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A Identidade

e a Diferença

Edward Lopes
Sabe-se que as modernas teorias da narrativa
filiam-se diretamente à autonomização da
esfera literária, operada pelos românticos no
século passado: foi a partir dessa dissociação
entre a narrativa e o "real" que ela
supostamente retrataria ou refletiria (ou,
dito de outro modo, dessa autojustificação
da literatura desvinculada de qualquer
conhecimento exterior a ela) que o lingüista
genebrino Ferdinand de Saussure (1857-
1913) pôde pensar a linguagem como um
objeto autônomo. É exatamente este o
ponto de partida do professor e crítico
Edward Lopes neste livro, que convida os
leitores a um fascinante percurso pelas
teorias estruturais da narrativa elaboradas ao
longo do século XX.
Recusando o postulado filológico de que
os textos conteriam uma "verdade" única e
transcendental, e que ao crítico caberia
apenas desvendá-la, penetrando nas
intenções recônditas de seus autores, este
livro de Edward Lopes propõe a
multiplicidade das leituras e a diversidade
das apropriações que um texto pode
sofrer. Assim, o leitor é inserido nos
modelos teóricos tomados em sua
historicidade específica e em seus "valores-
de-uso", diga-se assim, contemporâneos.
Também são descartados apriorismos,
A Identidade e
a Diferença
Reitor Flávio Fava de Moraes
Vice-Reitora Myriam Krasilchik

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Presidente Sergio Miceli Pessôa de Barros


Viretor Editorial Plinio Martins Filho
Editor-Assistente Heitor Ferraz

Comissão Editorial Sergio Miceli Pessôa de Barros (Presidente)


Davi Arrigucci JI.
José Augusto Penteado Aranha
Oswaldo Paulo Forattini
Tupá Gomes Corrêa
A Identidade e
a Diferença:
Raízes Históricas das Teorias
Estruturais da Narrativa

Edward Lopes

IMPRENSA
OFICIAL~
Copyright © 1997 by Edward Lopes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lopes, Edward, 1935-


A Identidade e a Diferença: raízes históricas das teorias
estruturais da narrativa / Edward Lopes. - São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1997. - (Acadêmica; 15)
ISBN: 85-314-0231-X
1. Análise do discurso narrativo 2. Estruturalismo
3. Lingüística estrutural 4. Narrativa (Retórica) I. Título
II. Série.
97-2345 CDD-801.953

Índices para catálogo sistemático:


1. Estruturalismo e narrativa: Teoria literária 801.953
2. Narrativa: Análise estrutural: Teoria literária 801.953

Direitos reservados à
Edusp - Editora da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6" andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988
Te!. (011) 813-8837 r. 216

Printed in Brazil 1997

Foi feito o depósito legal


suMÁRIo

Introdução 11
Os Estudos Literários do Renascimento à Segunda Metade do Século XIX 11
Do Século XIX para o XX: Passagem do Pensamento do Contínuo
para o Pensamento do Descontínuo 19
A Revolução Estrutural do Cubismo 21
O Sentido Ideológico do Cubismo 24
Leitura Filológica e Leitura Hermenêutica '.' 25

PARTE I
OS MODELOS
A SEMIOLINGÜÍSTICA GERAL DE FERDINAND DE SAUSSURE

1. A Revolução Estruturalista 29
Semiologia e Semiótica 29
A Revolução Estruturalista: O Nome e o Epistema 32

C) "".AA:'.::iC'iúA)TITff{l1t~L1:L[tO"(:l\â t.te1:'-cl'unrand ue~aussure : 'Lf:.::>


Por Que Estudar Saussure hoje? 45
Dificuldades para a Compreensão da Teoria Semiolingüística
de Ferdinand de Saussure 46
Quatro Saussures Diferentes : 48
Introdução ao Pensamento de Saussure 52
8 • A Identidade e a Diferença

A Lingi1ística Pré-Saussuriana: O Método Histórico-Comparativo


e a Escola dos Neogramáticos 54
Saussure - Os Primeiros Anos: O Essai e a Nasalis Sonans 56
O Retorno a Genebra e os Últimos Anos: Saussure Semiólogo 68
O Projeto Saussuriano de Semiologia da Poesia 76

3. O Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo 91


O Cours de linguistique générale: O Nascimento da
Lingiiística Geral e do Estruturalismo 91

4. Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure 111


Interpretação da Obra de Saussure: As Dicotomias como Construtos 111

5. O Legado de Ferdinand de Saussure 153


A Posteridade de Ferdinand de Saussure 153

PARTE II
AS TEORIAS
O FORNIALISMO RUSSO, O ESTRUTURALISMO TCHECO, O ESTRUTURALISMO
SEMIOLÓGICO FRANCÊS

6. Formação do Pensamento Científico no Século XX 171


O Pensamento Alemão e Sua Expressão Francesa: O Estruturalismo e a
Denúncia do Epistema Historicista-Humanista 171
A Polêmica entre os Marxistas e os Estruturalistas 174
A 1I1udança da Função Social da Literatura e o Surgimento do Formalismo 177

7. O Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingüístico de


Moscou e a Opoiaz 181
Contexto Histórico de Emergência do Formalismo: As Teorias Estéticas e as
Teorias Formalistas da Literatura 181
O Estruturalismo Formalista: O Formalismo Russo de 1914 a 1930.
Primeira Noção deForma 189

8. A Obra de Propp e a de Bakhtin 221


A Contrilnúção de Propp para a Análise Estrutural da Narrativa 221
A Contribuição de Bahhtin 244

9. O Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico


de Praga ' 265
Sumário • 9

o Círculo Lingüístico de Praga e as Escolas da Lingüística Estrutural


nas Décadas de 20 e 30 265
A Contribuição de lVIullaivvslli 292

10. O Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss,


Bremond e Barthes 309
O Estruturalismo Semiológico Francês: Ruptura e Tradição 309
Lévi-Strauss: Transposição do idodelo Lingüístico para a Leitura Estrutural
do !vlito 314
A Leitura Estrutural do lVIito de ÉdijJo: A Correlação e o Termo Mediador 319
Ganhos Teóricos do lVIodelo lVIítico da Narrativa, segundo Lévi-Strauss 325
A Lógica da Sintaxe Narrativa de Bremond: As Funçães-Pivô 326
A Semiologia Estrutural de Roland Barthes .. , 346

Bibliografia 375

Sobre o Autor. 381


INTRODUÇÃO

Que voulez-vous, J\!Ionsieur,

les 1IlOts, on n f a 'lÍen diautre.

s. BECKEIT

OS ESTUDOS LITERÁRIOS DO RENASCIMENTO


À SEGUNDÁ METADE DO SÉCULO XIX

A última coisa que se encontra ao fazer urna obra

é a co'njJreensão do que se deve colocar em primeiro lugar.

PASCAL

As teorias sobre a narrativa foram sempre, a partir dos gregos, elaboradas


por filósofos, monges, escritores, retóricos, gramáticos, etnólogos e folcloristas,
que traziam menos a incumbência de descrever os mecanismos internos do relato
do que a de examinar as relações que esses discursos mantinham com a cultura
da sociedade que os produzia. Isso só mudará radicalmente nos primeiros anos
de nosso século, em função das mudanças que atingem, à época, todos os domínios
da arte e da ciência do Ocidente.
12 • A Identidade e a Diferença

Uma das marcantes características do século XX consiste em uma inusitada


aceleração do tempo histórico. O homem dos últimos cem anos tem a impressão
de ter passado, durante a sua vida, por um número de experiências bem mais
diversificadas do que o homem de qualquer outro período anterior, tão profundas
foram as modificações que nesse lapso de tempo experimentaram seu modo de
viver e sua visão de mundo. Visto hoje,já no amanhecer do século XXI, o século
XX parece, contudo, prolongar, ainda no seu primeiro quartel, pelo menos os
modos de ler e de pensar a obra de arte herdados dos tempos antigos, da Idade
Média ou do Renascimento.
Na Europa, em particular, é na Idade Média que se costuma situar um
primeiro ponto de ruptura em relação aos modos de pensar e de transmitir o
pensamento da Antigüidade. Durante o seu transcurso, ruíram formas seculares
de comportamento, desagregaram-se impérios, caíram instituições que se supunham
eternas, faliram sistemas económicos, políticos, científicos, artísticos, pós-se em
questão, enfim, toda a tradição cultural de um mundo que se tornava de tal modo
estranho que passava, por isso mesmo, a parecer cada vez mais "antigo".
Com o Renascimento, novas nacionalidades emergem para a história: o la-
tim cede lugar ao rude romance popular, as fronteiras étnicas, políticas e religiosas
se desmantelam ou se aprofundam, e formas inéditas de literaturas nacionais se
expandem - não mais, doravante, uma literatura internacionalista que se exprimia
uniformemente, por cima das barreiras das nações, no latim clássico, mas, sim, lite-
raturas particularistas, locais e regionais, cujo discurso utilizava em toda a parte
distintos sermos vulga-ris, o instrumento de comunicação corrente do povo iletrado.
Nesses ambientes, a literatura valia por uma jJaideia, uma espécie de sistema
de educação global, em que se confundiam, indiferenciadas, as disciplinas das
letras e das ciências, o trivium e o quadrivium, a literatura e a gramática - que
Isidoro concebia como migo et fundamentum libemlium littemrum, "origem e base
das letras liberais" - , todos cobertos, igualmente, pela rubrica ars, disciplina espe-
culativa e práxis, teoria e tecnologia, simultaneamente.
A função reservada ao cultor da literatura era, então, preservar a "memória
cultural coletiva" da comunidade. Dedicado a uma "arte liberal", ele, homem li-
vre, vale dizer, que não tinha de trabalhar para ganhar o seu sustento, deveria
possuir um saber enciclopédico, pois tüdo o que se passava nessa sociedade em
termos de história, economia, filosofia, literatura, moral, religião, não importa o
quê, constituía assunto seu, matéria de sua competência literária. Para as histórias
da literatura anteriores ao século XX não há, de fato, diferença notável entre um
livro de filosofia e um livro de poesias, entre um ensaio, um romance ou um
sermão, o relato de um explorador ou uma gramática; uma vez que o termo lite-
ratura derivava de littem, "letra", sinal de escrita, todos os livros pertenciam de fato
e de direito à literatura.
Introdução • 13

Esperava-se, por conseguinte, do teórico, do crítico e do professor de lite-


ratura - do "lente de humanidades", como se dizia nos tempos mais amenos,
lente, particípio presente de leJ~ porque a ele cabiam os privilégios da leitura e da
interpretação - que ele examinasse a obra literária do ponto de vista de suas
relações para com, praticamente, tudo: para com a língua, para com as retóricas
e as obras prestigiosas das "autoridades" (a auctoritas derivando do fato de ser ele
auctor) que haviam tratado do mesmo assunto, no passado, que ele extraísse delas
o exemplo que ilustrasse o ponto de gramática, a lição de composição, o modelo
de estilo, que servisse ao aproveitamento moral ou à edificação piedosa do espírito
do leitor, tudo, enfim, que, demonstrando uma virtuosa experiência de vida,
pudesse ser utilizado como instrumento de melhoria das pessoas e da sociedade.
Podia-se, digamos, utilizar a Chanson de Roland na qualidade de mostruário da
língua poética da França medieval, ou estudar Os Lusíadas - e narro, aqui, uma
desventura particular minha - para aprender análise sintática ou para medir os
conhecimentos astrológicos de Camões, assim como legítimo seria ler o Lazarillo
de Tormes como uma espécie de "revista de atualidades" (Chandler), testemunha
preciosa das reais condições de vida do lúmpen da nação espanhola nos prin-
cípios do processo de sua decadência a meados do século XVI. Não se ignorava,
é claro, conforme vem atestado na obra dos exegetas bíblicos, na Lettera XIII de
Dante etc., que a obra de arte contém, além do seu sentido literal, lingüístico, um
valor alegórico, um valor anagógico e um valor moral, sentidos esses todos sim-
bólicos, sem dúvida, mas, em todo o caso, inextricavelmente comprometidos com
a expressão de uma particular mundividência mítica e mística, uma experiência,
em suma, religiosa, que constituía o cerne mesmo do imaginário medieval, seu
primeiro quadro de referências para a significação. Como quer que fosse, ainda
aqui a grandeza e o sentido de um livro, como o de qualquer obra de arte, se ava-
liavam em função do quantum de informação útil, histórica ou documental ele
continha, em função de tudo o que não fosse, no caso da literatura, por exemplo,
puramente "literário", ou, no caso da pintura, puramente "pictórico"; desligados
de uma referência imediata ao seu entorno histórico-social, ao pietismo que
impregnava a época, tais termos não tinham, de fato, sentido algum,já que não
se compreendia ainda que a "literariedade" ou a "picturalidade" pudessem existir
por si só, quanto mais constituir um valor intrínseco capaz de justificar sozinho a
criação artística; recorde-se que só eml 790 vem a lume a Crítica do juízo, em que
Kant defende a idéia, bastante bizarra, então, da "finalidade em si mesma da obra
de arte", postulado que ele afirma em termos de Zweckmassigkeit ohne Zweck, "obje-
tividade sem objetivo".
Com efeito, só a partir do romantismo alemão a arte deixará de ser, na
Europa, expressão servil dos textos de outras disciplinas. E não é absolutamente
casual que a emancipação da literatura coincida cronologicamente com a eman-
14 • A Identidade e a Diferença

cipação concomitante da lingüística, que se dota, então, de um instrumento de


análise próprio, o método histórico-comparativo; e, de fato, o reconhecimento
da autonomia da literatura e do texto literário teria de derivar do prévio reconhe-
cimento da autonomia do puramente lingüístico. Tal é, como se sabe, um dos
maiores títulos de glória da moderna redescoberta do signo, de que foi Saussure,
não só por seus trabalhos lingüísticos stricto sensu, mas também por seus estudos
nos domínios da narrativa heróica teutônica e seus trabalhos anagramáticos na
teoria da poesia, o mentor por excelência.
Adiantando algo de um debate que se trava mais à frente acerca da validade
dos procedimentos de exegese histórica, recordemos, por enquanto, que quem
escreve a história do passado é o presente. Em decorrência disso, os trabalhos de
reconstituição do passado só adquirem todo o seu alcance quando implicam uma
correspondente reconstituição do presente, na sua dimensão cognitiva. No que
diz respeito ao saber que se possui, hoje, sobre os acontecimentos dos princípios
de 1900, estamos muito mais bem informados agora do que há vinte ou trinta
anos; as "condições de verdade" referidas àquelas eras se aIteraram substancialmente
nestes últimos tempos, o que impõe reajustes de posturas e revisões de nosso
conhecimento histórico: sabemos agora, por exemplo, que as pesquisas anagra-
máticas de Saussure sobre os mecanismos de construção da poesia estavam, entre
1906 e 1909 (e, para surpresa de muita gente, não só na teoria mas também na
prática de uma semiótica poética), muito mais adiantadas do que as pesquisas dos
formalistas russos, Brik,Jakobson, inclusive, sobre a "função poética", entre 1920
e 1930. É assim que a história do passado acaba sendo escrita retrospectivamente
pelo presente: cada presente tem o passado que merece.
É esse,' também, um dos sentidos da tradição, a cujo apelo - que não é o de
parar no tempo, mas de continuar - o presente se reinsere, em momentos dife-
rentes, em diferentes pontos de uma ininterrupta cadeia de acontecimentos que
a rigor não teve início nem terá fim, exceto nos discursos míticos, como os lite-
rários - pois o que se situa antes ou depois da história pertence ao domínio dos
mitos. Mas, sempre que um investigador enceta a ingrata tarefa de buscar pio-
neiros ouprecursores que traçaram a rotageral das expedições culturais do futurei,
é difícil fugir à tentação de remontar o curso da história em busca de algum mítico
"pai primordial", perdido nos confins de uma problemática "origem" (que, a crer
na psicanálise, é, como toda origem, igualmente mítica). Tentando localizar tais
precursores das teorias estruturais, ou formais, da narrativa, podemos recuar o
quanto quisermos, até, se calhar, a algum obscuro tratadista hindu de quem
ninguém ouviu falar, ou, numa alternativa mais modesta, podemos parar em
Aristóteles, que, como se sabe, já falou tudo, sobre tudo. Contudo, não vamos,
aqui, buscar nossos pioneiros no passado, e sim nos tempos presentes - e é fácil
reconhecê-los, hoje, nas figuras dos formalistas russos e dos estruturalistas tchecos.
Introduçâo • 15

Para lá, porém, das nomenclaturas que não serviram muito mais do que para iden-
tificar, em benefício dos arraiais sitiados, à época, o adversário a combater -
dizemos isso porque os assim chamados formalistas foram, a nosso ver, os pri-
meiros autores das teorias estruturalistas da narrativa - , e para lá mesmo dos fun-
dadores que, afinal, só interessam à história na medida em que permanecem
naquilo que fazem, importam sempre as fundações, instauradoras do novo epistema.
Nesse particular, a que emerge hoje no horizonte da história como a mais importante,
influen te e duradoura delas, por ter servido ao longo de quase todo o século como
ciência -piloto, fornecedora dos modelos cien tíficos a seguir pelas demais ciências
humanas e, particularmente, pela teoria da literatura, foi incontestavelmente a
lingüística ou, como talvez seja mais apropriado dizer agora, a semiolingüística
geral, fundada por Saussure.
Como todos os fundadores acima da bitola normal, Saussure tem um rosto
de Jano, com uma face voltada para o passado e outra para o futuro. É, pelo
menos, com esse semblante que ele redige a sua Mémoire, que, sendo o maior
livro jamais produzido pela escola dos neogramáticos, é, ao mesmo tempo, a obra
que joga a última pá de cal na sepultura deles. É assim que ele perfila a tradição
da sua ciência: retomando-a não para fazê-la estacar no que já estava feito, mas,
ao contrário, para, através do procedimento de soma e transporta de todos os
balanços, refazê-la, engrossando-a no seu cursus, a fim de que ela pudesse con-
tinuar, rejuvenescida.
E, de fato, até Saussure, a lingüística foi atomista: ela se dedicava a estudar, de
um ponto de vista genético e substancialista, um punhado de termos-objetos, tomando-
os em separado, um por um. Era o que fazia a lingüística histórico-comparativa.
Não sé pode negar, porém, que Saussure é um dos introdutores do pen-
samento da descontinuidade na história da ciência moderna e que esse pen-
samento está estreitamente associado' com o problema da desumanização das
ciências humanas. Na comunicação Les Fins de l'homme que apresentou a um con-
gresso de Nova York em 1968, Derrida afirmou a "destituição do humanismo"
(apudPJves Filho, 1988, p. 10); muito antes dele, Freud já havia posto no lugar
do homem o desejo; e Lacan, aprofundando-o, colocou a falta, a carência, reduzindo
o ser do homem à fala do outro, que é o inconsciente (l'être, l'autre, la lettre); não
de outro modo Foucault termina Les Mots et les choses (1966), afirmando a morte
do homem - não do ser humano, mas de uma concepção humanista, histórica,
que criou uma dada concepção do homem moderno sob o diktat do liberalismo
burguês, reacionário e proprietário, e a impôs, essa imagem, a todos nós, como
nossa identidade social, aquela que temos de vestir como uma pele sob as vestes apa-
renciais distintas de nossa identidade particular, para que nos identifiquemos como
entes "humanos", iguais e desiguais, iguais lla espécie e desiguais em nossas con-
dições societárias, nesse espaço de injustiças que é a sociedade.
16 • A Identidade e a Diferença

Ora, essa imagem do homem funcionara demasiadas vezes como um álibi


para a cena dos crimes da história; essa imagem humanista era, portanto, ina-
ceitável para a consciência dos cientistas sociais que viam bem - depois dos dois
máximos genocídios do século - o quanto servira ela de biombo para as culpas
gerais, desde que ela se apoderara, a partir do Renascimento, do postulado da
analogia entre os ordenamentos hierárquicos das sociedades do céu e da terra, da
hipótese da semelhança radical em que se assentavam as alianças de todos os testa-
mentos - dessa semelhança que une as coisas entre si e as palavras com as coisas:
ta.! coisa é comparável a esta outra porque continua de algum modo nela, por
adaequatio, "conveniência", por imitação, por analogia, ou por simpatia (as quatro
espécies da comparação).
Porém, foi Saussure que separou uma coisa da outra; ao insistir que "o que
o signo lingüístico une não é uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem
acústica" (1972, p. 98), ele operou o recorte de um continuum- o signo - con-
vertendo-o em uma dualidade, introduzindo o pensamento da descontinuidade
no campo das ciências humanas e sociais. De fato, com as dicotomias (significante
e significado, sincronia e diacronia, langue e parole etc.), Saussure introduziu a
diferença no seio mesmo da identidade: o estruturalismo nasce aqui com o pen-
samento da diferença fundada sobre a identidade: "na língua não há mais do que
diferenças" (apud Lopes, 1976, p. 78).
Mas, é preciso ser inteiramente justo. Saussure, que foi um dos inventores
do pensamento descontínuo, que falou em significante e significado, falou também
na sua unificação no signo; que falou em sincronia e diacronia, falou também na
sua unificação na pancronia; que falou em langue e parole, falou também na sua
unificação l1a linguagem; e não é culpa sua se o esqueceram; porque lá no COUTS

está, com todas as letras: "O mecanismo lingüístico rola inteiramente sobre iden-
tidades e diferenças, estas últimas sendo apenas a contraparte das primeiras" (Saussure,
1972, p. 151) (grifos nossos).
Assim, Saussure, que foi um dos arautos do moderno pensamento des-
contínuo, com ele criando todo um repertório de conceitos básicos das ciências
do espírito de hoje, os conceitos de oposição, contraste, substituição, comutação,
forma, substância, significante, significado, sincronia, diacronia, parole, langue,
traço distintivo etc. - conceitos esses que, retrabalhados, vieram a converter-se
no ponto médio dos debates formais do estruturalismo, no tema do descentramento
do sujeito e no da desumanização - escapou do descontinuísmo que o recon-
duziria aos postulados epistemológicos neogramaticais, pelo procedimento sis-
temático de enfatizar sempre a primordialidade dos conceitos unificadores, ope-
radores da continuidade, da solidariedade entre os elementos do sistema e da
relação; o conceito de relação: "o fato de sincronia é sempre significativo; ele apela
sempre para dois termos simultâneos: não é Gaste, 'hóspedes', que exprime o
Introdução • 17

plural, mas a oposição Gast: Gaste 'hóspede: hóspedes"'( idem, p. 122). E a solidariedade
entre os elementos do sistema: "Um sistema não é nunca modificado diretamente;
em si mesmo, ele é imutável; só certos elementos se alteram a despeito da solida-
riedade que os vincula ao todo. É como se um dos planetas que gravitam em torno
do sol mudasse de dimensões e de peso: esse fato isolado acarretaria conseqüências
gerais e deslocaria o equilíbrio de todo o sistema solar" (idem, p. 121).
Muito antes que outro qualquer viesse a pensar nisso, Saussure nos deixou
a lição de nunca começar um trabalho considerando os termos-objetos, mas, antes,
considerando as relações que os unem dentro do sistema. É com ele que os termos-
objetos - objetos do ato de conhecer - vão aparecer como feixes (ou, como ele
preferia dizer, plexus) , pontos de intersecção entre relações.
Para a constituição das teorias formais, estruturais, da narrativa, importa,
porém, mais que tudo, sua convicção de que "o que o signo lingüístico une não
é uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica" (idem, p. 98),
bem assim seu expresso reconhecimento de que "a lingüística pode tornar-se o
padrão geral de toda semiologia, ainda que a língua não seja mais do que um
sistema particular Idela/" (idem, p. 101). Se nesta citação o mestre de Genebra
reconhecia o caráter metateórico da lingüística, sua condição de modelo para as
demais semióticas, na citação anterior ele proclamava pioneiramente a "condição
autónoma do discurso", fundamental para o futuro surgimento das teorias estru-
turais da narrativa, bem como para a liberação da teoria da literatura de uma
incómoda servidão aos pressupostos culturológicos, como o de H. Taine que, ainda
na segunda metade do século passado (cf. a introdução à sua Histoire de la litté-
Tature anglaise) , insistia em não ver no texto literário mais do que "um documento".
Dizendo-o drasticamente, nunca houve na história das artes mais do que
duas maneiras de abordar a obra estética - a que a considera primariamente na
sua relação com o mundo (é o enfoque positivista de Taine, positivista porque
considera "o mundo" e a "obra" a priori como "dados", "isso que está aí") e a que
a encara como um discurso em relação com outros discursos. O enfoque posi-
tivista compreende a obra referindo-a a tudo aquilo de que ela deveria ser cópia
ou expressão (a teoria marxista ingênua do "reflexo"), o homem, a vida, o escritor,
a sociedade, o mundo, numa palavra, referindo-a a tudo aquilo que a ultrapassa
e se encontra fora dela. Essa relação, discurso artístico (texto) veTSUS mundo
(extratexto), que constitui a estrutura elementar sobre a qual se articulam todas
as teorias estéticas extrínsecas, instrumentaliza a obra de arte e a condena a ser
aquilo que ela não é - um documento, para usar o vocábulo de Taine.
Opondo-se a ela, está a reivindicação da autonomia da obra de arte, que,
tomada como um fim em si mesma, é a base de toda a teoria estética intrínseca.
Pois bem: uma teoria da obra de arte literária não tem por que colocar o
problema da existência do mundo exterior à obra, de "um mundo" que, dito seja
18 • A Identidade e a Diferença

de passagem, ser humano algum nunca viu, quanto mais "compreendeu" (porque
para ver alguma coisa é preciso que o sl~eito se coloque fora dela; e porque com-
preender alguma coisa exige compará-la com alguma outra coisa que a ela se
assemelha; mas "o mundo" é uma totalidade absoluta, que nada exclui e não se
parece com nada); assim, pondo entre parênteses qualquer "além da linguagem ",
a teoria da literatura não tem que se pôr o problema do "mundo fora da obra",
tem que se pôr, apenas, o problema do "mundo dentro dela" - um mundo que
não é constituído de coisas, mas de n outros discursos. Desse modo, a relação
discurso artístico (texto) versus discurso (intertextos), que é o fundamento das
teorias da literatura intrínsecas, como as estruturais, que encaram o discurso
literário como o resultado combinatorial de uma intertextualidade, tem seu suporte
teórico de base no pressuposto da condição autônoma do discurso.
A Saussure, que foi o primeiro a reconhecer a condição autônoma das
relaçôes estruturais, que de nada mais dependem exceto da perspectiva de sin-
cronização dos interlocutores (da sincronização forçosa do escritor e do leitor,
operada no ato da leitura), "A sincronia conhece uma só perspectiva, a dos sujeitos
que se comunicam ", Idem, p. 128) ficamos a dever o reconhecimento da autonomia
do texto - e, por extensão, do texto da obra literária, quando se consolidou, mais
tarde, via formalismo russo, a idéia de que o literário é da ordem sígnica. No
fundo,já a idéia da arbitrariedade do signo, saussuriana, emancipava a realidade
do texto de servidão a qualquer outra realidade extratextual que, por extratextual,
colocava emjogo um problema metafísico, da competência dos debates filosóficos,
mas não dos literários, nem da arte literária, que não tem por que se submeter a
nenhum princípio empiricista, cujo valor de verdade se mede não em termos de
adequação entre o discurso e a coisa de que ele é signo (condição empiricista
expressamente excluída por Saussure em sua definição de signo), mas, sim, em
termos de coerentização in terdefinicional- um problema de veridicção, portan to,
de veri-dictio, do "dizer verdadeiro", em que a verdade é construída como ade-
quação entre dizeres (porque para saber se dado discurso x diz a verdade, preciso
de outro discurso y que diga que o discurso x diz - ou não - a verdade), não
um problema de verdade.
Por si mesma, pois, a idéia da arbitrariedade da relação intra-sígnica se
resolvia na admissão de que os objetos semióticos, o discurso literário entre eles,
possuem um sentido e uma funcionalidade subordinados unicamente aos meca-
nismos de "dependência interna" - no dizer de Saussure, a modificação de um
planeta do sistema solar acarretaria a modificação do sistema todo. Nesses termos
é que a obra literária assume plenamente a sua "função transcendental", no
sentido kantiano.
Do conjunto das noçôes saussurianas emergia a possibilidade de elaboração
de uma teoria estrutural do discurso literário, capaz de possibilitar o conhecimento
Introdução • 19

de um objeto a priori, quer dizer, independentemente da experiência, definível,


devido a isso, por uma metodologia hipotético-dedutiva, a partir do modelo metas-
semiológico que, no sentir do autor do Cours, a lingüística geral oferecia - um
modelo que simulava possuir as mesmas propriedades que o objeto-tipo da sua
classe - o discurso-tipo narrativo, no caso, capaz, por isso mesmo, de servir de
modelo de descrição de qualquer objeto-ocorrencial, qualquer narrativa concre-
tamente existente.
Essa "teoria formal", que, ao aparecer na figura das teorias formalistas russas,
converteu da noite para o dia todas as teorias anteriores sobre a narrativa em dis-
ciplinas alquímicas, erajá, por índole e por vocação, uma "teoria estrutural".
A reivindicação cientificamente fundamentada da autonomia do valor
literário, a afirmação de sua independência vis-à-vis de qualquer outra consi-
deração e, correspondentemente, a exigência de uma crítica interpretativa ima-
nentista, que não instrumentalize o texto literário a nenhuma finalidade que o
ultrapasse, só serão feitas de modo sistemático - para lá das meras declarações
de intenções como as que permeiam a obra de Flaubert, de Mallarmé, ou de
Valéry- nos primeiros anos de 1900. Corriam os anos em que a literatura ganhava,
por fim, condições de passar a se exprimir a si mesma e se encaminhava para
tornar-se metaliterária.

DO SÉCULO XIX PARA O XX: PASSAGEM DO PENSAMENTO DO


CONTÍNUO PARA O PENSAMENTO DO DESCONTÍNUO

le 'IIe crois jJas aux choses, mais aux relations entre les choses.

BRAQUE

O novo século principia sob o signo do pensamento descontínuo, tanto no


terreno das artes quanto no das ciências: a teoria dos quanta, de 1900, a da rela-
tividade restrita, de 1905, a teoria da lingüística geral saussuriana não são mais do
que projeções, em diferentes espaços, de uma mudança ideológica que o Ocidente
experimenta nesse "final dos tempos", descobrindo em toda a parte estruturas
descontínuas, elementos discretos, átomos, partículas, íons, gens, fonemas, for-
mantes, traços e unidades mínimas.
Alguns (como Barthes, por exemplo) viram, na passagem para o universo
do descontínuo, uma "erotização do objeto", uma passagem do prazer ao gozo
que provém da apreensão de uma ruptura, de uma descontinuidade qualquer, no
seio de um continuum - é a intermitência, cómo assinalou a psicanálise, que é
erótica; outros, na emergência do fenômeno da descontinuidade, enxergaram a
20 • A Identidade e a Diferença

marca registrada de um tempo de alienação, da perda do sentido da interdepen-


dência solidária de tudo, da desestruturação dos mitos da ordem e da identidade,
da desagregação das mentes e do desmantelamento das noções integradoras da
apaziguadora unidade; de um ou outro modo, o certo é que, no alvorecer do novo
século, o recorte da continuidade em dois segmentos separados se faz o índice de
uma subversão orgásmica da ordem constituída.
Essa descontinuidade invade a poesia e a narrativa do período; na poesia,
ela se exprime na proliferação dos ismos escolásticos e na utilização indiscriminada
de procedimentos de desvio (o fim do metro, o fim da rima, o fim da sintaxe, o fim
dos moldes fixos, o fim do sentido, o fim das receitas... o fim); na narrativa, o
mesmo procedimento de desmantelamento origina a irrupção do descontínuo,
tanto no nível da história, na vida dos personagens, quanto no nível da narração,
com a fragmentação do discurso ou - pior- com seu infeccionamento por uma
estranha espécie de ecolalia, que o leva a falar sem fim de si mesmo. E por toda a
parte, a descontinuidade comparece; aqui, ela se evidencia na renúncia ao discurso
gramatical, ao texto legível (o do costume) , uma procura do avesso da grande obra,
qualitativamente falando (a "alta-literatura", a "obra-prima"), em benefício da obra
grande, quantitativa mas não qualitativa, responsável quer pelos folhetins e textos
de massa atrelados ao "mau gosto" popular (o best seller, o romance rosa e o pornõ-
conto da banca de jornal, a telenovela infinda etc.), quer pelos fragmentos e con-
densações desses cacos da arte brega (o hitsch), que fornecem a matéria-prima das
histórias encenadas na televisão, no rádio e no jornal, em que obras-primas pres-
tigiosas e prestigiadas pela tradição são, depois de devidamente pasteurizadas,
tornadas digestivas e rejuvenescidas, reduzidas aos lugares-comuns do pitoresco
de sua anedota, ou do exótico de seu espaço-tempo de ancoragem - textos de
massa que se citam acriticamente uns aos outros porque cúmplices da mesma
empulhação, característica dos discursos de massa (da mídia), que simulam ser
discursos de alta-cultura ("biblioteca da arte", "biblioteca da ciência") para melhor
dissimular que são, de fato, muletas publicitárias, que fazem passar o anúncio do
detergente e a propaganda do sutiã. E é, paradoxalmente, essa mesma intensa cir-
culação do pseudo literário, que é o caco, o fragmento descontínuo, o estereótípo
camuflado, a intensa circulação dessa contrafação do texto artístico, que é a sua
"adaptação" para a televisão (exemplo perto de nós: a filmagem da minissérie
"global" sobre o Grande Sertão: Veredas), que ao mesmo tempo sufoca e incrementa
a boa literatura - quanta gente, vendo a minissérie da Rede Globo se dispensou
de ler o livro de Guimarães Rosa, na ilusão de ter passado através do filme a conhecer
o romance? e, ao mesmo tempo, quanta gente, que nunca teria se abalançado a
ler a narrativa escrita do mestre Rosa, foi estimulada a lê-la depois de ver o filme?
O procedimento técnico através do qual o homem lida com o descontínuo,
reaproveitando-o em outro sentido que não o original, constitui a bricolagem; o
Introdução • 21

século em que estamos começaria, portanto, bricoleU'!: Sua expressão científica pri-
vilegiada, dentro das ciências humanas, foi a lingüística geral e estrutural de
Saussure, que gerou e forneceu o epistema e o modelo a ser seguido pelas demais
disciplinas da linguagem que viriam a prolongá-lo, o formalismo russo, o estrutu-
ralismo tcheco, a glossemática, o estruturalismo e a semiologia franceses, até a
semiótica da Escola de Paris - escolas, tendências e movimen tos que englobamos,
aqui, por conveniência da exposição, sim, mas também por convicção de não
serem todas essas correntes senão expressões descontínuas, no nível da mani-
festação, de um mesmo pensamento estrutural contínuo, no nível subjacente,
imanente, sob o rótulo estruturalismo.
Se, assim, o estruturalismo foi a expressão do pensamento da desconti-
nuidade no círculo das ciências, sua expressão correspondente no território das
artes foi o cubismo - e nem é preciso lembrar que assim como houve um cubismo
pictórico (Picasso, Braque), houve, também, paralelamente, um cubismo literário
(J oyce, Gertrude Stein), um cubismo musical (Igor Stravinski, Schoenberg),
poético (Chklovski).

A REVOLUÇÃO ESTRUTURAL DO CUBISMO

Nada jJUede ocurnr una sóla vez.

J. L. BORCES

Do Renascimento ao impressionismo, a história da pintura ocidental foi


regida por um código, uma gramática e um epistema realistas, que haviam prin- .
cipiado instalando uma espacialidade imaginária, contínua, no seio mesmo da
continuidade real da tela. O epistema cubista mergulha suas raízes no epistema
realista, ainda que o faça só para negá-lo. Ao longo dos séculos, a pintura se nutriu
do estofo ideológico fornecido pela falácia representativa, segundo a qual a arte
consistia numa exata imitação da realidade. Mas o que de fato acontecia era que, .
construindo, na figura pintada, a representação contínua de um objeto do mundo,
e assegurando o vínculo entre os dois por uma relação de analogia ou semelhança
imediatas, o pin tor realista manipulava a visão do leitor parafazê-lo crer ver o real;
na essência, ele fazia o observador ver no quadro o mesmo que a sua comunidade
já lhe fizera ver no mundo.
De fato, a pintura realista se atém só ao parecer das coisas que ela pinta.
Pintando "o que todo o mundo vê", o que o pintor fixa na tela não é uma "coisa
da realidade", é uma convenção social- o designatum pictórico de infinitas ocor-
rências de dado evento, dado objeto, resultado de um sem-número de manipu-
22 • A Identidade e a Diferença

lações a que o grupo submete todos e cada um de seus membros para neles inte-
riorizar a mesma visão de mundo, sua ideologia e seus esquemas de en tendimen to,
o repertório todo dos elementos cuja interiorização na mente do leitor virá a
compor sua particular competência para ver e para entender o mundo e os textos
produzidos por sua comunidade. Colhido na armadilha do efeito ilusionista que
Maupassant desvendou como o artifício crucial da arte realista, ''jai're vrai consiste...
ádonnerl'illusion completedu vrai" (Maupassant, "Préface" de PierreetJean) , o realista
desconhecerá que é esse designatum pictórico que diz, assinalando-se na imagem
pintada que o reproduz, "isto é uma maçã"; como aceitaria de bom grado, ele, a
impertinência de Magritte em que o designatum realista da "maçã" afirma, apontando-
se na figura pin tada ceci est unepomme, quando tal iden tificação vem, para escândalo
do bom senso (uma virtude realista), explicitamente negada na advertência escrita
que atravessa a tela a proclamar ceci n'est pas une pomme?
Debalde Magritte desmistifica a empulhação realista denunciando-a como
operadora de uma manipulação obtida à custa da redução do ser do objeto pin tado
ao seu parecer, para melhor reproduzir uma servidão do ver. Ver, de acordo com
os cânones do realismo, implica a tautologia ofuscante de ver o já-visto, de ver "o
que todo mundo vê" - paranóia do hábito, afirmada como bom senso pela
ideologia burguesa montada à base dos automatismos impostos por uma visão
autoritária do real, que força a exibição da aparência que nos faz ver o que já
vimos (exibir = fazer ver) para melhor camuflar o que deseja (camuflar = não fazer
ver). Reprodução exaustiva do mesmo, a visão realista se resolve num ver o parecer,
que é um parecer ver: mesmice paranóica da conformidade, que faz da pintura o
espaço reprodutor da dominação, um lugar imaginário de den tro do qual, quando
o miramos, "o poder Inosl vê sem ser visto" (Gluckmann).
O cubismo surgiu em 1907, com As Senhoritas de Avignon, de Picasso.
Inaugurando uma nova técnica, a tela dava um tratamento anti-realista a um
assunto tradicionalmente realista. Isso se fazia por meio de uma desestruturação
da forma realista, seguida de uma reestruturação dela em outros termos:

a. A figura-tipo era escolhida a partir de um código mimético, dentro do


qual, por convenção, ela funcionaria como o esquema copiativo do objeto
a pintar: uma moça nua, digamos.
b. Essa figura-tipo era submetida à análise - etimologicamente, ao recorte
Quan Gris chamou de "cubismo analítico" a primeira fase, de 1907 a
1912, do novo estilo), que a segmentava em suas "partes constituintes" a
partir do código analógico (para a "mulher nua", por exemplo, recortada
em cabeça, tronco, membros, nariz, braços, mãos, seios etc.); no caso,
como se tratava, até aqui, de um código realista, mimético e analógico,
os recortes seguiam as linhas de força da figura-tipo anatômica.
Introdução • 23

Montagem cubista

Desestruturação

Seleção da
figura-tipo realista
b

Análise por
segmentação das unidades
mínimas analógicas Reestru turação

Redução ou reinterpretação
das unidades mínimas
analógicas (realistas)
em unidades mínimas
d
cubistas

Reconfiguração da figura pelo


princípio da harmonia entre
os contrários de um mesmo eixo

Figura 1: Procedimentos da Montagem Cubista.

Esses dois procedimentos - da seleção da figura-tipo (a) e da análise dela


em suas unidades mínimas (b) - correspondiam ao momen to de desestru turação
da forma velha. A isso se seguia a reestruturação, em duas etapas:

c. O momento em que cada unidade constituinte mínima do código realista


assim recortada era, a seguir, reescrita sob a forma esquemática de um
sólido ou de uma figura geométrica elementar. Na consonância do que
apregoava Cézanne, para quem "tudo, na natureza, se modela segundo
a esfera, o cone, e o cilindro", um nariz se reescrevia como um triângulo
(visto de frente), um seio se reduzia à figura-tipo geométrica de um cone
24 • A Identidade e a Diferença

ou uma esfera, um pescoço se condensava no esquema figurativo de um


cilindro, e assim por diante; daí se passava a:
d. O movimento da reconfiguração, quando as formas-tipo geométricas
eram remontadas por meio do procedimento da composição sintética,
cujo princípio coerentizador era dado pela harmonia proporcionada
pelo jogo travado entre propriedades contrárias: uma composição era
ordenada, agora, pela articulação complementar, em diferentes planos,
de gamas cromáticas contrárias, ou de tonalidades opostas (tonalidade
clara / tonalidade escura), ou da sobreposição de perspectiva e contra-
perspectiva (focalização ascendente / focalização descendente) etc. O
resultado é que as composições cubistas, mormente as de Picasso, ainda
quando pareçam estar desagregandocse por efeito de uma violenta
implosão, mostram-se sempre admiravelmente equilibradas, dotadas de
ritmo e harmonia.

O SENTIDO IDEOLÓGICO DO CUBISMO

O cubismo tem um caráter altamente intelectualizado: ele não faz a menor


concessão às paixões. É um exercício cerebral, crítico, pleno de conseqüências
no que implica de denúncia da sentimentalidade e da boa consciência, do "bom
gosto" e daquela inconsciente servidão do olhar embutidos no quadro realista.
O abandono da perspectiva clássica, por exemplo, importava no abandono
do autoritarismo que induzia à aceitação de um percurso de leitura adrede imposto
pelo pintor 'ao leitor: por corresponder à visão privilegiada desde um ponto de
vista único - o ocupado pelo pintor - , não escolhido pelo leitor do quadro, a
perspectiva clássica, que foi também a realista, tinha se transformado no meio
hábil com que contava a ideologia conservadora para impor a todos os leitores,
indistintamente, uma mesma visão do mundo, arbitrariamente selecionada pelo
poder para funcionar como "o único saber" convalidável pela comunidade.
Reagindo contra isso, a composição cubista conterá muitas e contrárias pers-
npctiInhv,rle.ôxldahs1e.Jlutl:'Q&,)::tuÍD&J1poÍDssle_vi,'\.ta•.fowcados Jan1D.Dilra. rela-
tivizar o conhecimento da cena quanto para incluir na obra o caráter interpe-
lativo e contraditório de uma mesma realidade, que, sujeita, como tudo o mais,
ao tempo, com a mudança dele muda sem cessar.
Assim, na Banhista, de Picasso, por exemplo, obra de 1908-1909, o rosto e
o corpo da figura surgem de frente, mas os seios se encontram à frente - às costas
dela, ao mesmo tempo; as nádegas, giradas para a esquerda, vão' colocar-se de
flanco, ao passo que a posição das pernas é incongruente: a direita surge-nos de
frente, mas a esquerda está de lado. Aqui, opondo-se à coer.ção da leiturajá feita
Introdução • 25

da perspectiva clássica, que parte da frente em direção ao fundo e descreve a visão


de um ponto de vista parado, de um mundo estático, a perspectiva cubista inverte
o trajeto a percorrer, busca os olhos do leitor, redirecionando o ato de ver -
engajando-o, assim, para a alternativa, para o isto-e-aquilo (como se lhe dissesse
"isto é assim, mas é também assim ... e pode, ainda, não ser nada disso") - , ela
torna o leitor consciente de suas próprias limitações, instala-o no centro de uma
crise e torna-o, em virtude disso, crítico, do outro, o objeto visto, e de si mesmo.
Na Banhista, como, via de regra, no quadro cubista, o objeto observado se vê agora
como se o observador, em vez de se manter parado em determinado ponto, con-
tinuasse a fitar seu objeto enquanto caminha à volta dele, surpreendendo a cada
instante um novo ângulo, aberto por um novo ponto de vista. Nessa pintura em
paralaxe, questiona-se de dentro da tela o valor do atol', do espaço e do tempo
realistas; registrando o deslocamento aparente do objeto em relação ao fundo,
na conformidade das sucessivas mudanças do ponto de vista do observador, o
cubismo derroga os postulados que a pictografia realista - plano de expressão
da ideologia burguesa, conservadora - afirmara há séculos, como a premissa da
opacidade dos corpos, o postulado da separabilidade da frente e do fundo (o mais
importante: primeiro plano; o menos importante: segundo plano), o postulado
da coerência anatómica da figura humana - e se davam ao mesmo tempo os pri-
meiros passos para um dos temas estruturalistas por excelência, o do "descen-
tramento do sujeito".

LEITURA FILOLÓGICA E LEITURA HERMENÊUTICA

A complexificação dos ângulos de visão produzida pelo cubismo evoca-nos


agora a advertência com que desejamos encerrar esta fatigante introdução, que diz
respeito à modalidade de leitura de que nos valemos para examinar o material de
que dispúnhamos para a elaboração desta obra. Debalde se procurará aqui o que
poderíamos chamar de leitura filológica - não são os filólogos que vivem a insistir
que, ao lidar com discursos do passado, nos limitemos a ler o sentido que eles tinham·
na época em que foram escritos? Para um filólogo, o valor do passado e o sentido
que um autor atribuía aos seus textos quando os compós são sagrados, invariantes
e invariáveis - porque supõem eles, decerto, que cada escrito tem apenas o sentido
que seu autor lhe deu, que esse sentido parou no tempo em que foi concebido e
veio à luz, de modo que não compete ao leitor, para evitar deformações ideológicas,
senão acolher com um máximo de objetiva isenção de ânimo e um mínimo de inter-
pretação o sentido que o autor imprimiu na sua mensagem, ao redigi-la.
Ocorre, no entanto, que eu não acredito muito em nada disso. Não creio
que o valor do passado seja invariante: na lógica, como na lingüística, como na
26 • A Identidade e a Diferença

matemática, tudo o que é valor é valor de uma variável; creio que nenhuma obra
artística possua só o sentido que seu autor pretendeu lhe dar ao confeccioná-la:
um escritor é o autor do discurso, apenas, e tem toda a auctoritas do mundo para
organizá-lo como queira, mas uma vez que o fez e lançou sua obra ao mundo não
é mais "dono" dela do que ela mesma, ou do que eu; ele é o autor do plano de
expressão de sua mensagem, mas o autor do seu sentido, do seu plano de conteúdo,
é quem a lê: o sentido é, sempre, uma atribuição do sentido. E assim os discursos
de arte do passado são eternos não porque não mudem, mas, ao contrário, porque
vivem mudando: se o Dom Quixote continua a ter, depois de transcorridos quase
quatrocentos anos da sua composição, todo o sentido do mundo para o leitor de
hoje, isso não se deve a ter o romance permanecido inalterável durante esses anos
todos; deve-se, antes, ao fato de ter ele de algum modo "evoluído", acompanhando
a evolução dos tempos. É este o sentido do termo "histórico": só é histórico o ente
que se transforma de um ser em outro ser, à medida que os tempos velhos se trans-
formam nos novos tempos; e, finalmente, tampouco creio que possam existir
escrituras ou leituras "brancas", ideologicamente neutras ou "objetivas": escrever
compromete, ler compromete e -lembrando Camus - , mais que tudo no mundo,
não se comprometer compromete.
Quero dizer com tudo isso que não busquem aqui uma leitura filológica-
não estou nem um pouco interessado no sentido que tinha para um outro, mesmo
para seu autor, a obra que ele escreveu, quando a escreveu (de resto, por que seria
ele um leitor capaz de ler alguma coisa para mim melhor do que eu mesmo?); se
o sentido que ele pretendia dar ao seu trabalho me escapou, uma de duas: ou ele
não está incluído lá, no texto, hoje, e ficou no passado, caso em que seria inútil
procurá-lo ali, agora; ou ele está aí no escrito que leio e eu não o percebi, por
inépcia minha - mas, nesse caso, ele passou, também, ao menos para mim, e o
que se há de fazer? Como quer que seja, repito que não estou interessado no
sentido que o que eu leio tinha para o outro, outrora; estou interessado só no
sentido que ele tem para mim que leio, agora. Conseqüentemente, esta obra nasce
de uma leitura hermenêutica, expressão pela qual quero dar a entender que leio
o que leio interpretando o passado a partir do presente, consciente do caráter
produtivo (e não só reprodutivo) dessa prática significante que exerço, esse ato
de leitura que nos faz - a mim, que leio, e ao meu discurso-objeto - contempo-
râneos um do outro, contemporâneos no presente da minha leitura, quero dizer,
porque se o discurso que leio é do passado, eu, que o leio, sou do presente.
Conste, enfim, que o que me interessa nesses discursos com cujas reflexões
passo a repensar o que penso, agora, é saber o que deles sobrou, em termos de
raízes históricas das modernas teorias estruturais da narrativa, e se incorporou na
semiótica da narrativa destes nossos dias - matéria única em que eu, agora, estou
verdadeiramente interessado.
PARTE I
OS MODELOS
A SEMIOLINCÜÍSTICA CERALDEFERDINANDDE SAUSSURE
1

A REVOLUÇÃO ESTRUTURALISTA

Wie alles sich zum Ganzen webt


eins in dem andem wi1};t und lebt.
GOETHE

SEMIOLOGIA E SEMIÓTICA

A noção de "estnttura" não é jJf'Ovavellllente

nada mais do que uma concessão à moda.

KJWEBER

Que jJodelllos ojJor a uma moda?

AjJenas outra moda que jJassou de moda.

PRADO COELHO

Aqueles que pensam como Kroeber, na epígrafe acima, vão, decerto, abanar
a cabeça, desalentados, diante da proposta deste livro: Que idéia! Escrever um livro
sobre uma teoria quando ela está começando a ficar fora de moda. Mas, um outro
autor, que no Brasil talvez não tenha estado nunca em moda,jean Charles (1968,
p. 27) escrevia na sua LaFoire aux cancres: "Estuda-se o fundo do mar com uma sonda.
Se ela traz de volta garranchos, o fundo é garranchento. Se ela volta enlameada, então
o fundo é lamacento. Se ela não traz nada, então o cabo da sonda é curto demais".
30 • A Identidade e a Diferença

Quero dizer com isso que nem todo mundo está tão certo assim da morte
do estruturalismo; há pelo menos uma meia dúzia para quem uma nova fase dele
está em gestação precisamente hoje:

Supondo que este trabalho tenha algum interesse e alguma originalidade, desejaríamos que
fosse os de COlwencer o leitor de que, longe de tornar-se obsoleto como gostariam de nos fazer crer
os incur,1veis fautores da moda, o estruturalismo está ao contrário a ponto de descobrir a Idéia
matemática correspondente ao seu Conceito. Entrevemos daqui para a frente a possibilidade de
prolongar o racionalismo físico em um racionalismo estrutural, matematicamente fundado, inte-
grando-a, por meio de sua legalização, na sua "parte maldita", fenomenológica, simbólica, e semiótica;
a possibilidade, no quadro de uma extensão objetiva da ontologia natural, de naturalizar uma ordem
racional do sentido [... ]; em suma, a possibilidade de uma nova filosofia natural retificadora da
clivagem (o "Yalta" transcendental) entre NatlllToissenschaften e a Geisteswissenschaften [... ] o caminho
e a abertnra para [...] uma nova Aujlildl'lmg (Petitot-Cocorda, 1986, pp. 21-22).

