ou história) e que são os que
reproduzimos em nossos resumos e condensações, quando relatamos uma história
a um amigo, ou a recapitulamos mentalmente:
Todo conteúdo ele um conto pode ser emmciaelo por meio de frases cnrtas como estas: os pais
saem para o bosque, proíbem qne seus filhos saiam de casa, o dragão rapta a donzela, etc. Todos os
228 • A Identidade e a Diferença
jm'Ciicados elão a composição elo conto [a fábula] e toelos os sujeitos, comjllementos e elemais partes ela
oração constituem o enreelo [a trama] (idem, p. 104).
Por isso, como afirma Propp, a mesma fábula pode servir de base para
tramas diferentes:
Se o elragão rapta a princesa, ou o eliabo rapta a filha elo camponês, ou elo jJojJe [o cura ela
aleleia], é ineliferente elo ponto ele vista ela composição [ela Lílmla]. Por outro laelo, esses casos poelem
ser consieleraelos como enreelos [tramas] diferentes.
o que muela s~\O os nomes (e, com eles, os atributos) elos personagens; o que não nlllela são suas
ações, ou funções. Daí a conclusão de que o conto mara\"illlOSO atribui freqüentemente ações iguais a
personagens diferentes. Isto liaS jJer/llite estudar os contos a jJ{{I1ir das jUllções dos jJersollagens (ide/ll, p. 25).
Eixo A
paradigmático I
(A- B) ~ eixo sin taLgmático
B --------::=----=,=-----.~ X
(B-X)
a. Um rei dá uma águia A águia transporta o herói
ao herói. -* para outro reino.
~ ~
b. O velho dá um cavalo O cavalo leva Sutchenko
a Sutchenko. para outro reino.
c.
~ ~
O feiticeiro dá um O barco transporta Ivã
barco a Ivã. para outro reino.
~ ~
d. A filha do czar dá Do anel sai um grupo de jovens que
um anel a Ivã. conduz Ivã para o outro reino.
DOAÇÃO
t TRASLADO
t
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 229
Tendo isolado a sua unidade descritiva de base, Propp testa sua descoberta
sobre o COlPUS estabelecido por cem contos mágicos populares da Rússia, os que
aparecem numerados de 50 a 151 na coletânea de Afanássiev (Propp, 1984, p. 28).
Ao cabo de sua pesquisa, ele concluirá que:
que as funções denominam e omitimos, por fim, por amor à clareza da exposição,
os "signos convencionais" que Propp utilizou para marcar as funções:
8. Dano ou Carência
O vilão prejudica a vítima; o dano pode manifestar-se também na forma
da privação de algo necessário ao personagem, ou que ele deseja obter.
9. Pedido de Auxílio ou Mediação
Pede-se ao futuro herói que repare o dano causado.
10. Empresa Reparadora ou Investidura do Herói
O futuro herói aceita reparar o dano causado pelo vilão (e é investido
da condição de agente reparador, sl~eito delegado).
11. Partida
O herói deixa seu espaço próprio em busca do vilão, que fugiu.
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 231
20. Regresso
O herói começa a retornar para o seu espaço próprio.
21. Perseguição
Durante o regresso, o herói é perseguido.
22. Salvamento
O herói escapa à perseguição (só ou com o auxílio de um adjuvante).
232 • A Identidade e a Diferença
Como essas 31 funções descrevem, porito por ponto, e na ordem do seu apa-
recimen to, as ações que desenvolvem a fábula de qualquer dos .cem con tos de magia
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 233
analisados, Propp conclui que todos esses relatos pertencem ao mesmo tipo de conto
- o conto de magia. É necessário esclarecer que ProjJjJ afirmou a jJertinência desse tijJo
de esquema funcional sintagmático unicamente jJara esse tijJo de relato. Isso não obstante,
a partir do conhecimento da lYI01fologia do Conto Maravilhoso pelos investigadores de
outras partes do mundo, o que só se deu depois da sua tradução - da tradução da
sua segunda edição às línguas do Ocidente (primeiro, na edição norte-americana,
já citada, de 1958, e a seguir nas suas versões italiana, francesa, espanhola, todas
lançadas até 1970) - , mais e mais evidênciasforam carreadas jJara comjJTeendero esquema
funcional jJroppiano como um modelo ajJlicável jJara todo e qualquer gênem de narrativas,
não só adequado para descrever as histórias infantis, de magia, ou populares, que
são menos elaboradas, mas, também, adequado paraa descrição de narrativas escritas,
não-populares, inclusive as literárias.
Um exemplo das inúmeras extrapolações que a JVlmjologia do Conto NIaTa-
vilhoso induziu é ó que se refere à extensão da noção proppiana de "função" que
Tzvetan Todorov amplia até abranger todo e qualquer elemento de uma obra
dotado da possibilidade de entrar em correlação com outro elemento da mesma
obra (quando Propp fora mais restrito, compreendendo por "função" unicamente
o fazer do personagem que se insere na linha causal da história, como anteceden te
e/ou conseqüente de outro fazer): "O sentido (ou função) de um elemento da
obra é a sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos dessa
obra e com a obra toda" (Todorov, 1971, p. 212).
Percebe-se que o que Todorov conceitua aí é, mais propriamente, a função
no sentido tradicional formalista, mais extenso do que a peculiar acepção que
esse termo adquire na ll/Imfologia do Conto JVIamvilhoso.
conto a:
Regresso ~ Perseguição ~ Auxílio ~ Salvamento --+ Chegada
conto b:
Regresso ~ Perseguição ----------------:~~Chegada
conto c:
Regresso -----------------------J~~
Chegada
Dessa observação, Propp extraiu um princípio geral que afirma que, inde-
pendentemente do número de funções que componham dada seqüência nar-
rativa, "a sucessão das funções é sempre idêntica" (1970, p. 38).
Além disso, o autor da lHmjologia do Conto iVlaravilhoso assinalou que a ordem
das funções é irreversÍ"\'el. Nos exemplos acima, se ocorrerem uma perseguiçclo e
um auxílio, eles só poderão aparecer colocados nessa mesma ordem de conti-
güidade, e nunca na ordem inversa.
Para explicar a constância observada na ordem de colocação das funções
dentro da série, Propp lançou a hipótese de que existiriam, possivelmente,
funções mutuamente incompatíveis, que se excluiriam uma à outra dentro do
mesmo contexto de uma história. Se uma função C, qualquer, ponhamos, surge
em dado racon to, ela poderia, sob certas circunstâncias, excluir automaticamen te,
por sua mera presença ali, a ocorrência de uma outra função qualquer, D, na
mesmaseqüência. Teríamos, então, por hipótese, esquemas alternativos, do tipo:
conto b: A ---J.~ B
•• ----l~~ D ----l.~ F ...
afora, even tualmen te, certos personagens especiais, necessários para a ligação das
partes entre si (como, por exemplo, os informantes, delatores, espiões, caluniadores
etc.), além de objetosmágicosoutros que transmitem informações etc. (um espelho,
um tapete voador, uma varinha mágica etc.)
Com referência aos papéis desempenhados pelos personagens, Propp par-
ticulariza que podem dar-se dois casos principais:
W. QUINE
Não estranha, assim, que, depois de vir à luz em primeira edição de 1928,
a NIOIJologia do Conto j\1aravilhoso tivesse de esperar outros 31 anos para tornar a
reaparecer em segunda edição na União Soviética, em 1959, edição essa precedida
até mesmo pela tradução norte-americana de 1958, que abriu caminho para sua
própria propagação no Ocidente.
O nome de Propp começou a ficar conhecido, por isso tudo, só a partir de
1960, quando Lévi-Strauss escreveu o artigo "La Structure et la forme" (reim pressa
em Antroj}ologiaEstruturalIl). A partir de então, ele influenciou a análise dos mitos
(Lévi-Strauss, Greimas e outros), o estudo dos contos populares (P. Maranda e
outros), das narrativas literárias (Bremond, Barthes, Todorov, Genette e outros):
Empreenderemos a comparação en tre os enredos [tramas] destes contos. Para isso, isolaremos
[ ] [suas] partes constituintes; após o que compararemos os contos segundo suas próprias partes
[ ]. Obteremos como resultado uma morfologia, isto é, uma descrição do conto maravilhoso segundo
as partes que o constituem e as relações dessas partes ellLre si e com o conjunto (1984, p. 25).
Afirmamos que enquanto não existir uma elaboração morfológica correta [i. e., a localização
e o recorte preliminares das partes constituintes de um relato] não poderá haver uma elaboração his-
tórica correta. Se não soubermos decompor um conto maravilhoso em suas partes constituintes, não
poderemos estabelecer nenhuma comparação exata. E se não soubermos comparar, como poderemos
projetar luz, por exemplo, sobre as relações indo-egípcias, ou sobre as relações da fábula grega com
a f{ilmla indiana etc.? Se não soubermos comparar os contos maravilhosos entre si, como estudar os
laços existentes ellLre o conto e a religião, como comparar os contos e os mitos? (idem, pp. 23-24).
o segundo termo pode às vezes existir sem o primeiro. Os filhos do rei vão ao jardim
e voltam para casa atrasados. Aqui, a Interdição de voltar [atrasado] foi omiticla (idem,
p.49).
Seria im possível que, contando tan tos acertos, a j'vI0I10logia do Conto Nlamvilhoso
não incluísse também alguns vícios de origem. Dentre eles, são os mais importantes:
1. Ter optado por fazer a sua descrição funcional orientada pelo método
empírico-indutivo: "Concordando com Vesselovski que na descrição a
parte deve vir antes do todo [... ]" (idem, p. 21). Essa opção levou Propp
a supor que poderia partir da análise concreta de cem narrativas ocor-
renciais, efetivamente realizadas, a partir da comparação do que se
pudesse extrair de comum de todas elas - aplicação do princípio for-
malista da funcionalidade autónoma - , para, a seguir, tomar como
aplicável a qualquer conto desse gênero as invariantes de cem exem-
plares dele. Essa extrapolação indutiva, que toma a propriedade do
exemplar particular como propriedade da classe toda a que esse exemplar
pertence, é, no entanto, uma falácia metodológica: como advertiu
Popper em algum lugar, o fato de nos encontrarmos em um levan-
tamento da plumagem dos cisnes com duzentos cisnes brancos não nos
autoriza a concluir daí que não existam cisnes negros.
Tratando-se, como no caso da ivI0I10logia do Conto iWamvilhoso se tratava,
da elaboração de uma teoria científica, o único método válido é o hipo-
tético-dedutivo, trinta anos antes utilizado por Saussure.
2. Ao não praticar um recorte epistemológico sobre os dois eixos da lin-
guagem, também já isolados por Saussure, o sintagmático e o paradigmá-
tico (em Saussure, "associativo"), Propp, a despeito de ter operado uma
descrição noventa por cento sintagmática, por intermédio da qual isolou
pares de funções correlatas, formando seqüências elementares do tipo
Partida Chegada
Dano Reparação do Dano
Marca Reconhecimento pela Ma.rca etc.,
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 243
lhe dirigiria, trinta anos depois, nem sempre com pertinência, Lévi-Strauss, Propp
já acentuara que seu modelo não poderia ser encarado como uma panacéia uni-
versal para resolver todos os problemas suscitados pela observação dos contos:
É bem possível que o método de análise das narrativas segundo as funções das personagens
se revele útil também para os gêneros narrativos não só do folclore, mas também da literatura.
Todavia, os métodos propostos neste volume [... ] possuem também seus limites de aplicação. Eles
são possíveis e fecundos no caso de uma repetição em ampla escala. [... ] lvlas quando a arte se torna
campo de ação de um gênio irrepetível, o uso dos métodos exatos dará resultados positivos somente
se o estudo das repetições for acompanhado pelo estudo daquele algo único para o qual até agora
olhamos como a manifestação de um milagre incognoscível. [... ] o gênio de Dante e o de Shakespeare
não se repetem e sua análise não pode ser reduzida aos mêtodos exatos (1984a, pp. 223-224).
Por outras palavras: Propp adverte-nos, nesse "aviso aos navegantes", que,
cingindo-se à descrição da fábula, do que é repetível, que é onde se situa o com-
ponente "história", seu método não cobre, absolutamente, nada da descrição da
trama, do discurso irrepetível, que é onde se situa o componente estético do texto,
aquilo, precisamente, que faz de dado discurso, um discurso literário, e não cien-
tífico, nem utilitário. E mais, no mesmo gesto avisa que a definição do propriamente
literário deve, como toda e qualquer definição, obedecer ao mecanismo duplo
da definição, que é, desde Aristóteles, composto da: 1. conjunção do objeto com
o "gênero próximo"; mais 2. disjunção dele relativamente aos outros do mesmo
gênero, pela determinação de sua "diferença específica", servindo, o modelo
fundado pela lvIOIfologia do Conto lHamvilhoso, para cumprir o primeiro desiderato
- para a taI-efa da "generalização" - , mas nunca para realizar a segunda incum-
bência, da "particularização", que é onde se define a especificidade inimitável de
cada obra literária, cujo ser- para glosar a frase de Quine que pusemos de epígrafe
a este tópico - é "ser o valor de uma variável", e, daí, inapreensível pela meto-
dologia proppiana.
Propp viu-o muito bem; e isso se chama lucidez.