Há certas confusões de princípio que compete ao autor de um livro como


este - não escrevo para os sábios - deslindar, na medida do possível: a das
conexões freqüentemente mal-estabelecidas entre lingüística e literatura, entre
lingüística e semiótica, o emprego concorrente ou, às vezes, alternativo dos rótulos
semiótica e semiologia, a da compreensão variável que se reservou a vocábulos
correntes como estrutura e estruturalismo, em espaços e tempos diferentes, e
assim por diante.
Comecemos pela parelha semiótica e semiologia.
Embora nada disso seja nunca discernível em estado puro, costumamos hoje
separar a semiologia, teoria geral dos signos, da semiótica, teoria da significação.
De um outro modo, portanto, as duas disciplinas têm sempre algo que ver com
as "linguagens", no sentido lato - e daí sua aproximação com a lingüística, dis-
ciplina que lida com as chamadas "línguas naturais".
Em um sumaríssimo recorrido histórico, poderíamos dizer que, ciência
dos signos, dos sistemas de signos ou das significações, houve uma espécie de
pré-semiótica filosófica en tre os gregos, desde o Crátilo de Platão e o Pen' Henneneía's
de Aristóteles (sem [alar dos seus mais votados, Retóncae Poética), aque se seguiram,
na Idade Média, as Grammaticae Speculativae da escolástica etc.; mas é com John
Locke que o termo semiotihé aparece pela primeira vez, no século XVII, designando
uma teoria do conhecimento que é, na sua essência, nominalista. Para Locke,
não existem senão indivíduos, seres singulares, sendo as idéias gerais meros nomes
ou szg;nos.
Aproximações e concessões à parte, é com Charles Sanders Peirce que se
irá reconhecer que todo pensamento constitui um signo e participa em essência
da natureza da linguagem.
A Revolução Estruturalista • 31

De fato, com Peirce a semiótica dá os seus primeiros passos para vir a cons-
tituir-se disciplina autõnoma. É dele a primeira definição moderna desses estudos,
datada de 1867, num trecho em que frisa orgulhosamente o seu próprio papel de
precursor: "Sou, tanto quanto sei, um pioneiro, ou, melhor, um abridor de picadas
(a bachwoodsman) , na faina de desbastar e de expor o que chamo Semiótica, ou
seja, a doutrina da natureza essencial e das variedades fundamentais das semioses
possíveis" (ajJudEco, 1971a, p. 16).
Essas palavras deixam claro que Peirce concebia a semiótica como uma clis-
ciplina da lógica - o que, de resto, ele próprio confirma: "ALógica é, em seu sentido
geral [... ], apenas um outro nome da Semiótica, a doutrina quase-necessária ou
formal dos signos" (ajJudLopes, 1976, p. 16). Enquanto isso, seu equivalente europeu
(Peirce escrevia nos Estados Unidos), o vocábulo semiaIagia, foi concebido, vinte
e tantos anos após, como uma disciplina da psicologia social. O termo semiologia
aparece, segundo Godel (ajJUd Amacker, 1975, p. 38), nas notas de Ferdinand de
Saussure, a partir de 1894,já para aludir a "uma ciência geral dos signos". A explanação
do fundador da semiologia e da lingüística estrutural se acha nas últimas páginas
do terceiro capítulo do Cours de linguistique générale. "A língua é um sistema de signos
que exprimem idéias [... ]. Pode-se pois conceber uma ciência que estude a vida dos
signos no seio da vida social: ela formaria parte da Psicologia Social; denominá-Ia-
emos Semiologia (do grego semeion, "signo") (Saussure, 1972, p. 33).
Não são posições exatamente iguais, mas elas não se excluem necessa-
riamente; de certo modo são mesmo complementares. Como quer que seja, foram
elas que deram origem, em seus prolongamentos históricos, a duas tendências
diferentes, uma semiótica filosófica - Peirce era um filósofo profissional, de fato,
o verdadeiro fundador do pragmatismo quase sempre atribuído a seu amigo W.
James - e uma semiologia lingüística - e Saussure foi a vida toda, mesmo tendo
começado como lingüista, um semiólogo:

1. Uma semiótica filosófica que, com o tempo, se tripartiu em:


1.1. Uma semió tica lógico-filosófica cultivada por Frege, Dilthey, Heidegger,
Lipps, Gadamer, Apel e J. Habermas.
1.2. Uma semiótica filosófico-transcenden tal, com E. Cassirer, R. Honigswald
e E. Heintel; e
1.3. Uma semiótica lógico-pragmática, também chamada de filosofia ana-
lítica, em que comparecem B. Russell, Wittgenstein, Moore, Ch. Morris;
enfim, todos os lógicos comportamentistas que estudam a significação
como uma teoria do uso da proposição, o que inclui gente dos dois
outros grupos, junto com Frege, Russell, Carnap e Quine.
2. Uma semiologia lingüística, hoje mais chamada de semiolingüística,
que surge, como vimos, com Saussure e que vai produzir, nos anos que
32 • A Identidade e a Diferença

virão, direta ou indiretamente, todas as tendências estruturalistas -


além da Escola Geralista de Genebra, o formalismo russo (que inclui
os trabalhos do Círculo Lingüístico de Moscou e a OPOIAZ de São
Petersburgo), do estruturalismo tcheco (o Círculo Lingüístico de Praga),
a glossemática (o Círculo Lingüístico de Copenhague), o translacionismo
de Tesniere, o estruturalismo descritivista (Bloomfield) e o estrutu-
ralismo mentalista norte-americanos (E. Sapir).

N os finais dos anos 60 do nosso século, resolveu-se unificar a nomenclatura,


já que apesar de algumas diferenças teóricas não havia incompatibilidade absoluta
entre semiótica e semiologia. Greimas relatou em uma entrevista como se deu
o acordo:

Nós [Greimas e Banhes] não fazíamos distinção entre semiologia e semiótica. O problema
terminológico surgiu mais tarde: quando os alunos de Banhes quiseram conservar "semiologia",
malgrado a decisão das "altas autoridades".
Para criar uma associação internacional de semiótica, seria preciso dispor de um termo
que tivesse correspondente em inglês, pois de outro modo teríamos tido uma associação de
semiologia em francês e de semiótica em inglês, oposição que, de algum modo, existe entre a
escola européia e a americana, mas que não era visível na época. Então ]akobson propôs esse
termo, e nós éramos quatro, Lévi-Strauss, Banhes e eu, para decidir. Logo, Banhes cedeu, eu
também, e isso se vê em meus textos anteriores onde o termo semiologia foi empregado muito
freqüentemente (1986, p. 43).

Até aqui, a questão da semiologia e da semiótica é um problema termino-


lógico hoje decidido com a fixação definitiva da última denominação; fala-se hoje,
portanto, de semiótica européia, semiótica francesa, semiótica americana.
Vejamos, agora, o estruturalismo.

A REVOLUÇÃO ESTRUTURALISTA: O NOME E O EPISTEMA

Genebra, Moscou, São Petersburgo, Praga, Copenhague, Paris são os luga-


res em que se postam os marcos miliários do caminho percorrido pelo estrutu-
ralismo, nas suas manifestações semiolingüísticas geralistas, formalistas, funcio-
nalistas, estruturalistas tout court, glossemáticas, semiológicas e semióticas.
Parece que o termo "estrutura" foi cunhado dentro do vocabulário técnico
de arquitetura, mas se discute ainda hoje quando teria sido pela primeira vez
empregado em qualquer das acepções em que o encontramos dentro das ciências
humanas e sociais, no século XX.
A Revolução Estruturalista • 33

Broekman (1974, p. 35) informa que o termo "estrutura" surgiu pela primeira
vez em 1935, durante uma sessão do Círculo de Praga; Mounin (1973, p. 134),
assegura que a palavra vem de um artigo de Viggo Br0ndal, "Lingüística Estrutural",
publicado no número 1 da Acta Linguistica, periódico do Círculo de Copenhague,
em 1938; Benveniste, por sua vez, assevera que "estrutura" aparece já no título das
Teses de 29, do mesmo Círculo de Praga (1966, p. 94) e precisa que o fundador do
estruturalismo, Ferdinand de Saussure, nunca utilizou essa palavra no Cours:
"Saussure nunca empregou, em qualquer sentido, a palavra 'estrutura'. Aos seus
olhos, a noção essencial é a de sistema" (idem, p. 92). Contrapondo-se a todos eles,
Aguiar e Silva escreveu: "Alguns anos antes, porém, da publicação das Teses de 29,
já em textos de diversos formalistas russos, cujas relações diretas e cujas afinidades
doutrinárias com a Escola de Praga são bem conhecidas, a palavra' estrutura' surge
com algumafreqüência [... ]" (1973, pp. 631-632). E, completando sua informação,
Aguiar e Silva cita, além de um trabalho de Tinianov e um outro de Jirmunski,
algumas passagens de Brik, de Tomachevski e de Eikhenbaum.
Na verdade, nenhuma dessas informações está inteiramente correta, pois
se deixarmos de lado um punhado de escritos que há muito utilizavam "estrutura"
em um sem-número de acepções ocasionais, mas sempre num sentido próximo
e intuitivo de "organização", "conjunto", "agregado" e "construção", nenhuma
das quais rigorosamente estruturalista - veja-se, a propósito, Bastide, em Sens et
usage du terme "structure" dans les sciences humaines - o certo é que esse vocábulo
surgiu em pelo menos algumas de suas peculiares acepções estruturalistas, não
em Praga, 1935, como informa Broekman, nem, como diz Mounin, no artigo de
1938 de Br0ndal, nem nas Teses de 29, como afiança Benveniste, e nem mesmo no
trabalho de qualquer dos formalistas russos mencionados por Aguiar e Silva, mas,
antes, ainda, de todos eles, e pela primeira vez, precisamente no Cours de lin-
guistique générale, de Saussure, em que figura ao menos em duas ocasiões: "Empregam-
se freqüentemente os termos construçâo e estrutura a propósito da formação das
palavras" (Saussure, 1972, p. 244; d. também a p. 256 da mesma edição, a pro-
pósito das raízes monossilábicas do alemão, quando Saussure precisa que elas
obedecem "a certas regras de estrutura").
É preciso particularizar, todavia, na esteira de Tullio de Mauro, que Benveniste,
se desacerta na informação, acerta na interpretação ao advertir que o termo habi-
tualmen te utilizado por Saussure para designar a noção de "estrutura" - ao menos
na sua acepção de langue- é "sistema".
Posto isso, uma vez cunhada a expressão, ela vai ser cada vez mais utilizada
à medida que avança o século: raríssima em Saussure, ela aparece um pouco mais
com os formalistas russos (d. a citação de Aguiar e Silva supra) e cresce ainda mais
com os formalistas tchecos. Esse aumento na freqüência do uso e da circulação
do termo assinala uma progressiva tomada de consciência de que, do final do
34 • A Identidade e a Diferença

século XIX para o começo do XX, tinha-se operado uma ruptura epistemológica
crucial para as ciências humanas, com o aparecimento de um novo epistema de
que "estrutura", "estruturalismo" e derivados constituíam o plano de expressão.
Com o neologismo "epistema" designamos o esquema de entendimento
dominante, o diagrama ou noção geral que projeta no bachground histórico de
uma época o seu conceito-chave, em torno do qual gravitam e se ordenam seus
sistemas de pensamento (na série científica, na série artística, na série filosófica
etc.) e que funciona como o a priori metacognitivo definidor das possibilidades
teóricas de dado campo epistemológico. De um ponto de vista metodológico, o
epistema é o metaconceito dominante que opera a autenticação dos modelos ana-
lógicos que sob sua inspiração são produzidos por disciplinas conexas àquela em
que ele primeiro apareceu; encarregado, pois, de homologar e sancionar, positiva
ou negativamente, conceitos, princípios ou procedimentos análogos de outras
disciplinas, o epistema é o ideologema da moda: é ele que define tudo o que, nas
teorias coetâneas, tem sentido ou não, tudo o que é sensato ou insensato, racional
ou irracional-a ordem e a desordem. Finalmente, é do ponto de vista do epistema
dominante que analisamos, interpretamos, classificamos e, sumariamente, com-
preendemos o que há para compreender; ele unifica e dá sentido ao que fazemos,
ordena nosso próprio pensamento e o reconcilia com o pensamento do outro;
sem ele, tudo o que há em nossas vidas não passaria de um caos, um monte ata-
balhoado de materiais de construção, sem significação e sem utilidade - um caos,
não um logos, um monte de tijolos, não um edifício.
Como freqüentemente ocorre na história da cultura, a lingüÍstica e a teoria
literária eram já estruturalistas antes mesmo que os próprios cultores da nova meto-
dologia se tivessem dado conta disso. Pois acima de suas episódicas e compreensíveis
diferenças, havia um denominador comum a aproximar as mais distan tes tendências
estruturalistas, dos geralistas de Genebra, dos formalistas russos, dos funcionalistas
tchecos, dos glossemáticos dinamarqueses - e era seu comum entendimento de
que todos eles lidavam com o mesmo objeto, conjuntos significantes designados ora
como discursos, ora como textos, ora como obras ou composições, de um mesmo
ponto de vista intrínseco, tomando-os como construções articuladas por uma rede
de dependências internas, que se explicavam dentro de si mesmas, com o rechaço
sistemático dos delírios logomáquicos dos "ideólogos" ou dos "culturalistas".
O que era "novo" no pensamento deles era, primeiro, o mesmo rechaço da
verborragia oca dos teóricos e críticos extrínsecos e, segundo, mais do que a adoção
de um mesmo corpo de doutrina homogêneo ou estabilizado, ou de uma mesma
epistemologia que lhe desse sustentação, todo um conjunto de categorias teóricas
e críticas e uma mesma metodologia - ainda que diversamente utilizada. Porque,
ao contrário do que sempre assoalharam os seus detratores, o estruturalismo foi,
desde o seu nascimento, um método, uma teoria, um ponto de yista e uma ideologia.
A Revolução Estruturalista • 35

Nesse conjunto de categorias críticas se reconheciam certas noções que


eram encaradas como propriedades mais ou menos salientes dos cOl~untos signi-

ficantes a descrever- propriedades do discurso-objeto - dentre as quais: a. sua


relatividade, b. sua funcionalidade, c. sua unidade, d. sua integralidade ou tota-
lidade, e. sua transformabilidade e f. sua auto-regulatividade. Numa primeira apro-
ximação, tais coisas poderiam ser compreendidas mais ou menos como segue.

As "Propriedades Estruturais": A Relatividade, a Funcionalidade, a Unidade, a


Totalidade, a Transfonnabilidade e a A uto-regulatividade

Por relatividade podemos entender a idéia de que nada mais, no interior


de um conjunto significante, um texto literário, por exemplo, poderia continuar
a ser identificado, classificado, estudado ou definido por sua natureza (como nos
epistemas historicistas e positivistas, anteriores ao estruturalismo), mas somente
por sua função.
A partir de Saussure, que formulara o princípio relacional do sistema, "o
mecanismo lingüístico gira inteiramente sobre identidades e diferenças" (idem,
p. 151), percebeu-se que tudo o que um elemento discursivo é ele o é em relação
a todos os demais elementos que participam do seu mesmo sistema. Duas conse-
qüências que se extraem disso são: elemento nenhum, numa mensagem, existe
sozinho; e elemento nenhum pode ser definido por sua natureza ou (o que dá
no mesmo) isoladamente, mas sempre e só por referência a outro elemento
qualquer da mesma formação.
Quanto à funcionalidade, se compreendermos por função o princípio da
utilidade local de um elemento dentro de um conjunto, o seu uso local- definível
por meio de um sema funcional (prático elou mítico) do tipo I que serve para...
xl-, diremos que a função de cada elemento se define por uma referência dele
a qualquer outro elemento pertencente ao seu mesmo conjunto, visto que dois
elementos inscritos no mesmo universo de discurso são, por definição, parcialmente
iguais (na medida em que pertencem ao mesmo universo) e parcialmente dife-
rentes (é essa diferença parcial que nos faz distinguir um do outro; caso contrário,
não teríamos dois, mas um só e mesmo elemento); assim, a noção defunção se iden-
tifica com a noção de est'rutura, de relação ou de estrutura elementar da significação, em
Greimas (presença, em nossa mente, de dois termos-objetos, SI e S2' que asso-
ciamos em nosso pensamento por serem eles parcialmente iguais e parcialmente,
diferentes, concomiJantemente).
A propriedade acima, da funcionalidade, liga-se, assim, à propriedade da
unidade: uma estrutura nos aparece como una por ser um universo ou categoria
constituída, S, pela articulação de duas partes constituintes complementares, SI e
s2; assim, o universo da [sexualidade] nos surge como um eixo semântico, S
36 • A Identidade e a Diferença

(Greimas), constituído pela articulação de dois termos-objetos complementares,


sI [macho] e s2 [fêmea]:

S [sexualidade]

SI [macho] versus 52 [fêmea]

Figura 2: Estrutura Elementar ela Significação (Função ou Relação).

É essa complementariedade das partes, articuladas por meio de uma diferença


no seio de uma totalidade (Saussure), que confere ao conjunto Sa sua coesão sin-
tática e a sua coerência semântica.
Por outro lado, o conjunto S, constituído como uma função por esses cons-
tituintes elementares, SI e S2' tomados como funtívos (Hjelmslev), é uma totalidade
- quer dizer, uma estrutura completa em si mesma, em que cada elemento é o
que é em função dos demais elementos serem o que são. Assim, um texto é uma
estrutura, não um mero conjunto, ou um simples agregado de itens, de tal modo
que suas partes constituintes não têm na verdade nenhuma existência formal (-
sígnica, semiótica) fora da estrutura que os contém; e é por ser uma unidade tota-
lizadaque uma estrutura não pode ser explicada por coisa alguma exterior a ela
mesma.
A quinta propriedade que apontamos para a estrutura, a saber, a sua trans-
formabilidade, nem sempre foi um ganho teórico pacífico. Mas, diferentemente
do que pensavam os primeiros estruturalistas ligados ao formalismo russo (com
a notável exceção de Chklovski e uns outros poucos), o texto não pode, enquanto
estrutura, ser trabalhado como estático (como pensavam sempre, por exemplo,
os propugnadores da leitura filológica) ; como Chklovski viu, a obra de arte literária
é uma estrutura em perpétua mutação, uma totalidade estruturada que continua
sendo, ao mesmo tempo, estruturante- em perpétuo devir, em incessante processo
de transformação.
Não apelando para nada fora de si mesmas - graças às propriedades da
unidade, da integralidade e da transformabilidade de que gozam - , as estruturas
se transformam a partir de operações internas, que podemos entender, por exemplo,
à semelhança do que ocorre com um corpo posto em movimento, que, estando
em movimento, pelo princípio de inércia, tende a permanecer em movimento;
ou, ainda, à semelhança de um processo gerativo como o de uma semente, que,
uma vez germinada, se desdobrará em fases sucessivas até o apogeu da árvore; no
caso das estruturas lógicas, intelectivas, essas transformações ~ão endogeradas pelo
A Revolução Estruturalista • 37

procedimento de reescrita do estado anterior, dado. Se postularmos, então, que


cada estrutura possui imanentemente seu próprio sistema de regras de reescrita,
que a todas rege o mesmo princípio de retroalimentação (feedback), poderemos
dizer que as estruturas são sistemas auto-regulados; assim, um estado qualquer
de uma língua natural, por exemplo, não evolui por interferência direta de qualquer
padrão de mudança da realidade social exterior a ela, sim, ao invés disso, pela
enunciação (ou reenunciação) inovadora de um sistema de reescrita que visa a
rec~justar a totalidade em um novo estado de equilíbrio tão logo uma de suas partes
constituintes haja sido modificada por uma razão qualquer; assim, também, os
estilos artísticos se renovam por uma reescrita de suas próprias regras tão logo o
estilo em vigência, por força mesma da intensificação de sua circulação, tende a
atingir, cedo ou tarde, um estado de entropia e, logo, de banalização - com o
qual perde sua eficácia artística, exigindo, em conseqüência, uma reacomodação
interna de suas regras de estruturação.
Tenha-se em mente que essas "propriedades estruturais" são reconstruções
a jJosteriori, em boa parte reconhecíveis como extrapolações induzidas por esta ou
aquela corrente de investigadores. De fato, nem essas propriedades representam
a totalidade das propriedades comumente tidas e havidas como características das
formações estruturadas - é possível que faltem algumas, ou que sobrem outras,
em talou qual formação ocorrencial - nem, no caso de serem elas aceitas, é
seguro que se tenha dado delas, aqui, uma definição incontroversa.
Mais do que isso, ainda, é preciso notar que nem todas essas características
vão ser encontradas em todas as variadas modalidades de estruturalismos que, a
partir dos anos 30, se espalharam pelos diversos compartimentos das ciências
humanas, nos quatro cantos do mundo; para ficar em um só exemplo, as três
últimas propriedades, da integralidade, da transformabilidade e da auto-regula-
tividade, em que pese surgirem um pouco por todos os estruturalismos, são marcas
mais bem reconhecíveis em formações estruturais prático-cognitivas tais como as
que Piaget localiza, sucessivamente, na criança, no terreno da psicologia da apren-
dizagem, ou estruturas mítico-cognitivas dos tipos que caracterizam os diferentes
estágios de aquisição da capacidade de simbolizar, na formação da personalidade·
humana (Freud, Lacan e outros). Todas surgem, finalmente, como traços dis-
tintivos pertinentes da narratividade inerente aos discursos dotados de sentido.
Como uma estrutura pode ser definida, sempre, em termos de uma tota-
lidade funcional, essas duas propriedades compõem, finalmente, o núcleo duro
do epistema "estruturalista" - espécie de resumo de todo o conjunto das pro-
priedades que acabamos de assinalar - e se têm reconhecido, ao longo dos anos,
como o metaconceito que contém os traços pertinentes necessários de toda e
qualquer estrutura; são elas que compõem, de fato, a definição conceptual cien-
tífica de relação, função, ou estrutura elementar da significação.
38 • A Identidade e a Diferença

A nosso ver, três sábios se encarregaram de retirá-lo do domínio das meta-


linguagens intuitivas, não-construídas, para dar-lhe uma definição científica,
como um conceito interdefinido dentro de uma metalinguagem formal, cons-
truída: Saussure, Hjelmslev e Greimas: Saussure, o fundador, ao definir a língua
como "um mecanismo que gira inteiramente sobre identidades e diferenças";
en tendimento que possibilitou percebermos uma estrutura - um sistema, como
o da langue -'- como uma totalidade na qual um elemento se define, obrigato-
riamente, como igual e ao mesmo -tempo diferente de qualquer outro elemento
do conjunto; Hjelmslev, ao prolongar a dicotomia significante versus significado
saussuriana na posterior distinção de dois strata para cada plano - o estrato da
substância da expressão e o da forma da expressão, contrapostos ao estrato da
substância do conteúdo e da forma do conteúdo, constituindo signo, para ele, só
a articulação de uma relação en tre os estratos formais (da expressão e do con teúdo)
- e ao pontualizar, a partir disso, cada estrutura como "uma entidade de depen-
dências internas"; e Greimas, finalmente, ao identificar os conceitos de função
e relação com o da estrutura elementar da significação, produzindo, para ela,
duas definições:

• Uma primeira definição, a que deu uma formulação que poderíamos


chamar de "positiva", concebendo a estrutura como a presença em
nossa mente de dois termos-objetos que associamos por serem par-
cialmente iguais e ao mesmo tempo parcialmente diferentes (cE.
Greimas, 1966).
• Uma segunda definição, postulada agora em termos de uma formulação
dialética, na forma da articulação de "uma estrutura elementar positiva",
sI versuss2' com "uma estrutura elementar negativa", "não-sI" versus "não-
s2" (ou, como ele prefere grafal~ 51 versus S;), coisa que produz o chamado
quadrado semiótico.

Isso tudo evidencia que a relação (ou a função, como prefere Hjelmslev, ou a es-
tTUtura elementm; na terminologia greimasiana) é o metaconceito síntese do epistema estTU-
turalista; e é desse ponto de vista que a prioridade histórica na formulação do
conceito pertence indisputadamente a Saussure, que já observara, aliás, que a
relação não é um vínculo colocado entre coisas (termos-objetos) preexistentes,
que existissem independentemente da própria relação; que, ao contrário do que
comumente se pensa, é a existência da relação que põe a existência do objeto (e
do sujeito) do conhecimento (e não vice-versa); que, por isso, sem a existência da
relação não há como falar em objeto de conhecimento, dado todo importante
quando se atenta para o fato de que, em decorrência disso, tendo em mente a
dupla implicação do sujeito e do objeto, que são reciprocamente postulados -
A Revolução Estruturalista • 39

um não pode existir sem a existência contemporânea do outro - não havendo


objeto de conhecimento não há, tampouco, sl~eito do conhecimento; ou, nos
termos deJakobson: "A abordagem topológica (de Saussure) - 'não são as coisas
que importam, mas suas relações' - é decisiva para a metodologia da Fonologia.
Não se pode definir o fonema Ipl do francês sem se referir aos demais fonemas
- por exemplo, ao restante das obstrutivas surdas" (1973, p. 139).

Figura 3: O Quadrado Semiótica (cf. Greimas).

As Correntes Estruturalistas Dentro das Ciências Humanas e as Tendências


Estruturalistas Semiolingüísticas no Século XX

Um lingiiista surdo à função jJoética da linguagem


e wn eSjJecialista da literatura indiferente aos jJroblemas lingiiísticos

e ignorante dos métodos lingüísticos são, ambos, flagrantes anacronismos.


R.]AKOBSON

o epistema dominante no campo das ciências humanas e sociais deste século


que está chegando ao fim foi (e é evidente que não nos esquecemos nem por um
instan te, ao fazermos tal afirmação, de que a existência de um epistema pressupõe,
a partir da qualificação dominante, a existência de outros epistemas concorrentes,
dominados) o estruturalismo; no caso do estruturalismo, seu contra-epistema con-
corrente foi, primeiramente, o modelo do materialismo dialético marxista e, até
certo ponto, no primeiro meio-século, o existencialismo. De fato, as ciências
humanas - e mais particularmente, as ditas' ciências sociais - possuíam pou-
quíssimos modelos descritivos ou explicativos antes do advento do estruturalismo,
40 • A Identidade e a Diferença

cingindo-se a maioria de suas investigações à aplicação quase exclusiva da meto-


dologia preconizada pelo historicismo dialético marxista. Nos meados do século,
con tudo, logo depois do final da Segunda Guerra Mundial, o modelo de abordagem
mais empregado nesses campos foi de longe o estruturalista: é ele que fornece
entre 1950 e 1970 o suporte metateórico para as categorias analíticas da sociologia,
da etnologia, da história, da antropologia, da psicologia, da lingüística e da lógica.
Essa predominância é quase unânime, por exemplo, na França, na década de 60.
Um exame sllmário da bibliografia francesa dos anos 60, mesmo que nela nos ate-
nhamos unicamente à obra dos principais representantes do estruturalismo de
Paris - Lévi-Strauss, Banhes, Foucault, Althusser e Lacan - mostra esse fato:

(1961) Foucault, Folie et déraison. Histoire de laJolie, Paris.


(1962) Lévi-Strauss, La Pensée sauvage, Paris.
(1964) Lévi-Strauss, Le Cru et le cuit, Paris.
(1964) Roland Banhes, Essais critiques, Paris.
(1965) Althusser, Lire le Capital, Paris.
(1966) Banhes, Critique et vérité, Paris.
(1966) Foucault, Les jVIots et les choses, Paris.
(1966) Barthes, Introduction à l'analyse structurale des récits, Paris.
(1966) Lacan, Écrits, Paris.
(1966) Lévi-Strauss, Du iVliel aux cendres, Paris.
(1969) Foucault, L'Archéologie du savoir, Paris.

Mesmo não arrolando as obras de grandes nomes como Badiou, Derrida,


Umberco Eco, Bremond, Greimas, Dumézil, Todorov, Kristeva, Benveniste, Ricoeur
e outros que compõem umas das mais brilhantes gerações de pensadores franceses
no campo das ciências humanas e sociais, mesmo deixando de lado, igualmente,
o fato de que a década de 60 representou também o período das sínteses mais bri-
lhantes do estruturalismo até então efetuadas em revistas como Change, Tel Quel,
Poétique, Semiotica, Communications, cujo número 8, várias vezes reeditado, é crucial
para a constituição da melhor semiologia da narrativa do período, a listagem acima
é bastante reveladora de três coisas:

a. Do fato de que a década de 60 representa o período de maior expansão


do estruturalismo na Europa.
b. Do fato de que essa expansão foi ditada, por um lado, pelos avanços da
lingüística geral ou da semiolingüística geral estruturalista de Saussure,
trabalhada em nível teórico e em função da disseminação dos trabalhos
do formalismo russo e do estruturalismo tcheco (sobretudo da fonologia
estrutural, na linha aplicada por Trubetzkoi e Jakobson).
A Revolução Estruturalista • 41

c. Do fato de que, concorrendo com essas duas magnas influências, e apesar


de terem tido como seu ponto de irradiação a França, na origem de todo
o estruturalismo francês dos anos do segundo pós-guerra está, também,
o pensamento filosófico alemão de antes da Primeira Guerra Mundial,
como se comprova da obra de alguns desses investigadores, alguns datados,
mesmo, dos fins do século passado:
• A psicanálise de Lacan provém de Sigmund Freud.
• O materialismo dialético de Althusser, de Marx.
• A filosofia da cultura de Foucault, de Nietzsche.
• A gramatologia de Derrida, de Heidegger.

Uma das carreiras mais reveladoras, nesse sentido, é a da obra de Lévi-


Strauss - não sem uma certa razão considerado, nos anos 60, como o introdutor
por excelência do pensamento estrutural nas ciências sociais francesas. Sabe-se,
hoje, que sua ruptura epistemológica definitiva com o velho pensamento surge
aquando do seu encontro comJakobson nos Estados Unidos deixa-se influenciar
por Saussure, pela fonologia deJakobson e pela narratologia de Propp, os quais
vêm se somar aos influxos mais antigos, nele, de Marx, M. Mauss e de Freud.
Ora, o que essa gente toda - Freud, Marx, Nietzsche, Heidegger, do lado
alemão, e seus seguidores do lado francês, Lacan, Althusser, Foucault, Derrida e
o próprio Lévi-Strauss - apresenta em comum, do ponto de vista formal-episte-
mológico, é a postura metodológica estruturalista e, do ponto de vista ideológico,
a sua denúncia do epistema historicista-humanista, com seus comprometimentos
burgueses, montados sobre um tipo de racionalismo ClUa vacuidade retórica e ino-
perância prática todos eles vêm denunciar. O que primeiramente cai por terra,
então, é a concepção tradicional do sentido; e assim como a lingüística aplicada
só se converte em ciência positiva a partir do instante em que põe entre parênteses
o plano de conteúdo das línguas naturais, para, seguindo o exemplo de Saussure,
Trubetzkoi e Jakobson, se dedicar à análise sincrânica do plano de expressão,
assim também as ciências sociais estruturalistas vão começar pela denúncia dos
conteúdos estratificados na fase pré-estrutural dessas disciplinas em beneficio do
exame, agora, das relações internas dos elementos que compõem o plano de
expressão dos diferentes objetos delas.
Estamos hoje em melhores condições do que eles para compreender a sua
insatisfação perante um epistema tal como o humanista, quejá então havia esgotado
todas as suas possibilidades históricas na utilização de um racionalismo materialista
exânime, cuja culminação fora, boas intenções à parte, o genocídio da Primeira
e Segunda Guerra Mundial. O que veio na esteira disso, logo no segundo pós-
guerra, em que emergiam, contrastantes, as d'uas novas superpotências mundiais,
os Estados Unidos e a União Soviética, foi a demonstração mais cruel e acabada
42 • A Identidade e a Diferença

de que numa civilização tecnológica e tecnocrata como a que se levantava das


cinzas da destruição da Europa não havia mais lugar para a especulação filosófica
abstrata e a retórica vácua do humanismo. O Ocidente atravessava então o momento
em que tudo se convertia em tecnologia, isto é, não na formulação teórica, espe-
culativa, das ciências enquanto um Jazer saber - uma teoria - mas, sim, na for-
mulação prática, conversível em metal sonante, das ciências empíricas, das tecno-
logias, enquanto saberJazer. Nada a estranhar, portanto, que a partir da década de
60, nesse paradigma da civilização burguesa ocidental que são os Estados Unidos,
a lingüística geral estrutural, eminentemente teórica nas suas diferentes versões
européias, tenha cedido seu lugar para a gramática gerativo-transformacional-
que, na verdade, não é uma teoria lingüística, é uma tecnologia gramatical- e
que a lingüística lógico-filosófica da comunicação tenha, nessa era do mass media,
virado uma pragmática - que é uma tecnologia da comunicação.
Uma análise de amplíssimo espectro - que mescla o ponto de vista his-
tórico com o pon to de vista sistemático do estruturalismo nas suas diversas mani-
festações no campo das ciências humanas e sociais - , tal como foi efetuada
por Petitot-Cocorda, mostraria que o estruturalismo se distribuiu pelas seguin-
tes tendências:

1. O estruturalismo dinâlllico, de origem biológica e conteúdo vitalista, que, partindo da


NalllljJ/úlosojJhie e do DynalllislIllls oriundos do idealismo especulativo alemão, pontuou
a história da biologia para culminar através das enteléquias de Driesch aos conceitos de
"campo morfogenético" e de "creodo" na obra de \Vaddington. Esse estruturalismo
dinâmico está centrado no problema da 1I!00fogênese.
2. O estruturalismo fenomenológico e gestaltista que se constituiu no começo deste século
a partir dos trabalhos de Brentano (Stumpf, Meinong, Ehrenfels, Husserl, Kohler, Koftlza,
\Vertheimer e outros).
3. O estruturalismo lingüísLico que, partindo da "ruptura epistemológica" saussuriana, se
tornou um dos paradigmas fundamentais das ciências humanas na fonologia comJakobson,
em antropologia com Lévi-Strauss, em lingüística com Tesniêre e Benveniste, ou em
semiótica com Hjelmslev e Greimas. Esse estruturalismo cindiu-se em duas correntes:-
a. A do estruturalismo fenomenológico, "realista", deJakobson, que entretém estreitas
relaçoes com o estruturalismo dinâmico e a Gestaltheorie.
b. A do estruturalismo formalista, "metodológico" e "epistemológico", de Hjelmslev,
Lévi-Strauss, Chomsky e Greimas, que concebe as estruturas como objetos teóricos
"axiomatizáveis" e resolve a questão da sua realidade ontológica radicando-as nas
capacidades cognitivas biologicamente (e portanto geneticamente) determinadas.
4. O estruturalismo epigenético e cognitivo de Piag-et.
5. O estruturalismo "catastrófico" desenvolvido por René Thom. Profunda síntese entre os
conceitos de morfogênese e de estrutura, e, logo, entre o estnlturalismo dinâmico "vitalista"
A Revolução Estruturalista • 43

e o racionalismo semiolingüístico inaugurado por Saussure, este é o primeiro que con-


seguiu matenzatizGI; não de uma maneira formalista ingénua, as estruturas enquanto
objelos teóricos (Petitot-Cocorda, 1986, p. 27).

Plano da Presente Obra

No presente livro, vamos nos limitar às tendências que Petitot-Cocordaarrola


no item 3. Tendo em mente que, para a identificação dessas correntes, importa
menos o nome que lhes demos do que seu epistema estruturalista, no que ele se
entenda, de um ou outro modo, com as raízes históricas das teorias estruturais da
narrativa que vão assumir, por volta dos anos 70, a forma da semiótica da narrativa
tal como ela se plasma na chamada Escola de Paris - mas, antes do mais, na obra
de A. J. Greimas - , examinaremos, nas páginas a seguir:

a. Asemiolingüísticageral estruturalista, de Ferdinand de Saussure, modelo


de tudo o mais que se seguiu nesse campo.
b. A fase do estruturalismo formalista, representada pelos formalistas russos
(com destaque especial para as obras de Propp e de Bakhtin), aí incluídos
os membros do Círculo Lingüístico de Moscou e da OPOIAZ de São
Petersburgo.
c. A fase do estruturalismo funcionalista, que compreende os trabalhos do
Círculo Lingüístico de Praga (com destaque para Mukafovski).
d. A fase do estruturalismo semiológico morfológico, visto na contribuição
de Lévi-Strauss para a leitura do mito.
e. A fase do estruturalismo semiológico sintáxico, aqui exemplificado pelas
reflexões de Bremond e de Banhes.

Planejamos a obra em duas partes:

a. A primeira parte, subintitulada "Os Modelos", passará revista à semiolin-


güística geral de Ferdinand de Saussure.
b. A segunda parte, subintitulada "As Teorias", englobará (b), (c), (d) e (e),
interdecorrentes nos anos de 1915 a 1970, aproximadamente.
2

A SEMIOLINCÜÍSTlCA GERAL
DE FERDINAND DE SAUSSURE

Não há fato cientifico selll teoria.

L. SEllAC

POR QUE ESTUDAR SAUSSURE HOJE?

Aquela ·incessante reconstrução do passado pelo presente a que fizemos


menção na Introdução justifica que se faça, ainda neste final de século encoberto
pelas nuvens negras de tantas profecias ·milenaristas - o fim do romance, o fim
daliteratura, o fim do estruturalismo etc. - , uma reavaliação da obra de Saussure,
tentando localizar o que ficou dela nos dias de hoje.
Há trinta anos, Godel encarregou-se de empresa semelhante. Justificava-a,
en tão, com a descoberta recém-feita dos manuscritos inéditos do Cours de linguistique
générale e com a oportunidade que o achado lhe propiciava de comparar o que
Ballye Sechehaye tinham editado em 1916 com esse nome, fazendo-o correr como
de autoria de Saussure, com os papéis, mariuscritos, cadernos de rascunhos e aponta-
mentos de aulas reencontrados. E, após um consciencioso exame, afirmava Godel:·

Cenamen te, lendo os manuscritos, não se pode deixar de ser surpreendielo com tuelo o que liga
esses textos tão diferentes, pela constância e insistência de certas afirmações, o retorno, por vezes a anos
ele distância, ele certas fórmulas e certos exemplos. Essa il11pressão, contudo, se enfraquece à medida
que se estuelam mais intimamente as fontes do Cours de linguistiqlle générale: parece que o pensamento
46 • A Identidade e a Diferença

dc Saussure, como LOdo pensamento \ivo, deve ter variado e que a espantosa fIxidez de seus princípios
fez-se acompanhar, sobre outros pontos, de dll\idas crescentes: em maio de 1911, Saussure tinha dlwidas
que hesitava em participar a seus alunos. Os editores, com toda a e\idência, não poderiam ter feito coisa
diferente do que fIzeram, caso contrário teriam tido de renunciar a publicar o C01l/"5 de lingllistiqllegénéra!e.
Não depõe, porém, contra a memória deles, nem contra a de Sausssure, tentar apreender o pensamento
do mestre não "na sua forma defInitiva" mas, tanto quanto possível, no seu dc\ir, nas suas hesitações, e
suas variações, quiçá; sobretndo se transparecer, nelas, que certas difIculdades sobre as quais se concen-
traram as críticas de quarenta anos a esta parte não escaparam à sua clarividência (1957, p. 131).

Cert<tmente, um livro de ciência não vale pelo que ele fIxa, mas pelo que ele
põe em movimento; não pelo que ele colhe, mas pelo que semeia. Sabemos todos bem
que o futuro é caprichoso e se compraz em entortar hoje o que ontem pareceu correto
e em endireitar amanhã o que hoje nossa miopia entorta. EnfIm, como diz Godel,

a lingüística saussuriana - os editores do COIl/:S já o assinalaram - não constitni um todo acabado;


nenhum dos três cursos dá dela uma exposição integral, e no terceiro, único em que Saussure traçou
o plano e onde abordou de frente a lingüística estática, esse estado de não-acabamento é particu-
larmente sensível. Por outro lado, o desenvolYimento do pensamento de Saussure antes de 1900
está em parte oculto: nas suas notas Inéditas, nenhum texto datável é anterior a 1891, e aquilo que
subsiste é fragmentário (idel/l, ibidel/l).

DIFICULDADES PARA A COMPREENSÃO DA TEORIA SEMIOLINGÜÍSTICA


DE FERDINAND DE SAUSSURE

Pormenorizando as razões lembradas por Godel, diríamos que há uma boa


quantidade de fatores que contribuíram para um progressivo obscurecimento do
pensamento de Ferdinand de Saussure, com o passar dos anos. Em prim6ro lugar,
a escassez da própria produção publicada por ele; ele, que até 1892 não havia
dado à luz mais do que a Mémoire, a sua tese de doutorado (SUl' L'emploi du génitif
absolu en sanscrite) e meia dúzia de artigos no boletim Memóires de la Socielé de
Linguistique de Paris, a partir daí quase nada mais publica: "a partir de 1893 [:.. ]
as publicações de Saussure se espaçam sensivelmente: de 1900 a 1912 não há para
citar mais do que três artigos" (idem, p. 32).
Junte-se a isso o fato de a sua principal obra - aquela, pelo menos, cujo
conhecimento foi mais difundido, mais inovador, e em que se baseia toda a reputação
de que o mestre suíço gozará durante todo o século XX, o COUTS de linguistique
générale- não ter sido redigida de seu próprio punho, nem revisada por ele, mas
recolhida dos apontamentos de aula constantes de cadernos de alunos seus, "nor-
malizados" e publicados por dois de seus mais eminentes discípulos, Charles Bally
e Albert Sechehaye, cujos esforços, competência e probidade nunca serão louvados
A SemioZz:ngüística Geral de Ferdinand de Samsure • 47

suficientemente; isso não obstante, nas Sources, de 1957, Godel aponta cerca de
nada menos do que cinqüenta passagens do Cours glosadas por interpretações dos
editores, quase sempre interpolações expansivas, dedicadas ao generoso objetivo
de explicitar algum ponto particularmente abstruso ou controverso das anotações
- e todos nós, professores, sabemos bem o quanto terão de nos perdoar nossos
alunos pelos descaminhos em que nos metemos, quantas vezes, no fervor de nossas
pobres aulas! Por isso, é preciso fazer constar que, para honra deles, as inserções,
glosas e interpretações dos editores permanecem, via de regra, tanto quanto podemos
julgá-las, fiéis às linhas de força da doutrina de Saussure. Nada disso impede, todavia,
que se insinuem, assim, na obra, determinadas confusões - como, por exemplo,
algumas que dão azo à disputa sobre o caráter arbitrário do signo, ou à afirmação
final da obra que atribui à langue a condição de único objeto de estudo da lin-
güística, ou, suprema infelicidade de um descuido, o malfadado terceiro gráfico
- o gráfico do signo-árvore-, que Bally e Sechehaye acrescentaram, à sua conta,
no ponto que trata do signo (p. 99 da edição original, e da de 1972, de Tullio de
Mauro), que Saussure certamente nunca aprovaria (cf. Arnacker, 1975, p. 86).
Uma terceira dificuldade reside na possibilidade de operar-se, hoje, uma
perfeita interpretação da metalinguagem saussuriana, por vezes particula-
ríssima - uma metalinguagem científica de formalização "fraca", quer dizer,
de expressão conceptual, que vai buscar os itens de seu vocabulário em quatro
fon tes lexicais diferen tes:

a. Em termos emprestados da lingüística e da gramática tradicionais, Cl~a

concepção tradicional Saussure conservou.


b. Em termos provenientes da mesma fonte, mas Cl~a definição tradicional
ele criticou e reelaborou, dando-lhes um novo alcance, ou uma nova
acepção (ex.: forma, função, gramática histórica, oposição, valor, analogia,
conjunção etc.).
c. Em termos que tomou de outras ciências desuaépoca (eixo, campo, plano,
linearidade, figura, dimensão etc., que provêm da geometria, por exemplo).
d. Em termos que o próprio Saussure criou e definiu explícita ou implici- .
tamente - em ocasiões, dada a sua novidade, até ambiguamente (dia-
cronia, semiologia, significante, discurso - igual a sintagmática - ,
sintagma, cadeia, traço distintivo etc.).

Um quinto fator de perturbação é constituído pelas divergências produzidas


pelos comentários críticos dos especialistas que se debruçaram sobre os trabalhos de
Saussure, a maior parte dos quais não teve - uma vez que o grosso de sua produção
permaneceu inédito até bem pouco tempo - mais do que acesso a um conhecimento
parcial dela. Para ficar apenas em um caso, lembremo-nos da sua teoria anagramática,
48 • A Identidade e a Diferença

a receber avaliações inteiramente discrepantes de três grandes nomes de cientistas:


Godel, que foi o primeiro a tomar conhecimento dela, ainda desarranjada e na forma
de fragmen tos manuscritos (isso antes de 1957) ,subestima-a abertamente, reputando-
a, apressadamente demais, pouco mais do que um conjunto de passatempos pueris,
uma perda de tempo e uma inutilidade científica (Godel, 1957) ;Jakobson, ao con-
trário, Cl~jo primeiro interesse - e, a despeito das aparências em con trário, queremos
crer, o mais constante ao longo de sua vida intelectual - foi sempre ligado aos
problemas dos mecanismos de construção da poesia, e que veio a conhecer a teoria
anagramática de Saussure em meados da década de 60, superestima esses exer-
cícios em razão da possibilidade que neles entrevia da contribuição que poderiam
apontar para uma melhor operacionalização da sua própria teoria acerca da função
poética, e vê nela "a demonstração mais cabal da genialidade de Saussure"; e con-
traposto aos dois, Starobinski, que selecionou, coerentizou e publicou a teoria em
forma de livro (Les iVlots sous le mots, 1971), no qual não se decide nunca a pro-
nunciar um julgamento próprio, deixando a impressão de pender alternativa-
mentre ora para a avaliação de Godel, ora para a de Jakobson.-
As obras publicadas em torno das idéias e posições criadas ou defendidas
por Saussure orçavam,já em 1970, pelo número de 1500, lançadas nas mais diversas
línguas, assim repartidas, em números redondos, pela Bibliographia Saussureana:
1870-1970, de E. F. K. Koerner:

• 1250 publicações referentes à obra de Ferdinand de Saussure e às dis-


cussões que ela suscitou.
• 1050 que estudam o panorama da lingüística entre 1816 e 1916.
• 20.0 que examinam a importância de Saussure na fundação e no desen-
volvimento da lingüística moderna

Excluindo dessa listagem as 1050 obras que estudam o panorama da lingüistica


entre 1816 e 1916, em que dificilmente se trata de Saussure, restam, ainda assim,
cerca de 1450 composições impressas até 1970, em que sua contribuição pessoal à
nossa ciência é investigada. Atualizado para hoje, 1988, esse número ultrapassa
largamente a imensa cifra de duas mil obras, dedicadas a analisar, interpretar e
avaliar os estudos feitos pelo professor de Genebra. É leitura para uma vida inteira.
Só por aí podemos aquilatar as dificuldades com que se depara aquele que tenta,
hoje, avaliar com um mínimo de justeza o sentido da obra do mestre suíço.

QUATRO SAUSSURES DIFERENTES

O conjun to das dificuldades im plicadas nesse conjunto de fatores inibidores


de uma reconstrução ne varietur da obra do autor do Cours ~e fez refletir nos altos
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 49

e baixos que configuram o mapa da sua fortuna crítica, ao longo dos anos. Ao
sabor das modas e à medida que surgiam à luz seus inéditos, em que se publicavam
seus manuscritos ou se revisavam antigas concepções a seu respeito, foram pre-
cisando-se aos poucos, sucessivamente, os traços característicos de pelo menos
quatro Saussures diferentes, na mesma pessoa - um comparatista, um geralista,
um estruturalista e um semiolingüista.
O SaussuTe comparatista (1878 a 1916) foi o único conhecido por seus con-
temporâneos, professores, amigos e alunos, durante o seu tempo de vida. Para
eles, Ferdinand de Saussure era o brilhante, mas pouco conhecido, autor da
iVlé17loÍTe (Leipzig, 1878), de uma tese de doutorado defendida summa cum laude
em Leipzig, em fevereiro de 1880, SUT L'emploi du génitifabsolu en sanscrite (Genebra,
1881) e de alguns poucos artigos estampados nas JVIémoÍTes de la Société de Linguistique
deParis (MSL, III, 1877), da qual se fizera sócio desde 13 de maio de 1976. Brilhante,
pouco conhecido, e ainda menos festejado do que atacado, Saussure teve em vida
o destino que o mundo habi tualmen te reserva aos grandes inovadores - a incom-
preensão, a inveja e a Íl~ustiça.

O SaussuTe geralista (1916 a 1957) principia a desenhar-se três anos após a


morte do primeiro, quando Bally e Sechehaye editam o COUTS de linguistique générale
(1916), e vai até a publicação, por R. Godel, de Les SouTces manuscrites du "COUTS
de linguistique générale" de F de SaussuTe (1957), obra que dá início a uma fase de
extensas e intensas reavaliações críticas das idéias de Saussure. É um período que
teria permanecido desconhecido "se ele não tivesse sido chamado, em dezembro
de 1906, a suceder aJoseph Wertheimer, que desde 1873 ministrava todo ano na
Universidade (de Genebra) um curso de lingüística. Saussure deu só três Cursos
de Lingüística Geral (1907,1908-1909,1910-1911)" (Godel, 1957, p. 29), e foi
sobre os apontamentos de aulas tomados por seus alunos durante esses anos -
sobretudo dos referentes ao do último aúo, o "III Curso" - que Bally e Sechehaye
organizaram o COUTS e o publicaram três anos após o falecimento de seu autor:
Saussure morre em 1913, seu Courssai em 1916.
Três coisas marcaram mais profundamente essa fase, a saber, primeiro, o
enorme impacto causado pela novidade da teoria saussuriana, destinada a dividir·
a história da lingüística em antes e depois do COUTS, contrastado com a ainda
pequena disseminação de suas idéias, numa Europa preocupada com outras coisas,
às vésperas da revolução bolchevique e da Primeira Guerra Mundial; segundo, a
quase generalizada incompreensão da doutrina que o COUTS contém, mormente
das suas famosas dicotomias, convivendo, ao mesmo tempo, com o reconhecimento
praticamente unânime de que se está perante a obra fundadora da lingüística
geral e da fase moderna dessa disciplina que se alça, agora, ao estatuto científico;
e, terceiro, a partir da publicação das Sources de Godel, o princípio da fase das rea-
valiações críticas mais abalizadas do Cours.
50 • A Identidade e a Diferença

o aparecimento do Saussure estruturalista (1957 a 1975) é fruto do desdobramento


natural do período de reavaliações do COU1sque as Sourcesde Godel inauguram, des-
dobramento esse que atinge um ponto m<Lximo nos anos 60, à raiz da disseminação
cada vez mais ampla do modelo estnlturalista entre as disciplinas das ciências humanas
e sociais. É por esses dias que se vai tornar regra iniciar os estudos de mais fôlego na
lingüística, na antropologia, na filosofia, na história, na sociologia, na psicanálise, na
teoria da literatura etc., por uma invocação aos manes de Saussure, ou, pelo menos,
por uma referência ao pensamento precursor do mestre de Genebra,já então una-
nimemente considerado, a partir do conhecimento melhor do Cours (e já esquecida,
injustamente, a extraordinária aportação da NIémoire, em certos aspectos tão ou mais
importante do que o Cours) , o fundador do estruturalismo.
Finalmente, o Saussure semiolingiiista (desde 1975) nasce nos anos 70, como
conseqüência das "revisitações" de sua produção, quando, fruto do interesse des-
pertado pelo apogeu do estruturalismo no decênio anterior, surgem os livros que
mudaram a nossa visão acerca do papel que desempenham em nossas vidas as
ciências da linguagem, dos signos e das significações. Dentre esses livros, pelo
destaque especial que obtêm no exame profundo e compreensivo das idéias do
pesquisador suíço, dentro e [ora da lingüística, são de citação obrigatória, além
das Sources de Godel,já mencionadas, Les NIots sous les mots (1971), de J. Starobinski,
que nos deu a teoria anagramática sobre a poesia, a excelente edição crítica do
Cours preparada por Tullio de Mauro (1972, na tradução francesa), a primeira
coletânea sistemática da Bibliographia Saussureana 1870-1970, publicada em 1972,
por Koerner, e a importante obra de coerentização de uma saussuriana mínima
represen tada na Linguistique saussunenne (1975), de René Amacker.

A Influência de SaussuTe na Lingüística e na Semiolingüística do Século XX: A


Semiolingüística como Modelo Científico

As idéias de Saussure provocaram uma verdadeira revolução da história da lin-


güística do século XX, tão profunda, de fato, que extravasou do terreno das disci-
plinas das línguas naturais, inicialmente para as semióticas verbais- estilística, retóriCa,
teoria da literatura etc. - e daí para o restante das ciências humanas e naturais. A
partir dos anos 60 não houve praticamente nenhuma das especialidades dessas áreas
que tivesse permanecido imune às suas conseqüências: por toda a parte onde penetrou,
a lingüística saussuriana sacudiu o marasmo, abriu para novos pontos de vista, des-
cortinou outros desdobramentos teóricos, ampliou horizontes, inovou. Muitas vezes
ainda teremos ocasião de comprovar isso tudo; baste-nos, por enquanto, rastrear um
pouco da sua repercussão na lingüística e, a seguir, na semiologia ou semiótica.
Nenhuma escola de lingüística deixou de ser influenciada pela lingüística
geral e estrutural de Saussure: seus influxos vão aparecer na Escola de Praga (Trubetzkoi,
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 51

Jakobson, Mukafovski, Mathesius e outros), na Escola de Copenhague (Hjelmslev,


Brondal e outros), na lingüística francesa (de Meillet a Tesniere, de Martinet a Pot-
tiel~ passando por Benveniste, Ducrot e Mounin), na lingüística espanhola (Amado
Alonso, Dámaso Alo llS o, Bousol1o), na lingüística italiana (M. Lucidi, G. Derossi, G.
Lepschy, T. de Mauro, R. Simone), nalingüística norte-americana (Sapir, Bloomfield),
sem contar, é claro, com a Escola de Genebra, ao longo de pelo menos três gerações
(a geração dos alunos de Saussure: Charles Bally, A. Sechehaye, S. Karcevski, A.
Meillet e outros; a segunda geração, dos alunos dos alunos de Saussure: H. Frei,
aluno de Bally, E. Benveniste, aluno de Meillet e outros; e a geração dos alunos desses
últimos: Godel, Amacker, Starobinski).
Pouco importa que, como sublinha Amacker, "A Escola de Genebra, tomada
em seu conjunto, [seja] saussuriana apelJ,aS por sua comum e constante referência
a uma tradição caracterizada, desde seu fundadOl~ pelapesquisa autõnoma: Saussure,
Bally, Sechehaye, Frei, Godel- tantas concepções diferentes quantas são as explo-
rações penetrantes mas individuais" (1975, p. 13); o fato é que todos esses pesqui-
sadores se entendem por sua comum referência a uma espécie de saussurianismo
mínimo (Amacker), que é, na verdade, o que desejamos esboçar aqui - ainda que
nossa interpretação pessoal dos conceitos e dos posicionamentos de Saussure
coincida ou não com o de qualquer outro apreciador de sua obra.
Com relação à repercussão que as idéias de Saussure tiveram, e têm, ainda,
no àmbito das disciplinas semiolingüísticas, não vamos tentar sequer arrolar as
diferentes correntes e escolas que a sofreram: foram, na verdade, todas - sem
exceção de nenhuma das que nos vêm à memória. E não é para menos: Saussure
criou a semiologia, ciência que estuda "os sistemas de signos no seio da vida social",
como um tronCo ou uma macrodisciplina englobante, pois, da lingüística (na qual
ele vê, apenas, uma "semiologia particular"); deixou-nos, também, com suas
reflexões acerca das primitivas gestas germânicas, dos Nibelungen, os rudimentos
de uma semiótica da narrativa precursora dos moldes matriciais a expandir, que
só serão retomados, uma trintena de anos depois, pelas Formas Simples, de Jolles;
elaborou o quadro geral de uma intrigante teoria anagramática da poesia, c100
alcance verdadeiro resta determinar, mas, até onde sabemos, muito superior a
quanto se publicou até os anos 60 em termos de análise teórica e de aplicação
prática do discurso poético (e estou me lembrando bem dos nomes deJakobson
e de Mukarovski, sim); antecipou de sessenta anos pelo menos a visão acerca da
necessidade de se conferir uma formalização forte, lógico-matemática, às disci- .
plinas da lingüística, que ele concebia nos termos de uma geometria - em uma
conversação com M. L. Gautier, em 6 de maio de 1911, Saussure afirmava: "No
momento, a lingüística geral me aparece como um sistema de geometria. Chega-
se a teoremas que temos de demonstrar. Pois hem, observemos que o teorema 12
é, sob uma outra forma, o mesmo que o teorema 33,.." (apudGodel, 1957, p. 30).
52 • A Identidade e a Diferença

Saussure foi, ainda, o primeiro cientista da área de humanas e sociais a


empregar o método hipotético-dedutivo, sistematicamente, justificadamente e
por princípio - isso em um tempo em que a regra geral era privilegiar o método
empírico-indutivo, o que inviabilizava, de saída, qualquer tentativa de se produzir
ciência pura, teoria.
Não significa isso, nem de longe, que ele nos tenha deixado uma ciência
plenamente madura, constituída, um corpo de doutrina consistente e consolidado.
Na verdade, Saussure não fez nada dissso: ele nos deixou idéias - quer dizer,
clarões de luz, sementes paragerminar-, o que foi, como comprovamos ao longo
de todo este nosso estafado século, o bastante para funcionar como um sistema
modelizante de primeiro grau para a totalidade das ciências humanas e sociais-
um modelo, quer dizer, o esboço de um sistema axiomático que serve de quadro
geral para definir um conjun to de procedimentos de análise e de descrição capazes
de satisfazer aos axiomas de partida.
Pode-se dizer, portanto, que a teoria saussuriana nem se esgotou nem está
próxima de ter rendido tudo o que pode render; há, nela, uma grande quantidade
de &uracos negros, pontos obscuros, lugares polêmicos - todo um mundo a explorar,
enfim, especialmente para quem está, como nós estamos, à espera de uma teoria
semiolingüística unificada. E, nesse sentido, "não importa mais saber se Saussure
concebeu ou anunciou verdadeiramente todos os desenvolvimentos da teoria;
pode-se mesmo, se calhar, corrigi-lo baseando-se justamente nos princípios que
ele afirmou. Saussure deixou-nos o legado da sua 'geometria'; cabe à sua poste-
ridade definir e demonstrar os 'teoremas' dela derivados" (Amacker, 1975, p. 15).

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE SAUSSURE

Ferdinand de SallSSlIre jJellt,


à beaucoujJ d 'égards, étre considéré CO/llllle

le fondateur de la science lIloderne du langage.


L. HJELMSLEV

La linguistique naissait une


secondefois avec Sauss'll1-e.
eL. ZILBERBERG

o reconhecimento de que um elemento de um sistema não tem nenhUlTl


sentido até que ele seja referido a outro elemento do mesmo sistema ou ao sistema
como um todo foi efetuado por Saussure:
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 53

É uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som
comum certo sentido. Defini-lo desse modo seria isolá-lo do sistema de que ele participa: seria crer
que se possa começar pelos termos e construir o sistema como se este fosse feito da soma daqueles,
quando, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir para obter, através da análise, os ele-
mentos que ele contém (Saussure, 1972, p. 157).

Anteriormente deixamos assinalado que o conceito de relação (função, para


Hjelmslev, estrutura elementar da significação, para Greimas, mas que nessa citação
de Saussure surge com o rótulo de sistema) constitui o metaconceito síntese do
epistema estruturalista, ligado à idéia da prioridade da relação sobre os termos-
objetos que ela articula, tal como aí aparece claramente formulado nesse fragmento
do Cou!'s.
Benveniste-que, como seu mestre, Meillet, ex-discípulo direto de Saussure,
só muito tardiamente se deu conta da grandeza do COU'fS - reconhece, meio
século depois de publicada a obra maior de Saussure, que na última frase da citação
acima repousa o essencial do estruturalismo. Mas, muito antes da publicação do
COUTS de linguistique générale (1916), já em J1,;IémoiTe SUl' le systeme primitif des voyelles
dans les langues indo-euTopéennes (Leipzig, 1878), Saussure postulara, por meio de
procedimentos de reconstrução interna baseados numa metodologia hipotético-
dedutiva - isto é, por pura dedução teórica, por efeito de uma síntese a priori
(independente de toda experiência) - , a existência de quatro a no vocalismo
indo-europeu, quando nenhum inventário vocálico do indo-europeu disponível
autorizava empiricamente essa postulação: ele o fazia, naturalmente, em função
de uma implícita teoria da relação. Zilberberg comenta:

Nas línguas do Sul, encontram-se três fonemas, a, e, o, mas tal enumeração [... ] nada diz
acerca das relações funcionais. E esse déficit do diferencial, do distintivo concernente ao funcional,
designa a descoberta saussuriana tanto quanto a relativa incompreensão que marca a sua poste-
ridade. Sem que o princípio metodológico seja aqui tematizado, fica claro que para Saussure convém
ir das relações para os termos e não o inverso [... ] (1986, p.67).

No Tráité phonétique, Grammont (1933, p. 153) louvava a demonstração


operada por Saussure de que "cada língua fOrma um sistema de total interdepen-
dência dos elementos (oiL tout se tient), onde os fatos e os fenômenos governam-
se uns pelos outros, e não podem ser isolados nem contraditórios".
Essa noção de prevalência da forma do sistema, da interrelação entre os
termos do conjunto, era totalmente nova à época. Sem ela teria sido impossível
constituir-se uma lingüística geral de caráter estrutural.
Mas, para melhor avaliar o real sentido da revolução saussuriana, devemos
nos interrogar, primeiro, sobre o que era a lingüística antes dele.
54 • A Identidade e a Diferença

A LINGÜÍSTICA PRÉ-SAUSSURIANA. O MÉTODO HISTÓRICO-


COMPARATNO E A ESCOLA DOS NEOGRAMÁTICOS

Antes de Saussure estava em plena vigência a lingüística histórica ou gra-


mática comparada - que cobre todo o século XIX e se pode dividir, conforme
Pedersen e Meillet, em um primeiro período, de Rask e Bopp até Schleicher
(aproximadamente 1870), e em um segundo, que começando por esses anos
(1870) teria como nomes de primeira planaJakob Grimm e Friedrich Diez. Nessa
segunda fase, contudo, a lingüística histórica compartilhou seu prestígio com o
surgimento dosJunggrammatiker(1876) "os neogramáticos". Outros autores, como
Bréal, distinguiam um período da gramática comparada e outro da lingüística
histórica; conforme disse na sua Leçon inaugurale do College de France, em 1868:
"nossa ciência vai-se desenvolvendo e tendendo cada vez mais a mudar sua deno-
minação de Gramática Comparada, que pode prestar-se a equívocos, contra seu
verdadeiro nome, o de Gramática Histórica" (Bréal, apudMounin, 1967, p. 179).
A primeira ocupar-se-ia com o estabelecimento do parentesco das línguas, uti-
lizando o método comparativo, que se apoiava sobretudo nas semelhanças morfo-
lógicas de ramos ou "famílias" de línguas - a família das línguas românicas, a família
das línguas germânicas, por exemplo - , ao passo que a segunda, a gramática his-
tórica, preocupa-se mais com a história da evolução das formas de uma língua.
Já os neogramáticos eramjovens pesquisadores que por volta de 1876 seguiam
os ensinamentos de Curtius, em Leipzig, onde os nomes principais eram os de
Brugmann (1849-1919) e Osthoff (1847-1909), além do próprio Saussure, bem
mais novo do que eles, nomes que despontavam representando as contradições
ideológicas que estão sempre latentes entre os representantes de duas gerações
que se sucedem no curso da história. Assim, a lingüística histórico-comparativa,
que se apoiava sobre correspondências de sons e se habituara a opor determinado
estado da língua a um outro estado de língua, cada vez que se via incapaz de
explicar determinada anomalia, tentava reduzi-la por hipóteses indemonstráveis
(do tipo "esse som é o mais antigo porque existiajá em sânscrito, que é a mais
arcaica e a mais perfeita das línguas"), ou, então, por meio de generalidades incon-
sistentes (cf. Mounin, 1967, p. 204).
De qualquer modo, os modelos teóricos histórico-comparatistas eram pro-
venientes das ciências físicas e naturais da época. Eles consideravam as mutações
dos elementos lingüísticos manifestações de transformações geneticamente ras-
treáveis e privilegiavam como instrumento de explicação não os fatores funcionais
da língua, mas, sim, o princípio da analogia- conceito modernamente reabilitado
por ,V. Scherer no seu Zur Geschichte derDeutschen Sprache (1868) e seguido, depois,
por Lesquien e pelos próprios Osthoffe Brugmann, em vários trabalhos (Dinneen,
A Semioling;iiística Geral de Ferdinand de Saussure • 55

1970, p. 261). Por exemplo, se reconhecemos a existência de uma relação fun-


cional qualquer - uma razão ou fundamento - entre dois termos tais como 2
e 4, podemos, aplicando a mesma razão a um terceiro elemento dado, digamos
5, concluir facilmente qual deverá ser a forma do quarto termo, incógnito; assim,
como na primeira relação o segundo termo, 4, vale o dobro do primeiro, que é
2, a razão da relação é 2 : 4 = 2 (porque 2 x 2 = 4). Aplicando a mesma razão, 2,
ao primeiro termo da segunda relação, que é 5, obteremos 10 (2 x 5 = 10). Temos,
então, o mecanismo da analogia (indicado pelos sinais ":" e "::" que se lêem "está
para" e "assim conlo", respectivamente):

Analogia ou Correlação

Primeira relação Segunda relação


I
I
2 4 5 x

(x = 10)

Figura 4: A Analogia ou Correlação.

A analogia, ou correlação (quer dizer, uma relação entre duas relações ante-
riores), ou quarta proporcional, ou, ainda, regra de três, conforme as diferentes
disciplinas que a empregam, foi abundantemente utilizada pela gramática his-
tórico-comparativa, para explicar, por meio do apelo à imitação do que havia
ocorrido em outros casos, casos anômalos, na evolução da língua, reduzindo-os a
uma condição de regularização. Assim se explicou, por exemplo, o rotacismo, isto
é, a mudança ocorrida a certa altura, no latim, do s intervocálico em r; como
explicar, por exemplo, a forma do genitivo honorisquando o nominativo da forma
era honos (o que deveria dar, por isso, honosis)? Muito simplesmente, por analogia'
com flos, floris: flos : floris: : honos: honmis.
E uma vez que a analogia poderia ser considerada um procedimento aplicável
a uma relação estática tão bem como a uma relação dinâmica, esse princípio
pareceu durante anos funcionar como o princípio diretivo e regularizador das
transformações históricas das línguas.
A própria língua, aliás, era então por toda a parte considerada uma espécie
de organismo vivo (por analogia) , que crescia, atingia um apogeu e a seguir en trava
em decadência- como um ser vivo, mesmo, condenado a desenvolver-se segundo
programações genéticas-e princípios biológicos mais ou menos darwinianos (nem
56 • A Identidade e a Diferença

foram escassos os lingüistas que pensaram dever incluir sua disciplina no elenco
das ciências naturais); um organismo animado, pois, em todo o caso submetido
às leis implacáveis da evolução histórica, leis essas que não admitiam exceções:
qualquer anomalia era, supunha-se, o efeito de uma outra lei ainda não explicada,
ou, então, o resultado de uma analogia.
Essa teoria da transformação das línguas à imagem e semelhança da trans-
formação dos seres vivos foi levada a extremos pelos neogramáticos. Por muito que
ela hoje nos faça sorrir, não se deve esquecer que a lingüística continuou a efetuar
progressos notáveis, com ou sem ela, durante a sua vigência. Dinneen recorda:

Quaisquer que tivessem sido os posicionamentos teóricos que dividiram os sábios desse período,
é certo que foram grandes os progressos no campo dos conhecimentos acumulados e no refinamento
da técnica descritiva. Esses progressos compreenderam 1) o estudo e o confronto sistemático de
muitas línguas, inclusive o sânscrito, o latim, o grego, o persa, e os sistemas verbais germânicos (Bopp,
1816); a descoberta de relações entre as línguas germânicas (Rask & Grimm, 1818, 1819); a inves-
tigação etimológica das línguas indo-européias (Schleicher, 1861; Bmgmann & Delbrüch, 1866-
1900); a descrição do céltico (Zeuss, 1853); das línguas românicas (Diez, 1836-1844) e do eslavo (von
Miklosich, 1852-1874); e 2) o desenvolvimento de acurados métodos de descrição de articulações
dos sons (Sweet, 1877; Ellis, 1869-1889; Sievers, 1888; eJespersen, 1904), assim como a descoberta
de dados físicos e fisiológicos concernentes às propriedades dos sons (von Helmholtz, 1862) e os
métodos instrumentais para registrá-los e descrevê-los (Rousselot, 1891-1908) (1970, p. 263).

Com efeito, não é pouco; e, mais importante, talvez, isso tudo representa o
bachground histórico dos anos de aprendizagem de Saussure, precisamente o
homem que iria revolucionar por inteiro a sua disciplina.

SAUSSURE - OS PRIMEIROS ANOS: O ESSAIE A NASALIS SONANS

On ne saI/rait caractériser la linguistique d'ajJres 1900 d'unlllot,


qui tente SO'llvent ceux qui la déclivent: enJin, Sa'llssure vint.._

MOUNIN

Ferdinand de Saussure nasceu em 17 de novembro de 1857, em Genebra


(Suíça), onde fez seus estudos primários e secundários. Seu pendor para os estudos
lingüísticos foi dos mais precoces: mal completara quinze anos ele conhecia já
francês, alemão, inglês, latim e grego, como provou ao redigir um curioso trabalho
(Cl~O manuscrito foi doado por seus filhos à Biblioteca Houghton, da Universidade
de Harvard, nos Estados Unidos, em 1970), intitulado Essai P?urréduire les mats du
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 57

grec, du latin, de l'allemand á un petit nombre de racines (que o próprio Saussure men-
cionou nos seus Souvenirs como Essai sur Zes Zangues, e que se julgava perdido).
O Essai consta de 41 páginas, escritas em 1872, nas quais, prenunciando seu
irresistível pendor para a sistematização racional e o reducionismo lógico, o jovem
pretendia ser viável reconstruir para grande número de línguas indo-européias,
se não para a generalidade do indo-europeu, pequeno número de esquemas
fonéticos de base:

Sua tese central era que, partindo da ,uúlise de qualquer língua, é possível remontar a raízes
bi e triconsonantais, com a condição de postular que

p b f v

h O'
to ch

t d th

As "provas" eram numerosas; por exemplo, R - K era "signo universal de prepotência ou de

potência violenta:

rex, regis; P 11 yv IÍ; Rache, rügen; etc.

(De Mauro, 1972, pp. 322-323).

Até aqui, a audácia do jovenzinho pode parecer divertida; mas nunca para
os que ouviram falar,já bem entrado o século XX, na teoria do proto-semantismo
psicológico de Guiraud, que postula a existência de uma relação psicologicamen te
motivada entre determinado campo de significações genéricas e determinada
matriz bi ou triconsonantal, entre uma determinada proto-semantização e uma
determinada matriz radicallexicogênica (em português, por exemplo, à Inatriz
lexicogênica t - k corresponderia um proto-semantema "idéia de golpe":

plano de expressão: matriz lexicogênica t - k


plano de conteúdo: proto-semantema: "idéia de golpe"
58 • A Identidade e a Diferença

conforme toque, taco, teque (golpear uma bolinha de gude com outra), ticar (sinal
que se apõe à unidade que está sendo conferida, numa lista de termos), tique,
tique-taqueetc.); recordar, também, a existência da correlação, conformeJakobson,
entre as dimensões relativas do plano de expressão de uma lexia e as distinções
morfêmicas de número:

plano de expressão: plano de expressão :: singular: plural


mais breve mais longo

Como quer que seja, Saussure desentranhou, com seu método, nove raízes
triconsonânticas fundamentais, "construídas mediante todas as combinações pos-
síveis de h, p, e t, com um a intercalado,

KAK,
KAP,
KAT,

etc.", e afirma que "dessas nove palavras primitivas vão derivar milhares de novas,
por meio de diversas operações que não impedirão reconhecer a forma de cada
raiz" aakobson, 1973, p. 288).
Apresentado o manuscrito ao professor Pictet, seu vizinho em Genebra, o
velho lingüista respondeu indulgentemente ao rapazinho aconselhando-o a pros-
seguir em seus estudos lingüísticos, tomando, no entanto, a precaução de manter
bem calculada distância de qualquer sistema universal da linguagem.
O episódio parece emblemático do que haveria de suceder com os caminhos
de Saussure nos anos que viriam; de um lado, a vocação extremamente precoce
para o desenvolvimen to de trabalhos científicos que visassem à construção de teorias
de longo alcance (sistemas universais, teorias semiolingüísticas gerais); de outro, a
total incompreensão do establishrnent caturra, aferrado a preconceitos embolorados,
encastelado contra a novidade na defesa de seu feudo, e incapaz, devido a isso, de
reconhecer no pensamento inovador o embrião do epistema dominante no futuro.
O rechaço de Pictet levou o jovem Saussure a encolher-se; ele se afasta, então,
da lingüística e pensa, durante um certo tempo, em retomar o caminhojá trilhado por
seus antepassados, cientistas célebres nos domínios das ciênciasfisicas e naturais: "Desde
esse momento (1872), eu me encontrava pronto para receber uma outra doutrina, se
a tivesse encontrado, e de fato esqueci a lingüística durante dois anos, bastante des-
gostoso com meu ensaio frusuado" (Saussure, apud Jakobson, 1973, p. 288).
Por felicidade, o jovem Saussure não seguiu o conselho de Pictet; graças a
isso, ele viria a fundar uma nova fase da sua ciência, a fase da lingüística geral, e,
de quebra, a metodologia-piloto para as ciências humanas e s.ociais de nosso século.
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 59

Retomando seu antigo interesse pelos trabalhos lingüísticos, Saussure des-


cobriu, com pouco mais de dezesseis anos, a nasalis sonans, asoante nasal, do indo-
europeu; Tullio de Mauro relata a experiência:

Um dia, numa aula do Colégio, lia-se uma passagem de Heródoto e o rapaz que não estava
ainda "maduro" deparou-se com uma forma da terceira pessoa do plural, uma das numerosas
"exceções" da gramática gTega:
"No instante em que vi a forma [...] , minha atenção, extremamente distraída em geral, como
era natural nesse ano de repetição, foi subitamente atraída de uma maneira extraordinária, por este
raciocínio[ ...]: ÀEyá)lE80'.: ÀÉ)'OV1:W, por conseqüência 1:E1:á)')lE80'.: 1:E1:áX<HCXl e por conseqüência
N=O'..
Com dezesseis anos [... ] Saussure descobriu, desse modo, na pré-história das formas gregas,
a nasalis sanans (1972, p. 324).

Corria o ano de 1873. Saussure, escaldado, decerto, com a expenencia


anterior com o professor Pictet, não comunicou a ninguém sua descoberta. Três
anos depois, Brugmann publicou, no número IX da revista que ele ajudava seu
mestre, Curtius, a editar, Studien zur Griechieschen und Lateinischen Grammatih, um
artigo seu intitulado "Nasalis sonans in der Indogermanischen Grundsprache"
("A Nasalis Sonans no Indo-Europeu Comum").
Em 1876, vários dos amigos de Saussure em Genebra, Edouard Favre, Lucien
Raoul, Edmond Gautier, foram estudar teologia e direito em Leipzig, e seus pais con-
sentiram que ele se transferisse para a famosa Universidade de Leipzig para estudar
lingüística. No mesmo ano, inscreveu-se naSociété de Linguistique de Paris, há pouco
fundada, como "estudante de filosofia, domiciliado em Leipzig, Hospitalstrasse, 12".
No outono de 1876, Saussure foi pedir a H. Hübschmann licença para fre-
qüentar um privatissimun de velho-persa, e durante sua entrevista o professor lhe
perguntou o que ele pensava da hipótese que K. Bmgmann tinha acabado de publicar,
segundo a qual- a - em formas como 'Ta - a remontariam a uma nasalis sonans que
se teria convertido em - un - no germânico: "Essa revelação teve efeitos opostos
sobre o jovem genebrino: decepção [... ] de ter perdido o beneficio da descoberta;
mas, ao mesmo tempo, nova confiança em suas próprias capacidades" (idem, p. 326).

eu

o por dois ou três tra- Aos vinte anos, estando já relativamente conhecidi
- na maioria sobre par- balhos redigidos para a Société de Linguistique de Paris-

comparatista em parte ticularidades da gramática latina, na perspectiva histórico-

tando já um certo afas- (ele cita a "autoridade" de Bopp em um deles), mas denoi

lr te Systhne Primitij des tamento crítico - ele redige, finalmente, sua lVlémoire S1
60 • A Identidade e a Diferença

Voyelles dans les Langues Indo-EurojJéennes, que saiu publicado em Leipzig, em 1878.
E este é um livro verdadeiramente novo: aqui, opondo-se firmemente ao "bota-
nicismo" ingênuo de seus contemporâneos e predecessores, a Curtius, seu mestre
na Universidade de Leipzig', a Schlcicher, a Brugmann, que continuavam, como
sempre, a apelar para "reforços", "analogias" e "enfraquecimentos" para explicar
o aparecimen to do e a partir das três vogais do indo-europeu, a, i, u, Saussure se
impôs a tarefa "de trazer à luz o fato de que se trata na realidade de quatro termos
diferentes, e não de três; que os idiomas do Norte deixaram confundir-se dois
fonemas fundamentalmente diferentes e ainda diferenciados no Sul da Europa:
a, vogal simples oposta a e; e o, vogal reforçada, que não é mais do que um e na
sua mais alta expressão" (Zilberberg, 1986, p. 64).
A um observador atento não escaparia que, nos três trabalhos citados por
nós-tanto no Essai, quanto na descoberta da nasalis sonans, e mais concretamente
ainda nas páginas iniciais da sua lvIémoire-, transparecem duas das características
que as investigações de Saussure conservarão vida afora:

a. O privilégio concedido às noções (ainda que inexplícitas) de relação e de


sistema-protoforma da noção hodierna de estrutura-com o sistemático
rechaço da consideração do fato lingüístico a partir de um elemento isolado,
um dado setorial ou ocasional, desligado de sua referência a qualquer outro
elemento do mesmo sistema que ambos integrem como constituintes; e
b. O emprego sistemático do procedimento binarista, que seria definiti-
vamente fixado mais tarde nas célebres dicotomias do Cours. É assim, por
exemplo, que, naNIé17l0ire, Saussure reduzirá a categoria das sonantes a um
me'smo eixo, por ele denominado de "coeficiente sonântico", que varia à
medida que a vogal da sílaba da raiz conserva-se ou não na forma derivada:

Se a \'ogal se mantém, o coeficiente sonântico "concorre para o \'ocalismo da raiz"; se a \'ogal


desaparece, o coeficiente sonântico passa do estado consonântico para o estado \'ocálico. Em suma,
o coeficiente sonântico se \'ocaliza diante de consoante, pertença esta ou não a um sufixo, e se con-
sonantiza diante de \'ogal. A aparição das sonantes, líquidas e nasais, está portanto ligada ii queLla
da \'ogal e paralela ii passagem do i e do li do estado "sintongo" ("s)'lIlj}htongue') ao estado "autotongo"
("(lUtojJhtonglle"). Esse coeficiente sonân tico apresenta-se como um dado categórico - ou, o que \'em
a dar no mesmo, fUllcional. Ele é, segundo Saussure, "suscetí\'el de acento silábico" e esse fato esta-
belece a homogeneidade de uma classe à primeira \'ista heteróclita por compreender elementos
julgados \'ocálicos como i e li, as nasais 111 e n, as líquidas I e r: "r se coloca exatamente no mesmo
posto que i e li", escre\'e Saussure, a propósito da sonante líquida (Zilberberg, 1986, p. 65).

Um fato tem passado despercebido aos "biógrafos intelectuais" de Saussure:


a última observação dele, acerca da sonante líquida r: "r se coloca exatamente no
A Semiolingüística Geral deFerdinand de Saussure • 61

mesmo posto que ie u", prova o carátervocálico do r sonante,jáque ie u possuíam


exatamente esse valor no indo-europeu; e, novamente, Saussure fazia essa des-
coberta com antecedência de um a dois anos sobre Brugmann e Osthoff1
De fato, Brugmann se desentendera com seu mestre, Curtius, precisamente
por causa do artigo que publicara na revista que os dois co-editavam, acerca da
nasalis sona11S; em conseqüência, Brugmann desligou-se de Curtius e fundou uma
outra, JVlorphologischen Untersuchu11gen aufdem Gebiete der I.E. Spmchen (Investigações
Morfológicas 110 Domínio das Línguas Indo-Européias), com Osthoff, que trabalhava,
então, com o r silábico - e o primeiro número dessa revista saiu em 1878, no
mesmo ano, pois, em que saía, também, a jj,lémoire de Saussure.
A conjunção desses fatos - a rigorosa "necessidade de sistema" de Saussure,
tão detestada por Osthoff, manifestação, na prosa dele, de um raciocínio estrutural,
avesso aos desvios elucubrativos da retórica neogramática, mais a precedência
inconteste de seus trabalhos sobre os de Brugmann e Osthoff, aqui citados -
talvez explique por que Osthoffse empenhou tanto e tão pessoalmente nos ataques
que proferiu contra a Alémoire, obra que ele considerava misslungene, "frustrada",
ein melihalerirrtum, "um equívoco radical", sem perceber ao menos, o pobre homem,
que passava, assim fazendo, um acabrunhante atestado da sua própria incompe-
tência em reconhecer valores novos dentro da área de sua especialidade.
O "algebrismo" de Saussure - só ultrapassado, anos depois, por Hjelmslev
e, talvez, Greimas - pode ser reconhecido, hoje, como expressão de sua rigorosa
exigência de exatidão, sua aversão ao papo-furado erudito de seus dias, seu respeito
pela lógica, seu reclamo de definições claras e não-contraditórias, qualidades essas
que esperamos agora encontrar em um espírito científico bem-formado, mas que
não eram, náqueles recuados tempos, prendas tão apreciadas. Parecem caracterizar
o modo de ser de Saussure, a crer no depoimen to de seus alunos; mas são, também,
qualidades que ele legará a eles e, por vIa deles, a todas as tendências da lingüística
estrutural européia - em especial, à Escola de Copenhague, com Hjelmslev.
Foucault caracterizou, em entrevista concedida em 1966, toda a sua geração
- o grupo de pesquisadores que não tinha vinte anos feitos à época da Segunda
Guerra Mundial- como uma geração apaixonada pelo sistema: "Nós pensávamos
que a geração de Sartre era, decerto, uma geração corajosa e generosa, que tinha
a paixão da vida, da política, da existência. Mas nós descobrimos outra coisa, uma
outra paixão: a paixão do conceito e do que eu denominarei o 'sistema'" (Foucault
et al., 1968, pp. 29-30).
Se, como crê Foucault, o ponto de ruptura entre os pré-estruturalistas e os
estruturalistas "situa-se no dia em que Lévi-Strauss e Lacan, o primeiro no que se
refere à sociedade e o segundo no que se refere ao inconsciente, mostraram que
'o sentido'não era mais do que um efeito de superfície [... ] e o que nos sustentava
no tem po e no espaço era o sistema" (idem, ibielem) , então esse ponto de ruptura de
62 • A Identidade e a Diferença

m ' ; oJim'iNDJ:::iI :}..[le~~"PJ .J.en laJ11lD<1l;a.hem5H1 t.e"'i_3.tr,0J1j;].eWJJJJ e1 Sa lL'iSllr.f'.L! eS::-. __

cobriu a existência da relação e do sistema que ele organiza para as línguas naturais,
na Nlémoire, em dias em que nem Lévi-Strauss nem Lacan pensavam em nascer.
Lepschy considera a leitura da JVlémoire "uma das aventuras intelectuais mais
excitantes na literatura indo-européia [...] e que permanece sem comparação até
1935, quando aparece o capítulo sobre a raiz indo-européia nas Origines de K
Benveniste" (1968, p. 45).
É com esse trabalho de um jovem suíço que mal acabava de sair da adoles-
cência, contudo, que

o quadro das correspondências entre os fonemas \'ocálicos da línguas históricas fica (oo.] definiti-
\'amente fixado: a dupla função, \'ocálica e consonântica, de uma série de articulações é isolada;
trata-se das sonantes i, II, I, 1; III, '//; duas fórmulas de alternância \'ocálica são atribuídas ao indo-
europeu comum (zero, elo, elo, e Ala, e, o), reconduzindo-se a segunda à primeira por meio da
atribuição ao elemento A (definido pela correspondência latim, grego a = a \'elho-ind. e irn. i) uma
função de "coeficiente sonântico" dotado da propriedade de se contrair com o ápice silábico pre-
cedente para dar a longa correspondente (assim *a < *m, '" e<'" eA, etc.) o que esclarece a estrutura
das raízes dissilábicas e permite isolar as sonantes longas (De Mauro, 1972, p. 328).

Reduzindo as vOl-@is lonl-@s do indo-euro~eu ao combinado v0lZ-al + uma


unidade não-documentada, *A, Saussure eliminava do sistema fonológico do indo-
europeu as vogais longas, mostrando que elas não eram mais do que a projeção
nesse sistema de séries de apofonias até en tão desconhecidas, ejulgadas, em virtude
disso, anomalias impossíveis de se reduzir a uma unidade de sistema. As alter-
nâncias vocãlicas zero / e/ o explicavam as variações de séries de formas como *drk:
* derk : *dork, como paralelas à da série *dhA: *dheA: *dhoA, onde - aplicando-
se o princípio da analogia - 'heA está para 'hoA e para 'hA assim como 'kerestá para
'k or e para '1'r.
Vale mostrar que Saussure postulou a hipótese desse 'kA até então nunca
jamais documentado em qualquer língua derivada do indo-europeu, a partir, pre-
cisamente daquela "necessidade de sistema" que Osthofftanto malsinara. De fato,
esse 'í'A, espécie de casa vazia num tabuleiro de xadrez, determinada pelo conjunto
das intersecções derivadas das oposições internas do sistema, fornece-nos o primeiro
exemplo prático da funcionalidade do procedimento operatório das interdefi-
nições só após Hjelmslev tê-lo reconhecido como modelo epistêmico a seguir por
todas as ciências humanas que desejam extrair um certo número de postulados
lógicos com que efetuar o reconhecimento do estatuto veridictório de suas pro-
posições e com eles construir uma axiomática científica rigorosa.
Foi com esse procedimento interdefinicional estruturalista que Saussure
formulou a hipótese heurística da existência, no sistema, de ·"uma entidade estru-
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 63

tural abstrata sobre cujas propriedades fonéticas ele [Saussure] não se posicionava"
(Malmberg, 1968, p. 61), entidade essa que, com o passar dos anos, meio século
depois, acabou sendo descoberta por um lingüista polonês:

Em 1927 (ou seja, catorze anos após a morte de Saussure), Kurylowics descobria em uma

i~t1ada do idioma, supõe-se haja sido uma laringal] o fonema definido cinqüenta anos antes por
Saussure como fonema sonântico indo-europeu. Essa bela observaçâo fazia ingressar na realidade
a entidade teórica postulada pelo raciocínio em 1878 (Benveniste, 1966, p. 36).

É imprescindível fazer constar, aqui, que a postulação dessa unidade estrutural


abstrata, nunca antes atestada, só poderia ter sido feita a partir do raciocínio
preciso de que o sentido de uma construção (no caso, de um sistema fonológico)
não está nos elementos que o compõem, está, antes, nas relações existentes entre
eles. Para ilustrar o procedimento com o mais rudimentar dos exemplos, o sentido
das operações

4 + 3 7

4 x 3 12

4 3 1

- o sentido, quer dizer, os valores resul tan tes, 7, 12 e 1, não é dado pelos elementos
intervenientes nas operações, seus termos-objetos, que são sempre, aqui, 4 e 3,
mas, sim, pelas relações (de adição, de multiplicação, de subtração) que estabe-
lecemos entre eles.
Percebe-se, aí, a existência de algumas "propriedades" (comutativa etc.)
dessas relações:

a. Que, fazendo variar a relação entre esses elementos, provocamos uma


variação no seu sentido, ainda que os elementos permaneçam os mesmos.
b. Que, dados um elemento mais uma relação de uma equação que deve
comportar um outro elemento, desconhecido-aincógnita xdaequação
- e dado o sen tido da totalidade da equação, é fácil reconstruir o elemen to
ausente representado pela incógnita x; assim,
64 • A Identidade e a Diferença

4 + x 7 (onde x 3 , porque 7 - 4 3)

4 x x 12 (onde x 3, porque 12: 4 3)

4 - x 1 (onde x 3, porque 4 - 1 3)

E foi isso, exatamente, o que, mutatis mutandi, Saussure fez, utilizando, na


prática, a noção de "relação". É isso mesmo, aliás, que Malmberg destaca no feito
do lingüista suíço, lembrando o ineditismo da aplicação desse procedimento no
tipo de ciência praticado na lingüística daquelas eras: "não era o caráter fonético
do elemento postulado mas a definição desse elemento unicamente do ponto de
vista de suas relações com os outros elementos do sistema fonético e com a sua
posição na sílaba" (1968, p. 61). E acrescenta: "Pela primeira vez a palavra fonema
era utilizada para designar uma unidade abstrata que não é em si mesma um som
(e que não se dota de qualquer substância física) mas que pode ser representada
ou manifestada por um som".
Pouco notada no seu tempo, a NIémoire é cada vez mais apreciada com o
correr dos anos. Claude Zilberberg, após registrar que a "lingüística nasceu uma
segunda vez com Saussure", precisa que "a lição da lvlémoire é, a muitos respeitos,
mais alta que a do CLG [o Cours de linguistique générale]" (1986, p. 59).

Foi, de qualquer forma, como esse livro, escrito aos vinte anos, que Saussure

descobriu certos princípios fundamentais como a chamada lei das 1mlatais que [... ] revolucionava a
visão do indo-europeu, atribuindo com acerto ao sistema fonológico antigo a vogal E e, por conse-
qüência, O, considerados até então como secundárias (por causa da ilusória condição do sânscrito
no qual A representava tanto E quanto O antigos), como a existência de coeficientes sonânticos
capazes de alongar a vogal precedente, como a suposição, rica de conseqüência, de que a vogal fUI1-
damental do indo-europeu era E (Bolelli, a1md Lepschy, 1968, p. 52).

É verdade, também, que, como sublinha De Mauro, tendo de lidar "com


problemas de reconstrução de um sistema lingüístico necessariamente não-subs-
tancial, na medida em que a sua realização em discursos [falados] não é conhecida",
Saussure foi levado "a considerar as unidades lingüísticas como puras entidades
opositivas e relacionais e, por conseguinte, na sua cofuncionalidade 'sistêmica' e
não como átomos isolados" (1972, p. 330).

o Doutorado (De L' emploi...) e a Partida de Leipzig

Se tais coisas assinalavam uma extraordinária vocação de teórico, excepcio-


nalmente bem-dotado para a pesquisa pura, pareciam, ao mesmo tempo, marcá-
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 65

lo, em compensação, com uma certa aversão ou, mesmo, uma incompatibilidade
com a pesquisa aplicada.
Essa impressão, contudo, é ilusória - não corresponde, de modo algum,
à realidade.
E Saussure o demonstrou cabalmente ao defender, em 1880 - aos 23
anos - , sua tese de doutorado, De L' emjJloi du génitiJabsolu en sanscrit (publicada
pm.r~eflbmü;"cl")2861 };'l1crquh[\ía-mnJ'nçao exemplar'ae como realIzar Cien-
tificamente o estudo de um caso. Ele, que foi o primeiro investigador do âmbito
das ciências humanas a insistir no emprego do método hipotético-dedutivo,
como o único realmente científico - é ainda hoje, mais de cem anos passados,
o mais indicado para a pesquisa pura, de caráter teórico, nesse domínio (e isso
num tempo em que se utilizava com absoluta exclusividade, para o mesmo fim,
tão-só a metodologia empírico-indutiva) - ,

"é do todo solidário qne se deye partir para obter, atrayés da análise, os elementos qne ele
contém" (Sanssnre, 1972, p. 157)

ele , repito, dá a melhor das demonstrações, no De L'emploi, de como se pode


resolver empiricamente um intrincado problema de sintaxe histórica, domínio,
aliás, que havia sido negligenciado por toda a lingüística indo-européia pós-
boppiana, pelos neogramáticos inclusive.
Surpreende comprovar, hoje, que a despeito de possuir tantos méritos,
nenhum de seus trabalhos dados a conhecer até essa data-I880 - tivesse obtido
mais do que um fi'io, quando não um hostil, acolhimento. Claro, seu Essai era
pouco mais do q'ue um divertissement, uma "infantilidade", como o próprio Saussure
o chama nos seus Souvenirs; mas, assim mesmo, demonstrava uma vocação indes-
mentível para a pesquisa teórica e uma coerência de raciocínio não-despiciendos
num menino de quinze, dezesseis anos, tanto mais quanto emprega ele ali, de
modo sistemático, a chamada técnica da redução (como a batizaria mais tarde,
Hjelmslev, nos Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem), em vigência ainda hoje.
E que essa "infantilidade", como quer que fosse, estava longe de constituir uma
tolice provam-no, muito depois, pierre Guiraud e R. Jakobson, aquele ressus-
citando-a na sua teoria do proto-semantismo de matrizes radicais e este no trabalho
em que associou som e sen tido como efeitos de sentido típicos da função poética,
necessariamente motivados. Apesar de tudo isso, le vénérable jJTOfesseur Pictet con-
descendeu, apenas, em mandá-lo passear- com o resultado que sabemos: Saussure
largou mão da lingüística por dois anos.
Por outro lado, sua NIémoire- que hoje goza da reputação de ser o melhor
livro jamais publicado por um indo-europeísta, à melhor de tudo quanto os neo-
gramáticos fizeram (e a opinião é de uma autoridade nisso, ex-aluno direto de
66 • A Identidade e a Diferença

Saussure, mas que nunca deu mostras de ser seu admirador incondicional, A.
Meillet) - fora recebida com má vontade e ressentimentos, com ataques tolos
e desarrazoados.
Agora, coroando tudo, sua tese de doutorado tornava a defrontar-se em toda
a parte com um muro de silêncio, quando não com um franco desdém - e, no
en tanto, enquanto isso se dava, certos pon tos especialmen te brilhan tes da il1éJnoire
"deslizavam" sorrateiramenete, e sem menção de autor, para dentro dos estudos
e tratados de certos neogramáticos, como a Griechische Grammatih (Leipzig, 1880),
de Gustav 1\'1eyer ("le premieI' à ignorer mon nom", dirá, jocosa e melancoli-
camente, Saussure).
O efeito cumulativo das injustiças renovadas levou Saussure, por volta de
1880, a pensar seriamente em abandonar de uma vez por todas seus estudos lin-
güísticos para consagrar-se unicamente ao estudo da epopéia germânica, que de
há algum tempo o atraía. Antes que pudesse pôr em prática sua decisão, resolveu-
se, con tudo, a deixar Leipzig, onde ficara quatro anos (exceto por um estágio de
alguns meses em Berlim), do outono de 1876 ao primeiro semestre de 1880.
Dirigiu-se, pois, a Paris, onde chegou, ainda em 1880; contava, então, 24
anos; ali em Paris residiria pelos próximos onze anos, até 1891.

o Periodo de Paris: A Sorbonne e a Société de Linguistique

Saussure, que deixara Leipzig esconjurando "a cabeça dura desses alemães",
estabelecera-se em 1880 em Paris, onde em 1881 reside no número 3, rue de
l'Odéon. Fez o possível para adaptar-se à cidade que, no testemunho de seus
amigos, o deprimia. A partir de fevereiro de 1881, ele freqüentou, na Ecole
des Hautes Etudes, os cursos de Michel Bréal (gótico e velho-aI to-alemão ), de
J. Darmesteter (iraniano), de A. Bergaigne (sânscrito) e de Louis Havet (filologia
latina). No mesmo ano, em 30 de outubro de 1881, Saussure foi nomeado
"maítre de conférences de gothique et de vieux-haut allemand", em substi-
tuição a Bréal. Tinha 24 anos e já estava com a responsabilidade de ministrar
o primeiro curso de lingüística histórica e comparada que se dava em uma UlÚ-
versidade francesa.
Além dos cursos que ministrava na Sorbonne, Saussure participava ativamente
das sessões da Société de Linguistique de Paris, na qual foi secretário-adjunto e
diretor de publicações - era ele quem organizava os números da revista da Société,
as Nlémoires de la Soáété de Linguistique de Paris.
Na Sociedade, Saussure apresentou, ao longo de dez anos, seIS ou sete
comunicações versando pontos obscuros do indo-europeu, da gramática com-
parada do velho-aI to-alemão e de línguas bálticas. Aqui e ali, nas raras comuni-
cações que apresentou à Sociedade, repontam fragmentos preciosos, como o
A Semiolingüística Geml de Ferdinand de Saussure • 67

que De Mauro extraiu do ensaio que Saussure dedicou ao nominativo lituano


e que diz, a certa altura:

Antes ele tuelo, não ele"emos nos apartar elo princípio segunelo o qual o "alor ele uma
forma está illteiramente no texto ele onele a romamos, quer dizer, no conjunto ele circunstâncias
morfológicas, fonéticas, onogrMicas, que a rodeiam e esclarecem (Saussure, ajmel De Mauro,
1972, p. 342).

Aí está, formulado com clareza, pela primeira vez na história da semiolin-


güística, o princípio da imanência intratextual e o reconhecimento expresso do fato de
que o sentido de um elemento do te:\:to está em seu contexto - em sua ambiência lin-
güística, exâusivalllente- e não em nenhuma "situação extratextual", do domínio
da enunciação do discurso; não se pode ser mais claro, nem causar mais escândalo
a essa aI tura - estamos nos idos de 1880! - , quando de todas as partes se ouvia
a pregação da necessidade de submeter os elementos de um texto à "leitura filo-
lógica", o que significava a preservação da autoridade in terpretativa exclusiva
do au tor, o retorno do analista ao tem po e ao espaço em que o texto fora redigido,
a glosa dos antigos, a audiência das "autoridades" e até mesmo da "intenção
original" do escritor; quando, enfim, para eXjJLicar um texto apelava-se para tudo o
que estava fora do texto- para tudo, pois, que não fosse o próprio texto! Podemos
nos espantar hoje, o quanto quisermos, com essa perversão do entendimento,
que tenta buscar fora do texto a explicação de algo que se encontra dentro dele
- de algo que Saussure manda, no fragmento citado, pelo contrário, buscar
dentro do texto. Mas assim era, efetivamente, naqueles amenos tempos. Nem
custa reconhecer que se pensamos, hoje, o que pensamos, nós o fazemos preci-
samen te graças ao magistério da semiolingüística estrutural, cujo postulado
semântico central, do princípio da imanência metalingüística na obra, Saussure
enunciava aqui, particularizando, de quebra, uma de suas primeiras conceptua-
lizações da noção de valor.
Em um outro texto, 110 qual faz a resenha da Kritih de Schmidt, Saussure
deixa escrito outro princípio geral da pesquisa científica: "Quando se fizer pela
primeira vez uma teoria da língua, um dos primeiríssimos princípios [será] que
nunca, em caso algum, uma regra que tenha por característica mover-se em um
estado de língua [entre 2 termos contemporâneos] e não em um acontecimento
fonético [2 termos sucessivos] pode ter mais do que um valor ocasional" (idem,
p.351).
Aí temos uma antecipação da distinção que "quando se fizer pela primeira
vez uma teoria da língua" ela será detalhada em termos de sincronia (relação esta-
belecida entre dois termos contemporâneos, ilO interior do mesmo estado de
língua) e de diacronia (relação articulada entre dois termos sucessivos -na cadeia
68 • A Identidade e a Diferença

sintagmática da fala (curta diacronia) e na cadeia histórica dos estados de língua


sucessivos (longa diacronia); são, todavia, ainda esboços de noções, primeiras con-
ceptualizações de uma metalinguagem científica embrionária, diagramas a pon-
tualizar "quando se fizer pela primeira vez uma teoria da língua". Ora, essa primeira
teoria da língua será organizada por ele mesmo, Saussure, no seu extraordinário
COUTS de linguistique générale.

O RETORNO A GENEBRA E OS ÚLTIMOS ANOS: SAUSSURE SEMIÓLOGO

Todo texto é WIl jJroduto produtivo.


STAROBINSKI

Talvez não se saiba nunca quais foram os reais motivos pelos quais Saussurc
resolveu, em 1891, de uma hora para outra, abandonar tudo o que conseguira
construir em Paris durante onze anos e deixar definitivamente a França, para
regressar à sua terra natal. Ocorrendo nas circunstâncias em que ocorreu, ines-
peradamente, no auge de uma carreira brilhante, de que começava a colher os
primeiros frutos - acabavam de lhe oferecer uma cadeira no prestigioso College
de France, e, com ela, a naturalização francesa - , esse regresso tem tuelo de uma
fuga, que iria culminar em um afastamento do mundo ainda mais inexplicável.
De fato, a partir de seu retorno à Suíça, as publicações de Saussure se tornam cada
vez mais esc.assas, como se o mestre, cansado, tivesse se desgostado de vez com
tanto esforço baldado e tantas injustiças.

E, no entanto, ele nunca deixou de trabalhar. Que era, então, que o fazia não publicar?
Principiamos a sabê-lo. Esse silêncio oculta um drama que deve ter sido doloroso, que se agravaria
com os anos e nunca teve solução. Ele se prende, por um lado, a circunstâncias pessoais [... ]. Era
mais que tuclo UIll drama de pensamento. Saussure afastava-se de sua época, ã medida que domin,wa
pouco a pouco sua própria verdade, que o fazia rejeitar tudo o que se ensinava então a propósito
da linguagem (llemeniste, 1966, p. 57).

Tornando à pátria, Saussure casou-se com Marie Faesch, de antiga família


genebrina, de quem teve dois filhos, Raymond e Jacques. A princípio, a família
alternava invernos na cidade - Saussure lecionava na universidade a cadeira ele
lingüística, que fora criada para ele - , na residência de Tartasse, com os verões
em Malgny, junto a Versoix, onde sua família costumava veranear desde a sua
infância. Mudaram-se, mais tarde, para o Creux de Genthod, aristocrática pro-
priedade de seus antepassados, que tinha aos pés o lago e; alteando-se sobre o
A Sel7liolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 69

fundo escuro da floresta, os picos nevados das mon tanhas - domicílio que trocavam
às vezes com permanências mais ou menos prolongadas em Vuflens SUl' Morges,
onde os Faesch eram donos do castelo local.
Tirante contadas viagens - a Paris, em 1893, a Nápoles, em 1905, a Roma,
cm 1906, com sua mulher, e Paris, de novo, em 1909, com a esposa e uma cunhada,
à Inglaterra e a Paris em 1911 - , Saussure viveu sempre recluso, solitário e triste:
"Sua imagem derradeira é a de um gentilhommeque envelhecia, de modos dignos,
um pouco cansado, trazendo em seu olhar, sonhador, ansioso, a interrogação
sobre aqual se enclausurará daí por diante asua vida" (Benveniste, apudDe Mauro,
1972, p. 358). E De Mauro completa:

Uma vaga tristeza domina suas conversações com Riedlinger e Gautier. No Curso do verào
de 1912, Sanssnre é obrigado pela doença (câncer na garganta) a snspender snas anlas; retira-se
entào para o Castelo dos Faesch, em Vuflens, tenta ainda debrnçar-se sobre novos estudos, como a
sinologia (seguindo as pegadas, tah'ez, de sen irmão Leopoldo), mas sen estado se agnwa até a noite
de 22 de feyereiro de 1913, qnando falece (idelll, ibidelll).

Recluso entre as altas montanhas da Suíça, Saussure dividirá seu tempo


entre a edificação dos fundamentos da lingüística geral estrutural e a fundação
da semiologia da literatura. No período de 1903 a 1910, dedicou-se à semiologia
da narrativa, estudada sobre o cmjmsdas antigas legendas germânicas dos Nibelungen;
en tre 1906 e 1909, aplicou-se, em esforço paralelo, ao desenvolvimen to da semiologia
da poesia, elaborando a teoria anagramática sobre versos gregos (Homero) e
latinos (Virgílio, Ovídio, CarminaEpigraplzica) e sobre a métrica védica; entre 1907
e 1911, nos cursos que ministrava na Universidade de Genebra, elaborava as linhas
mestras da lingüística geral, que seria, três anos após sua morte, publicada por
seus antigos alunos, Charles Bally e Albert Sechehaye, sob o título de Cours de lin-
guistique générale (1 916) .
Starobinski lembra que o Cours exposto nos cursos ministrados en tre 1907
e 1911 é em boa parte posterior à pesquisa sobre os anagramas (Starobinski, 1974,
p. 9); mas R. Godel pormenoriza que "tais cursos são apenas três esboços, bem
diferen tes, de uma teoria da linguagem a que Saussure nunca imprimiu uma forma
definitiva; e somente a terceira é totalmente posterior à pesquisa sobre os ana-
gramas" (1972, p. 125).
De qualquer modo, já antes de 1901 Saussure preparava a fundação de
uma semiologia enquanto teoria geral dos signos, visto que nesse mesmo ano de
1901 aparecia publicada a Nouvelle classification des sciences, de Naville, que contém
uma referência explícita à nova ciência de Sanssure. Com quinze anos de ante-
cedência sobre a famosa página 33 do Cours, em que o próprio criador da
70 • A Identidade e a Diferença

semiologia forncce a sua célebre definição, eis o que diz, cntão, a respeito dela
a Nouvelle classijlcation:

1"1. ele Saussure insiste sobre a importância ele uma ciência amplamente gcral, a quc chama
semiologia, e nuo objeto seriam as leis ela criação e ela transformação elos signos e ele seus sentielos.
1\. semiologia é uma parte esscncial ela sociologia. Como o mais importante elos sistemas ele signos
é a linguagem convencional humana, a ciência se mio lógica mais avançada é a lingüística, ciência
elas leis da viela ela linguagem (l\aville, ajmel De Mamo, 1972, p. 352, nota 9).

É notável que se antecipem aí, no primeiro ano do século, as duas definições


maiS utilizadas, até o decênio de 70, para a semiologia, enquanto ciência dos
signos, c para a semiótica (na linha de Greimas), enquanto ciência da significação
("da criação e da transformação dos signos e de seus sentidos").

o Projeto da Semiologia da Narrativa Elaborado jJor Sa1lss1lre

Talie lhe wo)(ls "jullliug" anri "furiolls" r...]


ifyollr Ihoughts incline ever so little
Iowa reis 'jilllling", YOII will say "fulllingjiuious";
iflhey lum r...]lowa)(/ "jiUiOIlS",
yon will say "furiolls jilllling"; bul ifyoll have Ilwl
Faresl ofgiJis, a jJl'ljéclZy ba/anceci minci, )'Oll will SCl)' "ji'nmious".oo
LEWIS CARROLL

Não sabemos se Saussure mudou de opullao ou não, no concernente à


inserção da semiologia num compartimento das disciplinas sociológicas. O que
sim, sabemos, é que ele nunca concordaria, após 1910, com essa classificação que
Navillc lhe atribui. Pelo menos, ele próprio diria:

Discutimos para saber se a lingüística pertenceria à ordcm das ciências naturais ou elas ciências
históricas. Ela não pertence a nenhuma das duas, mas a um compartimento das ciências que, se não
existe ainda, deveria existir com o nome de semiologia, quer dizer: ciência dos signos, ou cstudo elo
que acontece assim que o homem tenta significar seu pensamento por meio dc uma convcnção
necessária (apari Wunder1i, 1976, p. 34).

Em outras ocasiões, depois de lembrar que "todas as formas, todos os ritos,


todos os costumcs têm um caráter semiológico" (idem, p. 42), se interrogará sobre
a abrangência e o alcancc da nova ciência, na verdade ainçla não constituída:
A Semiolinbriiística GemI de Fenlinand de Saussure • 71

"Onde irá parar a semiologia? E difícil dizer. Essa ciência verá o seu domínio
ampliar-se sempre cada vez mais. Os signos, os gestos de cortesia, por exemplo,
serão parte dela... " (idem, p. 38).
Ele via no mínimo setenta anos à frente.
Logo no começo do século, Saussure tenta lançar os fundamentos de uma
teoria semiológica da narrativa, que (faz questão de sublinhar) nada teria a ver
com as pesquisas de caráter historicista, voltadas para a busca de fontes, origens
e influências: "Nossa afirmação não pode ser confundida nem com o reconhe-
cimento vago de que as legendas do Norte tenham tomado algo emprestado à
mitologia greco-romana [... ]" (Godel, 1957, p. 28).
Nesse intuito ele trabalhou ao redor de sete anos, no mínimo;já em 1957,
Godel identificava uma série enorme de rascunhos sobre esse tema:

Cerca de 150 fasquias [aparas de papel, compridas] em um enyelope com a indicação NibetulIgen;
14 cadernos inteira ou parcialmentc utilizados; 22 páginas de grande formato sobre Tlistan quc parecem
conter uma primcira ordenação de elementos nas notas e extratos. Uma das notas foi traçada sob Hm
começo dc carta elatada de 7 de dezcmbro de 1903; Hm elos caelernos tem a ela ta ele 1910 (idem, p.14).

A Narrativa como uma Reescrita em Expansâo de Outro Discurso lVarrativo

Sua hipótese mais interessante antecipava algo da J\101fologia do Conto ivlara-


vilhoso de Propp, algo das Formas SimjJles, de J olles, e, por mais estranho que pareça,
algo que a semiótica da narrativa greimasiana começou a trabalhar nos anos 60
sobre a figuratividade: tratava-se da idéia, que o domina, segundo a qual um dis-
curso narrativo qualquer, Dx, poderia ser concebido como uma espécie de reescrita
em expansão, de um outro discurso narrativo mais antigo, que teria sobrevivido
na forma de um fragmento matricial ou de uma programação narrativa con-
densada ~ um discurso-tipo. De Mauro enuncia assim essa hipótese: "A tese de
Saussure era que 'um livro contendo as aventuras de Teseu foi a base de um dos
grandes ramos da legenda heróica germânica', o que se deveu provavelmen te 'a .
uma circuláção das mitologias clássicas para o norte por intermédio de man~jos(... )'
a propósito das constelações" (1972, p. 347).
Em síntese, diríamos hoje: uma matriz, um programa narrativo ou um
programa figurativo - um livro contendo as aventuras de Teseu - teria pro-
duzido, ao longo de um percurso gerativo a descrever, n paráfrases suas, que seriam
outras tantas narrativas ocorrenciais, diferentes entre si apenas no nível da mani-
festação figurativa, da mesma narrativa-tipo imanente, o livro das aventuras de
Teseu. Uma hipótese que permanece válida ainda hoje e que, diga-se en jJassant,
é basicamente a mesma que irá orientar seus exercícios anagramáticos a respeito
72 • A Identidade e a Diferença

dos mecanismos de geração do poema (em que o hipograma faz as vezes de matriz,
verso-tipo a reproduzir, enquanto o anagrama funciona como sua reescrita
expandida, no nível da manifestação).
O problema inicial que essa hipótese põe para o pesquisador é o de saber
como terá sido produzida essa transformação de um relato matricial, o relato-tipo
primordial e condensado, em n outros relatos posteriores, espécies de paráfrases
expandidas suas, de modo a constituir, o cOl~junto deles, "um dos grandes ramos
da legenda heróica germânica". Como se dá essa transformação da unidade em
diferença, em variedade?