A CONTRIBUIÇAO DE BAKHTIN
o objetivo de sua análise não é mais elucidar "como foi feita uma obra" [alusão à quase
monomania "construtivista" dos primeiros formalistas], mas situá-la no interior de uma tipologia
de sistemas significantes na história. Nesse sentido, ele propõe um estudo da estrutura romanesca
tanto na sua particularidade estrutural (sincrônica) quanto na sua emergência histórica. A estrutura
romanesca é para ele um ;;modelo do mundo", UIll sistema significante específico que se deve
apreender na sua novidade histórica; é assim que ele é capturado ao mesmo tempo em uma visão
histórica, situado relativamente a uma tradição: o gênero como depósito da memória literária; e os
achados da análise diacrônica Ca diacronia confirma a sincronia"). Desse modo, tendo colocado
os traços fundamentais da organização romanesca em Dostoiévski, Bakhtin irá encontrar seus pre-
cursores na tradição menipéia e carnavalesca (Kristeva", 1970, pp. 10-11).
esse dialogismo fundamental é que tem de ser le\'ado em conta em todas as abordagens da lite-
ratura, Em essência, a linguagem é sempre dialógica. O monologismo, isto é, a concentração da
obra em torno da \'OZ do autor, constitui um artifício de que este lança mão para centrar tudo em
seu próprio núcleo ideológico. A tarefa do estudioso da literatura seria desvendar esse dialogismo
essencial (1979, pp, 22-23).
ou, na formulação lapidar de Bakhtin: "O próprio monólogo [do Crime e Castigo,
de DostoiévskiJ é dialogizado".
Essa concepção constitui a chave da oposição Bakhtin-formalistas (no entanto,
sabemos que Saussure assinalara, há tem pos, a radical dialogicidade do discurso),
não suas considerações sobre "o momento ético-cognitivo", por ele referidas, que
chegam, num regresso empobrecedor, a remontar até a, já àquela altura, ultra-
passada oposição entre "o conteúdo" e "a forma", Na sua perspectiva, expressa
nos anos 20, não tem sentido apontar para a necessidade de um estudo imanente,
seguido de um estudo da relação da obra com as outras séries históricas. Pois,
pensa ele, ao fazer-se aquele estudo - Cl~a importância, em que pese tais "dis-
tingos", é por ele sublinhada - , só se alcançaria o cerne da questão considerando-
se a linguagem em seu aspecto dialógico, na relação com o outro "fundamen-
talmente social e histórico".
Por meio desse crivo, a obra de Bakhtin ganha sentido e se desenvolve tanto
nos diferendos que a separam dos aspectos exclusivamente construtivistas visados
pelo primeiro formalismo, quanto nos aspectos que o apartam, por igual, da
sociologia do romance de embasamento marxista.
Certamente, suas próprias convicções se enquadram no domínio das teorias
histórico-materialistas de que Lukács se fez porta-voz por excelência naqueles dias.
Mas, apesar disso, seus ensaios não se deixaram nunca contaminar do essencialismo
idealista hegeliano, comum, ainda, naquela fase do realismo crítico tão marcada
pela concepção que Hegel exprimiria do romance ao tomá-lo como "a moderna
épica burguesa".
Foi moda, com efeito, atribuir o desenvolvimento do romance à ascensão
do capitalismo burguês moderno verificada em paralelo ao desenvolvimento de
sua contraparte ideológica, que se corporificara na face visível do individualismo
liberal, proprietário, base do apogeu da burguesia industrial e mercantil. É
verdade que mesmo vinculando o romance à burguesia, Hegel pensa, na Aesthetik,
a relação entre forma intema do romance e as condições sociais que o enquadram
externamente em termos dialéticos, não unideterministas nem mecanicistas: a
forma "romance" trabalha, no seu entender, um mundo totalizado, por meio
de uma representação épica da realidade; mas essa forma perdera, em troca, o
estado poético original que havia inspirado, n'a origem, a épica primordial, a
verdadeira épica.
248 • A Identidade e a Diferença
Desse ideário, nem sempre muito nítido, de Hegel, sai, como se sabe, o núcleo
ideológico da obra seminal de Lukács, Temia do Romance, composta no inverno de
1914-1915. O teórico húngaro trata, logo, de aprofundar a explicação da oposição
hegeliana entre a epopéia e o romance, refundindo-a, dentre outros moldes, nos
termos das oposições rastreáveis entre os protagonistas de uma e outra forma nar-
rativa. A epopéia - crê Lukács - enfoca o herói invariavelmente como um simulacro
de sua coleüvidade; o indivíduo é, aqui, em virtude de esse gênero representar a
luta de uma comunidade unida contra a ameaça de um inimigo externo, o resumo
das virtudes heróicas de seu povo (coisa que se pode comprovar, ainda, acres-
centamos, no herói da maior epopéia dos tempos modernos, Os Lusíadas, em que
Vasco da Gama é o resumo das virtudes ideais do povo português).
Por outro lado, em razão disso, a epopéia opera a representação da história
de uma comunidade por meio da representação do destino aparentemente (mas
só aparentemente) individual do seu herói, particular que está a demonstrar, mais
do que o caráter de representatividade do protagonista em relação ao seu povo,
a consubstancialidade indissolúvel de um e outro.
Já no romance, que Lukács concebe como a forma prototípica dos conflitos
que estalam no seio da sociedade burguesa, em que o verdadeiro protagonista, o
motor da história, é a luta de classes (tal como em Marx e, depois, em Althusser),
o objeto é, antes do mais, o conjunto das contradições existentes entre o herói
individual e a sua sociedade. Não que o herói romanesco, à semelhança do épico,
deixe de representar e até mesmo se identificar com sua coletividade; na forma
romance, porém, o herói se identifica com uma das classes, em luta contra todas
as demais classes da sua sociedade.
O rol11anCe inaugura, sob essa óptica, o modo de fazer da vida privada, par-
ticular, do indivíduo, tornando-o o verdadeiro material da narrativa longa, de ficção.
Isso tudo é atestável na primeira modalidade de realismo que surge na lite-
ratura européia moderna, que é, pensamos nós, por nossa vez, o romance picaresco
espanhol. Aí se focaliza a vida privada de um indivíduo identificado com uma
classe - na origem primordial, de fato, ideútificado com o marginal sem classe,
o rebotalho do lúmpen - , a classe servil mais baixa, em luta contra todas as demais
classes que o oprimem, a burguesia civil e eclesiástica, e a classe dos fidalgos
poderosos ou não (os venidos a menos), tentando conseguir um lugar ao sol e
promover-se na escala social. Aqui o herói é, tal como o viu Lukács enquanto herói
romanesco, um ser problemático, em busca da realização de valores autênti.cos
(amor, poder, liberdade, glória etc.) , num mundo de valores degradados. E como
nesse protagonista se manifestam todos os traços característicos de sua classe, e
apenas eles, o herói do romance é, na verdade, um tipo- um modelo que exprime,
ante as forças boas e más de uma dada formação social, uma dada classe, um
segmen to seu, não a sociedade toda.
A Obra de ProjJjJ e a de Bahhtin • 249
Cada área tem sua própria linguagem, suas formas e procedimentos próprios para essa
linguagem, e suas próprias leis específicas para a refração ideológica da realidade comum. O
marxismo não opera, absolutamente, o nivelamento dessas diferenças nem ignora a pluralidade
essencial da linguagem da ideologia. A especificidade da arte, da ciência, da ética e da religião
não deve obscurecer sua unidade ideológica como supra-estrutura de uma base comum, nem o
fato de que elas seguem as mesmas leis sociológicas do desenvolvimento. Mas, essa especificidade
não deve ser apagada pela formulação geral dessas leis (Miedviédiev & Bakhtin, 1978, pp. 3-4).
A estrutura literária, como qualquer outra estrutura ideológica, refrata a realidade socioe-
conômica que a gera, mas o faz a seu modo. Ao mesmo tempo, porém, em seu "conteúdo", a lite-
ratura reflete e refrata as reflexões e refrações de outras esferas ideológicas (ética, epistemologia,
doutrinas políticas, religião, etc.). O que quer dizer que, em seu "conteúdo", a literatura reflete a
totalidade do horizonte ideológico de que ela própria é uma parte constituinte. O conteúdo da
literatura reflete [oo.] outras formações ideológicas não artísticas (éticas, epistemológicas etc.). Mas,
ao refleti-Ias, a literatura engendra novas formas, novos signos do intercurso ideológico. E tais
signos são obras de arte, que se tornam parte real da existência social que rodeia o homem.
Refletindo algo externo a elas, as obras literárias constituem ao mesmo tempo fenômenos sin-
guiares [... ]. Seu papel não pode ser reduzido ao [... ] auxiliar, de refletir outras ideologias. As
obras literárias possuem um papel ideológico da existêneia socioeconômica (Miedviédiev & Bakhtin,
1978, p. 18).
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 251
Mais injustas ainda, por infundadas, são as objeções que Bakhtin levanta
contra os formalistas, cujo in teresse primário fixado nas "dissecações morfológicas"
do texto derivava diretamente da necessidade premente, àqueles dias, de con-
trapor, à praga dos delírios marxistóides acerca do caráter "documental" da obra,
o distingo de seus traços pertinentes. E é fato incontroverso que, nas linhas dos
melhores deles, a pregação da doutrina das análises imanentes, destinadas a colocar
em relevo a natureza semiolingüf~tica desses característicos intrínsecos, nunca
embaçou uma clara compreensão da natureza histórico-social da arte literária.
Finalmente, é preciso ser justo também com Bakhtin, lembrando que em
nao raras ocasiões ele próprio se encarregou de sublinhar o valor das contri-
buições teóricas carreadas para o melhor conhecimento das coisas ligadas à lite-
ratura pelo approach formalista:
e em ojJosiçâo a um modelo.
CHKLOVSKI
Tendo acertado, bem ou mal, suas contas com o formalismo e com o marxismo,
Bakhtin deslocou o centro de gravidade da teoria da literatura ao marcar sua
posição relativamente ao problema capital dela: a questão da teoria da literatura
não é nem pinçar, na obra literária, os "reflexos" da realidade extraliterária, como
proclamavam os marxistas, nem chegar a saber como o texto foi construído, como
queriam os formalistas - era, antes, tentar compreender como ocorre, nos textos da lite-
ratura, a produçâo do sentido: como o texto literário vem a significar o que significa? E foi
tentando responder a essa questão via postulados do materialismo dialético que,
paradoxalmente, ele tornou a encontrar-se, uma vez mais, com as reflexões e
posturas formalistas.
Bakhtin, que, tal como a maior parte de seus coevos, lingüistas de profissão
aí incluídos (e o exemplo deJakobson, Meillet e Benveniste é dos mais chocantes
e sin tomáticos disso), tresleu Saussure a vida inteira, nunca passando de umas
colocações obscuras do Cours, alardeou sua oposição aos conceitos de parole e de
sincronia; em conseqüência, quando se meteu a emendar o que não compreendia,
seus reparos caíram no vazio. Um exemplo está nas observações que faz ele contra
a parole, que pensou sempre em termos de realização de uma fala puramente indi-
vidual, não obstante ter Saussure afirmado sempre que por parole queria dizer a rea-
lizaçâo individual da langue coletiva, vendo nela, na "langue [.,'.] a condiçâo jJClra a
A Obra de Fmpp e a de Bahhtin • 253
pode-se, deve-se considerar a langue fazendo abstração da parole mas não a parole fazendo abstração
da langue (Saussure, ajJ1ld Godcl, 1957, p. 151).
No interior de cada classe hierárquica, as formas e as funções constituem sistemas [oo.]. Cada
sistema reflete um aspecto homogêneo da realidade, chari1ado por Tinianov "série". Assim, numa
época encontramos, ao lado da série literária, uma série musical, teatral etc., m'lS também uma série
254 • A Identidade e a Diferença
de fatos económicos, políticos e outros. Ainda uma yez, a ordem lógica das relações desempenha
aqui um papel primordial: é apenas por seu conhecimento que chegaremos a abarcar a totalidade
dos btos. Semelhante ponto de partida permite integrar a dimensão histórica no estudo estrutural
da literatura (ou ele qualquer outra ati\·idaele social) (196501, pp. 20-21).
para ele, o romance é a representação da yida da enunciação e do discurso. Ele pinta o drama do
discurso confrontando discursos [oo.] para assimilar, argumentar, parodiar, estilizar, corroborar,
condicionar, reportar, enquadrar ou ignorar deliberadamente outros discursos. O romance é o
gênero metalingüístico por excelência. Em suas páginas interagem "línguas" e "discursos" de grupos
sociais yariados; o que o caracteriza é, portanto, a sua discursi,'idade yariada. As palavras no romance
são, como as palavras na yida, conscientes do "pano de fundo" lingüístico da cultura que elas
exprimem, do diálogo que já considerou o objeto acerca do qual ele se pronuncia, e das possíyeis
palayras que o tomarão como objeto no futuro. O romance é, destarte, a mais consciente herme-
nêutica da yida social cotidiana.
Nesses termos, a língua não é simjJlesmente o meio que o rDnwnâsta tem jJara rejJresentar o mundo;
ela é, também, o IJIlllldo que ele rejm!senta. Cada texto romanesco não é mais do que um sistema de
línguas. Os personagens existem para que se possam enunciar as palavras - cada personagem de
um romance é mn ideólogo, que traz para o texto sua própria yaloração, positiva ou negativa, da
realidade social (idem; grifos meus).
1. um, acerca da idéia de que "a estrutura literária nâo é" - vale dizer, de
que ela não está nunca constituída completa e perfeitamente, de uma
vez só e para sempre, antes da leitura que a tira do limbo e a repõe em
movimento - "mas se elabora em relação a uma outra estrutura"; é .
uma intuição notável, prenhe de sugestões;
2. e outro que diz que "todo texto é absorção e transformação de um outro
texto", que repõe em circulação uma velha concepção formalista (de
Tinianov, mais exatamente, pelo menos desde 1919) a respeito da citati-
vidade; ou melhor, de que um texto literário não resulta diretamente de
256 • A Identidade e a Diferença
uma língua natural, resulta, antes, de um outro texto literário, seu pre-
decessor, ou colocado nas entrelinhas do discurso manifestante (tal como
havia demonstrado Saussure com seus anagramas, por volta de 1900).
a arte é feita para dar a sensação de coisa enquanto coisa que está sendo vista e não enquanto coisa
reconhecida; o procedimento da arte é o procedimento da representação estranha: a arte é o meio
de viver a coisa 1/0 seu jJlocesso de fazelcse; em arte, o que foi feito nâo tem imjJOItância (1973, p. 16).
forma aparece para expressar um conteúdo novo", Chklovski propõe outro ponto de vista: "A obra
de arte é percebida em relação com as outras obras artísticas, e com ajuda de associações que são
feitas com elas. Não apenas o pastiche, mas toda obra de mte é oiada jJaralelamente e em ojJosiçâo com
11m modelo qualqzteJ: A nova forma não aparece para exprimir um conteúdo novo, aparece para subs-
tituir a velha forma que perdeu seu caráter estético (1970, p. 35; grifos. mens).
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 257
Contribui, nesse sentido, para a arte de Dostoiévski a utilização que ele faz
da figura retórica da ocupação, que consiste em antecipar, rejeitando-a ou não, de
antemão, uma objeção que o interlocutor parece estar a ponto de proferir a pro-
pósito do discurso do falante. Assim, "toda palavra dos personagens de Dostoiévski
engloba, implicitamente, a de seu interlocutor, imaginário ou real. O monÓlogo é
sempre um diálogo dissimulado, o que determina [... ] a profunda ambigüidade das
personagens dostoievskianas" (Todorov, 1969, p. 57).
Supondo que o romance hajasido até então, na Europa, essencialmente mono-
lógico (coisa que não significa, como adverte em nota, Bakhtin, que Dostoiévski se
situe à parte na história do romance europeu, nem que o romance polifônico criado
por ele não tenha tido predecessores), Bakhtin assinala que nem o drama, nem a
épica, por mais que o queiram ou simulem, podem ser autenticamente polifônicos.
O drama porque, a despeito de apresentar-se multinivelado, o universo nele repre-
sentado contém um único mundo: é da natureza do drama exprimir um único pon to
de vist:1. (assim, em cada peça de Shakespeare há uma única voz plenamente valorada) ,
o que faz dele um gênero estritamente monológico. O mesmo se dá, mutatis mutandi,
para a épica. Nessa modalidade de ficção, a fábula se diz por intermédio de um
discurso que não pode voltar-se contra si mesmo, o que constitui um fator inibitório
do "autodiálogo" característico da polifonia. O modo representativo da estrutura
épica, das digressões descritivas e narrativas do seu discurso, é sempre o monológico.
Nela, o autor não se vale da fala do outro, e se há um interplay dialógico na ordem
da representação, isso se dá sempre no nível do narrador, não se estendendo nem
se exteriorizando nunca no nível da narração, da manifestação discursiva, como
ocorre no r0111ance. Desse modo, inexiste qualquer diálogo entre a enunciação no
nível da história e a enunciação no nível do discurso: ambas permanecem subor-
dinadas e limitadas ao ponto de vista absoluto da voz do autor, que se identifica com
a voz unânime de toda a sociedade, no que ela tem de simulacro da "voz de Deus".
Em contrapartida, o próprio do romance moderno é, contudo, o seu caráter
dialógico, polifônico. O romance moderno nasce do encontro de vozes diferen-
ciadas que se somam, se interenunciam, se contradizem, se homologam e se infirmam
umas às outras; em síntese, relativizam-se mutuamente. Aqui, a intertextualidade
nasce da percepção de uma disjunção entre essas duas vozes, essas ~uas consciências,
260 • A Identidade e a Diferença
esses dois discursos, homólogos narrativos das contradições profundas que coe-
xistem a cada instante dentro e fora das pessoas de uma mesma coletividade.
Quando o discurso se constrói de dois textos que apresentam uma disjunção
total, de tal modo que um deles se apresenta como a inversão jocosa, paródica,
do outro, produz-se uma típica inversão risível da visão de mundo costumeira, a
que Bakhtin denomina de camavalização.
LACAN
viviam duas vidas, uma dominada pelo princípio do medo e da submissão, e uma outra carnavalesca.
Na praça, livre, cheia de riso ambivalente, de sacrilégios, profanações, degradações e obscenidade,
do cantato familiar com tudo e com lOdos (Anltis, 1978, p. 176).
lecidas pelas convenções são abolidas. Instala-se, nessas ocasiões, "um novo modo
de relações humanas, oposto às relações sócio-hierárquicas todo-poderosas da vida
corrente. A conduta, o gesto c a palavra do homem se libertam da dominação das
situações hierarquizadas (camadas sociais, graus, idades, fortunas) que as determinam
inteiramente fora do Carnaval e se tornam excêntricas, deslocadas do ponto de
vista da lógica da vida habitual" (Bakhtin, 1970, p. 170).
Mas, desdobrando-se nesse cenário, o que prende a atenção do autor de A
Poética de Dostoié7.ls!ti é o fino da transposição do Carnaval para a literatura:
se torna profundamente polifônico, pois várias instâncias discursivas acabam por nele fazerem-se
ouvir. O qlle Bakhtin ouve nessa palavra [nesse discurso] não é uma lingüística. É a divisão do sujet
[ambiguamente, do "assunto" e do "s10eito"] cindido de início já que constituído pelo seu outro,
para tornar-se a longo termo o seu próprio outro, e daí múltiplo e inapreensível, polifônico. A lin-
guagem de mn determinado romance é o território onde se om'e esse desmantelamento do "eu"
- seu polimorfismo. A ciência dessa polifonia será pois uma ciência da metalinguagem mas não
uma Iingüística: Bakhtin chama-a metalillgiiistica (Kristeva, 1970, p. 13).
262 • A Identidade e a Diferença
do discurso com o seu outro, com a outra obra, com o discurso oposto, como consti-
tutivada produção da mensagem. E ésuficiente-viu-o Maingueneau-transpor
seu peculiar léxico psicologizante, para a ordem da metalinguagem discursiva
para sentir até que ponto, nele - em Bakhtin - , a propriedade intertextual do
discurso não é derivada nem secundária, mas é primeira e fundante, até mesmo
em razão de estar radicada no cerne do ser do homem:
o próprio ser do homem (exterior como interior) é uma comunicação profunda. Ser sig-
nifica comunicai: .. O homem não possui um território interior soberano, ele se situa todo e sempre
em uma fronteira: olhando jJara o seu inteliDl; ele o olha nos olhos do OUtlV ou através dos olhos do outro
(idem, p, 140; grifos meus).
Sendo assim tão formalista, fica dificil entender a oposição tenaz que Bakhtin
moveu aos formalistas. E quando, em Problemas da Poética de Dostoiévski, seu autor
toca no tema da intercitatividade das obras literárias, fica mais do que dificil, fica
mesmo estranho não encontrar ali nenhuma alusão nem referência a um ensaio
precursor de Iuri Tinianov, Dostoiévski e Gogol (Para uma Teoria da Paródia), publicado
em 1919, trabalho pioneiro e muito importante no campo desses temas da citação
e da paródia, que Bakhtin conheceu mas não menciona para nada (cf. Schnaidermarl,
1979, p. 20, nota 25; e também Schnaiderman, 1980, p. 89).
Outro tanto ocorre com o tema conexo do dialogismo que, afora a teoria
anagramática de Saussure, que Bakhtin então não podia conhecer (seu livro é de
1929 e Starobinski deu as primeiras notícias acerca do ana:gramatismo saussuriano
em 1968), era corren te e já havia adquirido relevo na obra dos formalistas anterior
a 1929, "fato'que não se percebe pela mera leitura de Bakhtin (esclarece
Schnaiderman). É preciso reconhecer, ninguém elaborou este tema com a mesma
riqueza e profundidade, mas também é preciso render justiça aos compatriotas
que ele omite ou aos quais se refere com evidente má vontade" (Schnaiderman,
1979, p. 24).
9
O Círculo de Praga apresenta a sua fase mais ativaentre 1929 e 1945. Fundado
em 1926, seus trabalhos acham-se reunidos nos oito volumes editados entre 1929
e 1938 sob o título Travaux du Cercle Linguistique de Prague. Embora inclua artigos
muitos variados, versando sobre fonologia, morfologia, teoria da literatura (ou
poética, como se dizia então, à moda eslava), história das línguas, folclore e cultura
popular, seu exame comprova que:
Resulta da teOlia que cliz que a linguagem poética tende a enfatizar o valor autônomo cio signo,
que todos os planos de um sistema lingüístico que desempenham na língua da comunicação só um papel
instrumental tomam, na linguagem poética, valores autónomos [00']' Os meios de expressão agrupados
nesses planos assim como as relaçôes mútuas existentes enu-e eles, que tendem a se tornar automáticas
na linguagem da comunicação, propendem, ao contrálio, na linguagem poética, a se atualizar [quer
dizer, a se evidenciar em primeiro plano e a contrair uma vinculação ad !wc] (Yllera, 1974, p. 69).
gência de princípio entre eles. Em "L'Art comme fait sémiologique" (em Actes du
8 Q Congres Intemational de Philosophie à Praglle, 2-7 set. 1934), "Mukarovski desen-
volveu a concepção da poesia como parte integrante da semiologia e não da lin-
güística, concepção que trinta anos depois iria impor-se na Europa ocidental" (idem,
p. 70), ao passo queJakobson, nisso muito mais "arcaico" que Mukai'ovski, sustentou
a vida toda, desde 1919 (quando publica A Nova Poesia Russa) ,que a poesia era uma
espécie de "estilística vinculada à lingüística e não à semiologia" (idem, ibidem).
Posteriormente -lembra, ainda, Yllera, a reflexão deJakobson sobre as teorias
literárias do poeta Gerard Manley Hopkins o faria reformular o princípio de toda
técnica poética como manifestação do princípio de paralelismo:
a todos os níveis da língua a essência, em poesia, da técnica artística reside em retornos reiterados
[afirmação que se encontra hoje em Qllestions dePoétiqlle]. A poesia se tece sobre uma complexa relação
de estnlturas fonológicas e gramaticais de que o poeta não há de ser necessariamente consciente
(Jakobson, ajJud 'i'Hera, 1974, p. 71).
Não foi de modo algum mera coincidência o ter levado Jakobson à for-
mulação prática aquilo mesmo a que, em tantos e em tão diversos terrenos - na
fonologia, nos fundamentos gerais, na teoria da poesia - , Saussure dera, ante-
riormente, uma formulação exclusivamente teórica. Tendo em conta o papel de
primeiríssima plana desempenhado porJakobson tanto no formalismo russo quanto
no estruturalismo tcheco, no descritivismo norte-americano e depois na vertente
lingüística quanto na literária, antes de nos aprofundarmos em seu pensamento,
tentemos deslindar algo da influência nele exercida por dois de seus maiores ante-
cessores, que foram, à época - excetuado o ideário comum aos formalistas russos
- Saussure, com a teoria semiolingüística, e Trubetzkoi, com a teoria fonológica.
E aqui, para não fugir à regra que parece ter assinalado todo o seu destino
intelectual, Jakobson exprime, uma vez mais, o pensamento de Saussure - o
fundador da lingüística geral e, ao mesmo tempo, o fundador da semiologia da
narrativa (com seus estudos sobre os Nibelungen) e também da semiologia da poesia
(com sua teoria anagramática do poema).
Já se disse, com certo exagero, que a principal característica do estruturalismo
tcheco do Círculo de Praga foi a ten tativa de efetuar a conciliação en tre as dicotomias
do estruturalismo saussuriano, por um lado, e, de outro, as posições defendidas pelo
estruturalismo formalista russo (cf. Helenstein, 1978). Mas, exageros à parte, exa-
tamente a primeira tentativa séria desse empreendimento conciliador está instruindo
272 • A Identidade e a Diferença
os escritos que J akobson dedicou à história da fonologia russa, a saber:. The Concept
ofthe Sound Law and the Teleological CriteJion (1928), com V. Mathesius, N. Trubetzkoi,
Ch. Bally e A. Sechehaye - esse dois últimos, como se recorda, os organizadores e
editores do Cours de Saussure - , as Theses [em Actes du Premier Congres International
de Linguistes à la Raye, 10-15 abro de 1928 (Leiden, 1930)], e Remarques sur l'évolution
phonologique du msse (1929). Neles, o jovem sábio moscovita insiste em que as leis
operantes no funcionamen to sincrónico do sistema fonológico de uma língua atuam,
igualmente, no desenvolvimento diacrónico dele, de sorte que é possível considerar-
se que sincronia e diacronia constituem uma unidade dinâmica indivisível.