A Transformação Endogerada da Narrativo-tipo Primordial e o Esboço de uma


Teoria Componencial do Ator-Narrativo

Para responder a essa questão, Saussure imagina não a ocorrência de um processo


histórico genético, montado à base de algum eixo de causalidade extrínseca, à moda
da época, quando se supunha que os discursos rel1etiam, nas suas transformações, de
um modo direto e sem mediações semióticas de nenhuma espécie, as transformações
paralelas ocorridas no seio das sociedades em que eles se criavam, mas, ao contrário,
um processo de transformação estrutural, endogemda, concebível, talvez, (à semelhança
do que ocorre com os processos naturais de transformação da semente em árvore),
como o progressivo desdobramen to de causas con tidas porventura em estado embrio-
nário no relato-tipo primordial, cl~a maturação produziria, de algum modo, n exem-
plares diferentes figurativamente, no nível de manifestação, do mesmo relato-tipo
existente, num nível imanente - como a passagem da potência (o relato-tipo) ao ato
(o relato ocorrencial), que caracteriza o fazer (um fazer narrativo, no caso).
Eis como ele especula, em suas notas, tentando resolver essa questão da
produção da diferença a partir da unidade, da identidade:

A legenda se compõe de uma série de símbolos com um sentido a precisar.


- Esses símbolos, sem que o percebam, estão submetidos às mesmas vicissitudes e às mesmas
leis que todas as outras séries de símbolos; por exemplo os símbolos que são as palavras da língua.
- Eles todos fazem parte da sellliologia.
- Não há método nenhum na suposição de que o símbolo deva permanecer fixo, nem que
ele deva variar indefinidamente; ele deve provavelmente variar dentro de certos limites.
- A identidade de um símbolo não pode jamais ser fixada desde o instante em que ele é
símbolo, quer dizer, vertido na massa social que lhe fixa a cada instante o valor.
- Assim a nma Y é um "símbolo". Sua identidade parece uma coisa tão tangível, e quase
ridícula; para melhor mantê-la consiste nisso: que ela tem a forma Y; que ela se lê z; que ela é a letra
número oito do alfabeto; que ela se chama misticamente zann, enfim que algumas vezes ela é citada
como primeira da pala\Ta.
A Semioling;iiística Geral deFerdinand de Saussure • 73

Ao cabo de algum tempo... ela é aI" do alfabeto... mas aqui já ela começa a supor unidade.
Onde está agora a identidade? Responde-se geralmente com um sorriso, sem comumente observar
o alcance filosófico da coisa, que não é nada menos do que dizer que qualqllersíJllbolo urna \'ez posto
em circulação - est~l no mesmo instante na incapacidade absoluta de dizer em que vai consistir sua
identidade no instante seg'uinte.
É nesse espírito geral que abordamos uma questão de legenda qualquer, visto que cada um
dos personagens é um símbolo do qual se pode ver variar - exaramente como para a runa - a)
nome, b) a posição em face dos ontros, c) o caráter, d) a função, os atas; se um nome é transposto,
pode seguir-se que uma parte dos atas seja transposta, e reciprocamente, ou que o drama inteiro
mude por um acidente desse gênero (Saussure, ajJad De Mauro, 1972, p. 348).

Há muito que examinar, aqui. Causa surpresa verificar, por exemplo, que,
ao examinar os atares narrativos que, no caso, ele chama de símbolos, Saussure
identifique ao final, na alínea d, como um de seus componentes seu fazer, fazer
esse que denomina, exatamente como farão Propp e os formalistas russos todos,
de função; só que a idO/iologia de Propp e também as Formas SimjJles de JoIles,
que irão retomar, mesmo ignorando-as, as idéias de Saussure, são de 1928, ao
passo que o manuscrito supracitado do autor do Cours está datado de 1908. Mas
convém observar, também, que se há no particular uma coincidência COl1teu-
dística entre a concepção geral de Saussure e a concepção geral deJoIles, a coin-
cidência na utilização do termo "função" para o fazer do personagem é uni-
camente nominal e não conteudística entre Saussure e Propp: pois o suíço pensa
na função como uma variável, precisamente o inverso de Propp, que a concebe
como uma invariante narrativa - e, nesse particular, é o russo quem está no
melhor caminho.
A todas luzes, o que preocupava Saussure no instante em que redigia esse
apanhado, bem como ao longo de todos aqueles anos que passou debruçado
sobre as velhas sagas germânicas, foi quase exclusivamen te o problema da trans-
formação da iden tidade em diferença. Se mal se colocava em circulação um
personagem narrativo - um símbolo - , ele quase instantaneamente se con-
vertia em outra coisa: "(a runa Y que) é a letra número oito do alfabeto [... ]
ao cabo de álgum tempo ... ela é a lª do alfabeto ... mas aqui já ela começa a supor
unidade. Onde está agora a identidade?", então, o que foi feito de sua primitiva
identidade?
É claro que Saussure se dava perfeita conta de que tais transformações na
identidade do personagem narrativo eram modificações endogeradas, cl~a origem
se deveria buscar no interior dos fenômenos que ocorriam no nível dos meca-
nismos semiolingüísticos da própria narrativa, e não como o produto de modifi-
cações exogeradas, provocadas por alterações ocorridas no espaço-tempo social,
do mundo exterior às obras:
74 • A Identidade e a Diferença

"Como se vê" - particl1lariza ele no 111S. ü'. 3958-8, hoje na Biblioteca de Genebra - "no fl1ndo
a incapacidade de manter lima identidade certa nclo deve ser levada à conta dos eji'itos do TeJlljJo - aí está
o erro evidellte dos qlle se tém ocujJado dos signos - JIlas está di1Jositado de antemclO na jJlvjJlia constituiçclo do
ser qIII' se escolhe e se observa como l1m organismo, qllando ele nclO é IlIais do que a coJllbinaçâo fllgaz de dilas
011 tl'és idéias. Tl1do... é lima ql1eslão de difiniçâo. Longe de partir dessa l1nidade ql1e não existe em
nenhl1m momento, deveríamos perceber ql1e ela é a fórml1la ql1e damos de mIl estado momentãneo
de l1nificaç,lo - somente existindo os elementos. Assim, Dietlich, 'tomado em sua vel{ladeim eS.>I'lIcia',
nâo é 1lI1l jJelsollagem histólico ou a-histólico: ele é jJllmJllellte a coJllbinaçâo de tl'és ou quatro tmços que jJodem
dissoci({)Cse a qualqllel' IllOJIlellto, acarretando a dissolllçâo da unidade inteim." (Sal1ssl1re, ajmd W'nnderli,
1976, p. 54; com exceção de Jitgaz e de dejilliçâo, grifados no original, os ontros grifos são mel1s) ,

Convém parar um pouco, aqui. A grande questão que subjaz a todo o trecho
é a da coexistência, no discurso, da identidade com a diferença. Digamos, desde logo,
que Saussure lida, aqui, com uma questão central de toda a semiologia, nesse fragmento
figurando ora como um problema lingüístico, ora como um problema narrativo:

a. O problema lingüístico vem sinalizado de dois modos; primeiro, na recusa


que nosso autor especifica de tratar o personagem narrativo não como
um simulacro dc gente de carne e osso ("Dietrich, 'tomado em sua ver-
dadcira essência', não é um personagem histórico ou a-histórico [... ]"),
para fazer ver que se trata de um símbolo, um elemento semiótico,
"puramente a combinação de três ou quatro traços [... ]"; segundo, na
contraposição implícita na afirmação 'Tudo ... é uma questão de definiçâo",
entrc os dois modos de existência lingüística pelos quais o personagem
coi11parece no discurso, a denominação (assim, Dietrich é apenas um
nome) e a definição.
• Ora, a denominação, que assegura a identidade do atol', na medida em
quc o nome próprio ("Dietrich") designa uma unidade que é o membro
diferenciado de uma classe de n outros membros (outros personagens),
a dcnominação, dizíamos, implicita uma definição (porque, em si
mesmo considerado, o nome próprio não tem sentido nenhum: que
quer dizer "Dietrich"? No nível da Zangue, quase nada: um atol' mas-
culino, provavelmen te germânico; o que mais?); a denominação assegura
a identidade do atol', no nível da Zangue, como um elemento imutável,
ne varietur; enquanto isso,
• A definição, que predica de seus variados atributos ou de suas jJeljolc
mances diversas, funcionando por determinações que consistem no
aporte de outros tantos traços distin tivos, responde pela sua incessante
transformação, de enunciado em enunciado: cada vez que explicita
uma marca que está implícita na denominação, a. definição acrescenta
A Semiolingúística Geral de Ferdinand de Saussure • 75

um traço mais ao personagem que "é puramente a combinação de três


ou quatro traços que podem dissociar-se a qualquer momento, acar-
retando a dissolução da unidade inteira".
b. Do pon to de vista que mais nos in teressa, tratado como um problema nar-
rativo, o personagem é visto aqui, por Saussure, como um lexema-atol',
produto de uma denominação antropomorfizame - um nome próprio,
"Dietrich" - , que lhe fornece o suporte (a informação velha) de uma
identidade imutável (se lhe mudarmos o nome, mudaremos "o assunto"
da história), mais n definições ocorrenciais, n predicações, que lhe forne-
cem o aporte (a informação nova) e que o tornam, a cada instante, diferente
do que antes fora; desse modo, o sentido do personagem narrativo se
define como o produto de uma combinatória irrepetível de traços con-
textuais in tradiscursivos - e não como um "ente histórico ou a-histórico".

Os poucos fragmen tos que citamos atrás bastam para nos dar uma idéia aproxi-
mada das grandes linhas daquilo que poderíamos chamar de "projeto da teoria nar-
rativa" de Saussure. Claro q\le não qodemOS5abf'LJlOfSL:j.(lcvl.tll,,1[lr:-!1mSG\5srullwc~r­
mentos, acerca dc quanto deixou ele escrito e anda ainda agora por aí, inédito, o
que teria acabado ela por sel~ no caso dc ter ele desenvolvido o que projetava. Mas,
não pode escapar a ninguém, com um mínimo de familiaridade com a sua obra, o
quanto se identifica ela, na recorrência de alguns temas e no retorno a certos con-
ceitos-chave do restante de suas reflexões, com determinadas passagens do Cours-
talo grande problema das relações entre a identidade e a diferença, noção-pivô
para o entendimento de todas as suas dicotomias - e, também, da sua teoria ana-
gramática - hé~a vista a mesma concepção básica da "reescrita em expansão", no
nível da manifestação do discurso, de um discurso cnunciado-tipo, o nível imanente.
De modo análogo, é assombroso comprovar que a despeito de nos termos
cingido ao cxame das poucas linhas que citamos, nelas se destaquem pistas ClUO
aprofundamento teria antecipado de mais de meio século algumas das questões
centrais do que hoje conhecemos como semiótica da narrativa. Nessas poucas
linhas, vimos, com efeito:

u. O princípio da reescrita em expansão, constituindo n relatos diferentes


a partir do enunciado-tipo de uma mesma classe de relatos; na sua for-
mulação, "um livro contendo as aven turas de Teseu" (relato-tipo), que
teria produzido "um dos grandes ramos da legenda heróica germânica"
(relatos ocorrenciais variáveis).
b. O princípio da transformação endogerada, que veremos, a seu tempo,
ressurgir no Com:;, no conceito saussuriano de historicidade interna,
capaz de dissolver todas as ambigüidades causadas pela compreensão
76 • A Identidade e a Diferença

unicamente antitética - e não dialética, como, cremos, deve ser a que


guiava acertadamente Saussure - da parelha diacronia-sincronia etc.
c. A negação da teoria hipostasiante do atar narrativo, que timbrava em
tratá-lo como um ente histórico, uma pessoa de carne e osso ("um
organismo"), ignorante de que ele é, como dirá Barthes mais tarde, "um
ente de palavras" (e Saussure: "que se escolhe e se observa como um
organismo, quando ele não é mais do que a combinação fugaz de duas
ou três idéias"); e, associada com ela,
d. ° princípio extremamente moderno da descrição do atar narrativo por
meio de uma análise componencíal, que o toma como um feixe de traços
distintivos submetidos ao processo histórico de uma metamorfose:

Longe de partir dessa unidade que não existe em nenhum momento, de"eríamos perceber
que ela é~ a fórmula que damos de um estado momentãneo de unificação - somente existindo os
elementos. Assim, Dietrich, "tomado em sua "erdadeira essência", não é um personagem histórico
ou a-histórico: ele é puramente a combinação de três ou quatro traços que podem dissociar-se a
qualquer momento, acarretando a dissolução da unidade inteira (idem, ibidem).

Não se pode fechar este tópico sem fazer constar que todos e cada um desses
princípios mantêm perfeita validade, ainda hoje, na semiótica da narrativa.

° PROJETO SAUSSURIANO DE SEMIOLOGIA DA POESIA

{. .. } une source d/une valeu!' inestimable jJour les études exhaustives

jittures de l'hétitage toujours cajJital de ce savant {. ..}

les conttibutions de Saussu!'e à la jJoétique {. ..}

ne sont jJas 17l0ins audacieuses et intéressantes que


ses léalisations dans la

science générale dulangage

et dans l'étude comjJaratille des langues.

}\KOBSON

Numero Deus jJ(//i gaudet.


SAUSSURE

No início do livro em que organizou e estudou os anagramas de Saussure, As


Palavras sob as Palavras, Starobinski narra que as pesquisas do professor de Genebra
nesse campo duraram de 1906 até os primeiros meses de 1909. Que foram muito
A Semiolingüística Geral deFerdinand de Saussure • 77

intensas se comprova pelo número de cadernos escolares que preencheu, total ou


parcialmente com eles: cerca de 99, além de uma certa quantidade de folhas de
formato grande, acrescidos de uma ,~ntena de cadernos sobre o verso saturnino e de
outros 26 sobre a métrica védica, esses exercícios compõem aproximadamente 140
cadernos de rascunhos manuscritos (hoje conservados em oito caixas classificadas por
Robert Godel sob os números ms. fr. 3982 a 3969, na Biblioteca Pública de Genebra).
A intensidade do esforço despendido está a demonstrar, preliminarmente,
que os anagramas não foram um passatempo ocasional de Saussure, mas tentativas
incessantemente retomadas de colocação dos princípios teóricos e práticos tanto
daquilo que os formalistas russos chamarão mais tarde de função poética, quanto
de uma semiologia da poesia propriamente dita; mas não é só: desenvolvidos,
como dissemos, em paralelo e simultaneamente com os trabalhos em que foca-
lizava, além da semiologia da poesia, o seu projeto de semiologia da narrativa, os
princípios de base da lingüística geral (do Cours) , nesses rascunhos, se contém
em germe os conceitos capitais da lingüística estrutural no século XX. Em toda a
parte, até onde pudemos ver, transparece, nesses escorços (diagramas e notas reni-
tentemente repensados), o cuidado que Saussure pôs na construção de uma meta-
linguagem formal, construída, científica, para a semiolingüística, que, sozinho,
désassistido de quem quer que fosse - Saussure nunca trabalhou em grupos -
e, por vezes, contrariando as simpatias de muitos, ele fundava.
Em uma primeira aproximação, pode-se dizer que o que aparta os Anagra-
mas- vamos nos referir assim, doravante, às notas manuscritas de Saussure que
Starobinski coligiu em As Palavras sob as Palavras- do Cours é que nosso autor se
preocupa, neste último, mais com os fatos da langue, de um ponto de vista teórico,
enquanto nos Anagramas seu interesse principal está voltado para a parole, de um
ponto de vista teórico-prático - mais exatamente, para o isolamento dos meca-
nismos que presidem à construção elo discurso poético, cujo embasamen to é cons-
tituído pela parole (fala ou discurso) que ele concebe, agora, como o estabele-
cimento de uma relação entre dois conceitos:

"o discurso consiste [... ] em afirmar um elo entre dois conceitos que se apresentam revestidos de
forma lingiiística, enquanto a língua jJreviamente apenas realiza conceitos isolados, que esperam
ser relacionados entre si para que h,"\ia significação de pensamento" (Saussure, ms. fr. 3961, ajmd
Starobinski, 1974, p. 12).

É O momento em que emerge, no Ocidente, a conceituação do discurso a partir


da construção de um contexto mínimo - um vínculo entre dois conceitos revestidos
de forma lingüística - , opondo a fala à langue, em que os signos lingüísticos
surgem como conceitos isolados, em estado de dicionário, descontextualizados.
Mas, antes de prosseguir, convém notar:
78 • A Identidade e a Dijàenfa

a. Que Saussure, ao contrastar língua e discurso, afirma que a significaçelo


(arelo de signijicclI) é um fato do discurso (o significado do signo da língua
não é mais, portanto, do que matéria-prima dada para a produção do
discurso, matéria-prima essa em si mesma não-significante, na medida
em que a significação surge de uma relação entre dois de seus termos, e
não no nÍyel do termo isolado).
ú. Que, para Saussure, o discurso nela se origina unicamente da língua, mas,
tamúém, de um outro discurso antecedente- de modo análogo ao que víramos
acon tecer, há pouco, para todo "um ramo da legenda heróica germânica"
produzida a partir da reescrita em expansão de um relato primordial, o
do mito de Teseu.

Em b Saussure intui, explicitando-o com dez a vinte anos de antecedência, o


que os formalistas russos "descobrirão" mais tarde, ao preconizar o estudo da
evolução histórica da literatura como uma "substituição de sistema": "Mas, o que é
a língua separada do discurso? O anterior ao disCUJ:5o é realmente a língua, ou nela seria
dejmjén>ncia wndiscurso antecedente? A língua, simples repertório de conceitos isolados,
separada do discurso, é uma abstração. A audácia de Saussure consiste em tratar
essa abstração como uma matélia-jJliJna" (Starobinski, 1974, p. 12).

A Identidade e a Diferenfa no Plmw de Conteúdo: o Significado do Signo


Construído da Língua e a Significafrlo do Signo em ConstrUfrlo no Discurso

No fragmento que citamos, transparece o problema da identidade e da


diferença, formulado a respeito das relações que man tém entre si o signo da língua
- que no Cours aparecerá como um conceito, um significado aprioristicamente
definido, como um signijéito- e o signo do discurso, da jJarole, que é uma entidade
da significação, quer dizer, em signi-jicaçelo (em construção) na jJarole- uma forma
submetida ao processamento de todas as pressões contextuais, a todo o complexo
jogo de procedimentos adaptatiyos que cada signo da língua sofre na sua iden-
tidade ao deixar o estado de dicionário para Yir integrar-se em dado ponto da
cadeia sintagmática. Ou, nos termos de nosso autor: "Aquilo que faz a nobreza da
legenda [lenda] como a da língua é que, condenadas a se servirem apenas de ele-
men tos colocados diante delas e com um sentido qualquer [dotadas de um sentido
da langue] elas os reúnem [no discurso: 'o discurso consiste em afirmar um elo
entre dois conceitos'] e tirar deles continuamente um sentido novo" (Saussure,
ajnul Starobinski, 1974, p. 16).
Saussure tomará tanto o sentido construído por outro discurso quanto o
significado de um signo na langue como matéria-prima a ser utilizada para a
reconstrução do sentido da fala:
A Semiotingüistica Geral de Ferdinand de Saussure • 79

Imaginar que 111l1a lenda comcça por um sentido, quc ela te"e sempre desde sua primeira
origem o sen tido quc ela tem, ou melhor, imaginar quc ela não pode ter um outro sentido qualquer,
eis uma operaç,lo que me espalHa [... ] pois, cLulos cinco ou seis e1cmentos materiais, o sentido
mudará no cspaço de alguns minutos, sc eu pedir a cinco ou seis pessoas, trabalhando separa-
damente, para combin,l-los (idelll, ibidelll).

Em outros termos: o discurso constrói o seu sentido por meio da recons-


tl-ução de um sentido anterior - "dados cinco ou seis elementos materiais, o
sentido mudará no espaço de alguns minutos" - , o que é feito por intermédio
do procedimento de efetuar novas combinações pelos falantes (ou pelos intér-
pretes) - "se eu pedir a cinco ou seis pessoas para combiná-los".

A Identidade e a Diferença no Plano de ExjJressâo: o Significante Construído


da Língua e o Significante em Construçâo do Discurso. A Teoria do
AcojJlamento e o Primeiro Esboço dos Procedimentos Anagramáticos na
Construçâo do Discurso Poético

Saussure mesmo descobriu que o que ele próprio dizia a respeito da cons-
trução do plano de conteúdo pode, com igual adequação, ser dito a propósito do
seu plano de expressão. O mecanismo combinatorial trabalha do mesmo modo
as identidades e diferenças observáveis num e noutro plano. De fato, ele opera
em especial na modalidade de discurso poético, em que o mesmo elemento ante-
riormente dado apresenta a peculiaridade de reaparecer na seqüência dos versos
sob a forma de outro elemento parcialmente igual- e isso a tal ponto e com tal
constância, deséobriu Saussure, que bem se poderia afirmar que o discurso poético
é todo construído a partir do procedimento de fazer o mesmo, de outro modo.
N essa observação repousa o mecanis~110 fundamental do que será mais tarde
a teoria anagramática.
A teoria do anagrama foi precedida, porém, em um primeiro estágio, pelo
que vamos chamar de uma teoria do acoplamento - uma forma simplificada do
anagrama, que Starobinski vê assim:

Quanelo Saussure sc volta para os problcmas elas métricas do verso satllrnino, não podc mais
rcstringir-se por muito tempo ,15 considerações atincntcs à função preponderante do acento ou da
quantidade. Ele procura"a, além disso, outras regras, e as que lhe apareciam eram, em sentido
estrito, regras de ntilizaÇ<lo, de distribuição de um primciro matcrial. Percebe primeiro a lei do "aco-
plamento". Esta pretende que seja redobrado, 110 interior de cada "erso, o emprego de toda vogal
e dc toda consoante utilizadas uma primeira vez. A aliteração deixa de ser um eco ocasional: repousa
numa duplicação consciente e calculada. Uma carta de 14 de julho de 1906 anuncia com alegria a
constatação surpreendente (após dois meses de trabalho);
80 • A Identidade e a Diferença

"[... ] Todo fenômeno de aliteração (e também das rimas) que se observava no saturnino é
tão-somente uma parte insignificante de um fenômeno mais geral, ou melhor, absolutamente total.
A totalidade das sílabas de cada verso saturnino obedece a uma lei de ali te ração, da primeira à última
sílaba [... ]; bastam-me duas linhas para dar a lei:

1. Uma vogal não tem o direito de figurar no saturnino a não ser que tenha sua contravogal
em um lngar qnalqner do verso (a saber, a vogal idêntica e sem transação sobre a qnan-
tidade; há somente transação para o timbre, entre ii breve e i breve [... ]
2. Lei das consoantes. Ela é idêntica e não menos estrita, e nenhnma consoante, mesmo
entre as implosivas como stabant [... ]. I-lá sempre nm número par para toda consoante,
e sobretndo é preciso não esqnecer as consoantes que aparecem nos grnpos: assim, a
palavra IJvod será certamente seguida no verso: 1", de um outro IJ ou c, 2", de um outro
v; de um único d- a menos que haja 4, Gou 8 deles fazendo sempre par.

3. E há um resíduo irredutível qualquer, quer nas vogais [...] quer nas consoantes [... ] nada se
perde deste resíduo, ainda que seja um simples e ou um simples IlllUI1 grupo com jl [... ]
o poeta toma nota deste ii ou deste I e vemo-lo então reaparecer no verso segninte como
novo resídno correspondente à sobrecarga do precedente" (Starobinski, 1974, p. 18).

Saussure fica tão empolgado com a descoberta da lei do acoplamento que


inscreve em um de seus cadernos, com maiúsculas, "NU~dERO DEUS PARI GAUDET".
Seria preciso insistir em que se veja aqui uma das raízes mais remotas e reni-
tentes de seu apego sistemático à questão do emprego pela língua da identidade
e da diferença, base e fundamento das dicotomias que irão fornecer mais tarde
o arcabouço do Cours e, a partir delas, se disseminarão na forma predominan-
temente binária de todo estruturalismo europeu, durante o século XX.

A Intertextualidade Dialógica do Discurso: O Anagrama como um Texto sobre um


Texto Anterior (o HijJograma). O Procedimento da Reescrita Cubista na
Composição do Poema

Na seqüência de suas investigações sobre o verso saturnino, Saussure descobre


que, valendo-se sempre do procedimento de reduplicação de sinais - sons ou'
letras - , primeiramente utilizados no verso, e a seguir reutilizados em novas com-
binações, "o poeta atualiza na composição do verso o material fônico fornecido
por uma jJalavra-tema" (apud Starobinski, 1974, p. 18). É essa palavra-tema, con-
jectura o autor do Cours, uma espécie de depósito de material de construção, de
sons (ou fonemas), letras e sílabas, que, figurando em geral na abertura da
mensagem poética (freqüentemente no primeiro verso), serão depois incessan-
temente retomados, a intervalos mais ou menos regulares, para compor, em novas
combinações, outras sílabas ou outras palavras que se configuram, como dissemos,
feito a reconstrução do mesmo, de outro modo:
A Semiolingilística Geral de Ferdinand de Saussure • 81

A produção do texto passa necessariamente por um vocábulo isolado - vocálmlo que se


relaciona com o destinatário ou com o assunto da passagem - via de acesso e reserva de fonemas
privilegiados sobre os quais se apoiará o discurso poético acabado. Um estudo intitulado recaIJi-,
lltlaçâo (mas cujas numerosas rasuras provam que ele não é ainda senão um estágio e não o resultado

da pesquisa) tenta reagrupar o conjunto das regras técnicas da composição. O termo hipogral11a
ou anagrama não aparece(m) ainda, mas é exatamente disto que se trata. Entre as rasuras, umas
das mais significativas concerne ao antecedente da palawa lema: Saussure primeiro escreveu "texto"
depois riscou essa palawa para substituÍ-la por "tema". Ele portanto pensou num texto sob o texto,
llllm pré-texto, no sentido lato do termo (idem, pp. 18-19).

Essa intuição admirável da existência de um texto original sob o texto que


se está a com por (ou a ler) , da idéia, portanto, de que um discurso ocorrencial pressupõe,
recombina e realiza de modos variáveis no nível da manifestação um outro texto anterior, é
a mesma, em síntese, que já viramos aparecer no projeto saussuriano da teoria narrativa,
formulado como um princípio de reescrita em expansão, no nível da manifestação,
de um mesmo relato-tipo condensado, no nível imanente, subjacente à mani-
festação (exemplo do mito de Teseu como relato-tipo gerador de todo um ramo
das legendas heróicas germânicas).
Tendo em vista, assim, que Saussure pensava na existência de um princípio
anagramático tanto para a construção da poesia, quanto para a construção da nar-
rativa, podemos afirmar que esse jJrincíjJio constitui para ele uma das chaves da com-
posiçâo do discurso literário em geral: existe, sem dúvida, para ele, uma teoria anagra17lática
da literatura.
Dada a relevância dessa hipótese, pertinente ainda hoje para os atuais
estudos semiolingüísticos, não será demais repetirmos que essa concepção de
que um discurso ocorrencial seja o manifestante ocorrencial que realiza visi-
velmen te outro texto-tipo manifestado, mas invisível (porque em nível imanen te),
constitui uma prefiguração genial de um dos principais mecanismos geradores
do discurso literário de qualquer subespécie; lidamos aqui com uma hipótese
cuja pesquisa mal começa a sistematizar-se hoje e que está longe, por isso, de
ter rendido sequer pequena parte do que poderá render para a elaboração de
uma teoria iritertextual da literatura (palavra que Saussure não usou, mas seu
conceito, sim, que emerge cerca de trinta anos depois dele, empregada por
Bakhtin, depois retomada por Kristeva), para lembrar o caráter dialógico não
de qualquer tipo de composição literária, mas unicamente de dado gênero de
romances.
O autor da lvléJnoire não parou, no entanto, na mera constatação do fato de
que o discurso poético se constrói por intermédio da paráfrase fônica da palavra-
tema do poema. Indo mais longe, ele tentou descrever as operaçôes mobilizadas
para a elaboração dessa espécie de discurso:
82 • A Identidade e a Diferença

Resumamos as operações que, se os resultados que obtivemos forem verdadeiros, deveria


efetuar um versejador da poesia saturnina para a redação de um elogiUln, de uma inscrição qualquer,
funerária ou de outra natureza:

1. Antes de tudo, impregnar-se das sílabas e combinações fónicas de toda espécie que

que pag,wa a inscrição - é composto apenas de algumas palavras, quer seja unicamente
de nomes próprios, quer seja de uma ou duas palavras anexadas na parte inevitável dos
nomes próprios. O poeta deve então, nesta primeira operação, colocar diante de si, tendo
em vista seus versos, o maior número possível de fragmentosfônicos que ele possa tirar do
tema; por exemplo, se o tema, ou uma das palavras do tema é Hercõ lei, ele dispõe dos
fragmentos õ - Ie i - , ou - , có - ou e, T; por outro lado, de rc ou de cl etc.
2. Deve então compor seu trecho introduzindo em seus versos o maior número possível
desses fragmentos, por exemplo, afleicta para lembrar Hercó -lei e assim por diante.

Entretanto, esta é tão-somente a parte mais geral de sua tarefa, ou a matéria fónica geral que
ele deve levar em conta e de que deve se servir. É necessário que, especialmente em um verso ou
ao menos em uma parte do verso, a seqiiência vocálica que se encontra em um tema como Hercólei
ou Cornelius reapareça, quer na mesma ordem, quer com variação (idem, p. 19).

É impossível deixar de ver que o que Saussure descreve no trecho acima é,


em tudo e por tudo, o procedimento cubista de reescrita, da montagem por meio
da reestruturação cubista de uma forma anteriormente dada e desestruturada em
seus constituintes imediatos: senão, compare-se o que ele descreve, abaixo, com
o "Procedimento da Montagem Cubista" (ver Figura 1).

a. Seleção da forma-tipo a reescrever (ex.: a palavra-tema Hercõ lei).

b. Análise e segmentação dessa palavra-tema em seus constituintes mínimos


(uma sílaba, um grupo vocálico ou consonantal: -eT-, -eo-, -cl- etc.).
e. Redução das formas obtidas no item (b) por meio da variação combina-
torial de seus constituintes (ex.: el/ ie, eo / oe, oq / qvo, cl / lc etc.).
d. Reconfiguração ou reescrita de (a), a palavra-tipo, por meio da sua
expansão nas formas remodeladas obtidas em (c), acima.

A Reescrita Anagramática: Hipograma, Anagrama, Paragrama. Tema e Variações.


O Discllrso como Espaço de Dispersão do Anagrama: O Maneqllim

o que chama ainda Saussure, na última citação, de palavra-tema, chamará,


tempos depois, de hipograma: "Os elementos do hipograma (ou palavra-tema)
utilizados no verso não são monófonos, mas sim dífonos" (combinações fónicas
binárias) (idem, p. 34).
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 83

Podemos conceber, portanto, o hipograma como a forma a ser parafraseada


fonicamente e a seguir semeada, por partes, no espaço de dispersão do discurso:
"trata-se ainda no 'hipograma' de sublinhar um nome, uma palavra, esforçando-
se por repetir-lhe as sílabas, e dando-lhe assim uma segunda maneira de ser, fictícia,
acrescentada, por assim dizer, à forma original da palavra" (idem, ibidem).
O que inicialmente surgira como seqüência parafrástica ou segmen to recons-
truído passará a denominar-se de anagrama. Por anagramaSaussure compreendia,
pois, a paráfrase fónica in tradiscursiva do hipograma.
Assim, no texto passado a limpo, que preenche um caderno escolar inteiro,
sem capa, intitulado Premier cahier à lire préliminairement, o qual, como o título
explicita, deveria conter uma primeira versão canónica da teoria anagramática,
Saussure esclareceu:

[I - TER~H"'OLOGIA]
Servindo-me da palavra anagrama [...] (qne) parece mais apta a prestar um outro serviço, a
saber, o de designar o anagrama incompleto, que se limita a imitar certas sílabas de uma palavra
dada sem ser obrigada a reproduzi-la inteiramente [... ]. No dado onde existe uma jJalmml a imitar
distingo, pois:
o anagrama, forma perfeita;
a anafonia, forma imperfeita.
(idem, p. 21).

Starobinski acrescenta:

o anagrama fonético percebido por Saussure não é um anagrama total: um verso (ou mais)
anagramatizam uma única palawa (em geral, um nome próprio, o de um deus, ou de um herói)
restringindo-se a reproduzir-lhe antes de mdo a "seqüência vocálica". Não se trata de solicitar
[empregar] todos os fonemas constitutivos de um verso: semelhante reconstrução fonética não seria
senão uma variedade de trocadilho (1974, p. 22).

Saussure valeu-se, também, de uma outra denominação - paragrama-


para designar as configurações anagramáticas maiores do que uma palavra.
Assim, deixou dito em um dos cadernos em que estivera estudando a poesia
de Lucrécio:

o termo anagrama é substituído, a partir deste caderno, por este, mais justo, de jJaragrama.
[... ] anagrama, por oposição a paragrama, será reservado ao caso em que o autor se contenta
em dispor num pequeno espaço, como aquele de uma palavra ou duas, todos os elementos da
palavra-tema, aproximadamente como no "anagrama" segundo a definição [...] (Saussure, ajJud
Starobinski, 1974, p. 24).
84 • A Identidade e a Diferença

Aprimorando, a partir daí, nossas anteriores definições (refraseando, em


nossos próprios termos, a terminologia de Saussure), tomando o hijJograma como o
jJoema na sua forma condensada, de jJrejiguraçâo fónica diagramática, a serjJarafraseada,
o anagrama seria sua jJaráfrase fónica discursiva condensada, lexical, ao jJasso que o
jJaragrama equivaleria à sua jJaráfrasefónica discursiva naforma eXjJandida (em mais de
duas jJalavras).
Para demarcar o espaço de localização da forma diagramática, isto é, ana-
gramática e/ou paragramática, demarcando os limites pontuais da cadeia onde
se encon tra dispersa essa paráfrase, Saussure cunhou o termo manequim: "Saussure
indica, no corpo do discurso poético, grupos restritos de palavras em que a inicial
e a final correspondem à inicial e à final da palavra-tema, e constituem seu índice.
Saussure recorre primeiramente à noção de Zocus jJrincejJs; ele lhe acrescentará o
termo manequim que conservará e utilizará correntemente em seguida" (Starobinski,
1974, p. 37).
O manequim, Cl~as fronteiras demarcatórias Saussure vai indicar por meio
de um marco fechado, contendo no início a primeira letra do anagrama e contendo
no fim a última letra, por meio da figura

corresponde, pois, ao espaço de dispersão do paragrama no poema. Nas palavras


do autor do Cours:

Toda peça bem composta deve apresentar, para cada um dos nomes importantes que ali-
mentam o hipograma, um !OCllS jJríncejJs: uma série de palavras, estreita e delimitável, que se pode
designar como o lugar especialmente destinado a este J1ome. [... ]
1. A forma mais perfeita de que se pode revestir o locus jJrincejJs é a do manequim unido ao

silabograma, isto é, do manequim fechado em seus jJrójJrios limites, claramente dados pela inicial e pela
final, o silabograma completo (Sanssure, ms. f1'. 3966, ajJ1(c! Starobinski, 1974, p. 37).

Exemplo de Análise da Reescrita Anagramática de um Poema

Uma boa mostra de como Saussure experimentava operacionalizar tais


noções na prática da análise dos temas é o que ele exibe no estudo dos treze pri-
meiros versos do De Rerum Natura, de Lucrécio.
Sigamos Starobinski:
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 85

Sanssnre procnra o índice elo hipograma em nm grnpo de pala\Tas Cl~Os fonemas inicial e
final correspondam aos ela snposta pala\Ta-tema. Designa esse grnpo com o nome ele manequim; nm
maneqnim realmente completo, como vimos, não terá somente o mesmo começo e a mesma ter-
minação qne a palavra-tema, conterá também a maior parte de sens constitnintesfônicos. [... ] Notar-
se-á qne o nome qne aparece no texto é o de Vénus e não o de Afi"odite. Tndo leva a crer que a palavra-
tema presente no espírito elo poeta tenelia a se reprodnzir traduzindo-se (1974, p. 56).

Para simplificar a leitura, damos aqui apenas os versos 10,11,12 e 13:

Nam simul ac species patefactast uerna diei


et reserata uiget genitabilis aura fauoni,
aeriae primum uolucres te, diua, tuumque
significant initum perculsae corda tua ui.

Na análise anagramática de Saussure, temos:

I, i seq. Afrodite - Ap(h)rodite (ignal a hipograma; nota do autor).

A Íll\'ocação a Vênl1S qne abre o De Rel'l/m Natura se inspira, para o anagrama e as assonâncias,
no nome grego da densa - assim como faz Virgílio nos trechos relativos a Vênns.
Os treze primeiros versos dividem-se, pela pontnação, em três frases:

frase 1 - 5,

fi'ase 6 9,

frase 10 - 13.

A caela nma dessas frases corresponde nm anagrama de Afrodite.


Começo pelo 3" anagrama (10 - 13):

lvIaneqnim Aeriae prinlllm yolnçres tE (1)


86 • A Identidade e a Diferença

Detalhe das sílabas:

A : lnarcada como inicial pelo manequim.


AF-: anrAFalloni [... ] o grupo -oni evocando -adi.
/-FR-/: Diante da possibilidade de que o (<p) grego dessa época fosse a africada jif[ ... ] não negli-
genciar [...] o jJr [... ] no manequim (jJrimum) acompanhado por um i (AjJhrodi-)
-ROD- : é produzido por -ord: jJercnlsae cORDa tua ui [... ]
-DI- : te DI-na tuulllque [...]
-IT-: 1" significante in - IT -11111 (13). O! + a misturado ao quíntuplo i que expira em -it [... ].
2" uiget gen- IT -abilis (11).
-TE: termina o manequim.

Nota (1) : O verso 12 no seu todo forma um manequim. O complexo citado mais acima é apenas um
primeiro compartimento, mais característico, porém, pelo seu te que o complexo total:
/ Aeriae prinmm uolucres tE / diua tutumquE/
(Saussnre, a/md Starobinski, 1974, pp. 56-57).

É perceptível que o exercício da análise anagramática impõe reconfigurações


de efeitos fõnicos a partir do modelo fornecido pelo hipograma. Mas, além de fun-
cionar como um repertório de material fónico que terá de ser fonicamente para-
fraseado pelo poema, o hipograma é também uma palavra-tema, quer dizer - é
nossa convicção pessoal-, um repertório de material semântico aberto a n campos.
semânticos diferentes e dotado de alusões, mais ou menos sutis, a nisotopias virtuais,
material semântico esse a ser conteudisticamente parafraseado no restante do poema.
A ser certo o que pensamos, Saussure acreditava que a prática anagramática
e paragramática incluía, pois, a explicitação de pelo menos alguns novos vocábulos
fónicos e alguns novos conteúdos, realizando-os concretamente. A primeira hipótese
- explicitação de alguns novos vocábulos fónicos - deveria ser utilizada para
esclarecer ou para colocar em novas bases a questão da rima, da assonância, da
aliteração etc., ao passo que a segunda, da explicitação de novos conteúdos, res-
ponderia pela aparição de freqüência estatística extremamente alta no poema,
de paranomásias, homonímias etc., tudo o que, reunido, nos levaria a ler um
segundo texto, latente, sob o primeiro, aparente. Cremos que é essa interpretação
que dá sentido unificador a todas as pesquisas anagramáticas, isoladas, de Saussure;
elajá foi, de resto, adiantada por Starobinski:

O hipograma (ou palavra-tema) é um subconjunto verbal e não uma coleção de materiais ".
brutos". Vê-se logo que o verso desenvolvido (o conjunto) é ao mesmo tempo o portador do mesmo
subconjunto e o vetar de um sentido absolutamente diferente. Da palavra-tema ao verso, um processo
deve ter produzido o discurso desenvolvido sobre a ossatura persistente do.hipograma (1974, p. 45).
A Semiolingüística Geral de Ferdinand de Saussure • 87

A Construção do Discurso Poético pelo Procedimento da Reconstrução


Pamgramática do Hipograma Pré-construído

Deduz-se, disso tudo, um princípio de composição - um procedimento de


reescrita que Saussure constata, entre feliz e suspeitoso, parecer possuir uma
validade universal. A crer no testemunho de seus exercícios anagramáticos, o que
o poema faz é construir uma equação de identidade entre o cOl~unto integral da
mensagem (que é, tomada em seus pontos extremos, do primeiro ao último som,
do primeiro ao último conteúdo, um paragrama, i. e., o discurso parafraseante de
um hipograma e o seu hipograma, a palavra-tema a ser parafraseada). Por outras
palavras, o poema é um paragrama que reconstrói em dispersão, mediante o pro-
cedimento da reescrita em descontinuidade, o mesmo que surge já no hipograma
em forma ultracondensada.
A descoberta é prenhe de conseqüência. Ela mostra, em primeiro lugar:

a. Que o discurso, a parole, não deriva imediatamente da língua, deriva ime-


diatamente de outro discurso anterior (e que só depois de passar por este
discurso original- embutido ou condensado no microtexto do hipograma
- é que a língua intervém na construção do discurso que se faz); e
b. Que, em conseqüência, o criador do poema não é primordialmente o
poeta que o redige, é um discurso outro, o discurso do outro, "inter-dito":

A pergunta que se coloca é: o que existe imediatamente atrás do verso? a resposta não é: o
indivíduo criador, mas: a jJalm1ra (ou jJarole, discurso) indutora. Não que Ferdinand de Saussure
chegue ao ponto de apagar o papel da subjetividade do artista; parece-lhe, no entanto, que ela não
pode produzir seu texto a não ser depois de passar por um jJré-texto.
Analisar os versos na sua gênese, não será, iJortanto, remontar imeditamente a uma intenção
psicológica: antes será preciso pôr em evidência uma kltência verbalsob as palavras do poema. O hipograma
é um h)jJolwilllenon verbal: é um subjectlllll ou uma substantia que contém em germe a possibilidade do
poema. Este é tão-somente a jJossibiliclacle cll'senvolvicla de um vocábulo simples (idem, p. 107).

É verdade que Saussure não chegou a aplicar a hipótese anagramática, com


todos os seus desdobramentos, mais do que à poesia indo-européia e à latina em
particular; nunca chegou a universalizá-la, portanto. Mas, quanto mais trabalhava
sobre ela, mais profundamente sentia que estava penetrando num dilema: de um .
lado, era encorajador poder constatar que sua hipótese encontrava aplicação em
toda a parte, coisa que parecia convalidá-la; a mesma persistente possibilidade de
aplicação genérica, contudo, levava-o, por vezes, a duvidar da sua valia, a con-
siderar-se - na medida em que ela parecia aplicável igualmente bem a tudo -
vítima de uma ilusão, um wishful thinking.
88 • A Identidade e a Diferença

Starobinski escreve acerca da perplexidade que o acomete ao se dar conta


disso:

Qual não será a sua surpresa ao abrir uma coleção de epigramas traduzidos do grego para
o latim e publicados em 1813 para o Colégio de Eton. O tradutor se chama Thomas Jolmson. Os
hipogramas aí chovem literalmente. Assim, num poema ele Heráclides (nO 141 da coleção eleJ ohnson):

Hospes, Aretemias sum: Patria Cnielus: Euphronis veni


ln lectum, partlls dolorum non ecspers fui
Duos autem simul pariens, lmnc quielem reliqui viro ducem
Senectutis; illum vero abeluco monimentmn mariti.

Em leituras sucessi\'as, Saussure encontra aí os seguintes hipogramas: Heraclides; depois:


ElIpluvn; em seguiela: Cn idus; e ainda Aretemias. O primeiro Yerso, sozinho, elá ainda: Thomas Johnson ills;

mas também: Artiwll jliagistel; e além elisso, esta fórmula que figura sobre a página de rosto da obra;
in 1lSWIl scholae Etonellsis. O que é ainda melhor, os mesmos hipogramas se eleixam ler através do

segundo, terceiro, e quarto yersos do poema (idem, p. 102).

Era demais. Saussure fica perplexo. Pára. Pensa. Torna a refazer seus ras-
cunhos, confere. Não há possibilidade de engano. Preenche desigualmente onze
cadernos, estudando os versos latinos deJ ohnson. Desconcerta-se, chega a escrever
ao diretor do Colégio de Eton, em 1º de outubro de 1908, pedindo informações
sobre ThomasJohnson; não se sabe se a carta foi enviada, e se foi, se teve resposta.
Nos meses seguintes, procura testar sua hipótese nos poemas modernos escritos
em latim. Encontra anagramas em uma Elegia de Rosati, encontra outros mais em
poemas latinos de Giovani Pascoli, então professor na Universidade de Bolonha.
Em 19 de março de 1909, envia-lhe uma carta, na qual expõe a dúvida qtie o ator-
menta: "Tendo me ocupado da poesia latina moderna a propósito da versificação
latina em geral, encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema: - Serão
certos pormenores técnicos que parecem observados na versificação de alguns
modernos puramente fortuitos ou desejados e apli'cados de maneira consciente?"
(Saussure, ajJudStarobinski, 1974, p. 104).
Em 6 de abril de 1909 manda uma segunda carta, mais extensa; nela, abre-
se com Pascoli:

Esses exemplos [... ] são suficientes. Há qualquer coisa de decepcionante no problema que
propõem porque o número de exemplos não pode servir para verificar a intenção que pôde presidir
o fato. Ao contrário, quanto mais o número dos exemplos se torna considerável, mais motiyo existe
para pensar que é o jogo natural das possibilidades sobre as 24 letras do alfabeto que deve produzir
quase regularmente essas coincidências (idem, p. lOS).
A Semiolingiiística Geral de Ferdinand de Saussure • 89'

Starobinski elucida que Giovani Pascoli deixou sem resposta essa segunda
carta. Segundo o depoimento de um aluno, Leopold Gautier, que Saussure associara
à sua pesquisa, o silêncio do professor italiano foi interpretado por Saussure como
uma desaprovação; em conseqüência, a investigação sobre os anagramas foi inter-
rompida (Starobinki, 1974, p. 106).
Pouco importa saber, hoje, se Saussure se deparara com um mecanismo
automático ou com um artificio composicional; seu engano não foi o de uma
superinterpretação - ele, de fato, viu naquilo mesmo, que todo o mundo olhava
mas em que não reparava, aquilo que ninguém nunca vira antes, uma certa lei
de repetição de formas originais etc.; seu verdadeiro engano foi, como sublinhou
Starobinski, ter colocado de modo tão drástico a alternativa en tre "efeito do acaso"
e "procedimento consciente":

Por que não dispensar, no caso, tanto o acaso como a consciência? Por que não se "cria, no
anagrama, um aspecto do jJrocessus da palana [da jJarolel do discurso] - processo nem puramente
fortuito nem plenamentc conscicnte? Por que não cxistiria uma iteração, uma j)a[ita[ia gcradoras
que projetariam e redobrariam, no discurso, os materiais de uma primeira palana, ao mesmo tcmpo
não pronunciada e não calada? Por não ser uma regra consciente, o anagrama pode, contudo, ser
considcrado como uma Il'gulmidade (ou uma lei) em que o arbitrário da palana-tema é confiado à
necessidade de um processo (Starobinski, 1974, p.108).

Starobinski tem razão. Saussure descobrira, enfim - e a absoluta novidade do


achado o perturbou a ponto de ele se fOljar uma inexistente aporia na qual acabou
inextricavelmente enredado-, que "todo o textoéum produto produtivo" (Starobinski,
1974, p. 108). Mas, na verdade, ele descobrira, ainda que não o suspeitasse, de uma
só vez (confirmando a sua teoria da construção anagramática também da narrativa),

a. O caráter dialógico do discurso, baseado no procedimento de um percurso


dialético da composição, desde uma tese (o hipograma ou palavra-tema)
a uma síntese (o anagrama ou paragrama).
b. O caráter paragramático da composição literária - que deve menos à
"intenção consciente" do escritor, com que se preocupava Saussure, do
que à produtividade inerente à prática significante (Kristeva) da escritur(l/leitura
e/ou às regras peculiares dessa espécie de discurso sui generis, o discurso
literário, que se estocam na competência inconsciente do escritor.

Como quer que seja, Saussure fornece, com seus exercícios anagramáticos,
o primeiro exemplo do que viria a ser, nos porvindouros anos:

c. De um lado, a teoria da função poética (Tinianov,jakobson, Mukafovski


e outros).
90 • A Identidade e a Diferença

d. De outro, a prática da análise estrutural da poesia (confronte-se o exercício


anagramático que Saussure ensaia entre 1903 e 1909 com a análise estrutural
mais prestigiosa dos anos 60, exemplificada com o trabalho queJakobson
e Lévi-Strauss executam sobre o poema "Le Chat", de Baudelaire, só para
concluir, sessenta anos depois de Saussure) : "o primeiro resultado da análise
estrutural é precisamente introduzir uma ruptura entre o significante e o
significado e isolar um núcleo de sentido suscetível de ser retomado inde-
pendentemente de toda concretização" (Sebag, 1968, p. 206).

Conservando a terminologia original, devida a Saussure, mas refraseando em


nossos próprios termos as definições por ele propostas em seus manuscritos, aFigura
5, a seguir, nos dá uma visão de conjunto de sua teoria anagramática do poema:

Poema
_ _ _1_ _-

Segmento a ser Segmento parafraseante


parafraseado fonicamente
I I
Prefiguração paradigmática Configuração sintagmática
a reconstruir do pré-construído
pré-construído (= reconstruído)
_ _ _ 1_ _-

HIPOGRAMA

Marco contextuaI Paráfrase contextuaI


englobante

Silabograma Silabograma
vocabular transvocabular
DEMARCADOR I I
INICIAL Paráfrase Paráfrase
fônica fônica
condensada expandida
DEMARCADOR
.--_1_-, 1
FINAL I.
ANAGRANLA PARAGRAl\LA

Figura 5: Teoria Anagramática formulada por Sau55ure.


3

o NASCIMENTO DA LINCÜÍSTICA GERAL


E DO ESTRUTURALISMO

[LeJ Cours de Sallssllre, [doit êtreJ consideré


cOlllllle 1e jJoint de déjJart d'une êre nouvelle
dans la science du langage.
jAKOBSON

o COURS DELINGUISTIQUE GÉNÉRALE: O NASCIMENTO


DA LINGÜÍSTICA GERAL E DO ESTRUTURALISMO

SaussuTe fut [oo.J le jJrelllier à bâtir [oo.J


la vélitable concejJtion d 'un systhne lingllistilJue.
JAKOI\SON

Em 1891, no momento em que deveria naturalizar-se francês para assumir


a cátedra no College de France, no auge de uma inexplicada crise pessoal, Sau-
ssure deixa Paris para, após onze anos de expatriamento, retornar à terra natal,
Genebra, cuja universidade o convidara a reger a cadeira de lingüística, espe-
cialmente criada para ele.
A partir de 1904, ele ensinará, junto com lingüística, a literatura alemã
(proveio daí, como vimos, seu hábito de estudar os Nibelungen, ao mesmo tempo
que se interessava cada vez mais pelos exercícios anagramáticos sobre a poesia).
92 • A Identidade e a Diferença

Do conjunto dessas coisas, sai a grande descoberta de Saussure, que, no ver de


Eduardo Prado Coelho, "é a da linguagem como objeto duplo, do CClráterdialógico
da linguagem, do diálogo como o único campo onde a linguagem é possível. Se
a linguagem nos aparece como um sistema articulado é que nela a diferença existe
como elemento de origem [... ] necessariamente irredutível a um princípio de
unidade" (1968, p. XV).
É bem verdade que, como vê, lucidamente, o crítico português nesse
trecho, a grande descoberta de Saussure é "o caráter dialógico da linguagem",
primeiramen te; e em segundo lugar, mais verdadeiro ainda, é que esse diálogo
atravessa toda a obra saussuriana como uma conversação entre a unidade (ou
a iden tidade, como ele preferia dizer) e a diferença; quanto ao problema da
irredutibilidade de uma coisa a outra, é uma questão que anotamos, mas que
devemos, por ora, adiar.
Como quer que seja, a dialogicidade a que Prado Coelho se refere vem a
manifestar-se no Cours de linguistique générale sob a forma da barra, que faz ajunção
(em termos greimasianos, a conjunção e a disjunção) dos campos opostos do sig-
nificante c do significado e daí se dispersa por todas as demais dicotomias que o
livro celebrizou: língualfala; diacronialsincronia; paradigma (associação) I sintagma;
formal substância etc.

Língua eFala

Saussure parte do princípio de que a linguagem humana é uma abstração,


definível como a capacidade que o homem tem de comunicar-se com os seus seme-
lhantes atrav'és de signos verbais. Por langue, "língua", ele designava o próprio
sistema de regras (fonológicas, morfossintáticas e semânticas) que determina o
emprego das formas coletivas convencionais, necessárias para a comunicação.
Existindo, embora, no que hoje chamamos de competência semiótica dos
indivíduos, a língua constitui um sistema supra-individual na medida em que é
um objeto cOll\'encional, fruto de um pacto social, construído por toda a comu-
nidade e que nenhum falante em particular tem autoridade para alterar.
A parole, "fala" ou "discurso", em troca, é a utilização local e ocorrencial de
uma língua, acionada pela enunciação própria a cada concreto ato de comunicação.
Contrariamente à língua, que contém tudo o que os membros de um grupo
podem dize}~ a fala compreende só o fazer concreto de um falante, aquilo que um
falante de fato diz. Assim, se a língua é o material, léxico e gramatical, estocado
em competência, que preexiste como entidade abstrata a todo e qualquer ato de
comunicação, dando-lhe sentido, já a fala é a utilização ocorrencial, diferencial e
sempre parcial, que realiza algo da langue na forma variante de uma comunicação,
um discurso ou um diálogo.
o Nascimento da LinbTÜística Geral e do Estruturalismo • 93

Desse ponto de vista, a parelha saussuriana langue/parole equivale à dicoto-


mia esquema/uso, de Hjelmslev, código/mensagem, deJakobson, competência/pe)~
formance, de Chomsky. Note-se, contudo, que os recobrimentos mútuos são aqui
incompletos, pois as analogias e homologias funcionam, no caso, só como apro-
ximativas. Na verdade, a dualidade saussuriana foi a primeira a ser formulada e,
se inspirou as outras, como de fato aconteceu, isso só se deu em virtude de lhe
terem acrescentado seus autores alguma diferença, particularidade ou especia-
lização relativamente à oposição langue/jJarole original. Como deixamos escrito
em outra parte,

A característica essencial da jJalOleé a liberdade das combinações (Saussure, 1972, p. 192). A


jJalOleaparece aí como uma combinatória indi\'idual que atualiza [hoje diríamos "realiza"] elementos
discriminados dentro do código (obrigatório); assim, a langueé a condição para a existência da jJalOle,
exatamente como a sociedade é a condição para a existência do indivíduo (Lopes, 1976, p. 77).

NIas, é importante salientar que, com sua formulação pioneira, Saussure


propõe pela primeira vez na história uma teoria lingüística geral fundamentada
em uma teoria de níveis - uma doutrina que reconhece, explicitamente, a coe-
xistência, de um lado, de um nível imanente do sistema (a langue, enquanto
esquema de unidades invariáveis e, de outro, de um nível de manifestação dife-
renciada desse sistema (a parole, enquanto processamento de variantes).

Diacronia e Sincronia

Segundo Saussure, os fenõmenos lingüísticos podem ser descritos sincrónica


ou diacronicamen te:

a. A descrição sincrónica estuda seus objetos como formas pertencentes à


lingüística de estado, considerando-os elementos coexistentes (Saussure,
1972, p. 115), apreensíveis do ponto de vista dos falantes devido ao con-
traste - a diferença no eixo sintagmático - que apresentam entre si
quando os com paramos no interior de um mesmo eixo de simultaneidades
(A - B, na Figura 6).
ú. A descrição diacrónica focaliza seus objetos como termos ligados à lin-
güística evolutiva, cuja matéria é um termo existente como não-trans-.
formado em um estado anterior da língua e que passa a existir como
termo transformado em um estado posterior dela; se na descrição sin-
crónica lidamos, pois, com dois termos simultâneos, dentro do mesmo
estado, aqui lidamos, ao contrário, com um e o mesmo termo, existente
em dois estados sucessivos, como forma a transformar/forma trans-
94 • A Identidade e a Diferença

formada, e que apreendemos, em conseqüência, por oposição, sobre o


eixo das sucessividades (C - D, na Figura 6, abaixo):

A -------:--f------B

D
Figura G: Representação esquemática da sincronia (eixo das simultaneidades, A- B) e da diacronia (eixo das

sucessividades, C-D) (Saussure, 19i2, p. 115).

Em sincronia, o lingüista se interessa pelas relações entre fatos coexistentes


num sistema lingüístico, tal como eles se apresentam a dado instante, feita abs-
tração de qualquer noção de tempo. Em diacronia, objeto de seu trabalho seriam
as relações que um fenõmeno qualquer apresenta ao longo do tempo, quando
considerado em dois estados sucessivos da mesma língua.
No eixo A-B, faz-se, portanto, uma descrição sincrânica, que mais tarde será
equivocadamente identificada como a descrição estrutural por excelência. No
eixo C-D, faz-se uma descrição diacrânica, depois confundida como a única des-
crição histórica; mas é relevante notar que Saussure não pode ser culpado por
confusões dessejaez, que nunca fez, nem, certamente, apoiaria; o que, sim, Saussure
fez - mas ficou inédito até 1957, em um manuscrito, e não foi jamais incluído
no Cours - foi uma distinção entre a sincronia, que ele considerava gramatical,
e a diacronia, que julgava ser agramatical.

Conclusão provisória: tudo o que é sincrónico se resume pelo termo de gramática (cf. gra-
mática do jogo de xadrez, de la Bom-se), que implica um sistema que põe em jogo valores. Não há
gramática histórica: o que se entende por essa expressão é a lingüística diacrónica, que não será
jamais gramatical. Pilas, identificando sincronia e gramática não adotamos cegamente as divisões
tradicionais (morfologia, sintaxe, lexicologia) (Saussnre, apud Godel, 1957, pp. 73-74).

Essa dicotomia tem a maior importância, em razao dos desdobramentos


teóricos e práticos a que foi submetida pela posteridade, em cada uma das dife-
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 95

rentes frações estruturalistas. Foi ela que sustentou, por exemplo, a separação que
todo o século XX fez, nem sempre do melhor modo, entre a visada dos fatores
ir/'tenws e a visada dos fatores externos a um discurso ou a um sistema; estes últimos con-
dicionam histórico-culturalmente as mudanças ocorridas em um sistema, mas não são esse
sisterna- exatamente porque são, como diz o título do quinto capítulo do Cours,
"Elementos Externos da Língua":

Uma comparação com o xadrez fará compreender melhor. Aqui, é relativamente fácil dis-
tinguir o que é interno do que é externo: o fato de que ele tenha passado da Pérsia para a Europa
é da ordem externa; interno é tudo quanto seja concernente ao sistema e às suas regras. Se substituo
umas peças cle macieira por outras de marfim, a troca é indiferente para o sistema, mas se diminuo
ou aumento o número de peças, essa troca afeta profundamente a "gramática" do jogo (Saussure,
1972, p. 43).

Prado Coelho parafraseia assim essa passagem do Cours: "o intervalo entre
umajogada e ajogada seguinte pode corresponder à visão sincrônica (i. e., a um
estado da língua). Note-se também que, para passar de uma fase do jogo para a
fase seguinte, basta a alteração da posição de cada pedra [leia-se: de uma pedra],
porque tal alteração repercute em todo o sistema, dando origem a uma nova sin-
cronia" (1968, p. XVI).

Visto que nenhum fato, fenômeno ou elemento da língua deve ser tomado
como um fato isolado, a sincronia surge como "relação entre coisas coexistentes",
o conjun to das quais constitui, na metalinguagem saussuriana, um sistema (ou uma
estrutura, se dirá depois). Pertence ao sistema, diz o autor do Cours, tudo quanto
seja interno; e define o que entende por "interno": "em cada caso, colocaremos
a questão da natureza do fenômeno, e para resolvê-lo observaremos esta regra: é
interno tudo o que transforma o sistema em um grau qualquer" (1972, p. 43).
Ora, Saussure, que tem sido renitentemente acusado de a-historicista -
acusação que pesará, mais tarde, repetida sem maiores critérios pelos marxistas
vulgares, contra todo o estruturalismo e todos os estruturalistas - , mostra aqui
que, ao contrário, sempre se preocupou com as transformações do sistema, preo-
cupação essa característica da visada historicista: o que está emjogo, aqui, de fato,
são dois diferentes conceitos de historicidade:

a. O conceito de historicidade extema: ilustrado, por exemplo, pela obra de


Schleicher, mas que é, de fato, defendido pela imensa maioria dos filólogos
e dos lingüistas do tempo de Saussure, comparatistas e neogramáticos,
que compreendem a evolução de uma língua a partir do modelo evo-
lutivo-biológico vigente à época, como adaptação do domínio verbal às
96 • A Identidade e a Diferença

mudanças ocorridas no ambiente social em que a língua vive - trans-


formação exogerada, produzida de fora para dentro do sistema.
b. O conceito de historicidade interna, para o qual as transformações sofridas
por um sistema lingüístico entre dois de seus estados históricos sucessivos
são endogeradas, produzidas dentro do próprio sistema pela transformação
de um único elemento dele, que, conforme vimos pelo exemplo do jogo
de xadrez, vai repercutir no sistema todo, originando um novo estado his-
tórico da língua, uma nova sincronia; o modelo saussuriano da concepção
histórica não é mais evolutivo-biológico; é, antes, um modelo evolutivo-
algébrico ("é interno tudo o que transforma o sistema em um grau qualquer").

Poder-se-ia perguntar, afinal: de onde, então, provém a mudança, a alteração


de um ponto qualquer do sistema? Não terá ela uma causa externa ao sistema pro-
priamente dito? A resposta é que, para Saussure, não - pelo menos, diretamente,
não; nos dois exemplos que melhor ilustram essa questão, um, o da jogada no
jogo de xadrez, e outro, o exemplo que transcrevemos abaixo, a mudança ocorre
jJor efeito do ato de enunciaçâo, da atividade performante do enunciador, ao produzir
seu discurso - uma jJeJjànnance que retoma elementos da langue para realizá-los
na forma de uma dada jJarole ocorrencial, mas que, ao fazê-lo, realiza o enunciado-
tipo imanente, de forma invariante em nível da langue, na forma variável deurn
enunciado ocorrencial diferenciado, no nível de manifestação da jJarole.
É, aliás, ao que nos reenvia outro manuscrito inédito até há pouco, de Saus-
sure, que a propósito do sentido, diz:

Imaginar que uma lenda começa por um sentido, que ela teve desde sua primeira origem o
sentido que ela tem, ou melhor, imaginar que ela não pode ter um outro sentido qualquer, é uma
operação que me espanta [00'] pois, dados cinco ou seis elementos materiais, o sentido úmdará no
espaço de alguns minutos, se eu pedir a cinco ou seis pessoas, trabalhando separadamente, para
combiná-los (ajmd Starobinski, 1974, p. 16).

É a afirmação, característica de um pesquisador adepto do conceito de his-


toricidade interna, de que a enunciação constrói o sentido de um discurso através
do procedimento da reconstrução transformada de um sentido anterior, dado,
surgindo a mutabilidade do sistema, pois, do efeito causado por novas combi-
nações, resumos, expansões, que diferentes falantes efetuam ao realizar sua jJer-
Jonnance enunciativa ou reenunciativa, manifestante de uma interpretação.
Não há como ver aí nenhuma antinomia radical entre sincronia e diacronia,
nenhuma incompatibilidade entre essas duas perspectivas; o que antes há é a
compreensão de que, como Trnka dirá mais tarde, a diacronia subsiste dentro
da sincronia:
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 97

A descrição sincrânica não pode excluir, tampouco, a noção de evolução,já que mesmo num
corte considerado sincronicamente existe a consciência do estado em formação; os elementos lin-
güísticos percebidos como arcaísmos e, em segundo lugar, a distinção entre formas produtivas e não
produtivas são fatos de diacronia que não se podem eliminar da Iingüística sincrânica (1972'1, p. 32).

Na realidade, inexiste sincronia pura: no interior de qualquer sistema coe-


xistem vestígios de seus estados anteriores - os arcaísmos - e prefigurações
embrionárias de seus estágios posteriores - os neologismos; é assim que a sin-
cronia abrange a diacronia: em cada estado de língua coexistem con temporaneamen te
o seu passado (os arcaísmos), o seu presente (os itens da norma em vigência) e o
seu futuro (os neologismos). Em suma: a diacronia existe em sincronia (se é certo
que, como assevera Santo Agostinho, "o passado existe agora?").

forma e Substância

A noção de estrutura está intimamente ligada à noção de relação no interior


de um sistema (Benveniste, 1966a, p. 94). Hjelmslev concebeu-a assim:

Compreende-se por Iingüística estrutural um conjunto de pesquisas que repousa sobre a


hipótese de que é cientificamente legítimo descrever a língua como sendo essencialmente uma
entidade de dependências internas, em uma palawa, uma estrutura [... ]. A análise dessa entidade
permite constantemente isolar partes que se condicionam reciprocamente, cada uma delas dependendo
de algumas outras, sendo inconcebível e indefinível sem essas outras partes (1971, p. 28).

Não outra coisa dizia Saussure em um dos ensaios que dedicou ao estudo
de dialetos lituanos, ao insistir que, em toda e qualquer análise,

não se deve abandonar o princípio de que o valor de uma forma reside inteiramente no texto de
onde a tomamos, quer dizer, no conjunto das circunstâncias morfológicas, fonéticas, ortográficas,
que a rodeiam e esclarecem (1972'1, p. 11).

Posição que equivale a marcar, de um lado, a independência das mutações


lingüísticas das mutações de fatores sociais extralingüísticos (coisa que vimos sempre
defendidas pelos positivistas, comparatistas e neogramáticos, adeptos do que deno-
minamos conceito de historicidade externa), e equivale a reiterar, do mesmo modo, .
na noção de valor, o primado das dependências internas de um elemento, cujo
sentido só se fixa perante os elementos homólogos de sua mesma classe, capazes de
substituí-lo no mesmo ponto em que ele se encontra em dada cadeia (dependências
paradigmáticas) e, ao mesmo tempo, diante dos eIementos co-presentes no contexto
sintagmático da cadeia em que o localizamos (dependências sintagmáticas).
98 • A Identidade e a Diferença

Duas ilustrações, a seguir, para a questão.


É comum ouvir-se, no português do Brasil, a pronunciação de um fone
aspirado Ihl - por exemplo, em "correu" pronunciado Ikohewl - foneti-
camente idêntico ao fone aspirado do inglês- de hill, hand, digamos; é claro que
há uma identidade de realização fonética, da substância da expressão, aqui, entre
a pronunciação brasileira e a norte-americana: para todos os efeitos físicos, as duas
aspiradas são um e o mesmo som. Mas há, também, uma diferença na sua forma
de expressão, diferença que faz do fone aspirado inglês um fonema (na medida
em que ele serve para distinguir palavras com sentido diferente, opondo-se,
ponhamos, à ausência de aspirada, como em:

(IngI.) and I hand ("e" / "mão")

ill I hill ("enfermo" I "colina")

all I hall ("todos" I "vestíbulo") etc.,

enquanto faz do fone aspirado da pronunciação brasileira não um fonema, mas


um alofone (na medida em que ele não se opõe a nenhum outro fonema do
sistema fonológico português, nem à ausência de um fonema, não passando, por
isso, de uma realização alternativa, eventual, de outro fonema, IrI (lê-se: "ue");
assim, quer realizemos "correu" com a vibrante múltipla, pronunciando Ikorew/,
quer a realizemos com sua forma alofônica aspirada, feito Ikóhew I, o sen tido do
vocábulo continua sendo um e o mesmo, "correu":

IkOreW/} " "


= correu
Ikórewl

Outro exemplo, extraído de Arcaini (1972, p. 6): bad é uma palavra que
aparece, isoladamente, com o mesmo sentido, em inglês e em persa:

bad (ingI.) e também (persa) "mau"


o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 99

Do ponto de vista da substância do conteúdo - isto é, do conceito do termo


isolado, em estado de dicionário, lidamos com o mesmo termo; isso não obstante,
ambas asfomas constituem palavras diferentes do ponto de vista da forma do conteúdo:
bad persa é diferente do badinglês porque cada qual aparece em contextos diferentes,
agrupam-se em classes paradigmáticas que nada têm em comum entre si, ocupam
lugares diferenciados em campos semânticos peculiares e se definem, semântica e
figurativamente, no interior de códigos culturais inteiramente estranhos entre si.
Aprendemos assim que a análise lingüística estrutural não leva em con ta a iden-
tidade eventual dos sons - da substância da expressão - ou dos conceitos isolados
- da substância do conteúdo; que, inversamente, esse tipo de análise incide sempre
sobre a função, quer dizer, a utilidade local, distintiva, que o elemento sob análise
apresenta no interior de um discurso ou de um sistema, uma parole ou uma Zangue.
Devido a isso, lembra Saussure que "o mecanismo lingüístico gira inteiramente sobre
identidades e diferenças" (1972, p. 151), que é o modo pelo qual afirma que a lin-
güísticadevepreocupar-se exclusivamente com asformas-com aformadaexpressão,
o som funcional, i. e., distintivo, e com a forma do conteúdo, o conceito funcional,
para lá das substâncias em que tais formas tenham de vir a encarnar-se para que
possam vir a ser manifestadas concretamente, em cada ato de comunicação:

é impossível que o som, elemento material (substância), pertença por si mesmo à língua. Para ela,
ele é uma coisa secundária, uma matéria que a língua utiliza

a língua é uma for111a, não uma substância (idem, pp. 164-169).

Hjelmslev, que baseou nessa distinção saussuriana entre forma e substância


e naquela outra da identidade e da diferença toda a teoria dos Prolegômenos, faz
observar que

uma das definições possíveis (e até mesmo, conforme pensamos, a mais fundamental) de uma língua,
na acepção saussuriana do termo, é a que consiste em defini-la como uma forma específica orga-
nizada entre duas substâncias: a do conteúdo e a da expressão (1971, p. 44).

Glosando-o, à nossa moda: a língua cria formas a partir da relação que ela
articula entre duas substâncias amorfas, uma do plano de expressão - o som - ,
outra do plano de conteúdo - o designatum ("conceito", em Saussure), que ela
põe em conjunção para formar as unidades diferenciais do sistema, que são os
signos. Assim ligados como termos-objetos, funtivos, que contraem dada função
ao instalar-se entre eles esta ou aquela relação, tais signos funcionarão como as
100 • A Identidade e a Diferença

formas significativas de um sistema semiótico, uma língua. É no momento em que


contrai uma relação entre dois desses signos que a língua os converte de subs-
tância em forma: converte duas substâncias de expressão, dois sons, na forma de
expressão de uma diferença de sentido entre duas palavras; e converte duas subs-
tâncias de conteúdo, dois conceitos, na forma de conteúdo ao marcar com essa
relação que os une um significado diferencial positivo (não meramente um sig-
nificado diferencial em potencial, um significado meramente negativo - quer
dizer, diacrítico - , como no caso da forma da expressão).
Desse modo, o signo reúne uma forma de conteúdo, ou significado, e uma forma
da expressão, ou significante, que se manifestam materialmente realizados na fala através
de substâncias de conteúdo (conceitos ou designata) e da expressão (seqüência de
sons); mas, só as formas são lingüísticas, as substâncias não (cf. nossa última citação
de Saussure (1972, p.169): "a língua é uma forma, não uma substância").

Substância do Conteúdo (= designatum)


Plano do
Conteúdo FORrvIA DO CONTEÚDO (= significado)
SIGNO
FORrvIA DA EXPRESSÃO (= significante)
Plano da
Expressão Substância da Expressão (= som)

Figura 7: O Signo (Concepção de Saussure, explicitado por Hjelmsle\'l,

o Caráter Arbitrário do Signo e o Caráter de Competência da Langue


Saussure pensa no signo lingüístico como a reunião arbitrária - quer dizer,
não internamente motivada por nenhuma necessidade da ordem natural- entre
um significado e um significante, que são ambos da ordem cultural (não-natural,
o que exclui qualquer referência às "coisas" da realidade): "O que o signo lin o
güístico une não é uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica"
(Saussure, 1972, p. 98).
Essa curta passagem contém quatro pontos capitais, que queremos ressaltar:

a. Afirma uma teorianão-representacional da linguagem, uma teoriaantino-


menclaturista: para o mestre do Cours, os signos não são meros rótulos
que se pregam às coisas que eles designam (o que põe por terra toda e
qualquer identificação do referente com uma coisa, como durante tanto
tempo pensaram os semanticistas "realistas", mormente os de tendência
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 101

marxista): a língua não representa algo já feito, anterior a ela: o mundo;


ao contrário, a primeira função da língua é criar a realidade para uma
comunidade (criá-la ao modo semiótico, recortada em segmentos próprios
pela experiência coletiva e assim "significada", bem entendido).
b. Ao pontualizar "acústica", Saussure propõe uma definição do signo do ponto de
vista do destinatário - não de quem fala, mas de quem ouve - , o que não
é casual nem inconseqüente: de fato, quem vai dizer o que um signo é, o
que ele significa, é o ouvinte (o enunciatário), não o falante (o enunciador);
uma inversão total, como se vê, nas teorias tradicionais, que consideravam
o auctorda fala o falante, o escritor etc., como a única auctoritas apta a dizer
o que sua fala significa; o único ponto de vista capaz de fundamentar a cons-
trução de uma semântica é o do enunciatário, não o do enunciador.
c. Afirma o caráter radicalmente arbitrário do signo, na medida em que o
plano de conteúdo dele varia em função da variação dos diferentes con-
textos em que ele venha a situar-se, adquirindo novos valores (valor= signi-
ficação contextualmente configurada, em Saussure): "De fato, os valores
permanecem inteiramente relativos, e eis porque o vínculo da idéia (=
conteúdo) edosom (=expressão) é radicalmente arbitrário" (idem,p.157).
Uma certa invariabilidade do valor, independente do contexto em que o
signo se situa, caracteriza para Saussure o símbolo, que é, assim, semimo-
tivado, não inteiramente arbitrário: "A propósito da palavra símbolo: temos
grande escrúpulo em empregar esse termo. O símbolo tem por caracte-
rística não ser jamais completamente arbitrário; o símbolo não é vazio.
Há um rudimento de vínculo entre idéia e signo (lapso, por significante?)
no símbolo. Balança, símbolo da justiça" (apudWunderli, 1976, p. 56).
d. Finalmente, Saussure - a crer na nota de rodapé que os editores do
COUTS, Bally e Sechehaye, achàram dever colocar na página 98 para
esclarecer o alcance do termo acústica- tinha clara noção do caráter de
competência da langue; nessa nota, afirma-se, dentre outras coisas:

Esse termo de imagem acústica parecerá talvez demasiado estreito, já que ao lado da
representação dos sons de uma palaYra, há também a da sua articulação, a imagem
muscular do ato fonatório. Mas, para F. de Saussure, a língua é essencialmente um dejJósito,
uma coisa recebida de fora (,oer p. 30). A imagem acústica é por excelência a repre-
sentação natural da palana enquanto fato de língua virtual, efora de qualquerrealizaçâo jJela
parole (Em Saussure, 1972, p. 98, nota 1; grifos meus).

Em síntese, Saussure pensa no signo como uma entidade da língua, de


estatuto atual (estocada em competência, comà item vigente no código, elemento
realizável), em que se define como entidade puramente opositiva ("na langue não
102 • A Identidade e a Diferença

há mais do que diferenças"). Em conseqüência, quando fala em significado e, por


decorrência, dada a dupla implicação dos termos-objetos, em significante, o autor
do Cours pensa no valor paradigmático, atual, de uma forma dentro do sistema
imanente das iden tidades e diferenças: "o mecanismo lingüístico gira inteiramente
sobre identidades e diferenças" (1972, p. 151).

A Noção de Valor contra as Teorias Representacionais da Linguagem: A Língua


não é uma Nomenclatura

Duas noções que aparecem assiduamente baralhadas no Cours, mas que


convém distinguir, são as que se referem aos valores de dois diferentes tipos,
negativos e positivos. Freqüentemente, Saussure nos fala do valor-como acabamos
de ver - feito uma entidade opositiva, operadora de discriminações em potencial.
O valor surge, en tão, como puramente relativo, algo que por isso mesmo não pode
ser isolado do sistema da Zangue:

A idéia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um
termo simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria
isolá-lo do sistema de que ele participa; seria crer que se pode começar pelos termos e construir o
sistema fazendo a soma deles, quando, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir para
obter por análise os elementos que ele encerra (idem, p. 157).

Deixando de lado, por enquanto, o importantíssimo giro metodológico


copernicano - é aqui que Saussure abandona o método empírico-indutivo, que
vai do particular para o universal, e preconiza, ao invés da sua aceitação, a adoção
(única científica ainda hoje) do método hipotético-dedutivo ("é do todo solidário
que se deve partir para obter por análise os elementos que ele encerra") - , con-
tentemo-nos em assinalar, por ora, que o significado, tomado em seu aspecto con-
ceptual, de elemento realizável da Zangue, define-se como valor negativo, puramente
oposicional, porque "na língua não há senão diferenças"; esse é o valor que pode-
ríamos chamar de paradigmático, estocado em competência. É o sentido que
retiramos do dicionário e de que lançamos mão ao falar.
Inalterável no estado de dicionário, de sentido estocado em competência,
se ele se mantivesse inalterado durante o processo da fala, seria, num limite,
imprestável para a produção da pamZe, cujo fato mais característico, a fim de poder
exprimir a infinidade de experiências que devemos transmitir falando, é, como
já vimos (Lopes, 1976, p. 77), a liberdade de combinações: um mesmo signo goza
da propriedade de poder situar-se em infinitos contextos diferentes, o que lhe
acarreta a transformação do sentido dado em estado de dicionário, como signo
isolado: "dados cinco ou seis elementos materiais, o sentido mudará no espaço
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 103

de alguns minutos, se eu pedir a cinco ou seis pessoas, trabalhando separadamente,


para combiná-los" (Saussure, apud Starobinski, 1974, p. 16).
Ao lado do valor paradigmático, do signo da Zangue, teremos de reconhecer,
assim, um valor sintagmático, do signo da paroZe.
O valor paradigmático, do signo da Zangue, é inalterável; mas, se ele se man-
tivesse inal terável na parole, acabaria por reduzir a língua a uma simples nomenclatura
e as palavras a rótulos das coisas às quais designam; eis o raciocínio de Saussure: "O
valor, tomado em seu aspecto conceptual [=paradigmático] ésem dúvida um elemento
de significação, e é muito difícil saber como esta última distingue-se dele, estando
sob sua dependência. E no entanto é necessário tirar a limpo esta questão, sob pena
de reduzir a língua a uma simples nomenclatura" (1972, p. 158).
A maior parte das pessoas, infelizmente até mesmo lingüistas, não retém
das lições do Cours senão a acepção do valor paradigmático, deixando passar a
outra, do valor sintagmático. Na base do problema estão duas diferentes con-
cepções do signo, no Cours:

1. Do signo como uma entidade construída da Zangue, concepção paradig-


mática, retratada no diagrama do signo-árvore

ARBOR

que se apresenta nas primeiras linhas do livro; mas, atenção!

a. Em primeiro lugar, ele não é de autoria de Saussure, como veremos


dentro em pouco.
b. Ali se apresenta unicamente para ser criticada como concepção errônea,já que
a lição continua assim:

Para certas pessoas, a língua, reportada a seu princípio essencial, é uma nomenclatura, ou
seja, uma lista de termos correspondentes a outras tantas coísas. Por exemplo:

ARBOR
104 • A Identidade e a Diferença

Essa concejlçâo é Cliticável a muitos resjleitos. Ela sujlõe idéias cOllljlletamente feitas jJreexistentes às

jlalavms [... ] (idem, p. 97; grifos meus).

Saussure opõe-se, aqui, veementemente, a uma teoria representacional da


língua, infelizmente corrente ainda hoje em certas semânticas realistas e prag-
mático-positivistas (que pressupõem "idéias completamente feitas preexistentes
às palavras"). Pois, de fato, as idéias são contemporâneas das palavras que as
exprimem; coisa que Saussure vê, vendo também, com extrema modernidade,
que a língua só funciona como instrumento de comunicação quando funciona
ao mesmo tempo como instrumento de construção do saber a ser comunicado.
A outra concepção do signo presente no Cours é:

2. Do signo como uma entidade em construção na parole, concepção sintag-


mática, já tacitamente colocada na objeção que o mestre da lWémoire faz ao sim-
plismo da primeira concepção, do signo-árvore.
Ambas as concepções foram fontes de intermináveis confusões nos anos de
formação do estruturalismo. Ainda recentemen te Greimas lembrava, em entrevista
concedida à revista Versus, que ele próprio, Greimas, e Barthes desenvolveram
divergências teóricas profundas arraigadas nesse quiproquó:

Era a leitura de Saussure que era diferente. Nós não o sabíamos. Pensávamos que tínhamos
lido o mesmo Saussure. Só que ele [Barthes] tinha lido Saussure pelo começo e eu pelo fim. Quer
dizer, ele começou pelo signo, pelo exemplo da árvore. Basta ler cinqüenta páginas mais adiante
para encontrar que a língua é como a folha de papel. Com Hjelmslev foi um pouco a mesma coisa.
A língua é uma rede de relações negativas e não uma rede de signos (1986, pp. 42-43-).

Mas, depois de Godel, De Mauro e Amacker, sabemos que o signo-árvore


não é de autoria de Saussure:

Fm lllWlDJHlnas.ücasiões_Delo,_menos. há jllOtiVOS Dar'llamentar uma intervencão çanhestra


dos editores, que modifica a própria letra das fontes de que eles se serviam. Primeiramente, a terceira
figura da página 99 do CLG [i.e., o gráfico do signo-ánJol'e] é uma invenção de Bally e Sechehaye (cL
Godel, SM, p. 115; De Mauro, CLG, nota 132); pois bem, essa figura reintroduz, ou pelo menos
convida a reintroduzir, a concepção nomenclaturista da língua, rejeitada duas páginas antes (CLG,
97) (Amacker, 1975, p. 85).
Se surge como entidade puramente 0posltlva, meramente diacrítica, no
nível da langue, os elementos da significação se tornam significantes plenos, dotados
de valor positivo, na pamle:

Dizer que tudo é negativo na língua, isso só é verdadeiro do significado e do significante


tomados separadamente: desde que se considera o signo na sua totalidade [i. e., na fala, na jlarole,
o Nascimento da Lingilística Geral e do Estrutumlismo • 105

onde o significado encontra o significante que o exprime e vice-versa], encontramo-nos em jJresença de


uma coisa jJositiva na sua ordem. [... ] Apesar de que o significado e o significante sejam, tomado cada
qual em separado, puramente diferenciais e negativos, sua combinação [na fala] é um fato positivo
(Saussure, 1972, p. 166).

Assim, desde que se acoplem na parole, para compor o signo discursivo, esse
valor realizável da langue, paradigmático, vai se visibilizar como entidade realizada,
valor sintagmático, dotado de uma sua própria positividade, na cadeia da fala: "O
que há de idéia ou de matéria fónica em um signo importa menos do que aquilo
que há ao redor dele, dos outros signos [Saussure alude ao que já chamei, em
outro lugar, de interpretante contextuaI]. A prova disso é que o valor de um termo
pode ser modificado sem que se toque nem em seu sentido nem em seus sons,
mas apenas pelo fato de que tal outro termo vizinho tenha sofrido uma modi-
ficação (idem, ibidem).

Em conclusão: mesclam-se, no Cours, duas diferentes concepções de valor


(de significante, de significado, de signo) que convém distinguir:

a. A concepção do valorjJaradigmático, definível por sua propriedade diacrítica


negativa, como diferença atual (vigente em um código da competência),
realizável, inscrita no nível da langue. Do ponto de vista do valor paradig-
mático, o elemento de um conjunto-universo (um sistema ou uma classe)
é tudo aquilo que os demais elementos do mesmo universo não são.
b. A concepção do valor sintagmático, definível por sua propriedade diacrí tica
positiva, como diferença real (realizada) em dado ponto da cadeia da fala,
cujo sentido se define posicionalmente, relativamente a todos os demais
elementos co-ocorrentes no contexto do seu mesmo discurso. Do ponto
de vista do valor sintagmático, um elemento de um processo da fala é tudo
aquilo que os demais elementos do seu contexto dizem que ele é.

Sintagma e Paradigma: Os Dois Eixos da Linguagem

Esses dois modos de existência do valor, paradigmático (atual) e sintag-


mático (real ou realizado), estão nitidamente aludidos na seguinte passagem:
No interior de uma mesma língua, todas as palavras que exprimem idéias vizinhas se limitam
reciprocamente: sinânimos como redouteJ; "hesitar", craindre, "temer", avoir jJellr, "amedrontar-se",
só possuem valor próprio graças à sua oposição: se redollternão existisse, todo o seu conteúdo iria
para os sem concorrentes. [Até aqui, o eixo paradigmático, da Zangue.]
Inversamente, há termos que se enriquecem peTo contato com outros: por exemplo, o
elemento novo introduzido em décréjJit "decrépito" (un viellard décréjJit, um "velhote decrépito") [... ]
106 • A Identidade e a Diferença

resulta da coexistência de décréjJi, "sem reboco" (1[n lI111rdécréjJit, "uma parede que perdeu o reboco").
Assim, o valor de qualquer termo é determinado por aquilo que o rodeia [nesta última frase, o eixo
sintagmático] (idem, pp. 160-161).

Uma das propriedades que Saussure atribui ao signo lingüístico é a linea-


ridade descontínua de seu significante:

Por ser de natureza auditiva, o significante [lingüístico] se desenvolve unicamente no tempo


e apresenta as características que toma do tempo: a) representa uma extensão, e b) essa extensão
é mensurável em uma única dimensão: é uma linha (idem, p. 103).

Esboça-se assim a distinção entre os signos verbais, lingüísticos e os signos


visuais, não-lingüísticos: "Por oposição aos significantes visuais (sinais marítimos
etc.), que podem oferecer complicações simultâneas em várias dimensões, os sig-
nificantes acústicos dispõem unicamente da linha do tempo; seus elementos apre-
sentam-se um depois do outro: eles formam uma cadeia" (idem, ibidem).
A importância da passagem - onde, por sinal, está o termo cadeia, que
depois a glossemática popularizaria para designar o eixo sintagmático da fala-
é óbvia; é fundada nessa descontinuidade seqüencial da cadeia falada, que dis-
tinguimos em lingüística geral, conceitos como o de sintagma (cunhado por
Saussure), de sílaba, de distribuição e de contraste, além de contexto, todos
baseados na ordem funcional das contigüidades construídas no contexto do
termo-objeto.
As relações que um elemento da cadeia da fala apresenta perante os demais
elementos da mesma cadeia, situados antes ou depois dele, são chamadas de
contrastivas ou distribucionais: assim, o conceito de sílaba está baseado no con-
traste funcional da seqüência consoante (margem) versus vogal (centro da sílaba)
e o conceito de distribuição é estabelecido sobre o contraste contextos fun-
cionais, aqueles em que o elemento-objeto se dota de pertinência e sentido, e
contextos disfuncionais, em que o mesmo elemento-objeto perde tais caracte-
rísticas (assim, o artigo aparece em português e em romeno,junto do substantivo
para formar sintagmas nominais (SN) com a função de sujeito; mas dentro do
SN português, o artigo se antepõe ao substantivo, ao passo que no SN romeno
ele vem posposto:

port.: o lobo versus rom.: lupu l

t
art. art.
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 107

À dependência funcional existente entre dois elementos seqüenciais dentro


da mesma cadeia Saussure dá o nome de relação sintagmática; chama-se sintagma
ao conjugado binário que essa relação constrói (assim, o lobo é um sintagma nominal) .
Saussure descobriu que toda a fala é sin tagmática e que todos os seus seg-
mentos significantes, tenham eles a extensão que tiverem - do período (ou
parágrafo) à lexia (ou palavra), passando pela oração e pela locução - , constituem
sintagmas, conjugados de duas unidades constituintes consecutivas que formam
um segmento da cadeia da fala, em que o valor de cada uma dessas unidades se
define posicionalmente por uma relação de contraste reportada ao valor da outra,
de tal modo que o conjugado só se unifica por exprimir um único efeito de sentido.
É regra geral que os sintagmas se coloquem um diante do outro como
unidades hierarquizáveis, funcionando um deles como constituído e o outro como
constituinte; assim, um período, por exemplo, é constituído por uma oração
principal (ou subordinan te) mais uma oração coordenada (ou subordinada), que
são seus constituintes; uma oração é constituída por um sintagma nominal (em
função de sujeito) mais um sintagma verbal (em função de predicado); um sintagma
nominal é constituído de um artigo, digamos, mais um substantivo; um substantivo
(sintagma vocabular ou lexical) é constituído de um lexema (indicador da signi-
ficação dicionária) mais um gramema (indicador da significação gramatical).
A propriedade da linearidade do significante, assinalada por Saussure,
faz-se, assim, o suporte epistêmico de todas as teorias estruturalistas de consti-
tuintes imediatos.
Não raro, porém, nos deparamos com signos ClUo significante consta de um
único elemento, como, por exemplo, no latim, i, que pode ser signo de genitivo,
do passivo, do imperativo do verbo eo, ivi, itum, ire "ir":

• frater Paul - z "irmão de Paulo"

t
genit.

• amar - z amabam "eu queria ser amado"

t
passivo de amo

"vá, garota" !
puella!

lmper. de eo
108 • A Identidade e a Dzferença

Construções desse tipo, por constarem de um único elemento aparente -


no caso, T- dão a impressão de contrariar a regra geral do sintagma como um
conjugado binário; mas isso, é claro, não passa de ilusão, pois ainda aí se observa a
função sintagmática como uma decorrência do princípio da seqüenciaZidade Zinear dos itens
daJaZa. O que ocorre, na verdade, é que elementos isolados, aparentemente, como
esse T, integram determinado ponto da cadeia, de modo a realizar a cada vez, em
cada contexto específico, uma só de todas essas funções, na dependência do
elemento com o qual venha a combinar-se naseqüência.Assim, a função de gramema
do genitivo só aparece para o morfema (ou gramema) Tquando ele vem sufixado
a um nome (um substantivo ou um acljetivo), nunca a um verbo; e, inversamente,
a função de marca do passivo ocorre apenas quando o Tse liga como forma presa,
sufixal, a um lexema \'erbal, e não a um lexema nominal; e assim por diante.
Disso extraímos um princípio de ordem geral para a construção do processo
semiótico (do discurso): a cadeia significante se constrói pela combinação seqüencial
de dois elementos sucessivos que contrastam funcionalmente entre si (como subor-
dinan te/subordinado, na ordem sin tática; como determinante/determinado, na
ordem semântica) na qualidade de elementos inpraesentia, efetivamente realizados
no enunciado: são esses elementos sucessivos, explicitados e contrastantes na
cadeia que constituem o eixo sintagmático da parole.
O sentido da fala não reside, porém, unicamente nesses elementos visíveis no
eixo sintagmático, através do qual ele se realiza linearmente. De fato, para que possam
ter sentido, esses elementos in praesentia da fala devem ser primeiramente inter-
pretados por outros elementos in absentia, ausentes da cadeia, invisíveis nela, mas
presentes em nossa competência, sciZicetem nossa "memória" da Zangue, e que são os
itens com os quais associamos mentalmente as formas presentes assim que com elas
nos deparamos, ouvindo ou lendo, porque eles formam classes mnemônicas, do tipo

. escola
en~no ~uno

j - - - - - professor

t
a + b

t t
faz-nos recordar faz-nos recordar
....
t. pressuponente + t. pressuposto

a = elemento dado na fala (presente no eixo sintagmático); termo pressuponente;


b = elemento com que o associamos na memória (ausente da sintagmática); termo
pressuposto
o Nascimento da Lingüística Geral e do Estruturalismo • 109

Os elementos da língua participam de classes, a que denominamos para-


digmas (termo atual, não utilizado por Saussure). Como eles participam de classes,
ouvir ou ler um deles suscita em nossa memória imediatamente uma porção de
membros a eles comparáveis dentro da mesma classe. Cada uma dessas classes de
membros que se associam por compartilharem todos uma mesma marca de base
(o que faz deles formas parcialmente iguais entre si) constitui um paradigma:
"Um paradigma é uma classe de elementos que podem ser colocados no mesmo
ponto de uma mesma cadeia" (Câmara Júnior, 1964, p. 236), por serem substi-
tuíveis ou comutáveis entre si. No enunciado "o menino estragou a bola", posso,
por exemplo, substituir menino por "guri", "garoto", "moleque" etc., estragou por
"arrebentou", "furou", "estourou", e bola por "pelota" etc., sem que o sentido do
enunciado se altere sensivelmente, fazendo

o menino estragou a bola

o guri arrebentou a bola

o garoto furou ...

o moleque ...

Trata-se, tomo se vê, de um conjunto de escolhas Cl~a determinação fica,


dentro de certos limites (regulados, gramaticais) ao arbítrio do enunciador, durante
o ato da enunciação.
A enunciação - o processo contínuo de fonação e audição que constitui o
circuito da fala - é, enquanto ato que realiza a parole na comunicação, umjogo
entre os mecanismos de seleção (seleção de um membro entre n outros membros
da mesma classe de escolha '~rtualmenteequiprovável, dentro do mesmo enunciado,
como acima: escolho "o garoto", realizo-o na fala e abandono todos os outros sin-
tagmas nominais que poderia ter escolhido para figurar em seu lugar, "o menino ",
"o guri", "o moleque" etc.); mecanismo esse que opera sobre o eixo paradigmático
(ou eixo das associações, nos termos de Saussure); e um segundo mecanismo, o
mecanismo da combinação dos elementos selecionados no eixo paradigmático
que tenho de dispor em seqüêncialinear, como elementos sucessivos, sobre o eixo
sintagmático da fala. Dizenclo-o de outra maneira, "uma frase é constituída por
uma sucessão de signos lingüísticos, mas nessà seqüência de palavras (em que
consiste o sintagma), cada palavra que acrescento a uma palavra anterior é uma
110 • A Identidade e a Diferença

palavra que devo escolher entre as várias que o contexto [... ] nos permite utilizar:
o eixo das palavras possíveis é o jJamdigma" (Coelho, 1968, p. XVII).
O procedimento articulatório da fala como uma seqüência de mecanismos
de seleção no eixo paradigmático + combinação no eixo sintagmático aplica-se,
é claro, não só às lexias (palavras), mas a toda e qualquer unidade lingüística. Para
realizar a palavra mm; por exemplo, escolhi dentre os 33 fonemas do português
brasileiro apenas três unidades: I mi 11/, digamos, nem I di que me for-
e não
neceriam lar e dar; para combinar com Iml, que ocupa a primeira posição,
escolhi, na segunda, I ai e não I J I (lê-se ó), que me daria I moI' I; e escolhi,
finalmente, para combinar na terceira posição com as duas anteriores, 11'1 e não
Iwl nem Izl, que me dariam mau e mas etc.
Chamamos correlação a função ou dejJendência existente entre os membros de
um paradigma, e denominamos relação a função existente entre os constituintes
de um sintagma; assim, temos dois eixos da fala:

a. O eixo sintagmático, regido pelo contraste entre elementos sucessivos que


se combinam seqüencialmente para formar o eixo horizontal das com-
binações realizadas no discurso enunciado.
b. O eixo jJamdigmático, regido pela oposição entre elementos simultâneos
que se excluem mutuamente (de modo que, realizado um deles, os demais
se desrealizam) no interior da mesma classe para formar o eixo vertical
das correlações virtuais do discurso enunciado.

As correlações paradigmáticas, que estão baseadas na similaridade de com-


portamento' semiótico entre os termos selecionáveis, constituem a base para a
construção de uma extensa série de figuras retóricas (da linguagem trópica, figu-
rativa ou desviada) que vão da rima à assonância e ao anagrama, no plano da
expressão, até a metáfora (substituição do sentido "próprio" - quer dizer, pro-
gramado na langue- por um sentido "impróprio" - não-programado na langue,
mas emergente na jJamle) , no plano de conteúdo.
4

INTERPRETAÇÃO DA OBRA
DE FERDINAND DE SAUSSURE

Ut jJotero , explicabo: nec tamen, llt P.'}'thius


Apollo, celta llt sint et fixa qllae dixero;
sed llt homllnculus, jJrobabilia coniectura sequem.

CíCERO

INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE SAUSSURE:


AS DICOTOMIAS COMO CONSTRUTOS

Na abertura do terceiro capítulo do Cours, Saussure esclarece que a lin-


güística é uma disciplina Cl~O objeto nunca está dado de antemão, mas tem de
ser construído pelo descritor:

Em lingüística, a necessidade de não empl~egaT um termo p~r outro é única: o qU~ temos
para designar não são com efeito unidades concretas já dadas, como um ser vivo para o zoólogo,
mas resulta sempre de uma combinação, é complexa [... ] e designando-as por um lado e não por
outro, quer dizer, por abstração, arriscamo-nos a perceber, a certo instante, que aquilo que tínhamos
distinguido é idêntico (ajJUdGodel, 1957, p. 29).

Essa judiciosa informação nos foi preservada por M. A. Riedlinger, de uma


conversação que manteve com Saussure em 19 de janeiro de 1909. Nela trans-
112 • A Identidade e a Diferença

parecem,já, dois dos pontos de apoio capitais da revolução científica que o pro-
fessor de Genebra provocou em sua ciência, a saber, a questão do ponto de vista
e a questão aparentemente paradoxal da unidade e da diferença; sem o prévio
entendimento desses pontos não há como compreender o real alcance e o ver-
dadeiro sentido das dicotomias enquanto construtos - quer dizer, enquanto
"construções teóricas próprias para dar conta, no quadro de uma unidade con-
ceptual mais profunda, das dualidades evidentes no fato lingüístico quando
abordado ingenuamente. Convém sublinhar imediatamente [... ] que as antinomias
[... ] são aparências a explicar" (Amacker, 1975, p. 49).
Da explicação dessas dicotomias depende uma correta interpretação da
obra de Saussure; é o que nos ocupará no decorrer deste capítulo.

A Revoluçâo Epistemológica de Saussure: Uma Teoria do Conhecimento Fundada


na Noçâo de Ponto de Vista

C'est le jJoin t de 1Jlle qui crée I'objet.


SAUSSURE

Uma das mais poderosas contribuições de Saussure para a constituição da


moderna semiolingüística reside no fato de ter ele pensado a sua disciplina nos
quadros de uma teoria do conhecimento até então inédita, como uma episte-
mologia do saber construído pelo ponto de vista.
Para Saussure, a relação cognitiva é dada pela articulação de três elementos,
um sl~eito, um objeto e uma relação colocada, no ato de conhecer, entre eles:

• Sl~eito do conhecimento (S) é o "eu" que pensa.


• Objeto do conhecimento (O) é o "ele" apessoal, quer dizer, isso que é
pensado como "assunto" do pensamento do "eu".
• Relação (R) é o ponto de vista, o pensamento diretor, através do qual o
sujeito percebe seu objeto como entidade dotada de talou qual pro-
priedade:

Relação cognitiva: S R 1xl O ou (S n O), marcando a notação "n", um


signo de conjunção (ou relação instalada).

Sl~eito e objeto unem-se em solidariedade, por mútua implicação: não


há objeto sem sujeito nem, vice-versa, sujeito sem objeto .. Assim, aquilo que o
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 113

objeto e o sujeito são depende do ponto de vista por meio dos quais os rela-
cionamos em nossa mente: o signo A designa ora a primeira letra do alfabeto,
ora a primeira posição, ora uma quantidade conhecida, ora o símbolo do argônio
etc., conforme eu a interrogue do ponto de vista "alfabético", do ponto de vista
"ordinal" numa seqüência enumerativa, do ponto de vista algébrico, do ponto
de vista químico etc.
Assim, para Saussure, a primeira das singularidades da lingüística é preci-
samente esta, de não apresentar ela nenhum objeto dado de antemão:

Outras ciências operam sobre objetos dados de antemão, que se pode considerar em seguida
de diferentes pontos de vista: em nosso domínio, nada há de semelhante (1972, p. 23).

Em uma das notas inéditas de seus manuscritos recolhidos por Godel, reitera
ele a mesma linha de pensamento:

Saussure enumera [... ] três maneiras de raciocinar, das quais só a terceira é admissível:

1. Tomar como dada a palavra (cantare) para considerá-la em seguida de diferentes pontos
de vista;
2. Escolher um ponto de vista julgado fundamental (a figura vocal kan-ta~re).

3. Afirmar que nada é dado, que nenhum ponto de vista é a p'imi mais fundamentado
do que outro. E conclui:
"Pretendemos que qualquer espécie de operação,justa ou falsa, sobre a língua [...] encontra
sua fórmula com o auxílio dos princípios que colocamos. (II) Há diferentes gêneros de
identidades. É o que cria diferentes ordens de fatos lingüísticos. Fora de uma relaçâo qualquer
deidentidadezwljata lingiiístico nâa existe. Mas a relação de identidade depende de um ponto

de vista variável que se decide adotar: não há, pois, nenhum rudimento de fato lingüístico
fora do ponto de vista que preside às distinções" (Godel, 1957, pp. 42-43).

Também nos apontamentos que nos ficaram do "II Curso de Lingüística


Geral", a mesma preocupação:

Estamos proibidos, na lingüística, embora não deixemos de fazê-lo, de falar 'de uma coisa'
de diferentes pontos de vista ou de uma coisa em geral, porque é o ponto de vista que faz a coisa
(Saussure, ajJlld Amacker, 1975, p. 28).

E ainda:

Na língua, não há objeto imediatamente dado como os que surgem em qualquer ciência
diferente - não há objeto anterior à análise (Saussure, ajJUd Godel, 1975, pp. 46-47).
114 • A Identidade e a Diferença

A Adoção do Ponto de Vista Intrínseco pam a Interpretação do Sentido de um


Discurso: O Valor como Função Intmdiscursiva

Ao sublinhar a independência das mutações lingüísticas relativamente às


mutações extralingüísticas ocorridas na sociedade que fala essa língua, Saussure
acaba por afirmar que o sentido de uma mensagem possui uma definição
intradiscursiva, dependente, unicamente, do contexto lingüístico da mensagem,
mas independente da situação extralingüística em que essa mensagem foi
enunciada:

Não se de"e abandonar o princípio de que o "alor de uma forma reside inteiramente no
texto de onde a tomamos, quer dizer, no cOl"Úunto das circunstâncias morfológicas, fonéticas, orto-
gráficas, que a rodeiam e esclarecem (1972a, p. 11).

Nada de "definições do sentido" por meio da influência de fatores sociais


existentes fora da mensagem, aí. Na verdade, Saussure vê o valor como o sentido
local produzido pela intersecção dos dois eixos do discurso, o paradigmático e o
sintagmático: "O valor resultará sempre do agrupamento por famílias e do agru-
pamento sintagmático" (ajJUdGodel, 1957, p. 172). Ou seja: o valor de um elemento
não se determina unicamente como um termo-objeto dentro de uma relação para-
digmática, na Zangue, mas também, e ao mesmo tempo, como termo-objeto de
uma relação sintagmática, na cadeia do discurso. Que essa é a interpretação correta
para o termo algo ambíguo de agrupamento se comprova numa anotação que
nosso autor fez em 11 de janeiro de 1909:

Pois bem, há duas maneiras de agrupar, duas esferas de relações entre as pala"ras: na memória,
o tesouro interior, e no discurso, a cadeia da jJarole. Há

I unidades de associacão e unidades discursi"as l


~grupos no scn tido de Iamzlzas) (grupos no sentido de sintagma~

Na unidade de Hm grupo de associação (dominlls, domino; désirellx, malheureux, C!umcellx... )


há sempre um elemento "ariá\'el e um elemento constante. [... ] Um sintagma, ao contrário, comporta
uma ordem, uma seqüência linear, qualquer que seja sua grandeza (palawa analisá"el, composta,
frase). O mecanismo [da fala?] consiste em empregar tipos de sintagmas que temos em mente,
pondo emjogo os grupos de associação para aportar a diferença desejada. [... ] Todo valor resulta
desse duplo agrupamento, mesmo no caso de um som, III por ex. (idem, pp. 72-73).
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 115

Tanto os estruturalistas do Círculo de Praga, que preferiam autodenominar-


se funcionalistas, quanto os formalistas russos haviam se valido abundantemente
do termo junção. Mas o primeiro a utilizar junção, na semiolingüística, foi, mais
uma vez, Saussure, empregando-a, de resto, na mesma acepção em que virão a
reutilizá-la russos e tchecos, como variável do valor significativo de uma forma lin-
güística, variável dependente do contexto; lê-se, com efeito, nos apontamentos que
tomou para a sua iVIOIfologia:

Os diferentes elementos de uma palavra têm um sentido pela combinação: é nas suas
relações recíprocas que se estabelece o sentido. Seria mais justo aqui, falar de função: o sentido se
reduz muito jí-eqiientelllente a 11 llzajllnçâo (v{niante de valor e de sentido) (Saussure, lvIo/jJh.: R 5-6, ajnld

Godel, 1957, p. 232).

A ênfase, como sempre que lida com o termo valor, é dada pela inserção do
termo no contexto de dado discurso: "Cada unidade não vale e não realiza sua
função senão pela combinação que lhe é dada [no discurso] [... ]. Cada elemento
não dispõe livremente de seu sentido, mas somente por combinação" (idem, ibidem).
Godel precisa que a palavra função - que Saussure utilizava, segundo
pensamos, na acepção de sentido variável que o significado do signo da língua
adquire no discurso - surge várias vezes nos "Cursos I e II de Lingüística Geral"
e no "Curso de Morfologia" em aI tenúncia com sentido e significação, funcionando
como a contraparte de forma. A partir daí poderemos, talvez, entender:

a. Por sig;nificado, o valor invariante do conteúdo do signo isolado em estado


de língua (significado em sentido dicionário).
b. Por junção, o valor variável do conteúdo do signo contextualizado no
processo da parole (função em sentido da fala) coisa que, a ser certa, pro-
duziria as seguintes correlações:

Plano de Expressão Plano de Conteúdo

a) NO SISTEMA
unidade de valor invarian te Significante Significado
na langue

b) NO PROCESSO Forma Função


unidade de valor variável
na parole

Figura 8: Valores Variáveis e Valores Invariantes da Linguagem.