A última observação é mais uma alfinetada, dentre várias outras que se
seguirão anos afora - e invariavelmente fora de propósito - , que Jakobson apli-
ca, com mão de gato, à negação saussuriana acerca da possibilidade de aplicação
da noção de sistema à diacronia. Mas, se mantivermos em mente que, na doutrina
do Cours, o termo sistema refere-se invariavelmente à langue e não à parole - à
langue compreendida, é bem de ver, como um conjunto ou tout se tient, "a langue
é um sistema Cl~as partes todas podem e devem ser consideradas na sua solida-
riedade sincrónica" (Saussure, 1972, p. 124) - , é Saussure e nãoJakobson quem
está com a razão; corrobaram-no as Notas de aulas publicadas por Engler, em que
se lê, extraída dos cadernos de anotações de Riedlinger, Gautier, Bouchardy e
Constantin, "só o sincrónico forma um sistema".
Também no respeitante à oposição sincronia/diacronia, que, conforme
demonstramos na parte I, deve ser lida, como todas as demais dicotomias saus-
surianas, qua partes constituintes complementares, tese e antítese, de uma tota-
lidade categorial que, como toda unidade sígnica, é um constituinte duplo - uma
síntese dialélica daquela tese e daquela antítese - , de modo que essa dicotomia
não possa nunca ser lida como uma antinomia irredutível, o que é anti-saussuriano
(haja vista "tudo na língua gira em torno de identidades e diferenças"), no res-
peitante à oposição sincronia/diacronia, dizíamos, Jakobson andou treslendo
Saussure desde, pelo menos, 1929, quando afirmava, com endereço certo mas
com a encomenda errada,
não poderíamos erguer barreiras intransponíveis entre os métodos sincrânico e diacrânico, como
o faz a Escola de Genebra (Teses de 29, p. 1),
Seria absurdo desenhar um panorama dos AI pes tomando-o simul taneamen te de vários
cumes doJura; um panorama deve ser tomado de um único ponto (de vista). O mesmo
para a língua: só é possível descrevê-la ou fixar normas para o uso dela colocando-nos
em um certo estado. Quando o lingüista segue a evolução da língua, ele se assemelha
ao observador em movimento que vai de uma extremidade à outra do Jura para notar
os deslocamentos da jJersjJectiva (idem, p. 117).
E terceira,
c. Saussure afirmou que o lingüista deve adotar um dos dois pontos de
vista, uma das duas perspectivas, a sincrónica ou a diacrónica, porque
a adoção das duas ao mesmo tempo é impossível: elas são incompa-
tíveis simultaneamente (como mostra a última das citações que fizemos,
"seria absurdo desenhar um panorama dos Alpes tomando-o simulta-
neamente de vários cumes do Jura; um panorama deve ser tomado de
um único ponto (de vista). O mesmo para a língua". Isso, que foi, é e
continuará sendo sempre verdadeiro, não significa afirmar, apesar do
que pensaJakobson, que existam "barreiras intransponíveis entre os
métodos (sic) sincrónico e diacrônico". Aliás, De Mauro e Mounin viram
bem a inconseqüência desse passo das Teses de 29. De Mauro recorda
que o COUTS continha todas as afirmações necessárias para evitar esses
mal-entendidos jakobsonianos (Corso, nota I %, pp. 421-424); e tem
ainda-razão ao afirmar que é "incrível poder-se ter esquecido" aquilo
que Saussure diz explicitamente sobre as relações entre a sincronia e
a diacronia, sobre a dificuldade 'epistemológica e metodológica de os
separar" (Mounin, 1973, p. 70).
"qualquer oposição fônica de dois sons que, em uma dada língua, possa diferenciar significações";
por exemplo, em alemão, /iI e /0/ são fonemas porque a sua oposição basta para distinguir so
"assim" - sie "ela", Rose "rosa" - Riese "gigante", etc. As diferenças entre dois sons que não servem
para opor significações [... ] não são fonologicamente pertinentes; quer se pronuncie lieberFreund
"caro amigo" com soantes e vogais iniciais breves, num tom neutro, ou liiieberFreund "caaaro amigo"
com entusiasmo, com ironia, com indignação, num tom persuasivo, com mágoa ou piedade, as
palavras veiculam o mesmo significado lingüístico; /1/ breve e /1/ longo, /iI breve ou /iI longo
não são aqui fonemas diferentes mas sim variantes expressivas [hoje diríamos alofones] dos dois
fonemas iniciais: "O fonólogo não deve considerar em termos de som aquilo que desempenha uma
determinada função na língua" (ajJlld Mounin, 1973, p. 111).
Não se poderia melhor definir a tese fundamental da Fonologia do que citando a fórmula clássica
de Ferdinand de Saussure: os fonemas são antes de tudo entidades opositivas, relativas e negativas
(1973, p. 123).
Em pelo menos uma de suas entrevistas, Jakobson afirmou ter tido conhe-
cimento do Cours de Saussure apenas em 1926. Não temos motivo nenhum para
duvidar da memória do autor dos Essais de linguistique générale no respeitante ao seu
conhecimento pessoal do livro do professor de Genebra, mas o fato é queJakobson
tomou conhecimento das teses centrais do Coursmuito antes disso. De fato, em outra
ocasião, ele mesmo lembraria o dia em que Serge Karcevski, que tinha sido aluno
de Saussure em Genebra e continuava, ainda, a lecionar nessa cidade (onde per-
maneceuaté morrer, em 1955), expôs, em 1917, aos participantes do Círculo Lingüís-
tico de Moscou, em Moscou mesmo, as idéias principais de Saussure. Mounin escreve:
'Jakobson relata-nos a forma como Karcevski, durante os dois primeiros anos que
permaneceu em Moscou - 1917-1919 - "fired the young generation ofMoscow
linguists with the Cours de linguistique générale (Portraits, 2, p. 494)" (1973, p. 104).
Também Trubetzkoi atribui a Karcevski a divulgação da Escola de Genebra
na Moscou da época, fervilhante e pegando fogo já com a polêmica que se abrira
à raiz do ataque que Trubetzkoi desfechara contra um livro de Sakhmatov, seguidor
de Fortunatov, negando, precisamente, alguns dos mandamentos mais estritos
deste último, até então reputado um dos maiores, se não o maior dos mestres da
filologia eslava.
E assim, "a influência da Escola de Saussure não tardou a somar-se à agitação
criada pela conferência" (apud Mounin, 1973, p. 104).
Nesse difícil relacionamento deJakobson com Saussure, tão passionalizado
pelo russo, não foram poucas as vezes em que ele fez questão de aplaudir algumas
idéias mais avançadas do mais velho. R. Godel informa, por exemplo, que, quan-
do, em 1964, Jean Starobinski publicou Les lvlots sous les mots: les anagrammes de
Ferdinand de Saussure, Jakobson "apaixonou-se" pela pesquisa do genebrino,
276 • A Identidade e a Diferença
A Contrilmição de jalwbson
Sem embargo disso tudo, é também verdade queJakobson não foi nunca
um teórico à altura do seu próprio gênio como investigador de pesquisa aplicada.
Para comprová-lo, basta verificar que se, por um lado, ele tornou operacionais as
geniais intuições de Saussure - este sim, fundador da teoria estrutural-, desse
modo júndando a prática estrutural, por outro lado, muito do que pensou teori-
camente nunca pagou senão módicos dividendos aos seus investidores: sua teoria
acerca da afasia nunca funcionou na prática, por exemplo; e, do mesmo modo,
tendo meditado por meio século a fio acerca da teoria das funções da linguagem
e, mais especialmente, da teoria da função poética, a primeira começou a fazer
água mal fora publicada e vastamente divulgada, na década de 60, enquanto que
a segunda nunca logrou uma aplicação prática, em um "estudo de caso", media-
namente convincente.
Nada disso, contudo, obscurece o valor e o talento incomuns do mestre de
tan tas gerações.
Dono de uma inteligência luminosa, trabalhador infatigável, fundador
de círculos de estudos, animador cultural maravilhoso, nada no campo das
ciências sociais e especialmente no da lingüística seria hoje o que é não fosse
o trabalho dele.
Dos escritores mais prolíficos de nosso tempo,Jakobson é autor de 475 escritos
(dados do tomo I do To Honor Rmnan]alwbson, Haia, Mouton, 1967), dos quais 374
correspondem a livros e artigos e 101 a textos menores (artigos de jornais, prefácios
etc.). Fato curioso: até 1940, mais de oitenta por cento de sua pmdução referia-se ao domínio
da teoria da literatura, área em que nunca obteve fama nem de longe comparável com a que
lhe valeu asua atividadede lingüista; e cerca de dez a quinze por cento do total, apenas,
representa sua con tribuição aos estudos lingüísticos, área em que desfrutou sempre
da melhor e mais merecida reputação. O essencial de sua lavra, nesse campo, acha-
se consubstanciado em algumas poucas obras capitais, dentre as quais:
também, no antecessor suíço) , Jakobson não o menciona para nada nos FundamentaTs
of Language. Do mesmo modo silencia ao discutir a escala dicotômica - que, a
bem dizer, não é uma "escala" pois está ausente dela qualquer gradualisrno. Parece
que, deixando de pagar seus débitos,Jakobson permitiu, se não estimulou, a crença
de que a análise componencial que ele empreende saiu pronta de seu cérebro e
se desenvolveu com quase absoluta independência de predecessores; os poucos
que reconhece expressamente se situam antes no terreno mais afastado da teoria
matemática e teoria da comunicação do que do território lingüístico propriamente:
É impossível que o som, elemento material, pei-tença por si mesmo à língua. Para ela, ele é
uma coisa secundária, uma matéria que a língua utiliza (Saussure, 1972, p. 164).
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Ling;iiístico de Praga • 281
A necessidade que Saussure proclamou de firmar uma definição purameIlcte relativa e opo-
sitiva aos elementos diferenciais tornou-se a base de qualquer análise coerente em termos de ele-
mentos "últimos" ou em termos de "traços". A idéia de "as diferenças entre as propriedades são
[serem] de fato, discretas" e que seu aspecto diferencial "é realmente o conceito fundamental"
encontra-se nos diversos domínios da ciência moderna Qakobson, 1973, p. 139).
Jakobson acabou por reconhecê-lo, afinal; mas, por que não o fez em
Fundamentals of Language?, quando já se havia familiarizado de há muito com o
Cours, em que se pode ler:
o que se cha.ma comumente um "fato de gramática" [... ] exprime sempre uma oposição de
termos; somente essa oposição mostra ser particularmente significativa; por exemplo a formação
do plural alemão do tipo Nacht: Niichte. Cada um dos termos colocados em presença do fato gra-
matical [... ] é constituído por todo um jogo de oposições no seio do sistema: tomados isoladamente,
Nacht e Nàchte nada são: logo, tudo é oj)osiçâo. Dito de outro modo, jJode-se eXj)r1lnir a relaçâo Nadtt: Nachte
j)or uma fórmula algébrica a/b em que a e b não são termos simples, mas resultam, cada um deles, de
um conjunto de relações. A língua é, por assim dizer, uma álgebra que possuiria só termos com-
plexos (Saussure, 1972, p. 168).
E se fosse preciso ser mais claro do que isso, o que significa, afinal de contas,
a tão citada frase do Cours: "o mecanismo lingüístico gira inteiramente sobre iden-
tidades e diferenças", senão a expressa indicação da dupla natureza, positiva e
negativa, de todo elemento semiótico, aí incluído, evidentemente, o fonema? Fonema,
por sinal, que Saussure foi o primeiro a conceber na sua formulação moderna, o
que é reconhecido, de resto, pelo mesmo Jakobson, no ensaio "Réflexions inédits
de Saussure sur les phonemes" (agora constante dos Essais de linguistique générale
(l973a), ao comentar um manuscrito àquela altura inédito em que·o autor do Cours
282 • A Identidade e a Diferença
1. vocálico / não-vocálico
2. consonântico/não-consonântico
3. denso/difuso
Traços de 4. tenso/normal (relaxado)
sonoridade 5. sonoro/surdo
6. nasal! oral
7. contínuo/descontínuo
8. estridente/melodioso (ingI. mellow)
!
Traços de 10. graveiagudo
tonalidade II. tom menor (bemol) /tom natural (ingI. fiat/ plain)
12. esganiçado (sustenido) / claro (ingI. sharp/ plain)
Há, sem dúvida, uma sistematização dos dados, e isso não é para menos-
prezar; mas não se trata, repetimos, de algo absolutamente inédito.
Esse mesmo espírito de sistema comparece nas reflexõesjakobsonianas acerca
do discurso literário. Para ele, a poética - um avatar formalista, no sentido de
teoria literária - faz parte da lingüística. Assim, seu interesse maior é o de des-
crever a função poética da linguagem no interior de uma teoria lingüística mais
ampla. Para tanto, ele vai buscar duas outras dicotomias - a dos pares signi-
ficante/ significado e oposição/combinação - e dois outros princípios teóricos-
o do binarismo e o dos dois eixos da linguagem - outra vez em Saussure.
o Estrutumlismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lin[!;Üístico de Fmga • 283
poética é uma estrutura funcional e os seus diversos elementos não podem ser com-
preendidos fora da sua conexão com o conjunto. Elementos objetivamente idênticos
podem revestir, em estruturas diversas, funções absolutamente diferentes" (apud
Silva, 1973, p. 649). Os modelos teóricos do Círculo de Praga serão plurifuncionais.