116 • A Identidade e a Diferença

Observemos, de passagem - essa distinção, capital, será retomada mais à


frente - , que as unidades invariantes do sistema da langue serão depois deter-
minadas como identidades, ao passo que as unidades variáveis da parole se deter-
minarão como diferenças.

o Ponto de Vista e a Perspectiva - a Perspectiva Analítica e a Perspectiva


Sintética: A Identidade e a Diferença

Saussure estava convencido, como vimos, de que é o ponto de vista que


cria o objeto:

Outras ciências operam sobre objetos dados de antemão, que se pode considerar em seguida
de diferentes pontos ele yista; em nosso domínio, nada há de semelhante. Alguém pronuncia a
palavra francesa 1IU: 1I1Il obsenJadorsuperficial será tentado a yer nela um objeto lingüístico concreto;
mas um exame mais atento fará encontrar aí sucessivamente três ou quatro coisas perfeitamente
diferentes, conforme a maneira [o ponto de vista] pelo qual o consideremos: como som, como
expressão de uma idéia, como o correspondente do latim 1IuduIIl etc. Longe de o objeto preceder
o ponto ele vista, diremos que é o jJonto de vista que cria o objeto (1972, p. 23; os grifos são meus).

É esta a primeira vez, ao que saibamos, que se utiliza para denominar o


sujeito do ato cognitivo a palavra "observador", que irá reaparecer, com a mes-
míssima acepção, na semiótica greimasiana dos anos 70. É sedutora a idéia de
fazermos certos aproveitamentos dessa modalidade de sl~eito epistêmico, que
podemos caracterizar como o autor de um fazer saber, diferente de uma outra
modalidade de sl~eito, o sl~eito operador, autor de um fazer. A relação entre os
dois poderia ser expressa assim:

a. O sl~eito operador é o autor de um fazer observado (actante de uma


cena observada) que serve de objeto para o sl~eito observador.
b. O sl~eito observador é o autor de um fazer saber sobre o fazer do sl~eito
operador (é um actante da cena de observação).

Se denominarmos, agora, de perspectiva a particular visão construída pela ado-


ção de dado ponto de vista e o conseqüente estabelecimento de uma relação que, a
dado inst:l.nte, vai se instalar entre o observador, enquanto sujeito do conhecimento,
e o operadOl~ enquanto objeto de conhecimento, podemos desde logo distinguir
duas perspectivas comumente empregadas por Saussure em seus trabalhos semióticos:

a. Uma perspectiva analítica, compreendendo por análise, aqui, a decom-


posição de uma totalidade, 5, por meio da disjunção dela em suas partes
constituintes, SI e s2-
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 117

b. Uma perspectiva sintética, entendendo por síntese a operação inversa à


análise, vale dizer, a recomposicão de uma totalidade constituída, S, a
partir da conjunção de suas partes constituintes, sI e s2'

À adoção da perspectiva analítica corresponde a apreensão de uma ipseidaele


contínua - uma "identidade", a da totalidade S - como uma alteridade des-
contínua - uma "diferença", a dos constituintes sI versus s2:

A condição de qualquer fato lingüístico é ocorrer entre dois termos no mínimo, os quais
podem ser sucessivos [diacrânicos] ou sincrânicos. A ausência do segundo termo [... ] é só aparente
(Sanssme, ajJlldGodel, 1957, p. 51).

A adoção da perspectiva sintética, ao contrário, faz uma alteridade des-


contínua (uma diferença sI versus s2) a ser apreendida como uma ipseidade
contínua (uma identidade, a da categoria totalizada, S).
Saussure previu expressamente a necessidade de o observador executar a
operação ele síntese, não isolando termos-objetos da relação que os une, privile-
giando o ponto de vista analítico, que o levaria a ver um só dos termos, em
detrimento do outro:

Em lingüística, a necessidade de não empregar um termo por outro é única: o qne temos
para designar não são com efeito unidades concretasjá dadas, como um ser vivo para o zoólogo, mas
resulta semjJre de 'IlIlla combinação, é comjJlexa [sintética] [... ] e designando-as por um lado e não por
outro [perspectiva analítica], quer dizer, por abstração, arriscamo-nos a perceber, a certo instante,
que aquilo que tínhamos distinguido [na análise] é idêntico [da perspectiva da síntese] (idem, p. 29).

Ele previu, mais, a existência de duas modalidades de operações de síntese,


"combinações" ou "agrupamentos", na sua terminologia - a síntese sintagmática
e a síntese paradigmática: "O valor resultará sempre do agrupamento por famílias
[síntese paradigmática] e do agrupamento sintagmático [síntese sintagmática]"
(idem, p. 172). E:

Pois bem, h,1 duas maneiras de agrupar, duas esferas de relações entre as palavras: na memória,
o tesouro interior [paradigma], e no discurso, a cadeia da jJarole [sintagma]. Há

I unidades de associação e unidades discursivas l


~grupos no sentido de famílias (grupos no sentido de sintagma~

~ ~
síntese paradigmática síntese sintagmática
118 • A Identidade e a Diferença

Definiçáo do Nível de Descriçáo pela Perspectiva Adotada pelo Descritor: O Nível


do Sistema (da Langue) e o Nível do Processo (da Parole) e Sua Expressáo nas
Dicotomias: A Forma e o Valor das Unidades Descritas

Conforme a perspectiva que o descritor selecione para visar ao seu objeto,


ele o apreenderá sob um diferente nível de descrição:

a. Quando o descritor se coloca em uma perspectiva analítica, ele percebe


uma identidade, S (categoria do sistema, da langue) , como espaço de dife-
renças, sI / s2 (categorias do processo, da parole); a análise opera o recorte
de uma disjunção fundada na percepção de uma diferença no seio de
um continuum, diferença essa que o recorta em dois segmentos descon-
tínuos contrastantes, SI versus s2' que são seus constituintes elementares
no nível do processo discursivo; assim, a categoria (identidade do sistema)
S /sexualidade/ (unidade da língua) se deixa decompor em duas cate-
gorias de nível menor, do processo discursivo, SI /macho/ versus s2
/fêmea/, a partir da percepção, no seio de S de uma diferença qualquer
(que os índices "1" e "2" vão assinalar na transcrição simbólica) ; a decom-
posição da unidade constituída S em seus componentes constituintes, SI
versus s2' permite-nos definir a forma do elemento semiótico, S; a forma
de um elemento se define pela apreensão de seus parciais diferentes.
b. Quando o descritor se coloca em uma perspectiva sintética, ele apreende
elementos do processo (da parole) como constituintes, em nível menor,
de uma mesma categoria constituída do sistema, S; agora, a apreensão
dos. parciais iguais de uma dualidade descontínua - parcialidade igual,
transCl-i ta simbolicamente na letra "s" - opera a sua cOl~unçãona unidade
de nível maior, S; a operação da síntese jJermite-nos definir o valor (ou o sentido)
do elemento semiótico.

Nível das unidades Perspectiva S /sexualidade/


do sistema (langue) } sintética S
E
F N
O T
R I
M D
A O

Nível das diferenças } Perspectiva sIimacho/ versus


no processo (parole) analítica

Figura 9: Produção da Forma e do Sentido (das unidades idênticas da iang'," e diferenciais da j)(l)"oie, a partir

da adoção das perspectivas analítica - percurso descendente, e sintétisa - pcrcurso ascendente.


InterjJretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 119

Como os fenômenos lingüísticos nos são acessíveis unicamente no acon-


tecimento da fala, da parole, nós o apreendemos na forma de dicotomias pro-
duzidas pelo enunciador: "A condição de qualquer fato lingüístico é ocorrer
[no evento da fala] entre dois termos no mínimo, os quais podem ser sucessivos
[diacrônicos] ou sincrônicos. A ausência do segundo termo [... ] é só aparente"
(idem, p. 51).
A diferença aparece, assim, na adoção da perspectiva analítica, como o fun-
damento das dicotomias da parole: para manifestar-se, as unidades idênticas da
língua estão obrigadas a assumir o molde sintagmático, emergindo, pois, na dua-
lidade funcional do sintagma, feito termos descontínuos; e a diferença existe
ainda, mesmo no nível da langue, no qual cada elemento que isolamos como
unidade na cadeia sin tagmática do processo da fala será men talmen te comparado
com outro para que o identifiquemos como seu igualou diferente: 'Todo o
mecanismo da língua gira em torno de identidades e diferenças" (Saussure, 1972,
p. 151) e

qualquer qne seja o domínio da linguagem que se enfoque, há sempre uma dupla face que se
corresponde perpetuamente, uma parte "ale unicamente pela outra (Saussure, ajJud Amacker,
1975, p. 28).

As unidades da língua aparecem, assim, a partir de umjulgamento de iden-


tidade - uma com paração entre um elemento dado, in praesentia no processo (da
parole), e um elemento in absentia no processo, mas estocado na competência do
sujeito, que pronuncia o veredictum das identidades e das diferenças. Na fala, por
exemplo, a identidade de um dado segmento da cadeia significante só se revela na
adoção, pelo destinatário (ouvinte ou leitor), da perspectiva sintética, com a qual
ele promove o julgamento da identidade, recortando a fala do outro em unidades
idênticas, do sistema da langue, com a finalidade de compreendê-las. Assim, o que
era diferença no nível da manifestação da fala, e o que era dicotomia, no nível
menor, de uma perspectiva analítica, vem a ser interpretado como idêntico, em
nível maior, da perspectiva sintetizada da langue. E, tendo em conta que "a língua
oferece os contrastes e paradoxos perturbadores àqueles que a apreende [só] por
um lado ou pelo outro", é preciso cuidado para não nos fixarmos só em um dos
pólos das dicotomias: "não se pode deixar um lado senão por abstração e isso tem
sempre um perigo: o de atribuir a um só aspecto o que convém igualmente ao .
outro" (Saussure, "II Curso de Lingüística Geral", apudAmacker, 1975, pp. 43-44).
A questão da identidade e da diferença constitui o pivô epistemológico sobre
o qual gira toda a revolução teórica de Saussure. A esse respeito, o texto de N 9.1-2
"merece atenção particular", acentua Godel (1975, p. 136) por representar "o núcleo
das reflexões de Ferdinand de Saussure":
120 • A Identidade e a Diferença

No domínio da linguagem não há "coisas que sejam naturalmente dadas", logo, não há subs-
tância: é o ponto de vista apenas que cria o objetoo Pois bem, não estando fundado na consideração
de uma substância, o ponto de vista só pode invocar uma certa relação de identidade, a, por exemplo,
de uma seqüência de sons como nii, abstração feita de seu valor em talou qual sistema (f1'. nu ou
g1'. vu [0.0] oEm que consiste a ielentidade quando não se lida com um ente material? (Saussure,
a/md GoeleI, 1975, po 136).

Godel pensa, com razão, que essa questão deve ter representado um aspecto
filosófico crucial no domínio das reflexões saussurianas em torno da linguagem:
é das suas especulações sobre os "diferentes gêneros de identidades" que procedem
as "distinções primeiras", a determinação de pontos de vista apropriados, criadores
de ordens de fatos que correspondem a realidades" (1975, pp. 136-137).
Na maior parte das vezes, Saussure pensava que as identidades só se esta-
belecem no nível do sistema, quando se encontram as unidades mínimas da
língua. Em um nível inferior, o das descontinuidades recortadas sobre o con-
tinuurn linear da cadeia da fala, as unidades idênticas do sistema viriam a mani-
festar-se como diferenças - isto é, como elementos da paroZe que contraem uma
relação de descontinuidade:

a. Opondo-se, no eixo associativo (ou paradigmático), aos elementos simul-


tâneos da sua mesma classe, que os falantes trazem estocados em sua
competência semiótica como membros alternativos, aptos para substituir
o termo-objeto focalizado no mesmo lugar que ele ocupa na cadeia da
fala;, assim, garoto, guri, moleque, pivete, para substituir, em diferentes
normas e registros enunciativos, o termo menino, digamos.
b. Contrastando, no eixo sintagmático, com os elementos sucessivos, que
seguem ou precedem o termo-objeto focalizado na cadeia da fala; exemplo:
"este garoto" / "nenhurn garoto" etc.

Desse modo, basta transportar qualquer elemento diferencial da pamZeparq


o nível imànen te da Zangue, para que imediatamente estabeleçamos o que Saussure
chama de julgamento de identidade - para que o submetamos, mercê da com-
paração, à função metalingüística que há de interpretar esse elemento da mensagem
em termos de membro de um código; pois nesse nível ele surgirá:

a. Como uma realizaçâo idêntica na paroZe de uma mesma unidade-tipo


invariante da Zangue; ou
b. Como uma realização variável na parole de uma outra unidade invariante
da Zangue.
InteljJretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 121

Assim, por exemplo, ouvindo na conversação, a frase ("lipeja teja") , umjul-


gamento de identidade do tipo descrito em (a) interpretará o ouvido como "limpei
a teia" (a unidade-invariante da língua "semivogal j" é realizada, na parole, como
"semivogalj", mesmo), ao passo que umjulgamento do tipo descrito em (b) inter-
pretará a mesma frase como pronunciação alofônica de /"limpei a telha"/ (onde
a unidade invariante da língua laterallinguopalatal é/ Ie/ (lê-se lhe) realizada na
parole como semivogal j, que compõe ditongos).
Nesse sentido é que a lingüística deve focalizar como seu primeiro objeto a
langue,já que é aí que se estabelecem as identidades:

A questão das identidades é pois a primeira e mais geral; pois, de um lado, é o problema da
língua (natureza do signo, caracteres das entidades lingüísticas) e da semiologia inteira que está
colocado desde o instante em que se reflete sobre o laço de identidade que faz com que, em el1l111-
dados diferentes e sucessivos [da jJarole] se reconheça a mesma palavra, a mesma unidade signifi-
cativa (idem, p. 128).

Daí decorrem dois postulados básicos da axiomática semiolingüística saus-


suriana:

a. "fora de uma relação qualquer de identidade, um fato lingüístico não


existe" (Saussure, apud Godel, 1957, pp. 42-43),
ú. "Ê pois permitido dizer que a langue será o conjunto das unidades que
se estabelecem em virtude das identidades reconhecidas em uma sociedade
a um momento dado" (Saussure, ajJUdAmacker, 1975, p. 30).

Esta última assertiva nos conduz imediatamente a vários outros temas de


capital importância para a doutrina de nosso autor; dentre eles, o da abordagem
das dicotomias dentro de uma teoria unificada, da ordem algébrica, e a questão
da construção de uma metalinguagem de formalização forte.

A Normalizaçâo das Dicotomias dentro de uma Teoria Semiolingi1ística


Unificada: A Construçâo de uma Metalinguagem Formal Forte

É no interior de um percurso dialético que isole diferenças no seio de uma


identidade, convertendo um continuumhomogêneo em uma dualidade, e, a seguir,
reunifique, por complexificação - i. e., pela soma dos termos contrários, dis-
juntos, da dicotomia, numa mesma unidade síntese, ou p~la redução de uma dua-
lidade da parole a uma unidade do nível da língua - , que assentam, se originam
e ganham integral significação todas as célebres dicotomias saussurianas. Só assim,
normalizadas no âmbito de uma teoria dialética unificada - que, por ser dia-
122 • A Identidade e a Diferença

lética, há de ser entendida como um percurso a efetuar de um dos pólos, tomado


como tese (seja, por exemplo, a langue), ao outro pólo, tomado como antítese
(no caso, a parole), e daí, de retorno para o mesmo ponto de partida mas em um
outro nível, visto, agora, como síntese (no caso, a linguagem) - , que Saussure
concebia como a complexificação dos termos disjuntos, langue mais parole).
Só assim, repito, normalizadas no âmbito de uma teoria dialética unificada,
vale dizer, no domínio de uma semiolingüística geral, cuja exploração Saussure
foi o primeiro a empreender, é que os aparentes "paradoxos" e "contradições" de
suas reflexões se deixarão reduzir à unidade conceptual das metacategorias críticas
científicas. Que é necessário proceder-se nessa base à normalização unificadora
da sua teoria é uma tarefa de quem já ninguém mais duvida. Há quase quinze
anos, Amacker a pressentia:

A elaboração de um modelo semiológico e a definição correspondente de Zangue permite (m)


organizar as aparências contraditórias, recuperando-as como diferenças de ponto de vista. Só a
unidade dos pontos de vista, em uma teoria geral da linguagem, nos dará a unidade profunda do
fato. [...] trata-se, para Saussure, de uma espécie de propedêutica ajJta a sublinhar ao mesmo temjJo a
vaJiedade das abordagens na vaJiedade dos fatos e a unidade de sua visão na base [eólica comulIi que subjaz

às dicotomias (1975, p. 50).

tese

j
-- antítese

j
-- síntese

j
langue
-- parole
-- linguagem

Creio, da minha parte, ter deixado claro que um dos modos mais eficientes
de normalizar a questão das identidades e das diferenças nas especulações saus-
surianas consiste em explicá-las mediante a correlação:

a identidade a diferença o nível do sistema o nível do processo


(a unidade) (a varian te) (a langue) (a parole)

Recordemos, a propósito, o que afirmou Saussure na conversação que teve


com M. L. Gautier em 6 de maio de 1911, segundo Gautier: ."No momento, a lin-
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 123

güística geral me aparece como um sistema de geometria. Chega-se a teoremas


que temos de demonstrar. Pois bem, observamos que o teorema 12 é, sob uma
outra forma, o mesmo que o teorema 33 [... ]" (apudGodel, 1957, p. 30).
Estamos convictos de que essa foi uma das idéias que o autor da Mémoire
perseguiu a vida toda. Para ele, a parole foi, a vida inteira, uma realização diferente
do mesmo, de algo que o 'Julgamento de identidade" - nome que ele deu para
o que chamamos, hoje, de "função metalingüística" - reduzia, enfim, à iden-
tidade de uma outra unidade mínima, no nível da langue:

É preciso confessar que há [nojulgamen to de iden tidade ou de não-iden tidade] um elemento


subjetivo, mas comum a todas as pessoas. Contudo, é muito difícil de ver onde há identidade. E as
identidades são a base. Todo o mecanismo da língua gira em torno de identidades e de diferenças
(Saussnre, ajmd Godel, 1957, p. 139).

Esse "elemento subjetivo, mas comum a todas as pessoas", é, a todas luzes, o


saber implícito da competência semiótica, comum aos membros de mesma comu-
nidade - saber esse a que temos de recorrer, trabalhando metalingüisticamente,
para estabelecer as correspondências entre os diferentes segmentos da parole e as
unidades mínimas da langue. O resto é fácil de compreender; basta recordar:

a. Na perspectiva analítica, os elementos da linguagem surgem como ele-


mentos diferentes.
ú. Na perspectiva sintética, os elementos diferentes da parole entram em
conjunção para surgir como iguais.
c. Como a iden tidade surge da conjunção dos parciais iguais de dois termos-
objetos que associamos, essa cor~junção não destrói nem prejudica a indi-
vidualidade dos elementos envolvidos, porque ela resulta da complexi-
ficação de seus parciais iguais, S = s1 + s2'
d. Saussure não o tematiza, mas implicitamente o diz, que na seqüência
dos desdobramentos lógicos de sua dialética insinuam-se dois outros
postulados: primeiro, que cada unidade sintetizada (cada Smaiúsculo,
categoria da língua que subsume, ao nível maior, seus constituintes
disjuntos, S1 versus S2' ao nível menor da fala) é, por sua vez, absorvida
como simples termo-objeto (S1) no seio de uma unidade englobante,
mais elevada ainda; e, segundo, desse modo interpretamos por sínteses, e
cada síntese, sendo um retorno ao ponto de partida da tese anterior, inter-
pretamos por sínteses de sínteses, em retornos incessantes ao ponto de partida
anteri 01; mas sempre em um nível mais elevado, até chegarmos ao nível mais
alto de todos, que é o da macrossintetizlzção do texto através do qual inter-
jnetamos o discurso dado.
124 • AldentidadeeaDiferença

No último curso que ministrou, o terceiro, Saussure ampliará o conceito de


identidade, para mostrar que as relações associativas (paradigmáticas) são da
ordem lexicológica (entre palavras), fonético-fonológicas (entre seqüências fónicas,
como nas rimas, nas assonâncias, nas aliterações etc.) e até de funções gramaticais
(há uma identidade categorial entre todos os substantivos, no fato, por exemplo,
de poderem todos eles desempenhar a mesma função de sujeito). A identidade
na função gramatical surge até mesmo entre os elementos portadores de sentidos
diferentes; é o que ocorre na noção do reconhecimento da identidade de caso:
no genitivo latino, digamos, é perceptível a existência de um mesmo valor para
formas diferentes, resultantes tanto da seleção no eixo paradigmático - dentro
da declinação, rex/regis/regietc. - , quanto na combinação dos termos casualmente
flexionados no eixo sintagmático,

reg + is, leg + is domin +

quan to, ainda, den tro da correlação estabelecida pela analogia (análogo é o termo
que está em relação a um outro na mesma proporção que um terceiro em relação
a um quarto):

dominus domini rex regts

Godel comenta:

Essa idéia de 1/J1/{/ relação de identidade entre dijàénças de sentido não foi retomada nem desen-
volvida alhures. É, no entanto, mna visão inteiramente saussuriana, perfeitamente de acordo com
a concepção da língua como uma álgebra, que opera unicamente com termos complexos. E é uma
visão ele grande alcance, que permite ultrapassar a unidade concreta sem perdê-la de vista e sem
substituir a abstração de um conceito; que esclarece a noção de motivação relativa; que torna inúteis,
enfim, as penosas e frustrantes análises a que se entregam os teóricos do "morfema" para ligar os
"alomorfes" a uma unidade contestável. Pena que Saussure, voltado mais para as antigas línguas
indo-européias que devia ensinar, tenha-se aferrado por demais exclusivamente ao problema das
unidades concretas, em detrimento das entidades não delimitáveis, mas exatamente determináveis
pela identidade das "distâncias de sentido". Mas vê-se que a partir dos dados saussurianos, só pela
consideração de diferentes gêneros de identidade, chega-se a um verd~deiro estruturalismo que
ln telpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 125

poderia fornecer, para a descrição dos sistemas como para a teoria geral da língua, fecundos prin-
cípios de análise e de classificação (1957, p. 141).

Amacker navega nas mesmas águas, lamentando que Saussure nunca tivesse
chegado a escrever o livro capaz de explicitar cabalmente essa teoria que, não
obstante, ficou implícita em tudo o que escreveu.
Uma boa idéia do que poderia ter sido semelhante obra nos ficou nas
reflexões que o lingüista fundador da Escola de Genebra nos deixou acerca do
mecanismo das oposições fonológicas:

A verdadeira maneira de se representarem os elementos fônicos de uma língua não é a de


considerá-los como sons que têm valor absoluto, mas com um valor puramente opositivo, relativo,
negativo (Saussnre, afJ1ldGodel, 1957, p. 65).

o que aí se implicita é a idéia de que, levada às conseqüências finais, a des-


crição de um sistema fonológico nesses termos acabaria por assumir a forma meta-
lingüística de uma álgebra - a conjunção, na forma simples de uma unidade
constituída pela operação da síntese, de seus constituintes elementares, de nível
mais baixo. Desse modo, todo um sistema fonológico poderia ser representado
como um sistema matemático que generaliza dadas operações aritméticas substi-
tuindo os números por letras - ou traços distintivos - , como ocorre nas soluções
de equações polinõmicas, reduzindo-as a operações gerais binárias, cujas pro-
priedades resta definir.
Como diz Godel: "Para a reconstrução [do sistema todo], o essencial é não
desconhecer as diferenças: uma vez determinado o número dos elementos fónicos,
poder-se-ia notar o sistema algebricamente" (1957, p. 65).
É espantoso que Saussure vislumbrasse já tal possibilidade, numa época em
que não havia sequer esboçado os contornos gerais da semiolingüística geral que
ele fundava - semiolingüística essa a que pretendia dotar de uma metalinguagem
científica de formalização forte, organizada não à base de um sistema de pos-
tulados conceptuais interdefinidos - como nas metalinguagens da semiolin-
güística geral, que ainda hoje mal ultrapassaram o estágio intuitivo para assumir
o estágio seguinte, das formalizações conceptuais fracas; pois o que ele almejava
para a sua disciplina era nada mais nada menos do que a possibilidade de descrevê-
la com o emprego de uma metalinguagem construída à base das premissas lógico-
matemáticas das formulações fortes.
É certo que Saussure nunca levou a cabo esse sonho; mas as dicotomias que
ele elaborou nos dão o primeiro rascunho claro de um projeto disso: "teria esta-
belecido formalmente sua teoria por uma seqüêlicia de proposições rigorosamen te
encadeadas 'como um sistema de geometria'; mas é preciso admitir que as dico-
126 • A Identidade e a Diferença

tomias constituem a mais próxima expressão que temos dos axiomas sobre os quais
repousa a teoria saussuriana" (Amacker, 1975, p. 50).

o Caráter Histórico do Estruturalismo Saussunano


Quando Saussure asseverava ser "permitido dizer que a langueserá o conjunto
das unidades que se estabelecem em virtude das identidades reconhecidas em uma
sociedade a um momento dado" (idem, p. 30), afirmava, ipso facto, que, ao contrá'rio
do que jài insistentemente apregoado pelos seus adversários, o estruturalismo é, na sua versão
original, saussuriana, pelo menos, uma disciplina de caráter histórico. As demonstrações
da verdade disso estão por toda parte. Aqui mesmo abordamos essa questão, ao
tratar da dicotomia sincronia/diacronia, quando se patenteia que o autor do Cours
contrapõe ao conceito de historicidade externa (visão ingênua da evolução de uma
língua a partir do modelo evolutivo-biológico simples, vigente àquela altura, transposto
de um para outro campo sem mediações de espécie alguma) o conceito de histori-
cidade interna, que rejeita o transformismo exogerado, imposto de fora do sistema
- i. e., da sociedade como um todo - para dentro dele, em nome da idéia mais
exata de que as mutações sofridas por um sistema semiótico são endogeradas, vale
dizer, produzidas dentro do sistema pela transformação de dado elemento dele,
que vai acarretar o reajuste do sistema todo, para reequilibrá-lo em um outro estado
histórico conseqüente, na forma de uma nova sincronia.
É exatamente o que vem ilustrado de modo expedito em um dos cadernos
coligidos por Godel, em que, ao estudar a questão de quantos gêneros de fenômenos
lingüísticos existem, Saussure desenha o seguinte esquema, por ele denominado
- intuição antecipadora do carré sémiotique greimasiano? - carré linguistique:

a b

b'

em que as linhas horizontais indicam a sincronia no estado 1 (a - b) e a sincronia no estado 2 (a' - b'),
compreendendo por sincronia a relação de dois elementos diferentes coexistentes den tI'O do mesmo
estado histórico, ao passo que as linhas verticais indicam a diacronia (quando a se transforma em a',
o sistema se reequilibra fazendo b, seu correlato, transformar-se em b), compreendendo, pois, por
Interpretação da Obra deFerdinand de Saussure • 127

diacronia, a relação existente entre dois estados históricos sucessivos por referência ao mesmo

elemento. [Ainda completa Saussure:]


De quantos gêneros são os fenômenos lingüísticos? [00.] De dois gêneros exatamente. Mas
acreditamos, naturalmente, que formando uma única trama, temos de considerá-los só no seu enca-
deamento histórico; que tudo o que está no estado [no momento histórico "congelado" de uma sin-
cronia, consideração da história do ponto de vista estático] está contido de antemão no evento [no acon-
tecimento da jJetfol'llwnce enunciativa que transforma um estado em outro estado, consideração da
história do ponto de vista dinâmico]; que eles (seU., sincronia e diacronia, frutos da perspectiva ana-
lítica) sâo todos de mn únieo gênero [vistos de uma perspectiva sintética, ao nível maior] , inscrevendo-
se em uma mesma unidade geral evidente [00.] (ajJ1ld Godel, 1957).

Aí se reitera que sincronia e diacronia são perspectivas dependentes, como


vimos, do ponto de vista adotado pelo descritor:

a. Há uma perspectiva diacrânica, que busca identificar as identidades da langue


como o mesmo, de outro modo (a identidade em potência no estado um rea-
lizada como diferença em ato, no estado dois) em dois estados diferentes.
b. Há uma perspectiva sincrânica, que busca identificar a identidade da langue em
duas diferentes realizações suas na parole: no pensar de Saussure, o sincrónico
emerge no ato de comunicação, como perspectiva comum adotada pelos
in terlocutores: "A sincronia conhece uma única perspectiva, a dos sujeitos
falantes" (1972, p. 138), perspectiva essa que "apela sempre para dois
termos simultaneamente" (idem, p. 122) porque é assim que a língua
existe para a consciência dos falantes: como um estado de coisas coexis-
tentes,'a dado momento.

Estamos agora, contudo, mais interessados em um diferente ângulo de


abordagem do fenómeno verbal enquanto fenômeno histórico, contido na tese
saussurianado englobamento da parole pela langue. Com efeito, é novamente
Saussure o pioneiro no particular de fazer o ato individual da parole radicar no
fato social da langue, funcionando esta como o lugar teórico em que a fala pode
adquirir algum significado:

É preciso acrescentar uma faculdade de associação e de coordenação que se manifesta desde


que não se lida mais com signos isolados; é essa faculdade que desempenha o maior papel na orga-
nização da língua enquanto sistema [estrutura].
Mas, para bem compreender esse papel, é preciso sair do ato individual que é somente o
embrião da linguagem, e abordar o fato social. Entre todos os indivíduos assim ligados pela linguagem,
estabelecer-se-{t uma espécie de meio: todos reproduzirão --....: não exatamente, sem dúvida, mas apro-
ximadamente - os mesmos signos [lapso, por significantes] unidos aos mesmos conceitos. Qual é a
128 • A Identidade e a Diferença

origem dessa cristalização social? [... ] Se pudéssemos abarcar a soma das imagens verbais depositadas
em todos os indivíduos, tocaríamos o vínculo social que constitui a langue (iciem, pp. 29-30, jJassilll).

Primeira Noção de ComjJetência e Performance

Nos trechos em que recomenda "sair do ato individual, que é somente o


embrião da linguagem, e abordar o fato social", e quando acrescenta "se pudéssemos
abarcar a soma das imagens verbais depositadas em todos os indivíduos, toca-
ríamos o vínculo social que constitui a langue", temos a primeira configuração
clara, na história da lingüística, do conceito de competência social e individual
- conceitos esses, de resto, que ressurgirão, aqui e ali, em outros passos dos
estudos de Saussure: "A língua é o modelo coletivo da qual o depósito estocado
em cada memória é a variedade individual [... ]" (Godel, 1957, p. 157).
Que os conceitos saussurianos de langue e parole englobam e antecipam os
análogos da competência e da pelfonnance, na linha que vai de Humbolt a Chomsky,
vê-se bem na seguinte fórmula de irreversibilidade das dependências e das hie-
rarquias: "Pode-se, deve-se considerar a langue fazendo abstração da parole, mas
não a parole fazendo abstração da langue", e também em:

Na palawa há a associação de mna impressão acústica e de uma idéia. Tudo ocorre no cérebro.
Separemos a impressão acústica e retenhamos dela só uma lembrança. Quando separamos o que
produziu essa impressão [i. e., a jJeifo17nance] existe ainda toda a língua na mente [a competência],
por exemplo, do homem que dorme. Alguém que não esteja a falar [perfo17nance] possui em si todo
o sistema de valores (Saussme, ajJUci Godel, 1957, pp. 151-152).

Lidamos, nesse momento, com um historicismo radical, que faz residir a


razão de ser da parole na langue depositada na mente das pessoas como saber
implícito, competência estocada: "se pudéssemos abarcar a soma das imagens
verbais depositadas em todos os indivíduos, tocaríamos o vínculo social que constitui
a langue", dissera ele, antes; e agora: "quando separamos o que produziu essa
impressão existe ainda toda a língua na mente, por exemplo, do homem .que
dorme. Alguém que não esteja a falar possui em si todo o sistema de valores".
E, em outra parte, ainda: "Separando a langue da parole, separa-se ao mesmo
tempo: primeiro, o que é social do que é individual; segundo, o que é essencial
do que é acessório e mais ou menos acidental" (Saussure, 1972, pp. 29-30).
Essa é a afirmação do caráter radicalmente histórico do estruturalismo saus-
suriano: a parole só tem sentido na medida em que ela se faz a realização individual
de uma língua social. Esse caráter histórico não se alinha na mesma tendência do
dos comparatistas, de H. Paul, por exemplo, que remete a Franz Bopp, nem,
menos ainda, ao historicismo genético de Schleicher, que. remontaao biologismo
Intelpretaçâo da Obra de Ferdinand de Saussure • 129

evolucionista de seu tempo. Ainda que os respeite e cite como luminares de seu
ramo de saber, Saussure não concorda em absoluto com a convicção de seus pares
de que fora da explicação do historicismo genético, exogerado, não haja explicação
lingüística - e o futuro encarregou-se de demonstrar que ele tinha razão:

Nessas condições [diz Saussure] ou a explicação é sempre limitada e sempre fragmentária,


ou ela se torna quase metafísica. Com efeito, explicar lato nidus "ninho" por *ni-sd-os aproximado
de sed-ere "estar assente", não faz mais do que deslocar o problema de um grau para o passado, já
que a forma reconstruída necessita por sua vez de uma explicação histórica que não lhe poderíamos
dar ao infinito; acerca da natureza da língua, essa explicação não contribui em nada (ajJUdAmacker,
1975, p. 37).

o efeito da rejeição, por Saussure, de todo o critério historicista exogerado,


leva-o a classificar a lingüística em um novo domínio, por ele mesmo fundado, no
qual prevê deverão ser inscritas no futuro todas as ciências humanas e sociais: "Se
podemos classificar a língua, se, pela primeira vez, ela não parece caída do céu,
é que nós a inserimos na semiologia" ("II Curso de Lingüística Geral", ajJud
Amacker, 1975, p. 37).
Compreende-se: a ordem histórica da parole radica na sua qualidade de rea-
lização ocorrencial da langue; esta, por sua vez, é só uma modalidade particular
dentre noutras semiológias, que, na qualidade de conjuntos de signos conven-
cionais, dependem, todos, do contrato social, e, baseado nele, de umjulgamento
de identidades intersubjetivo: "O consensus social suposto pela língua exprime
uma conformidade dos hábitos de julgamento, ou, dito de outro modo, uma iden-
tidade nas idei1tidades aceitas" (Amacker, 1975, p. 40).
Essas tomadas de posição nos conduzem às questões correlatas, à arbitra-
riedade radical dos elementos da língua~

A Arbitrariedade Radical dos Elementos do Sistema.


A Distinçc70 Semiológica Arbitrá'rio/Simbólico e a Distinçc70 Lingüística
Arbitrário (Imotivado) /Imotivado Relativo

Como se acabou de ver, a relação parole versus langue é necessária, pois é


através do consenso coletivo, nojulgamento das identidades a que podemos reduzir
as diferenças da fala, que se garante a condição supra-individual da parole: todos·
os brasileiros concordarão em ver, através das diferentes pronunciações alofônicas
do Irl, em seus vários entornos de condicionamento contextuais, situacionais e
"normais" (feito IrI roulé, gutural, do interior do Estado do Rio, U\'Ular em regiões
do Nordeste, retroflexo na pronunciação caipira de São Paulo e Minas, obliterado
no final da palavra com o conseqüente alongamento da vogal anterior ~ "amar"
130 • A Identidade e a Diferença

pronunciado [a'ma:] - e, por vezes, até aspirado - [ko'hew] - , realizando "-


correu", diferentes modos de realizar o mesmo fonema /1'/, o arquétipo ideal de
uma mesma classe de sons funcionais do idioma, tal como ele existe na mente das
pessoas, na qualidade de esquema de entendimento que as autoriza a dizer que
elas apreendem a mesma coisa - o pensamento da identidade é o pensamento
de um arquétipo, de um programa do fazer ideal.
Mas, se a relação parole versus langueé, assim, necessária Uá que a parole, como
mostrou Saussure, não existe sem a língua), em trocajá a relação langue versus rea-
lidade é não-necessária, quer dizer, ela não é internamente requerida pelo sistema
mesmo da língua, pois que, se a função da língua é interpretar a realidade para
uma dada comunidade, essa interpreLc'lção varia de uma para outra coletividade,
em função mesmo da variação das línguas: não só porque o animal que português
chama de boi, o inglês chama de OX, o dinamarquês Ohse, o hindu por outro nome
qualquer, mas porque o que esses termos designam para cada uma dessas comu-
nidades de falantes são coisas diferentes, "animal de arar", para um, "animal for-
necedor de carne", para outro, "animal sagrado" para outro, ainda, e assim por
diante; dizer que alguém é comunista significou coisa muito diferente para um
membro desse partido, no Kremlin, e para um partidário do "macartismo", a inícios
dos anos 50, nos Estados Unidos, ou no Brasil de 64; o mesmo arco-íris que um
grupo africano divide em duas grandes zonas de cores, um grupo europeu divide
em seis ou sete cores diferentes etc. Assim, a relação língua e realidade, apesar de
histórica como a relação língua e fala, é, ao contrário dela, arbitrária por recortar
e aplicar-se a experiências histórico-culturais diferentes e se fundar numa inter-
pretação que, no final das contas, depende do modo particular com que dada cole-
tividade vive'u e vive sua relação com o mundo que a rodeia - no fundo, a própria
noção do que seja "natural" é arbitrária, porque é uma cultura que diz o que é a
natureza: o conceito de "natureza" não é natural, é cultural.
Saussure frisa a relação histórica e necessária da parole e da langue: "Os jul-
gamentos dos sl~eitos não são livres, são de natureza social, visto que eles lhes são
impostos pela prática da comunicação" (apudAmacker, 1975, pp. 40-41), mas frisa
também o reportamento histórico e arbitrário da languepara com a realidade ("os
julgamentos de natureza social") . Só nos damos con ta da "realidade extralingüística"
a partir do momento em que uma língua comunica, na parole, o efeito de sentido
"realidade extralingüística": "O vínculo que estabelecemos entre as coisas [entre
as realizações concretas das unidades lingüísticas, como indica o contexto] preexiste,
nesse domínio, às próprias coisas, e serve para determiná-las" (idem, p. 41).
Paradoxalmente, é essa condição de arbitrariedade radical que garante o
funcionamento normal da língua como uma instituição ao mesmo tempo imutável
(em sincronia) mas em perpétua mutação (em diacronia). E, a propósito, Saussure
distingue um ponto de vista semiológico e um ponto de vista lingüístico estrito:
Intelpretação da Oára deFerdinand de Saussure • 131

a. Do ponto de vista semiológico, dos sistemas de signos em sentido lato,


ele fala da oposição entre o arbitrário e o simbólico.
b. Do ponto de vista lingüístico, do sistema dos signos verbais em sentido
estrito, ele fala em termos de oposição entre o arbitrário imotivado e o
relativamente motivado:

Saussure faz uma diferença entre "arbitrário absoluto" e "arbitrário relativo" (CLG 180-184)
e invoca a noção de motivação relativa, que implica relações sintagmáticas e/ou associativas entre
os termos (CLG 182). De fato, Saussure marcou bem o alcance de seu princípio, na perspectiva sin-
crónica (imutabilidade do signo) como na perspectiva diacrónica (mutabilidade). Mas o COlll:neflete
aqui o transcorrer incerto das lições sobre La Languede 25 de abril ao 13 dejunho de 1911 (Godel,
1973, p. 61).

o mesmo Godel explica que no "II Curso de Lingüística Geral", em 1908,


Saussure havia se posicionado primeiro do ponto de vista semiológico (teoria do
signo), depois do pon to de vista propriamente lingüístico, como notamos (questão
das unidades). No "III Curso de Lingüística Geral", os dois pontos de vista se mes-
claram, interferindo um no outro:

Saussure passou, sem perceber, da distinção arbitrálio/silllbólico, que concerne aos signos em
geral [ponto de vista semiológico] para a distinção arbitrálio (illlotivado)/relativallle1lte lIlotivado, que
vale para os sistemas de signos que são as línguas [ponto de vista lingüístico]. É que os editores [do
COlll:5] introduzindo "imotivado" na lição em que o signo é ainda considerado no estado isolado
(CLG, p. 101; cf. SM, p. 125) niio esclareceram as coisas (idelll. p. 62).

Não podemos passar adiante sem antes tentar esclarecer a confusão. Em


nosso modo de ver, não há nenhuma contradição entre arbitrário e simbólico, de
um lado, e imotivado e relativamente motivado, de outro. Lembremos, antes do
mais, que no pensamento de Saussure a língua é um sistema semiológico como
outro qualquer, com as duas únicas diferenças de ser um sistema englobado - a
semiologia é o todo, a língua é uma parte dele; e segundo, é, ao mesmo tempo,
um sistema semiológico modelizado, secundário, relativamente à semiologia, Cl~o
papel é o de servir de modelo, no futuro, para o desenvolvimento dessa parte
específica sua, que trata só das relações entre os signos verbais:

Pode-se pois conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social [oo.];
nós a denominaremos sellliologia (do grego, séllleion, "signo"). Ele nos ensinará em que consistem os
signos, que leis os regem. [oo.] A lingüística não é mais do que uma parte dessa ciência geral, as leis
que a semiologia descobrirá serão aplicáveis à lingüística [oo.] (1974, p. 33).
132 • A Identidade e a Diferença

A partir do momento em que Saussure considera que a lingüística é uma


parte da semiologia, a distinção arbitrário (imotivado) versus relativamente motivado
que ele vê na língua é uma parte (uma subdivisão) da distinção maior, englobante,
arbitrário/ simbólico, que no seu en tendimento abarca todos os sistemas de signos
(é semiológica).
Observemos as coisas mais de perto. Em primeiro lugar, arbitrário - termo
de cobertura mais ampla, cover-word mais englobante - define, em Saussure, a
relação de conveniência figurativa (quer dizer, imagética) entre o significante e
o significado, como particulariza o seguinte trecho, em que compara o caráter
convencional, arbitrário, dos recortes que praticamos sobre a cadeia sintagmática
da expressão fazendo dados segmentos dela corresponder a determinadas idéias,
determinados conteúdos: "comparação com um boulevard que recebeu um nome
único, ou vários nomes que o dividem em segmentos" (Saussure, apud Godel,
1957, p. 39).
É a partir dessa observação, que põe em causa, de um lado, o caráter imi-
tativo do significante em relação ao significado (do pon to de vista figurativo, ima-
gético: significante imagem do significado = relação intra-sígnica motivada; signi-
ficante não imagem do significado = relação intra-sígnica imotivada), e, de outro
lado, o espaço de localização do signo (signo isolado: relação intra-sígnica arbi-
trária e imo tivada; signo con textualizado: relação in tra-sígnica arbitrária, mas rela-
tivamente motivada), que vamos compreender o pensamento de Saussure.
Com efeito, se o significante fosse uma imagem do significado (como
supõe uma certa concepção ingênua do signo icônico, eliminando as mediações
das convenções, i. e., da arbitrariedade), nenhum signo precisaria ser interpretado,
ele seria explicável em si mesmo, por si mesmo, independentemente de outros
signos do sistema da língua e do processo da fala. Nesse caso, porém, ele não
poderia exprimir nada mais além de si mesmo e, não podendo significar coisas
diferentes daquilo que ele é, perderia até mesmo a sua condição de significante.
Para que alguma coisa possa ser tomada como significante, converter-se em plano de
expressão de wn signo, é preciso que ela signifique algo diferente de si mesma: o signo é
sempre algo que está no lugar de alguma outra coisa. O que isso quer dizer é que;
afinal, a arbitrariedade do signo (da relação convencionada entre um signi-
fican te e um significado) é a precondição necessária para a existência da signi-
ficação. Como diz Reznikov,

a falta de vínculos naturais e de semelhança entre signos e objeto designado [correção: na teoria
saussuriana, entre significante e significado, já que para ele "o que o signo lingüístico une não é
uma coisa e um nome, mas um conceito de luna imagem acústica", COZIIS, 1972, p. 98] e a cons-
tatação de uma certa arbitrariedade em suas relações não só não supõem um obstáculo para a
importante função que o signo desempenha no processo cognoscitivo, senão que constituem a
Intelpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 133

condição necessária para a formação de noções que reflitam adequadamente os objetos e fenômenos
[... ] em seus aspectos gerais e essenciais (1972, pp. 18-19).

Com relação à localização do signo, Saussure distingue entre um arbitrário


absoluto e um arbitrário relativo, mas esclarece que por "arbitrário" entende,
agora, "imotivado":

o princípio fundamental elo arbitrário elo signo não impeele ele elistinguir em cada língua
o que é radicalmente arbitrário, quer dizei; imotivado, daquilo que o é relativamente. Uma parte apenas elos
signos é absolutamente arbitrária; em outros interyém um fenômeno que permite reconhecer g:-aus
no arbitrário sem o suprimir: o signo poele ser relativamente motivado.
Assim, vinte é imotivado, mas dezenovenão o é no mesmo grau, ,isto que ele evoca os termos elos
quais se compôem e ontros que lhe são associados, por exemplo, dez, nove, vinte e nove [...] (1972, p. 181).

Como se vê, o arbitrário absoluto refere-se à instituição do signo tomado


isoladamente, e o segundo refere-se ao signo enquanto elemento de um contexto,
sujeito, portanto, aos fenômenos de regência e concordância etc. Nas palavras
compostas e nas formas flexionadas existe uma motivação relativa,já que elas "se
constroem sempre de modo idêntico para representar idênticas relações de sig-
nificados" (Dinneen, 1970, p. 280).
De modo parecido, Saussure distinguia o signo verbal isolado, enquanto
arbitrário imotivado, e o símbolo, na qualidade de arbitrário relativamente
motivado: "A propósito do termo símbolo: temos grande escrúpulo em empregar
esse termo. O símbolo tem o caráter de não ser jamais completamente arbi-
trário; o símbulo não é vazio. Há um rudimento de vínculo entre a idéia e o
signo, no símbolo. Balança, símbolo da justiça" (apud Wunderli, 1976, p. 56). É
possível ver no que Saussure pensava: os símbolos representam noções abstratas
(idéias) por meio de objetos materiais que dão dessas mesmas noções umarepre-
sentação de algum modo mim ética, fundada em algum tipo de semelhança entre
significante e significado, mas, ao mesmo tempo, sempre deficiente ou parcial em
relação ao conjunto das noções simbolizadas. Isso se dá porque o símbolo não
é vazio: ele não é o todo, mas é pelo menos uma parte do todo, que é o conteúdo
abstrato com o qual ele se relaciona; comojá deixamos escrito em outra obra:
"Assim, o conceito de justiça é muito mais amplo do que o conteúdo abrangido
pela balança que recorda apenas um dos atributos da justiça, a igualdade; e o
conjunto de noções ligadas ao cristianismo desborda, de muito, o primeiro sig-
nificado da cruz, que recorda, apenas, o momento supremo dessa doutrina"
(Lopes, 1976, p. 44).
Tendo isso em mente, podemos dar a seguinte configuração visual da teoria
do arbitrário, em Saussure:
134 • A Identidade e a Diferença

Arbitrário

I I
Arbitrário Imotivado Arbitrário Relativamente
_ _ _ _ _1 _ Motivado

I SÍM~OLO I
SIGNO VERBAL ISOlADO

SIGNO VERBAL
CONTEXTUALIZADO

Figura 10: Classificaçào dos Signos segundo a Ivloti\'açào da sua Arbitrariedade.

A Dialética da Sincronia e da Diacronia,


Permanência e Nludança da Convenção Arbitrada

Paradoxalmente, é essa condição de arbitrariedade radical do signo verbal


que garante o funcionamento normal da língua como uma instituição ao mesmo
tempo imutável, em sincronia, e em perpétua mutação, em diacronia. A formulação
dilemática dessa questão recebe, em Saussure, um processamento dialético: de
um lado, para garantir um mínimo de inteligibilidade na comunicação, a parole
deve man ter um mínimo de parcialidades iguais no julgamento de iden tidade dos
interlocutores, sob pena de eles não se compreenderem em absoluto - não
"falarem a mesma língua" (o que compreenderia um xavante que fale unicamente
sua língua materna ouvindo um moscovita falar com ele em russo?).
É lógico que esse quantum de identidade reconhecível como informação par-
cialmente compartilhada, comum aos que se comunicam, se deixa apreender graças
ao contrato social que repousa, em última análise, como vimos, num arbitrário
radical que ambos assumem e aceitam acerca das equivalências que se devam efetuar
entre determinados segmentos da cadeia de significantes e determinados signi-
ficados recortados por eles. Por outro lado, ao se reproduzir na cadeia da fala, .
durante a conversação, essa mesma convenção de correspondências aceitas entre
segmento significante, em um plano, e segmento significado, em outro, sevê cons-
tantemente deslocada, em virtude de todo ato de comunicação assimilar-se à natureza
do acontecimento, cuja característica básica, enquanto evento, é ser uma espécie
de happening, acontecimento irrepetível em sua integralidade. Toda comunicação
é, em algum grau, violadora das convenções vigentes, as quais, precisamente por
serem "arbitrárias", podem e devem variar, em todos os casos, dentro de certos
limites (pessoalmente, estou convencido de que em toda a comunicação verbal
existe sempre uma variação da ordem de 30% entre a informação transmitida pelo
fntelpretaçâo da OfJra de Ferdinand de Saussure • 135

enunciador e a recebida pelo enunciatário; esses 30% assinalam a quantidade de


"ruído", quer dizer, a ta,'(a de informação não-programada existente em qualquer
ato de comunicação, estando vedado, em qualquer caso, que se atinja quer o índice
zero, da não-compreensão absoluta, quer o índice um, da compreensão total).
Aproximadamente a mesma coisa pensava o autor do Cours:

Esses dois fatos são inseparáveis. A qualquer instante, a solidariedade com o passado põe em
xeque a liberdade de escolhas. Dizemos homem e [{Ia porque antes de nós se dizia homem e cão. Isso
não impede que h,~a no fenômeno total um vínculo entre esses dois fatores antinâmicos: a con-
venção arbitrária em virtude da qual a escolha é livre, e o tempo, graças ao qual a escolha se acha
fixada. É por ser arbitrário que ele não conhece outra lei além da tradição, e é por fundar-se na
tradição que ele pode ser arbitrário (Saussure, 1972, p. 108).

Esse trecho, não inteiramente transparente, recebeu a seguinte nota de


rodapé dos editores: "Erraríamos se reprovássemos a Saussure ser ilógico ou
paradoxal atribuindo à língua duas qualidades contraditórias. Com essa oposição
de dois termos que se chocam ele quis somente marcar fortemente a verdade de
que a língua se transforma sem que os sl0eitos possam transformá-la. Pode-se dizer
que ela é intangível, mas não inalterável" (idem, p. 108, nota). Mas, Saussure continua:

Em certo sentido, pode-se falar ao mesmo tempo da imutabilidade e da mutabilidade do signo.


Em últim,l análise, os dois fatos são solidários, o signo está no caso de se alterar porque ele continua.
O que domina em toda alteração é a persistência da matéria antiga; a infidelidade ao passado é só
relativa. Eis porque o princípio da alteração se funda sobre o princípio da continuidade (idem, ibidem).

Em cada ato comunicativo estamos diante de uma parole que reproduz de


forma parcialmente diferente e ao meSmo tempo parcialmente igual a mesma
coisa, a saber, as unidades idênticas da langue, no nível imanente. À unidade
invariante, mas abstrata, da língua, corresponde a unidade variante e concreta da
parole. Como é a parole que opera a mediação real entre o fato diacrónico do
passado e o fato diacrónico do futuro, diremos que a diacronia existe em sincronia,·
exatamente como ocorre com essas duas dimensóes que se tornam contempo-
râneas nossas a cada instante da nossa existência pessoal, o passado e o futuro,
sincronizando-se, pela operação da síntese, na forma do presente que vivemos.
Em resumo: cada unidade de um sistema semiótico é sempre uma síntese - entre o ser
e o não-ser, entre a identidade e a diferença, entre os dois pólos de um mesmo
eixo, os dois funtivos de uma mesma função, os dois termos-objetos de uma mesma
estrutura elementar que podemos pensar, numa perspectiva sintética, feito um
complexo unitário, uma unidade, S, e podemo's também pensar, numa perspectiva
analítica, feito uma dualidade, SI e s2'
136 • A Identidade e a Diferença

Assim também a identidade na languevem a realizar-se como diferença na


parole, e um fato presente da comunicação não é mais do que uma sincronização,
operada, agora, entre um estado de língua passado (cujo limite de validade se
demarca no arcaísmo) e um estado de língua futuro (cujo limite embrionário é
o neologismo). Uma coisa não existe sem a outra, uma coisa remete à outra, cicli-
camente, sem cessar. Virar as costas para esse jogo de espelhismos é deixar de
apreender o funcionamento dialético da doutrina de Saussure, privilegiar a con-
sideração de um só ponto de vista, uma só perspectiva, e, em conseqüência, falsear
o verdadeiro sentido das suas dicotomias.
Se, desse modo, a sincronia não é mais do que uma operação de síntese rea-
lizada no aqui e agora imediatos de cada ato de comunicação, entre o que está
morrendo e o que está nascendo no campo das convenções de um sistema semiótico,
não nos resta mais do que repetir Santo Agostinho, que viu que "o passado existe
agora; ofuturo existe agora".
Vem a propósito, aqui, repetir um fragmento de Saussure a que já se fez
menção há pouco:

[... ] comparação [da história de uma língua] com um boulevardque recebeu um nome único,
ou vários nomes que o dividem em segmentos. Assim também, na evolução de uma língua, só se
podem fazer divisões arbitrárias. Não há nunca caracteres permanentes; há somente estados de
língua que são perpetuamente a transição [sínteses] entre o estado da véspera [o passado] e o de
amanhã [o futuro] (ajmd Godel, 1957, p. 39).

Uma Teoria Semiolingüística Não-Tepresentacional: A Função Modelizante da


Língua Natural

Saussure esboça, com sua explícita aversão ao nomenclaturismo ("a língua


não é uma etiqueta"), uma teoria não-representacional da língua:

Por oposição à parole [... ] a langueé compreendida como a rede abstrata que, através de suas
malhas arbitrárias, dá uma forma à substância da parole, nos dois planos de expressão e do conteúdo:
assim, os significantes são, na langue, classes de realizações fonéticas da parole, como os significados -
são, na lnngue, classes de realizações semânticas (os sentidos) da jJarole, como mostrou Prieto (Amacker,
1975, p. 95).