A mais completa teoria funcional da linguagem nos anos 30 foi elaborada
pelo lingüista e psicólogo austríaco Karl Bühler (1879-1963), que não é raro ver
incluído entre as praguenses. Sua Teoria da Linguagem (1934) é uma das fontes
clássicas da psicolingüística. Bühler considera a linguagem, antes do mais, como
um instrumento para a comunicação humana, a partir da ativação do ato enun- .
ciativo no qual inten'êm três fatores distintos: 1. o falante, 2. aquilo de que se fala
e 3. o ouvinte: em todo e qualquer ato de fonação alguém fala algo para alguém.
Para poder cumprir a sua finalidade, todo enunciado deve, pois, manter
uma tríplice relação com esses fatores da comunicação, fenômeno que obriga o.
enunciado a desempenhar as três funções semânticas da língua:
mensagem essa que para ser compreendida requer ser decodificada por meio de
6. um código parcialmente conhecido dos dois interlocutores. Assim, cada enunciado
possuirá uma função dominante, ao lado de outras, secundárias, de acordo com
o fator que ela focalize privilegiadamente:
]AKOBSON
Para ele, essa equivalência é posta em jogo em todos os níveis, o fônico, o pro-
sódico, o sintáxico e o semântico:
Como esse princípio de equivalência postula uma unidade de medida das seqüências (a sílaba
na prosódia francesa) pode-se medir e comparar tais seqüências com o fim de deduzir os princípios
de isocronia e/ou de equiyalência que governam o sistema. A equivalência inclui, pois, a recorrência
de certas seqüências da mensagem e, por isso, seu paralelismo (Nicolas, 1969, p. 97).
podem ser descritos em função de duas estruturas complementares, uma das quais faz da mensagem
poética, centrada em si mesma, uma estrutura fechada; a outra dá conta da dinãmica do poema, que
não se fecha no seu último vocábulo mas atinge uma signifIcação que toca ao cósmico, quando a oposição
entre percurso metafórico e percurso metonímico é ultrapassada. A estrutura fechada dos Chatsrepousa
sobre três divisões, obtidas por uma análise formal, uma tripartita, que os apresenta "do interior", e a
última, em quiasmo, que opõe os gatos em posição de objeto no primeiro quarteto e no segundo terceto,
aos gatos em posição de slBeito no segundo quarteto e no primeiro terceto. Sobreimposta aos prece-
dentes, uma outra divisão mostra a estrutura aberta do poema, esuLltura linear que faz passar diretamente
do real ao irreal, depois ao surreal. MasJakobson e Lévi-Strauss querem deselwolveJ: a significação dessa
290 • A Identidade e a Diferença
descriçáo estrutural. A análise termina pelo estudo das significações simbólicas: "Da constelação inicial (...)
formada pelos amantes e os sábios, os gatos permitem, por sua mediação, eliminar a mulher, deixando
frente a frente( ...) o poeta dos Clzals (...) e o uni"erso" (1969, p. 98).
A CONTRIBUIÇÃO DE MUKAROVSKI
a lingllagem poética tende a enfatizar o valor autônomo do signo [e daí] decorre qlle todos os
planos de llm sistema lingüístico, qlle na lingllagem de comllnicação desempenham llm papel ins-
trllmental, aSSllmem, na lingllagem poética, valores alltônomos mais Oll menos consider,1veis. Os
meios expressivos qlle se reúnem nesses dois planos bem como as relações que existem entre eles
e tendem a tornar-se ali tomáticas na linguagem da comllnicação, tendem, ao contrário, a serem
trazidos para o primeiro plano na linguagem poética (1978, p. 3, c.2).
Outro modo de significar, com outras palavras, que a função poética - ou,
melhor, estética, já que não respeita unicamente ao texto literário, nem, muito
menos, tão-só à poesia, mas se estende igualmente por qualquer outro tipo de
discurso, convertendo-o em realização localmente artística - se manifesta não no
que se está dizendo, mas, de preferência, no como se está dizendo isso que se diz.
Recicla-se assim a velha noção formalista da singularização do modo de
expressão, encaminhada a privilegiar, através do procedimento da forma difi-
cultada, a consideração de uma qualidade ou de um traço original do texto que
se toma como estético, texto estético, esse que é assim encarado precisamen te por
articular em unidade indissolúvel o plano de expressão e o plano de conteúdo,
de sorte que esse texto - estamos parafraseando por nossa conta o que supomos
tivesse sido o entendimento de Mukai"ovski - só diz isso que diz porque o diz
como o diz, propriedade que inviabiliza, de antemão, qualquer tentativa de traduzi-
lo, na medida em que a tradução implica atribuir um outro plano de expressão
para o mesmo conteúdo do texto original: conhecemos bem o resultado comumente
desastroso de tentar-se efetuar a tradução de poesias de uma língua para outra;
no mais das vezes, provoca-se a destruição irremediável do caráter "literário",
poético, do original, ou, na alternativa e no melhor dos casos, cria-se outro poema,
inspirado no original, mas que bem pouco tem a ver, de fato, com ele; como dizia
Valéry, tudo o que pode ser traduzido é prosa.
Patente está, aqui, o que o procedimento do estruturalismo tcheco, da evi-
denciação, deve ao procedimento do formalismo russo, de singularização ou estra-
nhamento. Nos dois casos, lida-se com uma recuperação do artifício estilístico do
desvio, utilizado pelo artista para obter a desautomatização da percepção do leitor.
Mukafovski"o compreende mais no sentido de uma interação de funções entre os
componentes da obra de arte, por uma mútua referência deles a um componente
dotado da função dominante: "A violação sistemática da norma possibilita o apro-
veitamen to poético da língua; sem essa possibilidade, a poesia não existiria" (1981,
p. 320). E:
os problemas do signo e do significado tornaram-se cada \'ez mais urgentes, pois cada conteúdo
intelectual que ultrapassa as fronteiras da consciência indi\'idual adquire o caráter de signo pelo
mero fato de sua conmnicabilidade. Essa ciência do signo (seJlliologia, conforme Saussure, sellm-
tologia, conforme Bühler) de\'e elaborar-se em toda a sua extensão; assim como a lingüística con-
temporânea (por exemplo, os in\'estigadores da Escola de Praga, quer dizer, do Círculo Lingüístico
de Praga) ampliou-se para o campo do semântico, assim também os achados da semântica lingüística
de\'em ser aplicados a todas as demais classes de signos [oo.] (1981, p. 48)
Existe, inclusiye, todo um grupo de ciências que se interessa especialmente pelas questões
ligadas ao signo (assim como pelos problemas da estrutura e do \'alor que, ele resto, têm grande afi-
nielaele com os problemas do signo); a obra de arte, por exemplo, é simultaneamente signo, estrutura
e yalor); as chamaelas ciências do espírito (sciellces IIlOrates), que trabalham com UlIl material que
apresenta mais ou menos claramente o caráter ele signo, e isso graças à sua elupla existência no
nnUlelo elos sentidos e na consciência coletÍ\'a (1948, p. 49),
ficado (cultural) ", a obra de arte funciona como objeto estético unicamente na
medida em que funciona nos domínios de uma plurifuncionalidade.
A cOlwicção acerca do caráter plurifuncional da obra leva Mukai"ovski a
elaborar uma pequena tipologia das funções. Na conformidade do que ele pensa,
um mesmo texto pode ser estudado a partir da consideração de quatro funções,
a prática, a teórico-cognitiva, a mágico-religiosa e a estética. Merquior explica:
Nada disso é muito novo para quem já lidou com o formalismo russo.
Continuamos a pezunhar no ideário imanentista, sob Cl~o ponto de vista a mensagem
estética funciona como entidade autónoma, desligada de sua condição instru-
mental, de veículo para alguma coisa que a ultrapassa, embora seja essa alguma
coisa uma significação. Por isso, o tópico mukafovskiano da evidenciação, como
antes o formalista, do desvio e estranhamento, continua a insistir na capacidade
de isolamento do objeto contemplado, que se posta agora diante do observador
como um objeto de conhecimento uno, totalizado e individualizado, quer dizer,
diferente de qualquer outro objeto, irrepetível no seu modo de ser e no deleite
que é causado por sua contemplação, que é, afinal de contas, a observação raras
vezes feita de uma forma criada Cl~a construção obedeceu à diretiva do melhor
arranjo interno de seus componentes.
As raízes disso tudo são, claramente, formalistas. Mas há, ao mesmo tempo,
algo mais. Mukarovski assume, por exemplo, a tese funcionalista dos praguenses-
Trubetzkoi e Mathesius, os dois maiores lingüistas do grupo, não se cansaram de
insistir no caráter teleológico das mensagens - da finalidade autónoma da obra
de arte. Se aqui e lá, esparsa e episodicamente, algum formalista exacerbado adubou
alguma vez a reivindicação dessa autonomia com o fermento kantiano do suposto
~
1974, p. 257), afirmação que ganha todo o seu sentido quando nos lembramos de
duas ou três coisas:
Nem pode passar em branco a importância que assume, nessa teoria, o des-
locamento do posto do observador, do sujeito contemplante, do lugar do autor
para o lugar do leitor. Mas como Mukafovski frisa ao mesmo tempo o caráter
social da significabilidade e da comunicabilidade do texto estético, não se trata,
aqui, de um deslocamento de 180 graus, de um pólo para o outro, antípoda no
eixo de transmissão da mensagem - trata-se, mais, de um deslizamento gradual
dos dois, autor e leitor, enunciador e enunciatário, para um ponto médio,situado
a igual distância desses pólos, coisa que vai ocasionar o descentramento do sl~ei to,
na medida, pelo menos, em que esse vocábulo - sujeito - esteja comprometido
com uma acepção psicologizante, significando uma subjetividade solipsista.
Segue-se que o estético se identifica, agora, em Mukafovski, com um certo
efeito de leitura de um sujeito plural, não mais uma entidade de categoria psico-
lógica, mas uma entidade semiológica, que lê um efeito de sentido programado
no discurso como um efeito de leitura dominante, adrede instalado na mensagem
para suscitar no seu leitor o efeito de sentido "obra de arte" - pouco importa se
instale tal procedimento em um objeto de arte, ou em outro qualquer, utilitário
- um automóvel, por exemplo - , em uma mensagem artística, como um poema,
ou em uma mensagem utilitária, uma notícia de jornal, digamos.
Se se tem em mente, agora, que a função estética não exclui de modo algum
as demais funções do texto, que ainda que estejam ali localmente dominadas por
ela nem por isso se acham aniquiladas - um automóvel ou uma notícia de jornal,
independentemente de serem "belos" ou "feios", continuam a ter uma função
prática, uma função teórico-cognitiva, uma função mágico-religiosa-, então fica
claro que a obra de arte está permanentemente aberta a todas as outras relações
mediante as quais ela se insere numa dada formação social, às relações eco-
nâmicas, sociológicas, psicológicas, políticas etc., que naquelas quatro funções
de Mukafovski se contêm como expressões de conteúdos sociais apreensíveis
pelo leitor como atol' social.
Em suma: nem a arte nem o artista se criam jamais encapsulados na bolha
de um espaço ermo e isolado, senão que surgem nos quadros de um ambiente
social determinado, do qual provêm e para o qual retornam. Diante disso, o leitor,
que é apenas outro nome para "o público", a coletividade visada pela obra, encon-
tra-se sempre incluído nela.
A teoria mukai-ovskiana abre, nesses termos, uma nova via de acesso à inter-
subjetividade social, que já não pode se identificar nem mais nem menos com o
ethos e o pathos do escritor ou do leitor. Em conseqüência, o texto literário podia
emancipar-se da dependência unilateral à auctontas imperial de seu auctor, das
simplificações inerentes às teorias do reflexo, que desde a lei dos três estados, de
Taine, na obra de arte, rastreavam tudo o que não fosse artístico, a saber, os influxos
não-mediados de seu meio, de seu tempo, da raça ou da clas~e do autor, tanto faz.
o Estmturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 303
E não deixa de ser irônico q~le o mesmo crítico q~e iria um dia desertar das
fileiras estruturalistas, denunciando o seu formalismo alienante para ingressar na
vaga do realismo crítico marxista, tivesse sido dos primeiros a, paradoxalmente,
demonstrar a necessidade de retrabalhar a relação autor-produtor de modo a
rejeitar os simplismos do marxismo vulgar, que pretendia erigir um modelo extra-
semiótico em categoria crítica aplicável aos fenômenos semióticos, sem se dar
conta, nem mesmo, de que com ele, que estava fundado sobre o pressuposto do
n:fJexo. ,se tornava imqossível ~t:xqJ iC3J:-n~fata-rk_teL:.l.rpu:FálliGrn'i'iuu \..rn~'!'1.ruJl~-!l'",
mesma época o romantismo na Alemanha, na Inglaterra, na França, na Rússia,
no Brasil, no México etc., assim como surgiriam, depois, contemporaneamente,
o cubismo na França e na Rússia, a despeito de serem muito diferentes as his-
tórias, o grau de desenvolvimento, as raças, as infra-estruturas econômicas e as
supra-estruturas ideológicas de todos esses países. Para retomar o exemplo no
sentido inverso, tratava-se de um modelo impotente, do mesmo modo, para explicar
por que nações e sociedades de não importa que partes do globo compreendem
e apreciam os objetos de arte provenientes de outras épocas e de outros povos,
afastados, às vezes, de sua própria realidade, por séculos ou por milênios.
No Mukafovski anterior a 1948, isso tudo só encontra explicação a partir
da consideração do caráter de símbolo autônomo - hoje-uiríamos do caráter
icânico - inerente à natureza sígnica da obra de arte.