A língua surge, então, como um sistema modelizante cuja função primeira


não é exteriorizar conteúdosjá prontos, como pensam ainda hoje os semanticistas
realistas, mas, ao contrário, produzir o pensamento lógico, articulado - dar forma
à massa amorfa dos conceitos caó ticos, à substância do conteúdo: "Nem as unidades
de 'som' nem as do 'pensamento' estão [... ] circunscritas de antemão no interior
das 'nebulosas informes' do pensamento e do som" (idem, p. 19).
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 137

É assim que essa massa amorfa, por meio de "um conjunto de delimitações,
de articulações (articuli) [recortes] que tornam descontínua a massa das reali-
zações fõnicas e a massa dos sentidos" (Saussure, 1972, cap. VII), se converte em
pensamento articulado, verbalizável.
Através da enunciação das unidades-identidades assim construídas, dessa
transformação do caos originário em logos - "no princípio era o verbo" - , se
cumpre a função modelizante da língua natural:

o papel da linguagem re!atiyamente ao pensamento não é o de ser um meio fónico, um


meio material de explicar os pensamentos [... ]. A virtude da linguagem é diyidir [o caos do pen-
samento não-articulado] em unidades [...]. O terreno lingüístico é o da articulação [os recortes
atraYés dos quais a língua reconstrói cada experiência promoyendo uma correspondência arbitrária
entre os pensamentos e os segmentos de sons] artiCllli, pequenos membros em que o pensamento
adquire yalor por [intermédio de] um som (Saussure, ajmdAmacker, 1975, p. 19).

E no Cours, explanando sua visão do circuito da fala:

O ponto de partida do circuito [da fala] está no cérebro de uma [pessoa], por exemplo, A,
em que os fatos de consciência, que chamamos conceitos, acham-se associados ãs representações [... ]
ou imagens acústicas que servem para a sua expressão [ ] um conceito dado instala no cérebro
[do destinatário] uma imagem acústica correspondente [ ] no cérebro [dá-se] a associação psíquica
dessa imagem com o conceito cOlTespondente (Saussure, 1972, p. 28).

Sincronia e Diacronia como Perspectivas da Comunicação Real e da Comunicação


Realizável: A Sincronização Operada pelo Ato de Enunciação

Para Saussure, o plano de conteúdo, do significado, dos conceitos ou dos


valores, e o plano de expressão, do significante, ou da imagem acústica, funcionam
em consonância sincrônica: "A língua é um sistema cujas partes todas podem e
devem ser consideradas na sua solidariedade sincrônica" (idem, p. 124).
As razões que ele expende para o predomínio da sincronia sobre a diacronia
apoiam-se em argumentos de dois tipos: a. da ordem da comunicaçâo: "a sincronia
conhece uma só perspectiva, a dos sujeitos falantes", e "o aspecto sincrônico pre-
domina sobre o outro [o diacrônico] porque para a massa dos falantes ele é a ver-
dadeira e única realidade" (idem, p. 128); b. da ordem da significaçâo: "o fato da sin-
cronia é sempre significativo".
Mas é de vi tal importância perceber que o entendimento de Saussure se desenvolve
continuamente em um percurso dialético; no seu entender, a sincronia (ao contrário do
que lhe foi, por equívoco, atribuído porJakobson e muitos outros) não exclui a
diacronia; antes, a engloba.
138 • A Identidade e a Diferença

Essa relação de sincronia (englobante) versus diacronia (englobada) explica o


interesse que o mestre demonstrou, desde os seus tenros anos do Essai sur les
langues, pelas questões da identidade e da diferença, da permanência do sistema
em competência e da mudança do sistema na peJjonnance da parole, da sincronia
e da diacronia dentro das quais ele encerrava o jogo da "mutabilidade" da fala
e da "imutabilidade" do sistema a ela subjacente - da sincronia e da diacronia,
enfim. Ele viu, por exemplo - para retomar agora o problema da oposição
típica de Saussure entre o acontecimento e a analogia na sua relação com a
questão da identidade e da diferença - que o acontecimento da parole tende a dife-
renciar as identidades da langue, realizando-as a cada vez de modo diferente, ao
passo que a analogia tende a restabelecer a simetria do sistema, reequilibrando-o em
um novo estado, uma nova sincronia:

A cada instante [em sincronia], ela [a língua] implica ao mesmo tempo um sistema esta-
belecido [que provém do passado] e uma eyolução [que a arremessa no nlmo do futuro]: a cada
momento [em sincronia] ela é uma instituição amaI e um produto do passado (idem, p. 24).

A equação saussuriana sincronia = imutabilidade deve ser compreendida, pois,


como permanência relativa da relação convencionada entre o plano do signi-
ficante e o plano do significado, no nível da langue. Mas, existindo, na intersub-
jetividade inerente a cada ato comunicativo que põe em presença enunciador e
enuncia, uma transtemjJoralização da mensagem - pois que pode dar-se o caso de
mediarem anos até que a mensagem emitida encontre o seu destinatário, como
ocorre agora conosco, lendo o COUTS-, o signo surge como a entidade que efetua
a transação entre o que é relativamente invariante e idêntico, no nível da langue,
e aquilo que se manifesta necessariamente, dada a linearidade dos significantes,
como variante e diferente, no nível da parole. Há, portanto, na enunciação; o ato
que efetua a sincronização num novo continuum dos dois fazeres, o fônico e o
auditivo, envolvidos na comunicação; essa concepção sincronizadora da enun-
ciação mostra bem, ao ver de Saussure, que a diacronia existe em sincronia.

Enunciação
I
o fazer sincrético (sintetizador) obtido pela sincronização
do "falar/ ouvir" constitutivo do turno
I

o fazer pressuposto do enunciador o fazer pressuponente do enunciatário


(antes: falar) (depois: ouvir)

Figura 11: Sincronização Operada pelo Ato de Enunciação da Parole.


Inte1pretação da Obra deFerdinand de Saussure • 139

Vê-se bem que estão em jogo, aqui, duas ordens de coisas complementares,
constituintes da visão dialética de Saussure:

a. De um lado, o problema da passagem da potência ao ato, que se cumpre


no fazer enunciativo, ao mesmo tempo uno e dual, contínuo e des-
contínuo.
b. De outro, o processamento cíclico desse fazer, através do trajeto efetuado
de um a outro pólo das dicotomias.
As unidades, identidades da Zangue, são concernen tes ao estado de potência
(elas existem na com petência dos interlocutores), mas a passagem dessa potência
ao ato, no momento da peiformance enunciativa, introduz sempre, com o fator
acontecimento (a fala é um acontecimento), algum fator de imprevisibilidade,
devido ao princípio da incerteza que governa o acontecimento - todo aconte-
cimento é, na sua própria ordem, rigorosamente irrepetível; esse fato r de impre-
visibilidade é o responsável pela transformação do que é idêntico no nível da
Zangue (em potência) no que é diferente no nível da fala (em ato):

A questão das identidades é pois a primeira e a mais geral: pois, de um lado, o problema da
langue (natureza do signo, características das entidades lingüísticas) e da semiologia inteira que está

em jogo desde o instante em que se reflete sobre o laço de identidade que faz com que em enun-
ciados diferentes e sucessivos [na descontinuidade diferenciadora da jJarole] se reconheça a mesma jJalavra,

a mesma unidade significativa [as mesmas identidades da langue] (Saussure, ajJud Godel, 1975, p. 128).

A observação do que ocorre na passagem da potência ao ato - da com-


petência à pelfonnance - ensina que não é o passar do tempo que causa a trans-
formação do idêntico em diferente (e, Zogo, em nova identidade), é, antes, a transformação
que causa o passar do tempo; esse entendimento é a chave para compreender a
afirmação de Saussure:

Como sevê (escreve ele no ms. fI'. 3958-8, hoje na Biblioteca de Genebra), no fundo, a inca-
pacidade de manter uma identidade certa não deve ser levada à conta dos efeitos do TemjJo - aí está o
erro evidente dos que se têm ocupado dos signos - mas está dejJositado de antemão na jJrójJlia consti-

tuição do ser que se escolhe e se obserua como um organismo, quando ele não é mais do que a com-

binação fugaz de duas ou três idéias [... ] (ajJud WunderJi, 1976, p. 54).

No que diz respeito ao procedimento cíclico do fazer enunciativo, cons-


trangido a se efetuar de um para o outro pólo das dicotomias, o que se patenteia
é que em tais dicotomias um termo-objeto polar não funciona sem uma referência
explícita (no eixo sintagmático) ou implícita (úo eixo paradigmático) ao outro
termo-objeto, seu complemento, na medida em que ambos são os constituintes,
140 • A Identidade e a Diferença

no nível menor, mais baixo, da unidade categorial mais abrangente, englobante,


por ambos constituída (5), no nível mais alto: dizer SI /macho/ implica necessa-
riamente dizer nâo-s2 /não-fêmea/; dizer 52 /fêmea/ implica dizer nâo-s l /não-
macho/, e a associação, na mente do ouvinte, de SI /macho/ + S2 /fêmea/, no
nível menor, constrói a unidade englobante S /sexualidade/, no nível maior.
Assim - repetimos - nas dicotomias de Saussure, um termo-objeto (sI ou
s2) não funciona sem o outro, seu complemento; tomados em disjunção, como
partes em que se decompõe uma unidade categorial de nível mais elevado, ambos
definem aforma dessa unidade; tomados em conjunção, contudo, é essa unidade
maior constituída que define o sentido (ou o valor) de cada um desses termos-
objetos. Por toda a parte se instala um cOl~unto de remissões cíclicas e reversíveis;
não há sl~eito sem objeto, diacronia sem sincronia, significado sem significante,
jJarolesem langue, forma sem substância, identidade sem diferença. Uma coisa não
existe sem a outra, uma remete à outra, ciclicamente, sem cessar.
Saussure não se cansa de advertir contra os perigos de se encarar o objeto
do estudo lingüístico de uma única perspectiva, de um só lado:

Assim, de qualquer lado que se aborde a questão, em nenhuma parte o objeto integral da
lingüística se oferece a nós; encontramos em toda a parte esse dilema: ou nos atemos a um único
lado de cada problema, arriscando não perceber as dualidades atrás assinaladas [a saber, as dico-
tomias forma/substância, língua/fala, sincronia/diacronia]; ou, então, se formos estudar a lin-
guagem por vários lados ao mesmo tempo, ° objeto da lingüística vai parecer um emaranhado
confuso de coisas heteróclitas, sem vínculo entre si (1972, p. 24).

Nasce aqui a sua recomendação de tomar a languee não a jJarolecomo objeto


de estudo da lingüística: "Não há, conforme pensamos, mais do que uma solução
para todas essas dificuldades: é preciso que nos coloquemos inicialmente no
domínio da língua, tomando-a como norma de todas as demais manifestações da
linguagem" (idem, p. 25).
É espantoso comprovar que os lingüistas não se deram conta dessas posições
capitais na obra de Saussure, ou, se as perceberam, não tiraram delas as conclusões
que elas impõem. O funcionamento dialético de suas dicotomias reflete o funcio-
namento dialético do pensamento que inspira toda a sua doutrina. Não lidamos
aqui com uma simples minúcia, uma questão de detalhe, ou com o capricho de
um pensamento lacunar tortuoso, que muitas vezes parece colocar "Saussure
contra Saussure", ou prendê-lo nas malhas de contradições insolúveis. Ao con-
trário, esse funcionamento cíclico está por toda a parte, essa concepção dialética
é a própria substância da revolução epistêmica e metodológica dele. De caso
pensado, reproduzimos de vários locais dezenas de passagens suas, com o intuito
de deixar claro que não se trata, aqui, com a generosidade inçerta, de inferências
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 141

indebitamente induzidas ou com especulações bem-intencionadas de fragmentos


obscuros, cuja interpretação parcial seja abusivamente extrapolada; ao contrário,
há dezenas de voltas ao mesmo mote em toda a obra de Saussure, não só no Cours,
bem ou mal, de alguma forma lido, mas também na JV1émoire, tão injustamente
esquecida, e nos seus "projetos" de semiótica da narrativa e de semiótica da poesia,
apressadamente postos de lado com um muxoxo de impaciência, como se se
tratasse de divertissements pueris de um homem que deu todas as provas de ser
dono de um talento muitas vezes superior ao de qualquer outro pensador do seu
mesmo campo, à época, e que nessas "infantilidades" empenhou bom número
dos melhores anos de sua vida. E, no entanto, fechar os olhos para o que aí se diz
é perder de vez a única oportunidade que teremos de captar o funcionamento
dialético do pensamento e da doutrina de Saussure: pensar as suas dicotomias
como antinomias puras, de termos irredutíveis um ao outro, significa paralisar o
funcionamento dinâmico de um modo de pensar poderoso e corajoso, que, exa-
tamente por ser dialético, fez dele um contemporâneo do futuro.

Saussure, Contemporâneo do Futuro: A Dialética da Semiolingüística Geral Expressa


nas Dicotomias Fundadas na Percepçáo da Identidade Subjacente á Diferença

la tâche n 'est jJoint de contellljJler ce que nul n 'a encore contem/Jlé,


mais de méditer comme jJersonne n'a encore médité sur ce que tout
le monde a devant ses yeux.
HEGEL

Os estudos lingüísticos se desenvolveram, desde os gregos do século N a.c.,


no Ocidente, até os neogramáticos de finais do século passado, pedindo emprestado
às outras ciências os modelos que utilizavam. Foi assim que eles se moldaram suces-
sivamente pelas grades epistemológicas da filosofia, da retórica, da literatura, da
lógica, da fisica, da psicologia, da biologia, ao sabor da disciplina da moda.
Com Saussure, porém, alingüística teve um "segundo nascimento", Foi com
ele que ela se tornou a primeira das disciplinas não-pertencentes ao quadro das
matérias "exatas" a receber uma formalização rigorosa e a elaborar uma metalin-
guagem científica Cl~as propriedade e adequação não se aferiam mais, como na
etapa positivista da neogramática, por sua conveniência a uma "realidade exterior"
pressupostamente dada, mas, sim, pelo grau de sua coerência interna, da consis-
tência teórica apurada no processo das interdefinições, pela sua capacidade de
efetuar não mais descrições históricas pseudo-exaustivas, mas, antes, descrições
de traços pertinentes, dentro de níveis nitidamente prefixados.
142 • A Identidade e a Diferença

Tudo isso lhe valeu ser reconhecida, a tempo, como a ciência-piloto por
excelência do século XX, fornecedora de categorias críticas, conceitos, processos,
métodos e modelos explícitos para as demais disciplinas contidas nas áreas daquilo
que, antes de Saussure, só metaforicamente era chamado de "ciências humanas
.. "
e SOCIaIS.

É im possível destacar, hoje, qual tenha sido a maior contribuição de Saussure


para esse desiderato: cada época primou pela observação de determinados aspectos,
cada tendência fez a sua opção por uma obra ou um problema em particular -
os contemporãneos dele não conheceram senão o autor dessa magnífica NIémoire,
que "uma autoridade" como Meillet considerou "o melhor livro jamais escrito
sobre a gramática comparada indo-européia"; cada leitor, enfim, leu o "seu"
Saussure. Como na historieta dos cegos que queriam conhecer o que era um
elefante, na medida em que cada círculo, cada grupo ou fração estruturalista
pinçou das páginas do mestre a parte ou o fragmento que melhor parecia homologar
seus próprios posicionamentos, todos os que escreveram sobre o valor da obra de
Saussure divergiram, em um ou outro ponto. Prova inconteste de que se trata de
uma obra viva, que não se fechou numa porção de terreno conquistado, nem se
datou, mas, inversamente, continuou a crescer, revelando sempre mais aspectos
insuspei tados para cada nova geração de lingüistas que o mundo conheceu, depois
de seu próprio tempo. Seja qual for, entretanto, a lição ou a postura preferida por
cada um de nós, não resta dúvida de que algumas delas tiveram sempre o condão
de dizer algo de novo a cada um dos pesquisadores que as perquiria: nesse diálogo
ininterrompido que manteve sempre com os seus sucessores é que Saussure se
tornou, para lá e acima de seus erros e de seus acertos, "contemporâneo do futuro".
Umas' das características mais fecundas de seu magistério consiste numa
inesgotável capacidade de estimular o pensamento do novo, de sugerir a cada um
de seus leitores a abertura de uma porta até então fechada, de parecer; enfim,
estar a dizer, no instante em que o leio, um pouco ao menos daquilo mesmo que
eu pensava, que eu queria dizer, cuja expressão mais adequada buscava, sem a
encontrar. Essa é, de fato, a única pedra de toque confiável do cientista genuíno;
condenado, na medida mesma em que exprimem "a verdade de sua época", relativa
ao estágio de conhecimento próprio a cada período, a ver essa "verdade" superada,
no processo das ultrapassagens históricas, pelas "verdades" da geração seguinte,
o máximo galardão que o autêntico pesquisador pode esperar é que essa ultra-
passagem se dê passando por dentro de suas próprias idéias, incorporadas no
próprio cerne do pensamento novo a que ele serviu de ponto de apoio e, desse
modo, de algum modo, ajudou a gerar.
Essa "propriedade seminal" do discurso de Saussure fez dele uma obra aberta
a infinitas releituras, objeto de um constante a&,oiornamento, capaz, por isso, de
inspirar pontos de vista insuspeitados sobre questões da maior atualidade.
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 143

Veja-se, por exemplo, o "percurso narrativo" efetuado por suas célebres


dicotomias. Em um primeiro momento, todos as leram unicamente como anti-
nomias, como se as noções nelas implicadas, que eram (como não podiam deixar
de ser, por construírem eixos) apenas parcialmen te diferen tes e respectivamen te
diferentes (um termo-objeto relativamente ao termo-objeto oposto, dentro do
mesmo eixo; e um eixo relativamente a outro eixo), como se as noções nelas
implicadas que eram, rejJito, ajJenas jJarcialmente diferentes, fossem totalmente dife-
rentes. Os conteúdos que a barra de suas figuras delimitava foram barrados,
portanto, e ficou em moda interpretar a sincronia, digamos, como excluinte da
diacronia, a langue como excluinte da jJarole, e assim por diante. Quiçá por se
viver, ainda, uma era do pensamento descontínuo puro, sem mediações, a barra
barrava, de fato, qualquer possibilidade de solução para uma diferença radical,
sen tida e vivida como uma con tradição irredutível entre dois conceitos an típodas.
É assim, por exemplo, que gente da estatura de Jakobson (que, diga-se de
passagem, em que pese tudo o que lhe devemos, nunca foi grande teórico) leu
sempre as dicotomias de Saussure. E, no entanto, Saussure sempre advertiu,
explicitamente, que "o princípio da alteração se funda sobre o princípio da con-
tinuidade" (1972, p. 108); que "não [se deve considerar] a jJarole fazendo abs-
tração da langue" (ajJud Godel, 1957: p. 151); que, tratando-se do significante e
do significado, "esses dois elementos estão intimamente unidos e se invocam
mutuamente" (1972: p. 99); que toda e cada "unidade lingüística é uma coisa
dupla, feita da aproximação de dois termos" (idem, p. 98); e, finalmente, que
"não se pode deixar um lado [das dicotomias] senão por abstração, e isso tem
sempre um perigo: o de atribuir a um só aspecto o que convém igualmente ao
outro" (ajJud Arhacker, 1975, p. 44).
Saussure mesmo, portanto, nos deixou em posição de ver a necessidade de
transpor a censura das barras dicotômicas; que não são mais do que notações de
relações juntivas, aptas para se resolver em cada caso, dependendo da perspectiva
que o descritor adote para o seu trabalho, numa disjunção - quando, de uma
perspectiva analítica, ele esteja interessado em descrever a forma de uma unidade
Sdecompondo-a em seus constituintes de nível mais baixo, SI e S2 - ou numa con-
junção - quando, postado do ponto de vista criador de uma perspectiva sintética,
importe-lhe mais explicar o sentido ou valor de um termo-objeto, SI /macho/, por
exemplo, como o complemento de um outro termo-objeto contrário, s2/fêmea/,
compondo-se os dois para constituir a categoria totalizada S /sexualidade/.
Nesse particular, o professor suíço segue a lógica dialética de Hegel. Tal
como Hegel, ele não nega a lógica formal:

Hegel não nega a lógica formal. Ele querreconciliar o princípio de identidade com seu oposto,
a contradição. A lógica formal está limitada por suas afirmações [... ]: A é A. É a lógica de um modo
144 • A Identidade e a Diferença

simplificado, abstrato, definido, incapaz de eXjJlimir o movimento, o devil~ a contradição inerente às coisas.
A lógica dialética não diz A é mio A, o que seria absurdo, mas se A corresponde a uma realidade, se
não for uma tautologia sem significação, A possui em si mesmo um devir qne o ultrapassa: A é it e
tambémlllais do que A (Grawitz, 1976, p. 4; grifos meus).

Como diz H. Lefebvre: "Enquanto a lógica formal afirma que uma proposição
deve ser verdadeira ou falsa, a lógica dialética declara que toda proposição que
possui um conteúdo real é ao mesmo tempo verdadeira efalsa, verdadeira na medida em
que ela é ultrapassada, falsa se ela se afirma absolutamente" (apud Grawitz, 1976, p. 5;
grifos meus). É o pensamento de Hegel, para quem "nada há sobre a terra e no
céu que não con tenha em si mesmo o ser e o nada" (idem, ibidem); mas é, também,
o pensamento de Saussure. Com efeito, o autor da Nlémoire e do Cours poderia
perfeitamente bem firmar a página em que Lefebvre descreve o percurso do pen-
samento dialético, segundo Hegel:

Ao primeiro termo imediato da afirmação sucede um segundo termo no mesmo plano, mas
que o completa, negando-o. Os dois termos agem e reagem um sobre o outro. O terceiro regressa
ao primeiro negando o segundo e os ultrapassa também, a ambos. A unidade do mundo exprime-
se em Ulll princípio de identidade que se tornou concreto e vivo por meio de sua vitória sobre as
contradições (idem, ibide/ll).

Encaradas desse modo, todas as dicotomias saussurianas deixam de ser


sentidas como antinomias puras, com as quais não poderíamos senão produzir as
descrições estáticas de uma morfologia - que a Saussure sempre aborreceu - ,
passando a valer como etapas de um processamento dialético,

a. fixado um termo de partida, SI' digamos, /macho/, como tese,


b. seu contrário, s2 /fêmea/, funcionaria como antítese (até aqui a pro-
priedade disjuntiva da barra), ao passo que
c. da conjunção dos dois termos antitéticos, SI /macho/ e s2 /fêmea/,
surgiria a categoria de nível maior - o metatermo constituído, S/sexua-
lidade/, como síntese.

Aqui se vê que uma mesma dualidade fundamental, que atravessa como


propriedade paramétrica, dando-lhe coesão e coerência, toda a obra de Saussure
- desde o seu infantil Essais S1lr les langues dos quinze anos até suas derra-
deiras lições no "III Curso de Lingüística Geral", passando por suas manipu-
lações anagramáticas e especulações semionarrativas - vem a evidenciar a
estrutura elementar da significação, que constitui o fundamento.de todas as dicotomias,
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 145

na oposlçao de nível profundo de a identidade versus a diferença. Essa é a


dicotomia fundamental, de nível profundo, sobre a qual se constroem todas
as demais dicotomias, do nível imanente da Zangue (um patamar acima do nível
profundo) e do nível de manifestaçào da paTOZe (um patamar acima do nível
imanente da Zangue).
Distinguimos, aí, três níveis:

a. O nível profundo, em que uma unidade qualquer de um sistema semiótico


pode receber quer uma form ulaçào positiva (na estrutura aI terna sI versus
s2)' quer uma formulaçào negativa (na estrutura subalterna não-sI versus
- -
nào-s2 - transcritas sI versus s2); da articulaçào dessas duas estruturas,
positiva alterna com a negativa subalterna, na forma de um esquema
espelhado (em que uma das estruturas surge, qual se a víssemos num
espelho, como a construção anti-simétrica da outra), temos o quadrado
semiótico de Greimas:

b. O nível imanente, do sistema, em que qualquer unidade do sistema vem


a definir-se com a síntese de dois traços antitéticos, um positivo (a tese)
e um negativo (a antítese) ,em cOl"Uunçào; exemplo: a definição estrutural
de uma consoante, 5, feita como a síntese de um traço s2/consonanti-
cidade/ mais o traço SI /não-vocalicidade/:

sI /vocalicidade/ s2 / consonanticidade/
-----

VOGAL CONSOANTE

52 / nào-consonanticidadei Si / nào-vocalicidade/
146 • A Identidade e a Diferença

c. O nível de manifestação, do processo (da paroZe ou discurso em que a


consoante qualquer, digamos Itl, contemplada no nível imanente do
sistema, como esquema ou programa da língua, estocada em compe-
tência - da ordem da potência, portanto - , vem a realizar-se, na per-
jà rmance discursiva, como realização diferencial do mesmo (toda passagem
do estado de potência ao ato, através do fazer - no caso, o fazer do
enunciador - , é, como vimos, transformadora do ser potencial: assim,
a consoante Itl, que é, no código fonológico da Zangue portuguesa, lin-
guodental (o que pressupõe "não-linguopalatal"), surge, na pronun-
ciação brasileira, no contexto {t + e} ou {t + i}, realizada como linguo-
palatal [c] (lê-se "tchê"):

['dwêjci] (e não I 'dwej tel, "doente")

Foi Saussure o primeiro cientista social a pensar os sistemas semióticos, a


língua inclusive, em termos de percepção da outridade no seio da unidade. Seu
motto, "a língua gira inteiramente sobre identidades e diferenças", exprime a con-
vicção, que agora também é nossa, de que só se pode pensar pensando simulta-
neamente "isto" e "aquilo", x e seu contrário, Si e s2 - desse diálogo entre a iden-
tidade e a diferença compõe-se a representação do real, que começa a existir só
e precisamente a partir da percepção da ipseidade do sujeito que conhece perante
a alteridade radical do seu objeto de conhecimento.
Aplicado ao domínio da linguagem, essa lógica dialética faz da língua em
si mesma considerada uma abstração que só pode ser captada pela mente humana
quando esta a apreende no espaço da síntese entre o mesmo e o outro, entre -
no espaço epistêmico do quadrado semiótico - o mesmo (o termo implicado) e
o outro (o termo contrário ou o termo contraditório do termo objeto de partida).
Saussure empregou em toda parte essa metodologia dialética, ainda que
não a tivesse teorizado senão eventualmente; prova, contudo, de que a pensou,.
temos no fato de haver ele explicitado o mecanismo discriminatório da língua
como pura diferença - como negatividade - , no nível dos termos-objetos, fun-
cionando como fun tivos (pontos terminais) de uma relação, e ter ensaiado explicitar,
ao mesmo tempo, o mecanismo responsável pela identificação das identidades
romDrecouhecuneUrnDe~f'urjdades.Dps.i..tj':;:js..da.slJaDr:dem~:
(~!1el-rli7~eu;laDr:dem
..
do sistema, da Zangue).

Dizer qne tndo é negatiyo na língna, isso só é verdadeiro do significado e do significante


tomados separadamente; desde qne se considere o signo na sna totalida~e, encontramo-nos em
Intelpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 147

presença de uma coisa positiya na sua ordem. [... ] Apesar de que o significado e o significante sejam,
tomados cada qual cm separado, puramente diferenciais e negatiyOS [na Zangue], sua combinação
é um fato positi\'O [na jJarole] (Saussure, 1972, p. 166).

Não é preciso muito esforço para compreender, aí, o significado como tese,
o significante, sua "contraparte acústica", como antítese (os dois diferenciais e
negativos) e o signo como síntese, resultado de sua "combinação" como um "fato
posi tivo" da parole.

A Ultrapassagem das Dicotomias pelas Metacategorias Sintéticas da Pancronia,


da Linguagem, do Signo etc.

Na metacategoria S~ opera-se a ultrapassagem teórica das antinomias embutidas


nos termos-objetos opostos das dicotomias. Na unidade-síntese Snão se veja apenas
a soma linear de suas partes constituintes, mas o resultado de um movimento com-
binatorial que retorna ao ponto de que partiu, à tese, mas sem repeti-la, pois sua
combinação com a antítese desloca o movimento para um nível superior ao do
ponto de partida.
Assim, os termos pancronia, linguagem, signo, circuito da fala, substância
e forma, para não mencionar mais do que alguns do COUTS (mas também, a iden-
tidade do personagem da legenda no seu projeto de uma semiótica da narrativa,
ou a identidade da matriz narrativa relativamente a todo um ramo de relatos
heróicos, no mesmo lugar, ou, ainda, o anagrama em face do hipograma, no seu
projeto de uma semiótica da poesia etc.) , possuem, todos, o estatuto hierárquico
de metatermos, resultantes de sínteses combinatoriais de termos-objetos con-
trários, tese e antítese, no nível menor.
Para a pancronia, por exemplo, isso é transparente:

Até aqui tomamos o termo de "lei" no sentido jurídico. Mas existiriam talyez na língua leis
no sentido em que as compreendcm as ciências físicas e naturais, quer dizer, relações que seycrificam
em toda a pane e sempre? Em uma palavra, não se poderia estudar a língua do ponto de yista pan-
crônico? [onde "pancronia" é uma coveHuord que sintetiza a oposição sincronia versus diacronia].
Sem dúvida. Desse modo,já que se produz e se produzirão sempre mutaçôes fonéticas, pode-
se considerar esse fenômeno em geral como um dos aspectos constantes da linguagem; é pois uma
de suas leis. Na lingüística, como no jogo de xadrez [... ] há regras que sobrevivem a todos os aCOI1-
tecimen tos. l\'las, trata-se dc j)lincíjJios gemis que existem indejJendentemente de fatos concretos: desde que se
faZe defatos jJarticulams e tangíveis, niio há j)onto de vista j}{[ncrânico (idem, pp. 134-135).

Em termos visuais:
148 • A Identidade e a Diferença

Pancronia

Princípios gerais e abstratos

I I
Sincronia Diacronia
versus

Perspectiva dos Perspectiva do sujeito observador


interlocutores do presente para fora dele (Cours, 128)
(Cours, 128) I
I I
Perspectiva Perspectiva
Retrospectiva Prospectiva
I I
para o passado para o fu turo

Figura 12: Pancronia como Sí11lese de Sincronia mais Diacronia.

Também a linguagem, tal como Saussure a concebe, é uma unidade-síntese


englobante da langue e da parole. Recordemos que esta última é a realização indi-
vidual da langue, que é uma instituição social estabelecida sobre a primeiridade
da faculdade natural da linguagem. Linguagem, língua e fala dizem respeito, pois,
ao mesmo fenômeno, contemplado a partir de pontos de vista diferentes:

a. O que constrói a perspectiva sintética, em que a linguagem é o todo, S,


resuhante da composição da língua e da fala enquanto suas partes cons-
tituintes, SI e S2'

b. O que constrói a perspectiva analítica, em que se deixa de lado a totalidade


constituída, S, para nos atermos unicamente aos constituintes, língua e fala.

A perspectiva analítica concerne a um fato de cultura, que se apóia, contudo,


na natureza, que a recobre; assim, a cultura pode ser considerada, do ponto de
vista de Saussure, como o modo humano de viver na natureza. Diremos, então,
que a língua é o modo coletivo de cada comunidade realizar a faculdade da lin-
guagem, assim como a parole é o modo particular de realização da língua em cada
ato individual de comunicação:

Linguagem

Língua
------,------- Fala
Intelpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 149

Na formulação do próprio Saussure: no "III Curso de Lingüística Geral" ele


deu aos conceitos de língua e fala uma definição mais analítica, que diz:

No começo da lição de 28 de abril, retomando a conclusão de sua lição precedente, ele lhe
elen a forma de um esquema:

Passiva e residindo na
coletividade. Código social
LINGUAGEM que organiza a linguagem
FALA e forma o instrumen to
necessário ao exercício
da faculdade da linguagem
Ativa e individual

1. Uso das faculdades cm geral (fonação etc.)


2. Uso ineli\'idual elo código da língua conforme o pensamento individual (Godel, 1957: p.
155).

Outras formulações dialéticas facilmente reconstituíveis são as do signo,


da forma e do circuito da fala que, para poupar tempo, podemos diagramatizar
como segue:

Signo Forma
I I
I [

Significante Significado da Expressão do Conteúdo


Circuito da Fala
I

relações horizontais a ~a : sincronia (durante um turno)


f~f

relações transversais a X f : diacronia (revezamento de um tur-


f a no ante'rior para um turno posterior
posterior)
150 • A Identidade e a Diferença

Em resumo, acreditamos que Saussure tentou levar a efeito, através das dico-
tomias, a recuperação dialética da unidade de nível superior, S, como o momento
de síntese da diferença que opõe, no nível menOl~ dois termos-objetos que se pensam
associados entre si por serem constituintes (funtivos) de uma mesma categoria cons-
tituída (uma mesma função), S. Mas, pensamos, também, como Moreau, que

os objetos sensíveis aparecem grandes ou pequenos, iguais ou desiguais, segundo o ponto de vista
a partir do qual se considerem, segundo o termo a que se comparem; mas a relação de igualdade,
por exemplo, tem uma significação sempre idêntica a sí mesma; e por ísso demonstra que, na sua
origem, é distinta das impressões sensíveis. Não é da comparação de linhas iguais que induzo a idéia
de igualdade: não somente, como nota o Fedon, porque os objetos sensíveis não apresentam jamais
uns relativamente aos outros uma igualdade absoluta e perfeita, mas, mais profundamente, porque
a igualdade consiste em uma relação e 1111la relação jamais se dá, à maneira de uma imjJressão: só 1Jode ser
1JeJlsada [cf. com o que, duas págínas atrás, dizia Saussure acerca das categorias constítuídas por
síntese, S, representadas, no caso, pelo conceito de pancronia: "trata-se de princípios gerais que
existem independentemente de fatos concretos" etc.]; defini-la é tarefa do entendimento. Assim se
encontra o princípio da distinção entre o sensível e o imeligível, e percebemos que o inteligível está
constituído jJJ7mitivamenle de relações: o igual, o desigual [sei!., a identidade e a diferença], maior ou
menor, o dobro ou o triplo, metade ou um terço, todas as relações expressas pelos números, relações
que condicionam a medida e a objetividade da represemação. Pois essas relações, que permitem a
constituição de uma experiência objeti\'a, não poderiam derivar da experiência; são conceitos a
1))7017 (1953, p. 486).

Quase a mesma coisa diz Amacker, a propósito da questão da identidade e


da diferença, em sua relação com a tese saussuriana do arbitrário do signo:

Como vimos, pode-se mostrar que as unidades da língua são classes de realizações concretas
na jJarole e que essas classes repousam sobre um julgamento de identidade pronunciado pelos sl~eitos
falantes. Esses julgamentos explicitam e constituem ao mesmo tempo um saber lingüístico que se
re\'ela diferente para cada sociedade; é que as classificações das realizações concretas não repousam
- não, pelQ menos, exclusivamente - sobre características objetivas das próprias realizações. Pois
está claro que esse problema das identidades (e portanto das unidades) [e, acrescentamos por nossa
conta, das diferenças] lingüísticas é só uma outra apresentação, um ontro aspecto, do ponto de vista
antinomenclaturista de Saussure. O problema das identidades ressentidas pelos sl~eitos falantes éa
forma sincrônica do arbitrário; a questão das evoluções, das mudanças lingüísticas, sobre as duas faces
do signo (o que Saussure chama o problema das "identidades diacrônicas") é a sua forma diacrônica.
O arbitrário radical é a construção teórica que permite explicar todas as dualidades da lin-
giiística e que ordena o conjunto das dicotomias saussurianas em um todo coerente; o arbitrário
exprime com efeito a maneira pela qual se estabelecem e subsistem as identidades lingüísticas, do
ponto de vista diacrônico como do ponto de vista sincrônico; as identidades traduzem as classificações
Interpretação da Obra de Ferdinand de Saussure • 151

abstratas de realizações concretas, reconhecidas pelos slueitos falantes (forma e substância, langue e
jJalvle); os signos lingüísticos sem relaçâo necessária com a realidade extralingüística, são, por conse-
guinte, entidades determinadas relativamente e de dupla face (expressão e conteúdo); o seu aspecto
formal deve ser sublinhado em cada um dos dois planos (significante e significado) (1975, p. 84).

"Construções teóricas" eis o que são todas as dicotomias saussurianas; exa-


tamente porque possuem uma identidade abstrata, inteligível- e, como diz Moreau
no trecho que citamos, "o inteligível está constituído primitivamente de relações". Exa-
tamente porque essa identidade só se evidencia quando a comparamos com outra
identidade formando julgamentos de igualdade e diferença - enfim,justamente
por possuir uma identidade puramente negativa, diacrítica, é que as dicotomias
saussurianas repelem a maior parte das críticas que lhes têm sido endereçadas:

Uma vez que se está persuadido de que as dicotomias saussurianas correspondem a pontos
de vista teóricos do lingüista e não a oposições enraizadas nas próprias coisas, boa parte das críticas
que lhe foram dirigidas perde sua razão de ser, pois se revelam falsas (idem, p. 50).
5

o LEGADO DE FERDINAND DE SAUSSURE

II n')' a jJas de linguiste aujourd'lmi


qui ne lui doive quelque chose.
ZILBERBERG

A POSTERIDADE DE FERDINAND DE SAUSSURE

Eadem sunt quorum unulll


fJotest substitui a!teli salva vetitate.
LEIBNIZ

Que estranho destino o das idéias e como elas parecem por vezes viver uma vida própria,
revelando, desmentindo, ou recriando a figura de seu criador! Podemos devanear longamente em
torno desse contraste: a vida temporal de Saussure comparada àsorte de suas idéias. Um solitário naquilo
que pensou durante quase toda a sua vida, um homem que não se permitia ensinar o que achava falso
ou ilusório, sentindo que é necessário tudo refundir, cada vez menos tentado a fazê-lo, e finalmente,
após muitas distrações que não conseguem liná-lo do tormento da sua verdade pessoal, comunicando
a alguns ouvintes, acerca da natureza da linguagem, idéias que não lhe parecem nunca estar suficien-
temente maduras para ser publicadas. Morreu em 1913, pouco conhecido fora do círculo restrito de
seus alunos e de alguns amigos. Já quase esquecido de seus contemporâneos. Meillet, no belo comen-
tário que lhe consagrou, deplorou ter-se findado essa existên.cia deixando uma obra inacabada:
"Após mais de trinta anos, as idéias que expunha Ferdinand de Saussure no seu trabalho
de estréia não esgotaram ainda a sua fecundidade. E, contudo, seus discípulos têm o sentimento
154 • A Identidade e a Diferença

de que ele não ocupa na lingüística do seu tempo o lugar que lhe era devido por seus dons
geniais [... ]"
E terminava assim essa triste evocação:
'Tinha produzido o mais belo lino de Gramática Comparada quejamais se escrevera, semeara
idéias e firmara cerradas teorias, tinha assinalado com sua marca a numerosos alunos, e, contudo,
ele não tinha preenchido todo o seu destino" (Benveniste, 1966, pp. 44-45).

N esses termos, fazendo o balanço de meio século transcorrido sobre a morte


de Saussure, Benveniste recordava as palavras que Meillet dedicara a seu ex-mestre,
vinte anos antes:

Hoje, cinqüenta anos passados desde a morte de Saussure [... ] o que vemos nós? Alingüística
tornou-se uma ciência maior entre as que se ocupam do homem e da sociedade, uma das mais ativas
na pesquisa teórica e nos seus desenvolvimentos técnicos. Pois essa lingüística renovada, é em
Saussure que ela tem origem, é em Saussure que ela se reconhece e se congrega. Em todas as cor-
rentes que a atr,wessam, em todas as escolas em que ela se divide, o papel iniciador de Saussure é
proclamado. Esse embrião de lmuinosidade, recolhido por alguns discípulos, transformou-se em
uma grande luz, que ilumina toda uma paisagem que se preenche só com a sua presença.
[... ] Saussure pertence doravante à História do pensamento europeu. Precursor de dou-
trinas que vêm h{\ cinqüenta anos transformando a teoria da linguagem, ele abriu horizontes insus-
peitados para a mais alta e mais misteriosa faculdade do homem, e ao mesmo tempo [... ] contribuiu
para o aclvento do pensamento formal nas ciências da sociedade e da cultura, e para a constituição
de uma semiologia geral.
Volvendo os olhos para esse meio século transcorrido, podemos dizer que Saussure preencheu
bem o seu desti'no. Para lá de sua \'ida terrestre, suas idéias irradiam mais longe do que ele jamais
teria imaginado; e esse destino póstumo tornou-se-lhe como que uma segunda vida, que agora se
confunde com a nossa (idelll, ibidelll).

A bela alocução faz justiça ao mestre e aos discípulos. Porque, na verdade,


se estes não foram tão numerosos assim que sé pudessem contar por centenas-
nos seus nove anos de professor cm Paris eles somaram cento e doze, dos quais
setenta e dois franceses, dezesseis alemães, nove suíços, quatro romenos, quatro
belgas, dois húngaros, dois holandeses, um sueco e um austríaco - , entre os rela-
tivamente poucos ouvintes de suas aulas se contava uma vintena de nomes dos
mais prestigiosos da lingüística européia dos anos seguintes, E. M. Audoin, P.
Boyer, A. Darmesteter, H. G. Dottin, E. Ernault, A.Jacob, E. eh. Lange, H. Lebegue,
L. Léger, H. Lichtenberger, F. Lot, G. E. Guieysse - que foi o aluno predileto de
Saussure, prematuramente desaparecido, em 1889-, L. L. Duvau (que Saussure
indicou para sucedê-lo na cadeira na Ecole des Hautes Etudes) , Maurice Grammon t,
Paul Passy e Antoine Meillet. E foi a esses discípulos, aos quais viriam somar-se
o Legado de Ferdinand de Saussure • 155

seus colegas na Société de Linguistique de Paris (Bréal, Bergaigne, Havet, J.


Baudouin de Courtenay e outros) e, mais tarde, quando de seus anos de retorno
a Genebra, na universidade local, Serge Karcevski (um dos signatários,junto com
Jakobson e Trubetzkoi, das Teses de 29do Círculo de Praga), Charles Bally e Albert
Sechehaye (os organizadores - "editores", como se diz hoje, à americana - do
Cours de linguistique générale de Saussure, aparecido em 1916, três anos após a sua
morte), V. Tojetti, L. Gautier, A. Riedlinger, P. F. Regard e um punhado de outros,
a quem Saussure ficou devendo a lenta mas segura irradiação de seu nome e de
sua doutrina. Foram esses seus discípulos imediatos, os herdeiros principais de
seu legado; e, força é convir, dificilmente alguém poderia ter herdeiros melhores
do que esses.
Mas, que legado foi esse? Um legado doutrinário, epistemológico e meto-
dológico, é claro, antes de tudo. Não só um conjunto de noções. No caso de
Saussure, elas por si sós compõem todo um alentado Dicionário da Lingüística
Geral e Estrutural e da Semiologia do Século Xx, cheio de termos novos e de noções
mais inovadoras ainda - sistema, totalidade constituída, elementos constituintes, soli-
dariedade, nasal sonante, sistema vocálico, fonema, oposição, traço distintivo, coeficiente
sonântico, lei das palatais, circuito da fala, valor, contraste, oposição, substituição, uma
dezena mais de termos metalingüísticos todos em plena vigência ainda hoje, um
século depois, afora os conceitos que ele fundou nas célebres dicotomias língua/Jala,
diacronia/sincronia, sintagma/paradigma (classe associativa), significante/significado,
forma/substância, lingiiística de estado/lingüística evolutiva,fatos intemos/fatos extemos,
traço cl'rticulatório/traço acústico, dualidades essas, todas, provenientes de sua genial
concepção das unidades lingüísticas como entidades abstratas, opositivas e dife-
renciais, das quais extrairia a lei final da linguagem:

A lei cabalmente final da linguagem é [oo.] que não existe nunca nada que possa residir em
11111 termo, como conseqüência direta do fato de que os símbolos lingüísticos não possuem nenhuma
relação com aquilo que eles devem designar, logo, que a nada pode designar sem o auxílio de b, do
mesmo modo que este sem o auxílio de a, ou que ambos valem [o que valem] graças à sua recíproca
diferença, ou que nenhum deles valha, ainda que seja em uma parte qualquer sua (penso "na raiz",
etc.) senão em virtude desse mesmo jJlexo de diferenças eternamente negativas (Saussure, ajmel
Benveniste, 1966, pp. 40-41).

o rol dos termos acima está longe de repertoriar sequer a metade dos termos
metalingüísticos que ficamos devendo a Saussure; por outro lado, é lógico que nem
todos os termos ali arrolados foram cunhados por ele, mas ali figuram unicamente
os metatermos que ele "recondicionou", cuja primitiva concepção reelaborou (é
o caso, digamos, da palavra signo, utilizada desde a Antiguidade, mas apenas na
acepção de significante, não de complexo que articula significante e significado
156 • A Identidade e a Diferença

por meio de uma relação) ou por Cl~a circulação podemos responsabilizá-lo: é o


caso da noção de fonema, da noção e do nome, para ficarmos em um único exemplo.

Ganhos lVletodológicos e Teóricos da Semiolingüística Saussuriana

Je vo)' que je jJuis convenir avec quelques-uns d'eux que

ce qui signifie ordinairement une chose eu signifiera

une mitre, et que cela reussit de sOlte qll ' il 'II I)' a jJlus

que ceux avec qll i j' eu suis conveu'll,

qui me jJaroissent enlendre ce que je jJense.

CORDHIOY

Apenas para dimensionar pequena parte do legado de Saussure, recordemos,


agora, algo do que lhe ficou a dever o conjunto das ciências humanas e sociais da
posteridade e, mais do que todas, a semiolingüística geral do século XX.
No que se refere aos ganhos metodológicos e teóricos, devemos-lhe uma
série de conquistas:

1. A postulação de uma teoria lingüística fundada em uma teoria dos


níveis, explicitamente colocada na distinção pioneira entre o nível
imanente da língua (Zangue) e o nível de manifestação da fala (jJarole).
2. A postulação da variação do objeto de conhecimento a partir da variação
do 'ponto de vista selecionado pelo sl0eito para visar seu objeto: "Bem
longe de ser que o objeto preceda ao ponto de vista, dir-se-ia que é o
ponto de vista que cria o objeto" (Saussure, 1972, p. 23).
3. A postulação, que por si só implicava imprimir um giro copernicano
na metodologia empírico-indutiva até então utilizada entre os neogra-
máticos e os comparativistas, da necessidade de empregar-se o método
hipotético-dedutivo, partindo do todo para as partes, e não vice-versa:

A ieléia ele \''1101' [ ... ] nos mostra que é uma granele ilusão consielerar um termo sim-
plesmente como a união ele um certo som comum certo conceito. Defini-lo assim seria
isolá-lo elo sistema ele que ele participa, seria crer que se poele começar pelos termos
e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, ao contrário, é do lodo solidário que
se deve jJarlirjJam ohlerjJor análise os elemenlos que ele encerra (idem, p. 157).

4. A postulação da noção pioneira de contexto (não do nome) e do estudo


das relações internas, imanen tes ao discurso-objeto, com o conseqüente
o Legado de Ferdinand de Saussure • 157

abandono dos fatores externos, extrínsecos a ele - conclusão que será


o fulcro diretivo de toda a inovação que ocorrerá a seguir nos domínios
da teoria lingüística e da teoria da literatura, possibilitando a criação
de teorias literárias estruturais:

Antes de tudo, não devemos nos afastar do princípio segundo o qual o valor de uma
forma está inteiramente no texto de onde a tomamos, quer dizer, no conjunto das
circunstàncias morfológicas, fonéticas, ortográficas, que a rodeiam e esclarecem
(idem, p. 342).

5. Ter reivindicado que o trabalho da semiolingüística privilegia a des-


crição sincrânica sobre a diacrânica (que era, à época, a única uti-
lizada): "é evidente que o aspecto sincrânico predomina sobre o outro,
já que para a massa falante ele é a verdadeira e única realidade" (idem,
p. 128); "A cada momento, ele (o valor) depende de um sistema de
valores contemporâneos" (idem, p. 116).
6. Ter indicado o caminho que deve o descritor seguir na sua análise:
começar pela sincronia, mas com o intuito de efetuar através da des-
crição sincrânica da parole, a descrição da langue imanente, a ela sub-
jacente; de fato, a descrição da parole, enquanto fato real de comu-
nicação, "A sincronia conhece uma única perspectiva, a dos sujeitos
falantes" (idem, p. 128), e porque só o que é sincrânico possui signi-
ficação (idem, p. 122), conduz à descrição sincrânica também da langue,
já que as unidades de que esta se com põe se isolam median te um jul-
gamen to de iden tidade, que é próprio da descrição gramatical (e o que
não é gramatical não tem sentido); assim, em qualquer estado de língua
que se considere, o arcaísmo e o neologismo delimitam as fronteiras
da significação no tempo: umjá está acabando de ter sentido, o outro
mal começa a tê-lo:

Conclusão provisória: tudo que é sincrónico se resume pelo termos de gramática (cf.
a gramática do jogo de xadrez, de la Bonsse), que implica um sistema que põe emjogo
valores. Não há gramática histórica: o que se entende por essa expressão é a lingüística
diacrónica, qne não será jamais gramatical. Mas, identificando sincronia e gramática,
não adotamos cegamente as divisões tradicionais (morfologia, sintaxe, lexicologia)
(Sanssme, ajJudGodel, 1957, pp. 73-74).

É claro, por outro lado, que a descrição sincrânica da língua não exclui
sua descrição do ponto de vista diacrânico:
158 • A Identidade e a Diferença

a. Do ponto de vista sincrânico, ela se vale do julgamento de iden-


tidade reconhecido intersubjetivamente, entre os interlocutores, no
ato da fala;
b. Do ponto de vista diacrânico, a descrição se produz por um julgamento
de diferença entre dois estados de língua sucessivos, a partir da trans-
formação de um único elemento, o que é próprio da lingüística diacrânica.
Em síntese, mais do que um princípio metodológico da lingüística,
Saussure fixa, aqui, um princípio metodológico dasemiologia, entendendo
por sincronia a correspondência da relação significantejsignificado
fixada como permanência do idêntico ou da "imutabilidade", como
ele gostava de acentuar, e entendendo por diacronia, como o deslo-
camento da correspondência dessa mesma relação, mudança para a
diferença ou "mutabilidade", no seu léxico peculiar.
7. Ter indicado a dupla natureza, positiva e negativa, de todo elemento
semiológico descrito estruturalmente.
Assim, uma entidade lingüística qualquer possui uma identidade
puramente negativa, vale dizer, diacrítica, no nível da langue, entidade
essa que se destaca quando a comparamos com outra identidade
formando julgamentos de identidade e diferença; pois, com efeito,
cada ente semiótico é ao mesmo tempo parcialmente igual e par-
cialmente diferente de outro qualquer integrante do mesmo código
ou sistema. Desse modo, o estabelecimento da identidade de uma
unidade semiolingüística depende:

a. DCi escolha do ponto de vista que há de presidir à classificação que o


observador resolveu adotar para construir a perspectiva (analí tica/sin-
tética) capaz de relativizar o conhecimento que ele deseja obter, do
objeto que focaliza; assim, o elemento a pode ser, conforme o ponto
de vista adotado para a descrição de um código do português, um
fonema, um gramema prefixaI nominal (a-normal), um gramema sufixal
verbal (cant-a), uma preposição diretiva ("ir a São Paulo"), um lexema
verbal (há, do verbo haver, pronunciado a) etc.
b. Da comparaçâo do objeto focalizado com outra entidade qualquer do
sistema, in absentia ou in praesentia no discurso (perspectiva paradig-
mática/sintagmática); no exemplo acima, do ponto de vista sintag-
mático, a só é gramem a nominal quando surge como o primeiro
elemento da forma que compõe um sintagma nominal (i. e., da forma
ClÚO segundo elemento é um nome), e só é gramema verbal quando
surge como o segundo elemento de uma forma ClÚO primeiro elemento
é um verbo etc.
o Legado de Ferdinand de Saussure • 159

c. Da formação, decorrente dessa comparação, aludida em b, de um julgamento de


identidade ou de diferença - aplicação da função metalingüística classifi-
catória; assim, o sufixo de cant-a identifica um gramema verbal que sig-
nifica "terceira pessoa do singular do presen te do indicativo de um verbo
da primeira conjunção, na voz ativa", porque sua comparação com formas
análogas, do tipo ela fal-a, bail-a, am-a, chor-a etc., particulariza-a como
forma dotada da mesma função.

8. Ter indicado a descrição lingüística como procedimento de análise


formal (e não substancial), já que "a língua é uma forma e não uma
substância" (Saussure, 1972, p. 169).
9. A partir da distinção entre forma e substância, ter distinguido som e
fonema, diferença fonética e fonológica.

Sabe-se que é difícil reduzir à unidade o pensamento fonológico de Saussure.


Se, por um lado, não há dúvida de que a fonologia moderna, sistematizada por
Trubetzkoi,jakobson e Karcevski na Escola de Praga, apoiou-se explicitamente
nos ensinamentos de Saussure que Karcevski (discípulo direto do autor do COUTS)

transmitiu ao grupo praguense (e tal dívida é expressamente reconhecida por


N. Trubetzkoi no seu capital Grundzüge deTPhonologie, Praga, 1939, especialmente
no que se refere à adoção da distinção langue/parole, do termo fonema e da con-
cepção saussuriana da langue como sistema de oposições), por outro lado, a
fonologia saussuriana não só não constitui um sistema acabado e coerente, como
tem muito de ambígua (como reconhecem A. Sechehaye e Godel) (cf. Godel,
1957, p. 160).
Posto isso, resta observar que Saussure nos deixou, como quer que seja, uma
importante distinção entre diferença e oposição, que, independentemente das flu-
tuações de uso, será a base para a construção ulteriormente desenvolvida pelo
Círculo de Praga entre a fonética e a fonologia.
A partir dos fragmentos abaixo citados, podemos reconstruí-la assim:

a. Alterações observáveis no plano de expressão (do significante) que não


se correspondem com alterações conseqüentes no plano de conteúdo
(do significado) são unicamente diferenças: as diferenças são fenômenos.
fonéticos. E a fonética, por não modificar em nada as formas da língua,
não constitui uma disciplina lingüística:

Tudo são só diferenças fonéticas, não significativas em si mesmas, utilizadas como opo-
sições [significativas], as quais dão os valores (Saussure, ajmd Godel, 1957, p. 198).
160 • A Identidade e a Diferença

b. Alterações observáveis no significante que se correspondem com alte-


rações conseqüentes no plano do significado são chamadas oposições. As
oposições são fenômenos fonológicos (por modificar as formas da língua),
e a fonologia é uma disciplina lingüística:

Essa significação (da alternância em cajJio: fJercif}io) é uma oposição que se funda sobre
uma diferença [... ]. Há um certo grau de significatividade ligada à diferença [que, ijJSO
facto, é uma oposição]" (idem, ibidem). Como "há perpetuamente oposição de valores
por meio de diferenças fónicas - por elementos fonicamente diferentes [... ]" (idem,
ibidelll), poder-se-ia, em conclusão, "definir a oposição como uma diferença significativa
(Godel, 1957, p. 198).