I contain a multitude.
·W.WHIHJAN
NIETZSCHE
F. PESSOA
o eu, o sujeito que em toda arte e em toda obra aparece de algum modo, ainda que diver-
samente, não se identifica com talou qual indivíduo concreto dotado de corpo e alma, nem tampouco
com a individualidade do autor. Este é o ponto em que se concentra e em relação ao qual está
ordenada toda a estrutura artística da obra, sobre a qual, isso não obstante, se pode projetar qualquer
personalidade, tanto a de um autor como a de um destinatário (Mukal'ovski, 1948, p. 13).
SA CARNEIRO
rizados, que se supõem interagentes como atores isolados, quando se sabe, desde
Whitney e, paradoxalmente, passando por Saussure eJakobson, tanta vez respon-
sabilizados pelo esquema da teoria individual da comunicação, que tudo na língua
é coletivo - aí incluídas, em primeiríssima plana, a comunicação e a significação.
O fato, porém, é que Mukafovski percebe que não se pode mais pensar na
comunicação como um fenômeno processado de um e outro lado entre sl~eitos
estanques, o que seria supor que a comunicação pudesse ocorrer entre sujeitos inco-
municantes. Tais sl~eitos psicológicos, antidialéticos, solitários e estranhos, no fundo,
um ao outro, já que não se ligam por nenhum princípio de reciprocidade nem
interagem por ajustamentos mútuos às imagens que vão construindo de si mesmo e
do outro, no decorrer de sua conversação (estamos glosando em nossas próprias
palavras o que pensamos ser o pensamento do sábio tcheco), estão ausen tes do modelo
de comunicação mukarovskiano. Na tese dele se esfuma o conceito idealista de um
sl~eito "subjetizado", dotado de um ponto de vista soberano, autoritário dono da
verdade, a externalizaruma mensagem quejá estaria de fato de antemão feita e pronta
em sua mente, inerentemente investida de um sentido - e apenas um - imutável,
perene, que caberia ao leitor nunca reconstnlÍr nem interpretar (o privilégio da inter-
pretação do enunciado era reserva pessoal do enunciador, seu auctOl; e, por isso, o
único dotado de auctoritas para dizer o que ele queria dizer), mas unicamente pinçar.
No fundo, o conceito mukarovskiano da plurifuncionalidade do texto literário
não aniquila a individualidade. Mas ele concorre, pelo menos, para atenuar a
ênfase até então concedida à individualidade do enunciador, ao efetuar a slia
recondução para a periferia de um palco carente de centro, e no qual assomam,
agora, outras individualidades dotadas de igual valor-atores manifestantes todos
do actante único "enunciatário", quer se manifeste ele nas figuras localmente
diversas dos editores, dos críticos, dos leitores, dos marchands, até mesmo de grupos
que, como o formado pelas escolas literárias, pelas gerações ou correntes artísticas,
possam constituir uma individualidade mais ou menos homogénea. Impossível
encarar-se em face de tudo isso o indivíduo singular como um au tor isolado, único
responsável pela "sua" obra, assim como não se pode mais conceber, depois de
Marx, qualquer prática social como a peifonnance de um Sl~~itO singular, o que é
o Estruturalismo FU71cio71alista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 307
Um homem não é nunca um indiyíduo, é, antes, um uniyerso singularizado por seu nas-
cimento, designado, a yida toda, pelo nome que se dá a essa singularização; ora, esse nome se
reconhece como pro\'isório e como signo. Esse reconheéimento é realizado no diálogo.
o beati Sesti,
FitaI' SUlIlUIa brevis sjJelll '1105 vetat i'llc!loare 10ng(lIIl...
HORÁCIO
alianças entre nações até ontem incompatíveis, foram todos fenômenos inter-
ligados, de Cl.~a convergência resultou a Segunda Guerra Mundial.
Tamanha agitação não deixou vagares para reflexões teóricas e especulações
metafisicas. Terminada a conflagração que varreu a face da Terra e mudou o mapa
do mundo, os anos que se seguiram foram dedicados em toda a parte à recons-
trução fisica e cultural dos países atingidos.
Assim, o refluxo da maré estruturalista, bruscamente interrompida na altura
em que melhor se desenvolvia o trabalho dos pragueltses, veio no momento
pendular da antítese dos anos 50, prenunciadojá no semi-estruturalismo de Sartre
e de Merleau-Ponty, no estruturalismo psicológico deJ. Piaget, genético de Goldman,
filológico de Dumézil e, logo depois, no estruturalismo já francamente semio-
lógico dos anos 60, com Barthes, Lacan, Althusser, Foucault, Lévi-Strauss, Kristeva,
Bremond, Greimas.
Menos do que um método e mais do que uma hipótese de trabalho, o que
essa gente tinha em comum era uma irritante paixão pelo rigor cientista e uma
abstrusa terminologia que, juntas, faziam ferver de cólera os arraiais existencia-
listas e marxistas. O fato é que naquelas eras podia-se, ainda, conferir a pertença
de um pensador a um sistema, confiar na sua adesão a um epistema e julgar de
sua atração por uma moda por meio do tipo de linguagem e/ou de metalinguagem
que ele utilizava; como diria, anos depois, Barthes respondendo à pergunta ine-
vitável nos idós de 50:
Que é o estrnturalismo? Não é uma escola, nem mesmo um movimento (pelo menos ainda
não) porquanto autores a quem se aplica ordinariamente tal designação não se sentem, de forma
alguma, ligados entre si por uma solidariedade de doutrina ou de combate. [oo.] É necessário, decerto,
remontar a pares como os de significante - significado e sincronia - diacronia, para termos uma
noção do que distingue o estruturalismo de outros modos de pensamento; primeiro, porque remete
para o modelo lingüístico, de origem saussuriana, e porque; no estado atual das coisas, a Iingüística
é, ao lado da economia, a própria ciência das estruturas; segundo, de uma maDeira mais decisiva,
312 • A Identidade e a Diferença
porque parece implicar uma certa reyisão da noção de história, na medida em que a idéia de sincronia
(embora em Saussure ela seja um conceito sobretudo operatório) autoriza uma certa imobilização do
tempo, e a de diacronia tende a representar o processo histórico como uma pura sucessão de formas.
Este último par é tanto mais distintiyo quanto parece realmente que a principal resistência ao estru-
turalismo é hoje ele origem marxista, e que é em torno da noção de história (e não de estrutura) que
ela se polariza. Como quer que seja, é proyayelmente no recurso sério ao léxico [oo.] que é preciso yer
em elefinitiyo o sinal falado do estnlturalismo: observe-se quem emprega significante e significado,
sincronia e diacronia e saber-se-á se a visão estnlturalista está constituída (1968, pp. 19-20).
A tais nomes vieram somar-se, pouco depois, filósofos como Foucaulte Derrida,
romancistas como Ph. Sollers eJean Ricardou, antropólogos e etnólogos como Lévi-
314 • A Identidade e a Diferença
Strauss e Lucien Sebag, psicanalistas como Lacan e Jacques Alain Miller, marxistas
como Althusser, Maurice Godelier e Alain Badiou, teóricos e divulgadores como U.
Eco,]. Parain-Vial e]. B. Fages - em resumo, nenhum valor desta grande geração
de pensadores, certamente a mais poderosa e instigadora que teve a França em todo
o século XX, ficou indiferente ao advento do estruturalismo e da semiolingüística,
nos anos 60,já que em face dele todos os intelectuais franceses foram chamados a
se pronunciar, pró ou contra, excluída qualquer possibilidade de neutralidade.
Por extensa e profunda que tivesse sido, contudo, essa influência, ela não
durou mais do que vinte anos (o que, considerando que as modas intelectuais
mudam, habitualmente, na França, como as modas indumentárias, é, já, uma
proeza): por volta de 1980, alguns de seus maiores representantes ou haviam
falecido (Barthes, em 1980, Lacan, em 1981, Foucault, em 1984, Braudel, em
1985) ou silenciado (Derrida e Lévi-Strauss, por exemplo, há muito não apareciam);
entrementes, os que sobreviveram e continuaram na ativa enveredaram por
caminhos outros, já francamente semióticos (como os da Escola de Paris, sob a
chefia de A.]. Greimas), ultrapassando, de vez, o estruturalismo.
o período 1920-1930 foi o da difusão das teorias psicanalíticas na França. Através delas eu
aprendia que as antinomias estáticas em torno das quais nos aconselhavam a construir as nossas
dissertações filosóficas e mais tarde as nossas lições - racional e irracional, intelectual e afetivo,
lógico e pré-lógico - se reduziam a um jogo gratuito. Primeiramente, além do racional existia
uma categoria mais importante e mais válida, a do significante, que é a mais alta maneira de ser
do racional, mas da qual os nossos mestres (mais ocupados sem dúvida em meditar no Ensaio sobre
os Dados Imediatos da Consciência do que no Ourso de Lingüistica Geral de F. de Saussure) não pro-
nunciavam sequer o nome. Em seguida, a obra de Freud revelara-me que estas oposições não o
eram verdadeiramente, pois que são precisamente os comportamentos mais afetivos, as operações
menos racionais, as manifestações declaradas pré-lógicas, que são ao mesmo tempo as mais signi-
ficantes (ajJ1ld Simonis, 1969, p. 13).
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Bmthes • 315
o mito faz parte integrante da língua; é pela jJarole que ele é conhecido; ele depende, em suma, do
discurso (ajmd Scarduelli, 1971, p. 67).
mostrar como os homens pensam dentro dos mitos, mas como os mitos se pensam dentro dos homens,
e sem eles o saberem (ajJudSimonis, 1969, p. 206).
mas contra uma certa concepção genética e evolucionista que vê nas sociedades as etapas
de lU11 desenvolyimento Cl~o fim seria precisamente a sociedade ocidental do século XX: "sob uma
forma ou ontra, retoma-se a lógica hegeliana do progresso", cada sociedade ilustrando um gran de
. ~
realização da mesma Idéia. E desconhecer, pensa Lévi-Strauss, as diversidades no espaço e as des-
continuidades no tempo (oo.]. É, pois, contra uma dacIa filosofia da História que se ergue Lévi-Strauss,
não contra a História em si (Parain-Vial, 1969, p. 115).
A substância do mito não se encontra no estilo, nem no modo de narraçâo, nem na sintaxe,
mas na histólia que é contada (1970a, p. 230).
1. O sen tido dos mitos não pode ser confundido com o dos seus elemen tos
tomados isoladamente, pois que tal sentido deve resultar do modo
como esses elementos combinados são relacionados, de modo a compor
uma unidade significante.
Já em As Estruturas Elementares do Parentesco, ao detectar que a proibição
do incesto é uma Íluunção negativa universal, que obedece às leis da
cultura, Lévi-Strauss lembra, para explicar essa invariância de regra, a
invariância da relação, enquanto princípio regulador da estrutura: "Este
princípio regulador pode possuir um valor racional sem ser percebido
racionalmente" (1969, p. 117).
2. Como todo ser lingüístico, o texto mítico está formado por unidades
consti tutivas relacionais - os mitemas, na metalinguagem lévi-straussiana.
Os mi temas são unidades do plano de conteúdo, e da ordem sintag-
mática, que se repetem como outras tantas glosas a um mesmo tema,
em relação ao qual se comportam, portanto, como meras variantes.
318 • A Identidade e a Diferença
1, 2, 4, 7, 8,
2, 3, 4, 6, 8,
1, 4, 5, 7, 8,
1, 9
-, 5, 7,
3, 4, 5, 6, 8
Se tivéssemos de narrar o mito, não nos ateríamos a essa disposição em colunas, mas leríamos,
antes, as linhas da esquerda para a direita e de cima para baixo. Tratando-se, porém, de compreender
o mito [... ] a leitura se faz coluna após coluna, tomando cada coluna como um todo (ajmd Fages,
1968, p. 89).
ciadO'l; autor do discurso - "se tivéssemos de narrar o mito" - , fazer esse da ordem
sintagmática, e o fazer do enunciatário, autor da intelpretação do discurso, interpretação
essa que o converte em um texto- "tratando-se [... ] de compreender o mito" - , que
é da ordem paradigmática.
Se um mito opõe, ponhamos, as isotopias antinâmicas da morte e da vida, todos
os mitemas que digam respeito ao conteúdo morte serão agrupados na mesma
coluna - a de número um, e.g. - em oposição à coluna dois, na qual serão empi-
lhados todos os mitemas concernentes ao conteúdo oposto, vida.
Na análise que leva a efeito, do mito de Édipo, Lévi-Strauss assinala que esse
mito relata, inicialmente, a transgressão das leis sociais concernentes ao parentesco.
É o sentido comum dos mitemas:
o objeto do mito é fornecer llm modelo lógico para resolver llma contradição (Lévi-Strallss, 1958,
p.254).
{{ b c d
Tomadas duas a duas, ae bde um lado, ce dde outro, essas colunas contêm
um conjunto de traços que sao ao mesmo tempo parcialmente iguais e par-
cialmente diferentes:
322 • A Identidade e a Diferença
exprimiria a impossibilidade em que se encontra uma sociedade que professa a crença na autoctonia
do homem [... ] em passar dessa teoria ao reconhecimento do fato de que cada um de nós nasceu,
realmente, da união de um homem com uma mulher (1970a, p. 237).
herbívoro [/animal que/ + /não mata outro animaI! + /não come carne]
PC ...
1
vida ~
1
[ / vida / + / morte /J ~
1
morte
PC ...
1
morte ~
1
[ / morte / + / vida /J ~
1
vida
todo mito (considerado como o cOl~unto de suas variantes) é redutível a uma relação canônica [... ]
na qual dois termos a e b sendo dados simultaneamente do mesmo modo que duas funções x e y desses
termos afirma-se que existe uma relação de equivalência entre situações definidas, respectivamente,
por uma inversão de termos e relações, sob duas condições: 1ª) que Ulp dos termos seja substituído
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-StraIlss, Bremond e Banhes • 325
por seu contrário (na expressão acima, a e a-I); 2') que uma ilwersão correlativa se produza entre o
valol" dafiulfão e o valor de termo de dois elementos (acima: ye a) (Lévi-Strauss, 1970a, p. 251).
Lévi-Strauss estabeleceu desde 1955 os fundamentos do estudo estrutural dos mitos, ana-
lisando em A1;yt!z ologil] II es 1 (1964), II (1967), 111(1968), e 1V(1971), mais de oitocentos mitos [... ]
Nossa proposta é demonstrar que, se a estrutura mítica pode ser assinalada facilmente nos textos
mitológicos, ela participa também de texlos "não-mitológicos" e, de modo geral, de todos os fenômenos
culturais. A estrutura mítica é uma estrutura do universo mítico que pode manifestar-se de modos
muito variados. Eis porque ela governa, igualmente, os textos bíblicos [... ] (Patte, 1978, p. 78).
sobre o eixo sintagmático, com as funções "atuais", como escolhas realizáveis, dis-
poníveis em competência e ali vigentes como objeto de escolhas equiprováveis,
mesmo quando não-realizadas de fato, posteriormente, representa uma conquista
que a teoria estrutural da narrativa deve a Claude Bremond.
Com efeito, a ele devemos um melhor conhecimento dos mecanismos para-
digmáticos inerentes à lógica decisória que comanda as opções do enunciador e,
por conseguinte, a organização seqüencial das funções, como ações preferenciais
e/ou contingentes dos atores narrativos.
Recordemos, para começar, que Propp afirmara que a ordem de colocação
das funções dentro da série é sempre idêntica, pouco importando, no caso, o
número delas: "A sucessão das funções é sempre idêntica" (Propp, 1970, p. 38).
Recordemos ainda que para explicar a constância da função nessa ordem de
colocação, Propp lançara a hipótese da existência de sintagmas funcionais dotados
de funções mutuamente compatíveis, coisa que punha, por outro lado, a idéia da
possibilidade de existir, ao contrário, funções mutuamente incompatíveis em um
dado contexto, o que produziria esquemas funcionais alternativos, do tipo:
~onto: 1) A ~ B C
E ~F .. J
~onto: 2) A ~ B E ~F ...
como invariante na série funcional, ele demonstra ter-se deixado contaminar pela
ideologia própria dos contos que descreve.
Com efeito, no interior do gênero "conto de magia popular russo", que é
uma narrati,'a de intuitos pedagógicos, manipuladora do enunciatário, e na qual,
portanto, a conduta dos personagens tem uma funcionalidade exemplar - o
comportamento do herói fixa a pautado que se deve fazer, ao passo que a conduta
do vilão fornece o modelo do que se deve não fazer - , o herói é, por razões
óbvias, sempre vencedor. Mas, assim procedendo, Propp esquece o requisito da
universalidade a que deve aspirar uma teoda da narrativa, pois descarta, sem
maior exame, até mesmo a possibilidade de que em outros tipos de relatos' o
herói possa ser derrotado. Isso, entretanto, não obsta a que certas tradições cul-
turais não contemplem nem essa uniformidade nem essa causalidade lógica uni-
linear descritas por Propp - para lembrar com um exemplo nosso, na tragédia
grega o herói é quase sempre derrotado na luta inglória que move contra um
destino que o fada à perda.
Em muitas culturas existe, assim, um grande número de espécies ou gêneros
de racontos dotados de uma lógica histórica preferencial, cujo curso está balizado
por momentos de indecisão, pontos de bifurcação da fábula, em que se localizam
funções-pivô diante das quais o narrador se encontra livre para escolher como
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 329
Tentação
Há, na série acima, uma seqüencialidade que não pode ser rompida:
porque se o herói não for reconhecido pela marca- por um ferimento, digamos,
ou uma capacidade exclusivamente dele, como "o mendigo" suposto envergando
o arco de Ulisses e, daí, reconhecido como o próprio herói - , então esse ferimento
- para ficar apenas nele - se disfuncionaliza enquanto marca para adquirir um
outro sentido qualquer, o de demonstrar a inépcia original do herói, sua falta de
poder, digamos, perante os poderes iniciais do vilão etc. Todas as demais funções
da série acima podem aparecer ou não, dependendo do contexto de cada nar-
rativa, mas não são a priori necessárias como essas duas.
Há, pois, ao lado de uma causalidade heterológica, que pode ser suprimida
ou alterada,
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Brernond e Barthes • 331
Marca ~Luta~Vitória~Desaparecimento
~ Reaparecimento,etc, e
uma causalidade cronológica, que não pode ser suprimida nem alterada:
Interdição Transgressão
Transgressão Punição
pois que falar em Transgressão pressupõe falar em uma Interdição anterior, falar em
Punição pressupõe uma antecedente Transgressão e falar em Vitória pressupõe o
antecedente Luta, e assim por diante.
A tais pares de funções associadas por implicação, Bremond denomina
seqüências elementares.
No estudo de Bremond, as seqüências elementares ocupam o nível médio
da narrativa, porque o nível mínimo continua a ser o das funções,já estabelecido
por Propp, e possuem uma estruturação de base ternária bem característica, que
Bremond descreve assim:
j y
j
Realização do Resultado
Esperado
Realização da
Possibilidade
Não-Realização
Situação Que Abre
do Resultado
a Possibilidade de
Esperado
Realização de Dado
acontecimento
Não-realização
da Possibilidade
Punição
Transgressão
Interdição
Não-punição (= Perdão)
Não-transgressão
A conclusão que Brernond retira do seu estudo da seqüência elementar é que o princípio
que governa o desenvolvimento prospectivo de uma história nâo se assenta na lógica linear
unidirecionaljJTevista jJorPropp, mas, sim, em uma lógica decisional, que implica a liberdade
de o narrador optar por um de dois caminhos divergentes, a pri01i equiprováveis, no ponto
de encruzilhada em que se localiza cada junção-jJivâ.
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 333
A B
1 1
1. Marca > Reconhecimento pela Marca
2. Transgressão > Punição
3. Partida • Chegada
4. Luta > Vitória
5. Interdição > Transgressão
6. Desaparecimento do Herói > Reaparecimento do Herói Incógnito
7. Dano > Reparação do Dano
várias combinações são possíveis a jJriori. A iWarca, vejamos: o herói pode ser
marcado antes da Luta, durante ela (como em Propp), ou depois dela; em com-
pensação, a seqüência 5 deve, logicamente, preceder a seqüência 2, ainda que
não necessariamente em contigüidade imediàta, no nível do discurso; e assim
por diante.
334 • A Identidade e a Diferença
Primeira: 5A + SB + 4A + IA + 4B + 6A + 6B + lB ...
Dano a Praticar
~
Processo Retribuidor
~
Fazer Retribuído
1
Dano Infligido
j--_I
Fazer Retribuído
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 335
"Nesse caso, o processo inclui um segundo processo que lhe serve de meio,
o qual, por sua vez, pode incluir um terceiro processo etc." (Yllera, 1974, p. 67).
3. Encadeamento por enlace
j j
Processo Agressivo versus Vilania
j j
Dano Infligido versus Vilania Cometida
Fazer a Retribuir
Esse terceiro tipo, inexistente em seu primeiro artigo ("La Logique des possibles narratifs"),
supõe a consideração do ponto de vista de dois personagens e não de um único herói. O que para
um personagem é um "Dano a Infligir" é, para outro, urna "Vilania a Cometer" etc.
A partir desses simples esquemas, [BremondJ considere que se podem traçar todas as pos-
sibilidades do ciclo narrativo, todos os possíveis narrativos. O relato é "um discurso que integra uma
sucessão de acontecimentos na unidade de uma mesma ação".
Para que os acontecimentos interessem é necessário que se organizem em torno de um
projeto humano que favorecem ou contrariam. Isso nos oferece a primeira alternativa fundamental:
de um acontecimento ou sé/ie de acontecimentos se seguirá um melhoramento ou uma jJiora da situação.
Analisando as possibilidades de cada uma dessas duas opções, [BremondJ traça a rede dos possíveis
narrativos. Mas, além disso, os tipos narrativos elementares se correspondem com as formas mais
gerais do comportamento humano. Desse modo, essas distinções permitem estabelecer uma tipologia
universal dos relatos e, ao mesmo tempo, um marco geral para o estudo comparado dos compor-
tamentos humanos (idem, ibidem).
II III IV
Luta
(Herói e Vilào)
[
Marca
I
I
Y
Vitória
do Herói
[
Desaparecimento
do Herói
t
Buscas
I
t
Impostura
I
t
Reaparecimento
do Herói Incógnito
I
t
Luta
(Herói e Impostor)
~
Vitória
do Herói
[
t
DeSl11aSCaraI11ento
do Impostor
[
t
Eeconhecimento
do Herói pela
Marca
[
t
Cessaçào das
Buscas
I
t
Puniçào do
Impostor
I
t
Eecompensa
do Herói
ação, deve situar-se na coluna um, ficando reservado às atividades ligadas à com-
petência dos seres a coluna dois.
um discurso que integra uma sucessão de acontecimentos [... ] de interesse humano, na unidade
de uma mesma ação (1966),
coisa que o leva a adotar uma posição próxima da dos formalistas e, posteriormente,
da de Greimas, para quem a narrativa deveria ser vista como
1. Processo de melhoramento
Melhoramento Obtido
~
Processo de
{
Melhoramento
Melhoramento Melhoramento Frustrado
Visado Ausência de
Processo de
Melhoramento
2. Processo de degradação
Processo de
,r Degradação Produzida
Degradação
>
Degradação
L Degradação Evitada
Previsível
Ausência do
Processo de
Degradação
A ação deye ter a extensão necessária para permitir a mudança do mal para o bem (...).
Para estabelecer uma regra geral, (... ) é suficientemente extensa a peça no decurso da qual
os acontecimentos (... ) mudem em infortúnio a felicidade da personagem principal ou inyersamente
a façam transitar do infortúnio para a felicidade (A.rte Retólica e A.rte Poética, s.d., cap. VII).
~~
Punição Recompensa Aceitação N ão~acei tação
342 • A Identidade e a Diferença
Por outro lado, não há como desconhecer que certos detalhes de seus tra-
balhos deixam passar pontos obscuros ou não tão bem elaborados, suscetíveis,
talvez, em conseqüência disso, de aprimoramentos. Dentre esses, é possível que
os mais importantes sejam os seguintes:
Luta~
,_r--- Vitória
.
do Herói
Derrota do Herói
Levando em conta, agora, que uma teoria da narrativa deve possuir a pro-
priedade jJreditiva, que abarca, naturalmente, o universal (caso contrário come-
teríamos o mesmo equívoco de Propp de pretender construir uma teoria funda-
mentada nos subsídios retirados de uma metodologia empírico-indutiva, em que
é inevitável o risco de descrever uma seqüência elementar característica de um
único tipo de relato, como ele faz ao aceitar a parelha funcional única
Vantagem
Desvan tagem
/~
Vitória
--DWOla\
VITÓRIA
/ DERROTA
\ Nâo-dwota - Não-vitóda /
~/
Empate
Vitória
Derrota
Desvantagem
[=/ não-vi tória/+/ não necessariamente
implicada com Derrota /]
Luta '\i::::::-----_~Vantagem
[=/não-derrota/+/ não necessariamente
implicada com Vitória/]
Empate
[fnem derrota/+/nem vitória/]
Complexificação Positiva
[=/vitória/ (ser) +/ derrotai (parecer)]
Complexificação Negativa
[=/ derrotai (ser) +/vitória/ (parecer)]
etc.
Tudo significa.
BARTHES
semiologia como uma disciplina científica. Não que Barthes fosse, monoliticamente
e em todas as situações, um cientista (aquele que é, por certo, o mais amado de
seus livros, os Fragmentos de um Discurso Amoroso, é inteiramente prosa artística,
poética); seria mais apropriado, possivelmente, dizer que ele começou pela ciência,
mas à medida que os anos passavam ele parecia deixar-se seduzir cada vez mais
pela escrita literária, na qual, também, foi mestre imitado e inimitável.
Esse fascínio pelo belo, que o foi afastando aos poucos de suas metas ini-
ciais - confessadamente científicas - , acabou arrastando para segundo plano
o homem de ciência. E assim, quase nada do que produziu Barthes em seus
últimos anos de vida apresenta as características do discurso impessoal e preten-
samente não-empenhado da pesquisa acadêmica - mas, em troca (e em nossa
opinião, pelo menos, todos ganharam com isso), tem tudo do ensaísmo artístico
da melhor cepa gaulesa.
Grosso modo, a carreira de Barthes divide-se em três períodos, um pré-semio-
lógico, outro semiológico e o terceiro, enfim, artístico:
Era a leitnra de Saussnre que era diferente. Nós não o sabíamos. Pensávamos que tínhamos
lido o mesmo Saussnre. Só que ele [Banhes] tinha lido Saussure pelo começo e eu pelo fim. Qner
dizer, ele começou pelo signo, pelo exemplo da árvore. Basta ler cinqüenta páginas mais longe para
encontrar qne a língua é como a folha de papel. [... ] Foi de modo didático que Banhes começou pelo
signo. Se você ler as l\~\,thologies [verá que] se trata, ainda, de signos-palawas, de signos-árvores. Nesse
sentido, ele ficou num Saussure diferente. Depois, evidentemente, ele ,wançou (1986, pp. 42-43).
Visto agora, à distància de quase vinte anos de sua morte, Barthes parece ter
seguido o conselho de Unamuno, "casarse con una idea sola y tener muchos hÜos".
Pois, não imponam as divisões que lhe serão fixadas pela posteridade, é certo
desde já que Banhes trabalhou a vida inteira em um único tema - o tema da ancia-
nidade, ao modo do ser, da modernidade ao modo do parecer, dos objetos pro-
duzidos pelo capitalismo hodierno, pelos meios de comunicação de massa e da
indústria do consumo, subordinando sua visão ao ponto de vista fixado na idéia de
desmistificar as mitologias que se ocultam até mesmo nos enunciados mais aparen-
temente ingênuos, nos discursos e nos signos de que vivemos rodeados.
A investigação dos meios de comunicação de massa principia, na realidade
da prática analítica, com Banhes, que por eles ele se interessava na dupla qua-
lidade de sistemas de significação e de sistemas de manipulação:
Quando chegamos [Banhes e Greimas] a Hjelmslev, o que ele reteve imediatamente foi a lin-
guagem das conotações, enquanto que eu [retive] o sistema denotativo. [...]. Optar pela descrição
das conotações significa cena liberdade, muito mais originalidade, enquanto que a linguagem de
denotação é a estrutura. Eu me empenhei em ser rigoroso, científico, ao passo que Barthes hesitou
entre a cientificidacle e a escritura, visto que ele era um escritor [lln éClivain] apesar de tudo. Numa
dedicatória [num liwo seu, oferecido a Greimas] ele acusou-se de ter traído um pouco a ciência. Ele
a traiu cada vez mais: cada qual com o seu caminho[ ... ] Creio que ele tinha mais talento do que eu.
Ele era mais brilhante e eu não sou ciumento. São os rumos da vida[ ... ] (Greimas, 1986, p. 43).
mesmo a este nível [denotativo] há pelo menos um sentido conotado, que é: leiam-me literalmente.
[... ] Dizer "tudo significa" [trata-se de uma frase do próprio Banhes] é marcar que, se uma frase.
parece ter falta de sentido em nível interpretativo, ela significa ao nível da própria língua (Banhes,
1982, p. 77).
é tudo, no relato, funcional? [... ] uma narrati\"a é feita só de funções; tudo, em graus diversos, sig-
nifica, nele; não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura (1966,
p.7),
De fato, a' clareza é um atributo puramente retórico, não uma qualidade da linguagem em
geral, pratiG1vcl a qualquer tempo, em qualquer lugar (Banhes, 1977, p. 50).
N o mesmo diapasão, sublinha Barthes que a relação vista por Saussure entre
o significante e o significado complica-se na literatura, em que o processo lin-
güístico da significação absorve outras modalidades de significações derivadas da
natureza mesma do código. Por isso, há uma essencial duplicidade de sentido na .
obra literária, a qual, no mesmo gesto com que designa dado conteúdo, se auto-
designa como produto literário, por meio da utilização de certos procedimentos
estilísticos, como o emprego, digamos, no relato, do pretérito narrativo. É nessa
proclamação da sua identidade que a obra de arte literária coloca o seu leitor em·
presença da "literariedade" tão buscada pelos formalistas russos.
Contemplada por outro viés, a percepção de se estar em presença de uma
obra literária, marcada como ela está por uma sinalética própria do produto
artístico, desvenda nessa sinalética um repertório de símbolos particulares de certa
classe social. É o caso da literatura francesa, que esteve, desde oséculo XVII, atada
352 • A Identidade e a Diferença
à burguesia; e uma vez que era esta a classe que produzia e consumia ao longo de
duzentos anos praticamente toda a literatura da nação, foi muito natural que o
uso daquelas "marcas sociais" acabasse por funcionar como a senha de um com-
prometimento ideológico pactado entre o escritor e o leitor. Incapaz de refletir
inocentemente "a realidade", o estilo do texto literário recorta-a, sempre, na con-
sonância dos interesses de uma ideologia que previamente a interpretou em seus
próprios termos.
É assim que a obra literária constrói essa mesma "realidade" que aparenta,
para os desprevenidos, "refletir"; sabe-se, agora, do que estamos a tratar: do
"demônio da analogia".
A seu modo, Darthes tentará a vida toda exorcizar o seu Mefistófeles par-
ticular, o que ele mesmo chamou de demônio da analogia:
o bicho-papão de Saussure era o arbitrário [do signo]. O seu [de Barthes] é a analogia. As artes
"analógicas" (cincma, fotografia), os métodos "analógicos" (a crítica 11l1iyersitária, por exemplo) são
desacrctidados. Por quê? Porque a analogia implica um efeito de Natureza: ela constitui o "natural"
como fonte de yerdade; o que aumenta a maldição da analogia é que ela é irreprimível (Réguichot,
1973, p. 23): assim que uma forma é ústa, é fJl"eciso que ela se assemelhe a algo; a humanidade parece
condenada à analogia, isto é, em fim de contas, à Natureza. Daí o esforço dos pintores, dos escritores,
para dela escapar. Como? Por dois contrários, ou, se se preferir, por duas ironias que lidicularizam a
Analogia, quer se finja um respeito espetaculannente chão (é a Cópia, que está salya), quer se deforme
reglllarlllente- segundo regras - o objeto mimetizado (é a Anamorfose, CV [Clitiqlle et vélite1 64). Fora
dessas transgressões, o que se opõe beneficamente à pédida Analogia é a simples correspondéncia
estrutural: a hOll/ologia, que reduz a lembrança do primeiro objeto a uma alusão proporcional (etimo-
logicamente, isto é, em tempos felizes da linguagem, analogia queria dizer fJrojJorçiio) (1977, p. 50).
pelo simples fato de existir a sociedade, todo uso de um signo se converte em signo desse nso.
Objeto a camisa
Suporte o colarinho
o + S + V Significado
~
j j j Moda
camisa com aberto Esporte
colarinho fechado Social
o exemplo serve para ilustrar que o sentido de uma roupa faz alusão não
ao traje em si mesmo considerado, mas a um código semiológico particular, o
código ou "sistema da moda indumentária", que retira seu sentido de um código
mais vasto, ainda, todo englobante, o de um microuniverso ideológico, base dos
comportam~ntossociais. A existência de um vestido de noiva nos comunica, por
um lado, o "sentido indumentário" traje para mulheres que se casam e nos infor-
ma, por outro lado, o "sentido ideológico" de que naquela sociedade há deter-
minados comportamentos, como o casamento, que requerem o uso de trajes
rituais - uma roupa do gênero "vestido branco, longo, com cauda, adornado
com acessórios especiais, véu, grinalda, buquê de flores de laranjeira", etc. -
desse tipo e não de outro tipo qualquer, um maiõ de duas peças, por exemplo,
ou um pijama. Em conclusão: o sentido, para Barthes, não épropriedade do objeto, mas
do uso que fazemos desse objeto.
356 • A Identidade e a Diferença
L
M 1. Significante 2. Significado
Í
N
I G 3. Signo
U
T A 1. SIGNIFICANTE 2. SIGNIFICADO
O 3. SIGNO
No barbeiro, dão-me um exemplar de Paris Alatc/z. Na capa, umjovem negro trajado com
o uniforme francês bate continência, elevando os olhos, fitando o drapejar da tricolor [da bandeira
da França]. Isso tudo é o significado, do quadro. Contudo, ingenuamente ou não, percebo muito
bem o que é que ele significa para mim: que a França é um grande império, que todos os seus
filhos, sem nenhuma discriminação de cor, servem fielmente sob sua bandeira, e que não há
melhor resposta aos detratores do seu pretenso colonialismo do que o orgulho desse negro a
serviço de seus assim chamados opressores. Estou assim outra \'ez confrontado com um sistema
semiológico maior: há um significante, já de antemão formado em um sistema anterior (um
soldado negro faz a continência francesa); e há um significado (que é aqui uma mescla proposital
de francesidacle e de militaridade); finalmente, há a presença do significado através do signi-
ficante (Barthes, 1957, p. 116).
o Estruturalismo SemiológicoFmncês: Lévi-Stmuss, Bremond e Banhes • 357
Denotação: E1
1
/semear/ "deitar sementes na terra
para que germinem"
Conotação: E2 + R2 + C2
111
/semear/ "pregar a palavra divina" (de que derivam:)
/semeador/ "pregador"
/semente/ "palavra divina" etc.
no qual o subconjunto entre parênteses (ERC) funciona, por si só, não mais como
signo completo do sistema denotado, mas, antes, como o mero plano de expressão
de um signo do sistema conotado, pois que:
jSemearj S
I
El lvl
I E2
"deitar sementes na terra para RI G
N I
que germinem" Cl R2
O
T
"pregar a palawa de Deus " C2
O
sistema denotado: E + R + c
1
/semear/
1 1 "deitar sementes na terra
para que germinem"
E........... /semear/
j
R .
C1 "deitar sementes
"pregar a palavra de Deus"
na terra ... "
1 1 1
/pregar a palavra
é semear
de Deus/
362 • A Identidade e a Diferença
uma semiótica conotativa é [... ] uma semiótica em que um dos planos, o da expressão, é uma
semiótica (1971, p. 150).
Barthes fez, ao proferir a aula magna de 1977, no College de France, sobre o caráter
totalitário do idioma nativo.
a significação não é mais elo que a transposição ele um nível ele linguagem para outro, de uma língua
para outra língua diferente, e o sentido não é mais do que a possibilidade ele tal transcoelificação
(1970, p. 13).
pint -or
lexema + gramema
366 • A Identidade e a Diferença
• o sen tido dos fonemas é dado pelo morfema que eles compõem quando
se combinam entre si;
• o sentido dos morfemas é dado pelas lexias que eles constituem quando
se combinam entre si;
• o sentido das lexias é dado pelo sintagmalocucional (sintagma nominal,
sintagma verbal etc.) que elas compõem quando combinadas entre si;
• o sentido dos sintagmas locucionais é dado pelo sintagma oracional
que aqueles, combinados, formam;
• o sentido dos sintagmas oracionais é dado pelos "sintagmas periódicos"
(pelos "períodos" ou "parágrafos") que as orações seqüencialmente
combinadas formam.
Barthes crê que o mesmo se dá com o discurso literário. E adverte que não
tem em mente nesse caso unicamente uma analogia:
A homologia qlle se sllgere aqlli não tem só valor heurístico: ela implica lima identidade
entre a lingllagem e a literatllra; não se pode conceber a literatllra como lima arte desinteressada
de toda relação com a lingllagem (l9GG, p. 4).
Os Três Níveis da Narrativa, segundo Barthes: O Nível das Funções, o Nível das
Esferas de Ações (ou dos Actantes) e o Nível da Narração (ou Discurso)
constitlli-se como llnidacle qualquer segmelltO da história que se apresente como termo
de lima correlação (idem, pp. 6-7).
r
I
368 • ii Identidade e a Diferença
quem fala (no relato) não é quem escreve (na vida), e quem escreve não é quem é (na
'.'ida real, civil) (iciem, p. 19).
Que será feito de Mariana? perguntou Evaristo a si mesmo, no Largo da Carioca. [... ] Era
em 1890. Evaristo voltara da Europa dias antes, após dezoito anos de ausência. Tinha saído do Rio
de Janeiro em 1875 [... ] mas o vi<~ante põe e Paris dispõe.
A Multifuncionalidade da Função
Vistas, assim, uma por uma, as diferentes funções que um fragmento nar-
rativo pode desempenhar na obra, é preciso lembrar que um mesmo segmento
pode incumbir-se de realizar mais de uma função dentro dela, surgindo ora com
dada finalidade, ora com outra, na dependência das relações em que o vai colhendo
a nossa leitura, à medida que progride de um ponto para outro do discurso.
Seja, por exemplo, a seguinte série funcional:
• "aI observa que há nuvens pretas no céu" vale, por um lado, como um informante
temporal, engendrando a "ilusão da realidade" - comunicando a possibi-
lidade de que chova de um momento para outro, ela ancora a história
dentro das circunstâncias de uma temporalidade verossímil.
• Funciona, por outro lado, como um índice, quando a tomamos no seu valor
simbólico, como elemento operador da conotação alegótica, em que uma notação
do espaço extetior descreve, metafoticamente, o estado de um espirita em seu
espaço interior.
Funções
I I
I
\
Funções Funções
Distribucionais Integrativas
I
Correlatos horizontais Correlatos verticais,
que se referem ao fazer que se referem ao ser
do personagem do personagem
I
I I I I
Núcleos Catálises Índices Informantes
I
I
Informan tes Informantes
Actoriais Circunstanciais
I
Informantes Informantes
Espaciais Temporais
Figura 24: Tipologia das Funções Narrativas dos Dois Primeiros Níveis (segundo Banhes).
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