E é certamente por isso que Saussure afirma:

É impossível que o som, elemento material, pertença por si mesmo à língua. Para ela,
ele é uma coisa secundária, uma matéria que a língua utiliza (1972, p. 164).

10. Ter indicado que essa análise formal deveria ter o caráter componencial,
de modo a definir a identidade dos elementos do plano da expressão
e do plano de conteúdo em termos de traços distintivos (expressão que
se esquece, aliás, ter sido cunhada por ele):

A necessidade que Saussure proclamou de firmar uma definição puramente relativa e


opositiva aos elementos diferenciais tornou-se a base de qualquer análise coerente em
termos de elementos "últimos" ou em termos de "traços". A idéia de "as diferenças
entre as propriedades são [serem] de fato discretas" e que seu aspecto diferencial "é
realmente o conceito fundamental" encontra-se nos diversos domínios da ciência
moderna (Jakobson, 1973, p. 139).

E, em outra passagem:

A insistência de Saussure sobre o valor puramente semiológico do fonema o conduz-


à tese segundo a qual, ao analisar os diversos fonemas de qualquer língua,
"é preciso [... ] limitar-se a procurar o diferenciador (determinador)".
Em seu primeiro Curso de Lingüística Geral ministrado em 1906-1907, desvendamos
as conseqüências naturais dessa proposta, a exigência de que os fonemas sejam decom-
postos "em sens elementos de diferenciação" (ver o Cours de linguistiqlle générale de
Sanssure na edição crítica de R. Engler de 1967: 787 f) (Jakobson, 1973'1, pp. 292-293).

Estamos bem lembrados, ainda, de que o mesmo Saussure apregoara


já a conveniência de que a descrição da identidade do atol' narrativo
o Legado de Ferdinand de Saussure • 161

fosse efetuada por meio de uma análise componencial (cf. aqui mesmo
projeto da teoria narrativa de Saussure):

Longe de partir dessa unidade que não existe em nenhum momento, deveríamos
perceber que ela é a fónllula que damos de um estado momentãneo de unificação,
somente existindo os elementos. Assim, Dietrich, "tomado em sua verdadeira essência",
não ê um personagem histórico ou a-histórico: ele é puramente a combinação de três
ou quatro traços que podem dissociar-se a qualquer momento, acarretando a dissolução
da unidade inteira (Sanssme, ajmd IVunelerli, 1976, p. 54).

11. Ter inaugurado as abordagens topológicas em semiolingüística ao assentar


que a forma não pode ser estudada isoladamente, abstraída do cOl~unto
significante que ela articula, de modo a preservar-se o princípio da
primazia da relação sobre os termos-objetos por ela relacionados:

A abordagem topológica
"não são as coisas que importam, mas suas relações"
é decisiva para a metodologia da fonologia. Não se pode definir o fonema I pi elo
francês sem se referir aos demais fonemas - por exemplo, ao restallte elas obstrutivas
smdas (Jakobson, 1973, p. 139).

12. Ter chamado a atenção para o fato de que, em qualquer análise, é mais
relevante considerar o valor realizado, no nível da manifestação da fala,
do que o valor realizável, no nível imanente da língua - quando se
trata·de aprender "a significação em construção" na jJarole, e não "o sig-
nificadojá construído" da langue (um dos motivos que orientam, como
vimos, a sua opção pela sincroi1ia - "a cada momento, ele [o valor]
depende de um sistema de valores contemporâneos"): "Aquilo que faz
a nobreza da legenda [lenda] como a da língua é que condenadas uma
e outra a se servir apenas de elementós colocados diante delas e com
[dotadas de] um sentido qualquer [elementos estocados em compe-
têilcia, na língua], elas os reúnem [na jJarole] e tiram deles conti-
nuamente um sentido novo" (Saussure, ajJud Starobinski, 1974, p. 16).
E, corroborando outra assertiva sua, que mostra uma penetrante
observação do valor do contexto:

o que há de idéia ou de matéria fônica em um signo importa menos elo que aquilo que
há ao redor dele, elos outros signos. A prova disso é que o valor de um termo pode ser
moelificado sem que se toque em seu sentido 'nem em seus sons, mas apenas pelo fato
de que tal outro termo vizinho tenha sofrido uma modificação (Saussure, 1972, p. 166).
162 • A Identidade e a Diferença

13. Ter concebido a linguagem como fenômeno que ocorre na sincro-


nização articulatória, pelo ato de enunciação, entre o eixo associativo
(paradigmático) e o eixo sintagmático:

No interior de uma mesma língua, todas as palavras que exprimem idéias \'izinhas se
limitam reciprocamcnte: sinônimos como redollfer "hesitar", craindre "temer", avoir
jJellr "ter mcdo", só possuem um \"alor próprio graças à sua oposição; se redollfer nào
cxistisse todo o seu conteúdo iria para os seus concorrentes. (Até aqui, o eixo paradig-
mático, o das classes de membros que se associam na memória.) Inversamente, lü
termos que se enriquecem pelo contato com outros [... ]. Assim, o valor de qualquer
termo é determinado por aquilo que o rodeia [na cadeia da fala]. (Aqui, o eixo sin-

tagmático das combinaçôes na cadeia da fala). (Saussure, 1972, pp. 160-161).

14. Ter esboçado formalmente a noção de fonema.


O exame, por Saussure, das unidades elementares "que contribuem
para constituir as unidades significativas" (Cahiers, XV, p. 58) dá lugar
a uma das teses centrais de seu livro póstumo:

o que importa na palavra não é o som em si mesmo, mas as difcrenças fônicas que
permitem distinguir essa pala\Ta ele todas as outras, pois são elas que contêm a signi-
ficação. (COl/lo: 169) Uakobson, 1973, p. 232).

A propósito da cunhagem do termo fonema, sabe-se hoje que se trata


de um calco do grego <PcDV11IlO:, "som", proposta para equivaler, em
francês, ao alemão Sprachlaut, "som da língua", por iniciativa de A.
Dufriche-Desgenettes, um dos fundadores da Société de Linguistique
de Paris, a essa altura freqüentada por Saussure, na sessão de 24 de
maio de 1873. Dada, porém, a modéstia dos trabalhos do proponente,
o termo só vingou, de fato, após ser adotado por Louis Havet, em 1874,
e por Saussure, na idémoire, de 1878.
Que a assunção e posterior "personalização" do termo por Saussure
forneceu o respaldo necessário para a sua disseminação e ulterior
aceitação pela unanimidade dos lingüistas da época se prova:

a. Na entusiástica resenha que Kruszewski publicou em 1880 saudando


o aparecimento da AIémoire, que ele considerava "cheia de maravi-
lhosos achados", resenha essa que introduziu o termo fonema pela
primeira vez no vocabulário eslavo, conforme noticia ele mesmo em
nota especial, recomendando: "esse vocábulo pode ser utilizado con1
vantagem para designar a unidade fonética, ao. passo qua a palavra
o Legado de Ferdinand de Saussure • 163

'som' poderia designar uma unidade do que se chama a fisiologia dos


sons" (cf.Jakobson, 1973, p. 212; cf. também Benveniste, 1966, p. 202).
b. No monumental GTllndziige der Phonologie (Praga, 1939) de N.
Trubetzkoi, o mestre da fonologia de seu tempo reconhece, com
exemplar probidade, ter sido Karcevski, ex-aluno de Saussure, o
introdutor das idéias revolucionárias do COllrs no Círculo Lingüístico
de Moscou, a respeito das quais fez uma exposição em sessão do
Círculo, em 1918; reconhece mais, por outro lado, dever a Saussure
especialmen te três coisas, a saber: a distinção langue/parole; o termo
fonema; e a concepção da langue como sistema de oposições. Isso
quanto à denominação, ao rótulo.

No que tange ao conteúdo, o mesmo Jakobson, no ensaio "Réflexions


inédits de Saussure SUl' les phonemes" (hoje incluído nos Essais de lin-
guistique générale, Paris, Eds. de Minuit, 1973), comentando um manuscrito
até então inédito em que o autor do COUl'.5 traça as grandes linhas de
um tratado de fonética, reproduz, dentre outras, a seguinte definição
de fonema: "Fonema = oposições acústicas". Ora, se acrescentarmos,
agora, unicamente "feixe", para fazer

"Fonema = feixe de oposições acústicas"

(o que não consiste em nenhuma extrapolação indevida de nossa parte,


h<ua vista o que se acabou de citar no item 10, acerca da descrição com-
ponencial do atol' narrativo), teremos a definição que o próprioJakobson,
até há poucos anos, não exatamente um admirador incondicional de
Saussure, como se recorda, prol)oria trinta anos depois e que é geralmente
aceita como válida ainda hoje. Aliás, não se trata, no que se entende
com o pensamento de Saussure, de uma trouvaille fortuita, nem um
mero acaso,já que se pode ler, no COllrs:

o que importa na palavra não é o som em si mesmo, mas as diferenças fônicas qne
permitem distingnir essa palavra de todas as outras, pois são elas que comportam a sig-
nificação (Sanssure, 1972, p. 169).

Ainda agora não seria fácil apontar quem o possa dizer melhor.
Jakobson diz acreditar que Baudouin de Courtenay e Nikolai Kruszewski
tenham inf1uenciado Saussure a respeito do fonema. Mas lembra,
também, que Baudouin mesmo cOllfessou em 1895 ter abandonado
sua própria concepção de fonema alguns anos antes (por volta de 1880),
164 • ii Identidade e a Diferenra

e diz, por fim: "É precisamente essa última concepção yerdadeiramente


lingüística de fonema que encontrou um noyo desenyolyimento no
·"1.talaÜoLl't:,Y<lcfs~;al'dT
'Ij'éiklumcJll,c'2J, 5~ j5l.°.ccL J.
15. Ter concebido o signo como entidade que reúne um plano de expressão
- o significante - a um plano de conteúdo - o significado (quando
yogaya, ainda, o emprego de signo no sentido exclusiyo de "plano de
expressão") - , desse modo introduzindo a semântica no rol das disci-
plinas lingüísticas (rol esse que a semântica só yeio integrar, yerdaelei-
ramente, na décaela de 60).
16. Tcr eyitado a falácia reificante elos seman ticistas realistas elos decênios
seguintes, ao definir o significado não como a relação entre um signo
e uma coisa - marca registrada do positivismo: a idcntificação do
referente com uma coisa da "realidade" extralingüística - , mas com o uma
relação en tre uma imagem acústica e um yalor:

o signo lingüístico une não uma coisa e mn nome, mas um conceito e uma imagem
acústica (Saussure, 1972, p. 98).

17. Ter fundado, ao lado da lingüística geral, a semiologia geral, fixando


a primeira como teoria e a última como metateoria:

Pode-se pois conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social;
[... ] charna-la-emos de semiologia [... ]. Ela nos ensinará em quc consistem os sig'nos,
qnc leis os regem. [... ] as leis quc a semiologia vier a descobrir serão aplicávcis à lin-
güística [... ] (idem, p. 33).

18. Ter dado o primeiro passo para a fundação de uma semiologia da nar-
rativa (ou teoria semiótica da narratiya, como diríamos hoje).
19. Ter dado o primeiro passo para a fundação de uma scmiologia com-
parada, ao definir a lingüística e a ecoilomia como duas ciências fundadas
,na noção de valor: "é que aí (na lingüística) como na economia política;
cstamos diante da noção de valor; nas duas ciências trata-se do sistema
de equiyalência entre coisas de ordens diferentes: numa, o trabalho e
o salário; na outra, o significado e o significante" (idem, p. 115).
Aqui, a correlação do trabalho com o salário deye, antes, ser com-
preendida como relação entre o trabalho e a moeda Uá que é a moeda
que serye para pagar o trabalho); com o que se entenderá que Saussure
propõe, por intermédio da correlação

trabalho: mocda : : significado: significante


o Legado deFerdinand de Saussure • 165

uma analogia entre o signo e a 1llercadorza - entre o signo, enquanto


objeto-valor produzido pela ideologia, e a mercadoria, enquanto objeto-
valor produzido pelo trabalho; coisa que graficamente se visualizaria
da forma mostrada na Figura 13.

Práticas

Prática Pragmática Prática Cognitiva

Trabalho Ideologia

SI~NO
Objeto-valor produzido Objeto-valor prod mido
pelo trabalho pela ideologia
I I
I
Plano versus Plano Plano versus Plano
Expressão Conteúdo Expressão Conteúdo

I MO~DA I: I
I
TRABALHO I:: SIGNIFICADO

Figura I": O Primeiro Axioma da Semiótica do ubjelo (esboçada por Sallssllre).

A correlação estabelecida pero mestre genebrino converte-se, pois,


depois de rearticulada na forma da metacorrelação que ele indica, da
qual se extrai uma formulação extremamente atual, mercadoria = signo,
no primeiro axioma de uma semiótica do objeto.
20. Ter descoberto o caráter dialógico do discurso:

A granele elescoberta ele Saussurc é a ela linguagem como ol~jeto duplo, do caráter dia-
lógico ela linguagem, elo diálogo como o único campo onde a linguag-em é possível.
Se a linguagem aparece como um sistema articulado é que nela a diferença existe como·
elemento de origem [... ] (Coelho, 1968, p. XV).

21. E, a seguir, ter descoberto o modo de superar essa diferença, que


Eduardo Prado Coelho aindajulga'irredutívcl: continuando a citação
acima, "a diferença existe como elemento de origem, necessariamente
166 • A Identidade e a Diferença

irredutível a um princípio de unidade" (idem, ibidem) - por intermédio


de um percurso dialético que vai de um dos termos polares da
dicotomia, tomado como tese, para o outro, tomado como antítese
(sig'nificante: tese, significado: antítese, por exemplo); e daí (aban-
donando a perspectiva analítica, que os disjungiu, e adotando a pers-
pectiva sintética, que os toma englobadamente, em conjunção) para
a unidade de nível superior, S, que, enquanto síntese, os subsume a
ambos (signo:síntese).
22. Ter descoberto que o texto literário "é um produto produtivo", para
usar a expressão de Starobinski, quer lidemos com uma narrativa ocor-
rencial (que é a expressão local, diferenciada, de uma matriz imanen te,
uma UJjJjlanze, "uma planta primordial" no dizer de Goethe, ou uma
narrativa-tipo existente em potência, num nível subjacente), quer lide-
mos com um poema ocorrencial, mera expansão paragramática, no
nível da manifestação, de um hipograma- uma palavra-tema, micropoema
condensado - anteriormente dado,
23. Ter possibilitado, assim, a descoberta
• De que o discurso literário não deriva imediatamen te da língua, mas,
ao revés, de um outro discurso anterior, uma forma-tipo a parafrasear.
• De que, assim, o criador do texto literário não é primordialmente
aquele que o redige, mas, sim, um discurso outro - o discurso do
outro, que é um outro texto "interdito" ("inter-dito"), latente, de
nível imanente e de existência ao modo do ser, que subjaz ao texto
patente, que o realiza ao modo do parecer, no nível da manifestação:

A pergunta que se coloca é: o que cxiste imediatamente atrás do verso:- A resposta não
é: o indivíduo criador, mas: a parole (ambiguamente: o discurso c/ ou a palawa) indutora.
Não que Ferdinand de Sanssure cheguc ao ponto de apagar o papel da subjetividade
do artista; parece-lhe, no entanto, que ela não pode produzir seu texto a não ser depois
de passar por um jmi-texto.
Analisar os versos na sua gênese não será, portanto, remontar imediatamentc a uma'
intenção psicológica: ames será prcciso pôr em evidência uma latência vcrbal sob as
palavras do pocma. O hipograma é um lI)jJolieimenon \'erbal; é um sllbjectlll11 ou uma
substantia que contém em germe a possibilidade do poema. Este é tão-somente a pos-
sibilidade desenvoh'ida de um vocábulo simples (Starobinski, 1974, p. 107);

• Ter sido, a partir desses achados recém-mencionados, de um lado,


o grande e solitário precursor de todas as teorias da função poética
da linguagem (Tinianov, Brik, jakobson, Mukarovski e outros) do
século XX; e, de outro lado, ter oferecido, com seus exercícios <1na-
o Legado de Ferdinand de Saussure • 167

gramáticos, a primeira amostra do que haveria de ser tanto a teoria


quanto a análise estrutural da literatura:

a. A concepção do discurso como produtor de outro discurso descarta


preliminarmente qualquer possibilidade de utilização de dados bio-
gráficos do poeta, de dados histórico-culturais da época - em uma
palavra, de qualquer elemento extrínseco ao texto literário - , para a
interpretação do texto literário (o que coloca, pela primeira vez, a pos-
sibilidade da construção de uma teoria intrínseca, estrutural, da lite-
ratura) .
b. Os exercícios anagramáticos, por sua vez, nos dão a primeira expe-
riência prática do que haveria de ser, andando o tempo, a futura análise
estrutural da poesia: confrontem-se, a propósito, as análises anagra-
máticas de Saussure, empreendidas entre 1903 e 1909, com a análise
estrutural, tão celebrizada, que Jakobson e Lévi-Strauss efetuam sobre
o poema Les Chats, de Baudelaire, mais de meio século depois.
PARTE II
AS TEORIAS
O FORMALISMO RUSSO, O ESTRUTURALIS1\10 TCHECO,
O ESTRUTURALIS1\10 SEMIOLÓGICO FRANCÊS
6

FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CIENTÍFICO


NO SÉCULO XX

P - Wlwt do YOll remi, my IOld?

I-l - lVords, 1lIonls, llIonls.

511AIZESPEARE

o PENSAMENTO ALElVIÃO E SUA EXPRESSÃO FRANCESA:


O ESTRUTURALISMO E A DENÚNCIA DO EPISTEIvIA
HISTORICISTA-HUMANISTA

Quem fala em língua, ore jJam que a in telj)}t'te.


(5.:>'0 PAULO, COR., 14:13)

Na jJrimeira jJCtrteda presente obra, que dedicamos ao exame da contribuição


representada pela semiolingüística geral de Ferdinand de Saussure, anotávamos
três particularidades da década de 60, em relação com o nosso objeto de estudo:

a. A década de 60 representa o período de maior expansão do estrutu-


ralismo na Europa.
b. Essa expansão foi ditada, por um lado, pelos avanços dalingüística geral
ou da semiolingüística geral e estruturalista de Saussure trabalhada em
nível teórico e em função da disseminação dos trabalhos do formalismo
172 • A Identidade e a Dijàença

nL'>so_ eJLo_ estrnturalismo tcheco (~obretudo da fonoloQ"j,a estruturaL,


na linha aplicada por Trubetzkoie Jakobson),
c. Concorrendo com essas duas magnas influências, e apesar de ter tido
como seu ponto de irradiação a França, na origem de todo o estrutu-
ralismo francês dos anos do segundo pós-guerra está, também, o pen-
samento filosófico alemão de antes da Primeira Guerra Mundial, como
se comprova da obra desses iln-estigadores, alguns datados, mesmo, dos
fins do século passado.

• A psicanálise de Lacan provém de Sigmund Freud.


• O materialismo dialético de Althusser, de Marx.
• A filosofia da cultura de Foucault, de Nietzsche.
• A gramatologia de Derrida, de Heidegger.

Estranha colaboração, essa, que vincula a intelectualidade alemã, que elabora


pioneiramente a matéria e os temas do que virá a ser o epistema dominante dos
decênios seguintes, na Europa, e a intelectualidade fi'ancesa, que os retrabalha e
irradia para o resto do mundo! Pois não só os expoentes da cultura francesa dos
anos 60 da nossa centúria revisam, refundem e atualizam o ideário de seus pre-
decessores teutos, mas, além disso, essa particularidade é a tal ponto constante na
história dos dois povos que a influência de um sobre o outro pode ser recuada
até tempos mais antigos. É assim que os suportes da metodologia imanente para
os estudos das ciências humanas e sociais são, igualmen te, colocados pelos alemães
nos últimos trinta anos antes da virada do século e só depois retomados e reela-
borados pelos franceses, servindo de ponte para eles, no que diz respeito aos tra-
balhos semiolingüísticos de Ferdinand de Saussure, que, como vimos na primeira
parte, começou e concluiu sua formação universitária na Alemanha, onde ficou
até a conquista do seu título de doutor, em 1880, na Universidade de Leipzig, só
depois disso transferindo-se para a Sorbonne (1881).
Assim, O Capital, de r..larx, é de 1867, a AIéllloire, de Saussure, de 1878, os pri-
meiros trabalhos de Freud relativos à histeria surgem em 1895, a primeira teoria
da relatividade de Einstein sai em 1905, e a edição do Cours de Saussure vem à luz
em 1916. Mesmo no terreno mais restrito da literatura, em que estamos agora espe-
ciali11ente in teressados, a fundamenLiçào epistemológica da abordagem intrínseca
da obra literária é fruto, antes do mais, das reflexões de três sólidas cabeças ger-
mânicas, Dilthey, \Vindelband e Husserl, que trabalhavam pela mesma época.
De fato, desde 1883, Dilthey reconhecia nos fenômenos "históricos" (hoje
diríamos "humanísticos") seu caráter de objetos sígnicos, em função do que,
pensava ele, requereriam ullIa in teljJretaçâo,' particularidade qüe os apartava dos
btos "naturais", que solicitariam apenas mI/a explicaçâo, não uma interpretação,
FOrmafrlO do Pensamento Científico no Século XX • 173

fornecida em termos causais. Um ano mais tarde, em 1884, vVindelband afirmava


que os jénômenos históricos selo fatos únicos e singulares, nisso se opondo aos eventos
naturais, que são generalizáveis e recorrentes; em 1900, Husserl completava o
percurso do itinerário balizado pelas reivindicações imanentistas postulando que,
à vista de seu caráter sígnico, afirmado por Dilthey, e de sua singularidade irre-
petível, que os tornava apreensíveis unicamente por efeito de uma interpretação,
conforme explanara \Vindelband, os objetos dos estudos niio-naturais, aí compreendidos
os textos literáJios, jJossuiJimn uma existência autónoma, independente de qualquer outro
fenómeno social- reivindicação-chave, posteriormente, de todos os estruturalistas,
a principiar pelos formalistas.
É claro que nenhum desses nomes pode ser confundido com os outros no
que concerne aos meios de que lançaram mão para superar o obstáculo episte-
mológico (Bachelard) em que tinham em pacado suas respectivas áreas de conhe-
cimento, até seu advento. Isso não obstante, é possível identificar na obra de
Einstein, de Marx, de Saussure, de Freud, um mesmo trabalho de investigação
cuidadosa das relações en tre o que se poderia tomar em cada caso como a denúncia
do problema da identidade e da diferença, em seus respectivos campos, como
questão fundada pelo trabalho de ocultação epistêmica, traçado no jogo entre
o ser e o parecer, que utiliza a aparência dos fenômenos para com ela simular
e/ou dissimular alguma outra coisa subjacente a ela, do ponto de vista da sua
"essência". Assinl,

([. Einstein desmistificou a pretensa descontinuidade entre o objetivo e o


subjetivo como obra de um recorte ilusório de nossos sentidos, que
funcionam operando a separação elementar entre o slúeito e o objeto
do conhecimento; ao contrário do que parece, ele demonstrou que a
objetividade e a intersubjetividade se identificam: é o princípio da rela-
tividade (Thom, 1985, p. 13).
b. Marx desmascarou, sob a capa da aparente "santidade" do trabalho, as
relações formais de opressão e de manipulação estabelecidas pelo
capital, de modo a produzir na mercadoria não só um objeto prag-
mático, dotado de um valor de consumo, mas também, e sobretudo,
um objeto mítico-ideológico, dotado de um valor de troca.
c. Saussure concebeu o fonema (e o atol' narrativo, cf. capítulo 2 desta
obra) como um feixe de traços distintivos, aparentemente diferentes
em cada concreta realização da parole, ao nível da manifestação, mas
redutíveis, enfim, à mesma classe de unidades discretas, estocadas como
realizáveis, ao nível imanente da langue.
d. Freud desvendou a relação do home'm com o objeto-abjeto do desejo,
lendo a conotação abjeta oculta como pura falta, ao nível do inconsci-
174 • A Idelltidade e a Diferell{a

ente, subjacente ao discurso simulador sobre um objeto maternal supos-


tamente "puro", ao nível da "fala vazia" e mascarada da consciência.

Esses são os nomes mais importantes dos fundadores do pensamento cien-


tífico da nossa era. Sua influência foi tão vasta e poderosa que todo o desenvol-
vimento experimentado pelas artes e ciências humanas ao longo do século que
está agonizando não foi mais do que o produto do ininterrupto diálogo interdis-
ciplinar em que se empenharam. Como lembrou E. Verón, todos os que no decorrer
dos últimos cem anos contribuíram para iluminar o nosso campo, se abeberaram
da sua experiência e se preocuparam com as teorias que eles fundaram.
Esses grandes nomes todos, supomos, concordariam entre si no essencial
de umas quantas colocações básicas; com efeito, tal como seus continuadores dos
anos 60, no lado francês, Althussel~ Barthes, Lacan, Foucault, Derrida, Lévi-Strauss
e outros, eles adotavam uma postura metodológica formal muito parecida e, do
ponto de vista ideológico, concordavam, ainda, na denúncia do epistema histo-
ricista-humanista calcado nos moldes mais que suspeitos da filosofia liberal burguesa.

A POLÊMICA ENTRE OS MARXISTAS E OS ESTRUTURALISTAS

ChaCll II a son Kant á sai.


EINSTEIN

A marcha dos tempos, contudo, acabaria por situá-los em campos e pólos


opostos. E é natural; nunca houve, na história das ciências, uma época em que
um único epistema, o "Vetar ideológico que unifica e aponta a direção a seguir
pelas teorias científicas da época, reinasse soberano, mansa e pacificamente. Saber
que se pode ver como uma das faces ocul tas do jJodel~ os epistemas existem sempre
aos pares, em oposição. Um epistema só existe quando, tal como ocorre com o
poder, primeiramente se expande a partir de um irresistível pendor imperialista
que o força a crescer sem cessar para não sucumbir; .c, segundo - tal como o
poder, ainda - , ele só detém seu movimento de expansão quando se defronta
com outro saber eqüipotente.
O progresso das ciências se constrói, assim, por meio de contratos e de
embates, por meio de negociações e de transações que contêm ao lado de um
componente polêmico, que se deixa ver nas sanções negativas, um componente
consensual (até para lutar é preciso que os adversários se ponham de antemão de
acordo), que se exprime nas sanções positivas. O trajeto da ci~ncia se baliza, pois,
Fonnaçáo do Pensamento Científico no Século XX • 175

pelo diálogo nem sempre pacífico entre dois epistemas que se defrontam, alternando
a posição de dominador com a de dominado, como tese e antítese, construindo
cada qual, nessa defrontação, especularmente, sua própria identidade: uma vez
que é o outro que nos constitui - 'Je suis un autre", exclama Rimbaud - toda
identidade deverá definir-se diferencialmente, fatalidade que a compele a fazer uma
referência explícita ou implícita ao "outro" ideológico com que se defronta no
interior da mesma comunidade.
No século XX, o oponente primário do epistema estruturalista foi o epistema
histórico-marxista. Não foi o único, nem de longe, pois que todos se recordam,
ainda, com facilidade, para ficar em dois exemplos, da fenomenologia e do exis-
tencialismo; mas foi o mais tenaz e intolerante e, por isso mesmo, o mais útil dentre
todos os movimentos contra-estruturalistas.
A despeito de muitos estruturalistas terem negado sempre qualquer oposição
doutrinária entre os conceitos de história e de estrutura, a verdade é que tal oposição
foi introduzida pelos marxistas e, portanto, existiu, estando sempre orientando,
bem ou mal, claramente ou não, os debates que os historicistas travaram com os
estruturalistas. Apesar disso, é inegável que essa oposição nunca existiu na mente
dos adeptos elo estruturalismo - a começar por Saussure, que propugnou pela
distinção entre a perspectiva sincrónica e a diacrónica, sem nunca ver nisso mais
do que o reconhecimento de uma questão de método, uma opção epistêmica,
imposta pelo dihtat metodológico, de ter de escolher o ponto de vista que vai presidir
à descrição, dihtat esse de que o descritor não tem como se esquivar, já que um
objeto não nos é dado nunca de qualquerjeito, mas, ao contrário, é dado sempre
observado a partir de determinado ponto de vista, que, como Saussure foi o primeiro
a .bzer notar, 'é quem verdadeiramente constrói o objeto a descrever.
Daí ter-se referido ele sempre textualmente quer à perspectiva sincrónica,
quer à perspectiva diacrónica, pelo terni.o jJersjJectiva, "perspectiva" significando a
relaçâo cognitiva instituída entre o lugar do sujeito observador e o lugar do objeto observado.
Mais do que isso mesmo, contudo, o que afirma na doutrina saussuriana a inexis-
tência de qualquer oposição essencial entre as duas abordagens é o fato de que,
no seu entendimento, ambos os ajJjJmaches se definirem como ângulos de ataque'
igualmente estruturais, ficando um ou outro justificado apenas pelo propósito que
anima, em cada caso, o interesse local do descritor. O propósito de estudar as cova-
riações que se alternam num sistema entre dois de seus elementos ali coexistentes,
no interior de um mesmo estado de língua, portanto, levaria à abordagem na pers-
pectiva sincrónica, tão naturalmente como o propósito de estudar a transformação
observada em um elemento (ou na relação entre dois elementos vinculados por
dupla implicação) , em dois estados de língua sucessivos, induziria o Sl~ eito observador
a adotar a perspectiva diacrónica. Cem anos àntes de Ayer, Saussure reconhecia,
assim, que
· 176 • A Identidade e a Diferença

não tem sentido falar de coisas em si mesmas, sem considerar sua relação com nossa maneira ele
concebê-las (Ayer, 1975, p. 24).

Pouco importa, assim, que Saussure,Jakobson, Tinianov, Bakhtin, Propp


e Mukafovski, dentre outros, e por razões diferentes, não reconhecessem nenhuma
oposição válida entre a história e a estrutura. Ela existiu, de fato, e foi tão malsinada
por parte dos marxistas, que, vitoriosa a Revolução de 1917, os estruturalistas
russos se viam compelidos a expatrial:.se - comoJakobson, Trubetzkoi, Karcevski
- ou, na alternativa, a permanecer na terra natal calados - como se deu tanto
tempo com o próprio Bakhtin - , se não se submetessem ao papel de porta-voz
da ideologia estética oficial, sob pena de perseguições de toda a sorte, que iam
da espionagem inerente à "violência doce" das "liberdades vigiadas" ao domicílio
obrigatório em dado ponto do território, da perda de emprego ao isolamento
social e à prisão. Foram anos, esses, em que se tornou moda, em todo o mundo
- sem excetuar, é lógico, o Brasil-, usar no terreno das ciências sociais os slogans
marxistas como um amuleto capaz de testificar a honestidade científica do pes-
quisador, assim como o colar de contas coloridas e o patuá pendente do pescoço
atestam a fé do crente na umbanda; ora, amuleto, não é o marxismo, então,
objeto de um sabe)~ mas de um crer instrumentalizado pelas pressões do poder.
Nem foi a pecha de "anti-historicista", assacada pelos tolos e pelos sábios aos
estruturalistas, mania tão inocente ou epidérmica que não tivesse sobrevivido mais
que alguns poucos anos; ao contrário, ainda em 1971,]akobsonlamentava-se:

Nos tempos que correm, a crítica acha de bom tom acusar a incerteza elo que se chama a
ciência Fonnali'sta ela Literatura. Parece que essa escola não compreende os vínculos da arte e da
vida social, parece que ela preconiza a arte pela arte e marcha nas pegadas ela estética kantiana. Os
críticos que fazem tais objeções são, em seu radicalismo, tão inconseqüentes e precipitados que
esquecem a existência ela terceira dimensão, e vêem tudo no mesmo plano. Nem Tinianov, nem
Muk,üovski, nem Chklovski, nem eu pregamos que a arte se basta a si mesma; ao contrário, mos-
tramos que arte é uma parte do eelifício social, uma componente em correlação com as outras, uma
componente vari,'tvel, pois a esfera da arte e seu vínculo com os outros setores ela estrnturasocial
se moelificam sem cessar, dialeticamente. O que enfatizamos é não um separatismo da arte, mas a
autonomia da função estética (1971, p. 307).

Esse equívoco - que, mais à frente, veremos Lévi-Strauss profligar com


maior violência, ainda - deveu-se mais à intransigência dos posicionamentos
políticos comprometidos com a rigidez dos engajamentos extremistas, da esquerda
radical, do que às livres convicções dos posicionarrientos estéticos. E força reco-
nhecer que causou males demais, injustos demais, pois, ao contrário do que tem
sido afirmado com parva reverência pelos áulicos saudosos C}O stalinismo, os for-
F017nação do Pensamento Científico no Século XX • 177

malistas, sempre acusados de "desconhecer a história", foram os primeiros teóricos


da literatura a compreender a literatura como fato social:

ao contrário da imagem que a pr<'ítica dos modelos de análise estrutural '.'eio fazer crer a seguir,
descobre-se [nos textos formalistas] uma concepção poderosamente historicizacla. Para ficar só nos
textos de Jakobsoll, é fácil encontrar, enunciados Yigorosamente em alguns artigos que datam do
princípio do século, Yárias modulações elo yínculo do texto poético com suas determinações históricas
e sociais. Em 1919, num artigo intitulado "A Nova Poética Russa" adianta-se a idéia de que "a teoria
da linguagem poética só poderá se desem'olver se tratarmos a poesia como fato social, se criarmos
Ullla espécie de dialetologia poética". Jakobson consagra assim o écla/elllen/ de um gênero poético
monolítico para sugerir o estudo, para uma dada época, dos fenõmenos de predomínio exercidos por
certos autores, do jogo de empréstimos e imitações e do de dissidências (Pelletier, 1977, p. 61).

A MUDANÇA DA FUNÇAO SOCIAL DA LITERATURA


E O SURGIMENTO DO FORr-.1ALISMO

Da ns le dOlllaine de la scienee... ehaeun sait que son

oeuvre aura vielli d'ici dix, vingt ou cinquan/e ans.

Tou/e oeuvl"e scientifique "aehevée" n 'a cl'autJes sens que

eelui de faire naztre de llouvelles ques/iolls: elle

demande done á é/re "déjJassée" et á vieUir.

MAX WEBER

A voga do estruturalismo no Ocidente está ligada à mudança do papel que


a literatura desempenha na sociedade de dois diferentes períodos históricos, antes
e depois da Primeira Guerra Mundial. Tradicionalmente ligada às classes domi-
nantes, a literatura servira obedientemente ao poder, instalando-se privilegia-
damente nas mãos da burguesia culta, endinheirada, de Cl~oS interesses e visões
tranvestidos de "valores humanistas" se fizera nobre megafone até os finais do
século XIX. A sublevação das camadas populares, contudo, de que dão exemplos
assinalados as convulsões sociais que estouram na mesma vaga que veio trazer a
Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique, mostra que ali principiaria
uma nova era, em tudo e por tudo revolucionária, em que não tem mais cabida
a alienação dos esteticismos beletristas e dos humanistas simbólicos que haviam
erguido às culminãncias o prestígio da literatura "sorriso da sociedade". Ganham
importância crescente, agora, as cobranças em altos brados do seu papel social,
quer dizer, dos comprometimentos com as causas populares, da justiça social e
dos direitos humanos.
178 • A Identidade e a Diferença

A literatura das boas intenções perde, então, a condição de álibi das culpas
e adquire um novo sentido histórico na medida em que o que as pessoas passam
a procurar compreender na obra literária não é mais, simplesmente, o que é que
ela diz, mas sim, e antes, o que é que ela faz com as pessoas com isso que ela diz.
Para poder responder a tal desiderato, os formalistas surgem lembrando
que, do ponto de vista do seu ser, a literatura é antes de tudo um tipo de mensagem
e como tal terá de ser estudada como precondição para que possamos responder
o que ali se pergunta. Provém daí o fascínio que os formalistas sentiram pela pro-
priedade da construtibilidade do texto literário. Já do ponto de vista do seu fazer,
a literatura se revelará como um agente manipulador e transformador da cons-
ciência de classe, na medida em que ela pode patentear os conflitos, que as relações
sociais tiveram em mascarar, entre o capital e o trabalho, entre uma ideologia que
dá a ver seu lado positivo e uma ideologia que esconde ao mesmo tempo, nesse
gesto, seu lado negativo.
A revelação desse artifício implica a automática desmistificação do mito
humanista da arte, exibido como um penhor da sua boa intenção humanitária,
mas que funciona, na verdade, como a válvula de segurança que deixa escapar a
pressão interiorizada no sentido de culpa das camadas libcrais capitalistas. Que a
literatura perca, em decorrência disso, o antigo prestígio e entre em crise, que
ela, como todo fenômeno ligado às tomadas de autoconsciência, se torne mais do
que nunca critica e, passando a falar de si mesma, metalingüística e autocrítica,
tudo isso funciona apenas como o corolário inevitável, na marcha dos tempos,
das conclusões que tais desmistificações impunham ao teórico da literatura cons-
ciente. O fato é que esse desvcndamento lhe permitia recuperar a noção do fazer
próprio de séu ofício, a noção do exercício todo penoso, que os novos tempos lhe
reservam, de erguer-se, agora, em primeiríssimo lugar, contra as funções conso-
ladoras outrora atribuídas à crítica e à teoria literária tradicionais, de "maquilar
o defunto"; cai por terra, agora, um dos pilares de sustentação do microuniverso
ideológico que racionalizava e justificava o mito do privilégio cultural das elites e
o prestígio dos objetos simbólicos acessíveis só aos espaços ocupados pela bur-
guesia triunfante. Como Adorno vai acentuar mais tarde, "o favor que o estrutü-
ralismo em literatura recebeu está ligado ao desaparecimento da função que a
burguesia assegurava ao objeto literário (apud Lima, 1983,1'01. II, p. 227).
Nessa linha de entendimento, o surgimento dos diversos estruturalismos,
que se anunciam já em embrião no primeiro e segundo decênio da centúria, como
o formalismo russo e, logo, como o estruturalismo tcheco, se explica como o
resultado de uma mudança de nível de consciência, uma ruptura epistemológica,
uma transformação da ideologia.
N esse contexto histórico-cultural de ernergência do estruturalismo, emerge,
também, uma propriedade exaltante da atividade humana, a que habitualmente
Formaçâo do Pensamento Científico no Século XX • 179

não prestamos muita atenção, a não ser para lastimá-la, quando deveríamos, ao
contrário, louvá-la: é a impelfeição, estigma característico de toda prática do homem,
tanto da especulativa, das ciências ditas, pretensiosamente, "exatas", baseadas no
exercício do juízo analítico da razão, quanto da prática mítica, das ciências ditas,
em termos discutíveis, "sociais e humanas". Mas é exatamente por ser a imper-
feição uma marca de origem do trabalho do homem que não há, nunca houve,
nem poderá h;wer, de fato, ciência alguma "exata"; se houvesse alguma - do que
o bom Deus queira nos linar - , ela saberia tudo o que há para saber e tornaria
inúteis todas as demais, visto que necessariamente as compreenderia; em conse-
qüência, o tipo de ser, bom ou mau, que o homem foi até então estaria pronto
para ser atirado à lata de lixo da história.
Mesmo a matemática. Acostumamo-nos a pensar que a matemática oferece
uma só solução para cada problema colocado e que, portanto, ela constitui uma
ciência exata. Mas essa é uma concepção ideal da matemática, da matemática que
gostaríamos que existisse mas que é inexistente na realidade; no fundo, é um pre-
conceito contra tudo o que não seja "matematizável"; um preconceito que cor-
responde à opinião vulgar, ao bom senso comum do povo, que, como todo
enunciado do senso comum, é também simplório.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento de qualquer disciplina depende do
atual estágio de conhecimento que ela alcançou. É esse estado atual que coloca
para ela seu próprio horizonte de probabilidades, no interior do qual tais ou quais
soluções são possíveis e não outras: sem a anterioridade da teoria do cálculo de
Lagrange, Einstein nunca teria podido elaborar a teoria da relatividade.
Por outro lado, como demonstra a passagem da geometria euclidiana para
a não-euclidiana, por exemplo, muito depende dos postulados de partida. Um
conjunto de postulados se coerentiza à base de um conjunto de pontos de vista
interdefiníveis, cl~a mobilização torna possível dado equacionamento dos pro-
blemas. É comum que as pessoas pensem que, uma vez bem equacionado um
problema, o arranjo de relações daí resultante equacione, também, pelo menos
metade da sua futura solução; um problema bem-equacionado é um problema
meio-resolvido,julgam elas; mas Bachelard lembra que é quando três quartos do
problema já estão resolvidos que ele pode ser bem-equacionado.
Outro preconceito a respeito da posição especial da matemática e da con-
sideração que ela desfruta no seio das ciências supõe que ela seja lógica e racional.
Mas isso tampouco é verdadeiro. De fato, como qualquer outra ciência, a mate- .
mática é uma linguagem que se vê obrigada a construir a metalinguagem que
utiliza para falar do seu objeto e, ao fazê-lo, não há nunca muita lógica nisso -
assim, o símbolo da raiz de menos um, por exemplo, é completamente irracional e
não tem qualquer sentido asseverar que o círcülo tem 360 graus, depois que nós
o dividimos em 360 graus.
180 • A Identidade e a Dijérença

De fato, assim como há sempre "árias maneiras de errar, há sempre "árias


maneiras de acertar com a solução de um problema. E é bom que assim seja. Se
isso não se desse, essa ciência não poderia progredir. Pois a primeira condição
para a e"olução - de uma ciência, de uma arte, de uma língua, de um indi"íduo
etc. -é poder "fazer o ato no"o". E não há nenhuma maneira de fazer algo "er-
dadeiramente no"o sem correr o risco de errar.
Poder errar é a condiçâo do jJrogresso, na medida em que "errar" designe a
coragem de ousar fazer o ato no"o capaz de nos levar à superação do estágio atual,
à ultrapassagem histórica, e à transcendência. Poder errar é o segredo: nós temos
de nos ocujJar com isso, temos de ousar transcender o que já fizemos; mas não
temos de nos preocupar com isso, porque, enfim, quem não pode errar também
não pode acertar. Desse modo, o que chamamos com palavra impura de "imper-
feição" é só outro nome infeliz para a marca da perfectibilidade infinita do homem,
infinitamente aberta ao futuro da espécie.
Vimos, atrás, que o atual estágio de conhecimento condiciona os próximos
conhecimentos a que o homem chegará no futuro imediato. Todo conhecimento
emerge do campo do concebí"el, nunca do que ainda é inconcebí"el. E as ciências
não são nunca muito mais do que isso, agentes de um deslocamento de limites,
a operar uma incessante ampliação do campo do concebível. É o que ad"erte a
epígrafe de J'vIax 'Weber que pusemos neste tópico: "Toda obra científica 'acabada'
não tem outros sentidos que o de engendrar no"as questões: ela requer, portanto,
ser ultrapassada e envelhecer".
Em outras pala"ras: cada época soluciona apenas os problemas que estão
prontos para ser solucionados, deixando para a geração subseqüente a tarefa de
solucionar às no"os problemas que ela tornou possí"el fossem di"isados, ampliando
o campo do concebí"el, mas que para ela mesma não constituíam ainda "pro-
blemas prontos para solucionar".
Aí se localiza a nossa dí"ida para com os estruturalistas todos que nos pre-
cederam, dos formalistas russos do começo do século aos semiólogos das décadas
de 60 e 70: eles ampliaram até limites nunca antes suspeitados pelos teóricos da
literatura o campo do concebível para nós.
7

o ESTRUTURALISMO FORMALISTA RUSSO:


O CÍRCULO LINCÜÍSTICO DE MOSCOU
EAOPOIAZ

Le vmi jJéché c'est l'oubli.


lVIlRCEA EUADE

CONTEXTO HISTÓRICO DE EMERGÊNCIA DO FORMALISMO: AS


TEORIAS ESTÉTICAS E AS TEORIAS FORNIALISTAS DA LITERATURA

Obseruelll qllelllutiliza significante e significado,


sincronia e diaclVnia, e saberão onde
a visada estrutumlista está estabelecida.

R. BARTHES

Na Rússia dos finais do século XIX, os estudos sobre a narrativa seguiam


duas direções predominantes, a da estética idealista, Cl~O maior mentor é Bielinski,
c a da etnologia comparada, ligada ao folclore - Vesselovski, nominalmente
citado por Propp como seu precursor, é o grande nome dessa tendência. Nos
eixos de prolongamento dessas linhas, o século XX se inaugurará cul tivando duas
correntes divergentes, a das teorias estéticas, e·ncabeçadas pela obra de Gyõrgy
Lukács (que primeiramente se deixara guiar pelo idealismo de Hegel, mas que,
182 • A Identidade e a Dijérença

após a Revolução de 1917, aderirá ao realismo crítico marxista), e, de outro lado,


a corrente das teorias funcionais formalistas, que, principiando a trabalhar sobre
o discurso poético, se encaminha mais tarde para a narrativa; pelos anos de 1928
e 1929 saem três grandes obras que atestam o vigor e a profundidade que
alcançaram as reflexões formalistas acerca do relato, a iVIOIfologia do Conto lvlara-
vil!wso, de Propp, a Teoria da Prosa, de Chklovski, e o Problemas da Poética de Dos-
toiévshi, de Bakhtin.
Neste capítulo, descreveremos sucintamente as teorias formalistas que cons-
tituem, no seu conjunto, a primeira tentativa bem-sucedida de transpor para o
domínio da literatura os ganhos teóricos obtidos com a divulgação dos trabalhos
pioneiros da semiolingüística geral e estrutural. Precedendo a todas elas, for-
necendo-lhes modelos de abordagem e quadros teóricos, inspirando, confessada
ou inconfessadamente, seus conceitos e métodos, estão as correntes seg'uintes:

a. A semiolingüística geral e estrutural de Ferdinand de Saussure influ-


ente direta ou indiretamente, através da obra da primeira geração da
Escola de Genebra, formada, dentre outros, por ex-alunos de Saussure,
Charles Bally, A. Sechehaye, A. Riedlinger, Serge Karcevski, A. Meillet
e outros (cf. primeira parte desta obra).
b. As explorações pioneiras, mas isoladas, de três lingüistas de nomeada
na Rússia finissecular, A. N. Vesselovski (1938-1906), A. A. Potiebniá
(1835-1891) e o polonês emigrado]an Baudouin de Courtenay (1845-
1929) .
c. A fenomenologia de E. Husserl, em especial suas Logische Untersuchungen
(Investigações Lógicas), de 1900, Cl~o segundo tomo, mais particularmente,
influenciou todos os citados em (a) e (b) acima (com exceção, natu-
ralmente, de Potiebniá, morto antes da impressão da obra).
d. Os movimentos pictórico cubista (a partir de 1907) e poético futurista
- do futurismo russo, não do italiano, que esteve na Rússia sempre
associado ao cubismo (cf. Yllera, 1974, p. 51).

O que liga esses nomes todos é sua comum adesão ã tese muito geral de que
a literatura é um fato lingüístico, em primeiro lugar, uma modalidade de discurso,
e como tal deve ser tratada. E, na verdade, a aplicação dos modelos lingüísticos à
teoria, à análise e à in terpretação da obra literáriafoi tão extensa, a partir dos fins
do século XIX, que nenhuma das grandes escolas que se ocupam da literatura a
partir de então até os anos 60 do século XX deixa de estar inspirada, de um ou
outro modo, pela lingüística, desde as tendências que vão orientar-se de prefe-
rência pela metodologia mais propriamente filológica ou estilística (como a esti-
lística suíço-alemã de L. Spitzer, 1V1. Hatzfeld, K. Vossler, E .. Auerbach, ou a esti-
o Estruturalismo Fonnalista Russo: O Círculo Lingüístico de Nloscou e a OPOIAZ • 183

lística espanhola, de Dámaso Alonso, Amado Alonso, Carlos Bousollo), até as que
vão buscar subsídios nos modelos mais propriamente lingüísticos, da lingüística
saussuriana ou russa - como os formalistas russos, os formalistas tchecos, os estru-
turalistas e semiólogos franceses.
É certo que a semiolingüística de Genebra exerceu, desde o início, influxos
mais poderosos do que os que lhe foram sempre reconhecidos e que seu peso no
processo não pode ser subestimado; isso não obstante, é também verdade que a
Rússia czarista possuía de longa data uma preciosa tradição no estudo dos sistemas
modelizan tes primários (o das línguas naturais) e secundários (o dos demais
sistemas de signos), não-verbais, trabalhos que incidiam costumeiramente sobre
a área do folclore, dos relatos, das canções populares, das obras literárias, plásticas
e visuais. E é na deriva dessa tradição autóctone que se situam mais precisamente,
para ficar em dois nomes cimeiros, a contribuição de Chklovski (que escreveu
sobre a literatura de inspiração popular e fescenina de Boccaccio, da Panchatantm
e das JVIile UlllaNoites, e, ao mesmo tempo, sobre a arte literária culta de um Sterne,
um Cervantes e um Tolstói), bem como a de Propp (que timbrou em se consideral~
do início ao fim de sua vida, basicamente um folclorista), quanto a de Bakhtin,
dedicado, ele também, às investigações sobre a cultura do riso popular na Idade
Média e de suas manifestações na arte da palavra - no romance - e nas festas
ritualizadas do povo, como o Carnaval.
O desenvolvimento dessa venerável tradição foi, contudo, brutalmente sec-
cionado pelas medidas "moralizantes" de enquadramento partidário-ideológico
adotado pelo Estado soviético no final dos anos 30. A contar daí, da violenta mzzia
promovida pela repressão stalinista, por cerca de trinta anos, as brilhantes con-
quistas do pensamento russo do início do século deixam-se, aos poucos, sufocar
pelo obscurantismo. Centenas de artistas, e de investigadores, mas principalmente
os que trabalham com a arte da palavra, lingüistas, filólogos, escritores, pro-
fessores, Cl~as idéias não se alinhavam com a ortodoxia do momento, foram
presos, expulsos de seus empregos, banidos de suas casas, removidos para regiões
ermas, conduzidas ao degredo ou à prisão - e não é possível esquecer o caso de
Evguéni Dmitrievitch Polivanov (1891-1938), um dos maiores poliglotas do mundo
(dizem que conhecia mais de trinta línguas, mas não nos deixou senão alguns
artigos nos Travaux du Cercle Linguistique de Prague) , que foi execu tado pela polícia
de Stalin.
Só no decênio de 60, superada a era obscurantista, se reata o fio partido
da tradição dos estudos estruturais formalistas. Reeditam-se, então, as obras mais
importantes de 20 e 30, de Propp, de Bakhtin, de Eikhenbaum, de Tinianov, de
Tomachevski, além de inéditos daqueles anos, como a importante Psicologia da
Arte, de Vigotski, e outras dezenas de dispersos inovadores que tinham sido
relegados para folhas inexpressivas e que por felicidade não se perderam, como
184 • A Identidade e a Diferença

os que continham a obra de cineastas e teatrólogos do porte de Eisenstein -


importantíssima para a moderna teoria da montagem, no cinema- e Pudovkin,
dos primeiros a dimensionar a real importáncia do contexto para o sentido da
cena fílmica.
Coincidindo com esse renascimento do estruturalismo dos 30 e nutrindo-o,
emergia, também, ao redor dos anos 60, uma nova geração de investigadores,
composta de nomes como Ivanov, J. Lotman, V. Toporav, B. Uspenski, S. K.
Saumjan, que retomam a herança de 15 a 30 e vão, recuperando-a, constituir a
vaga do segundo estruturalismo formalista, não mais um formalismo russo, agora,
mas um formalismo soviético, fazendo da Escola de Tartu, na Estônia, o centro
de irradiação das novas idéias.
Visando à clareza da exposição, dividiremos o estudo do estruturalismo for-
malista em três períodos, dos quais apenas os dois primeiros serão objeto de con-
siderações aqui:

1. o estruturalismo formalista russo, ou formalismo russo tout court, do


primeira período (de 1914 a 1925);
2. o formalismo do segundo período (de 1925 a 1930); e
3. o formalismo semiótica soviético, da Escola de Tartu (de 1960 em diante).

No primeiro período, o formalismo russo reúne duas vertentes, uma lin-


güística, representada no Círculo Lingüístico de Moscou, e a outra crítico-teórico-
literária, mais característica da OPOIAZ, a Sociedade São-petersburguense para o
Estudo da Linguagem Poética.

A Lingilística: O Círculo Lingidstico de Nlosco'Ll

Em março de 1915, Roman Ossipovitchjakobson (1896-1981), que tinha


apenas dezenove anos e seguia seu primeiro curso de lingüística na Universidade
de Moscou, propôs a alguns de seus colegas a criação de uma associação dedicadâ
ao estudo das línguas. Surgiu, assim, o Círculo Lingüístico de Moscou. Sua primeira
sessão, assistida por dez estudantes, se deu na sala de jantar da residência dos pais
dejakobson, na capital da Rússia.
No mesmo ano,jakobson conheceu Nikolai Trubetzkoi, que, a despeito de
contarjá dois anos de licenciado, não ministrava ainda cursos na universidade. A
conselho dele, jakobson desviou-se da escola alemã seguida à época pelos aca-
dêmicos de Moscou, de que Fortunatov era um dos expoentes (o mesmo Fortunatov
aquem Trubetzkoi contraditou obliquamente, verberando em um cáustico artigo,
que fez furor na época, os maus resultados do emprego de seus métodos por A.
A. Sermatov). Seguindo o aviso de Trubetzkoi, o jovemjak.obson voltou-se então
o Estruturalismo Fonnalista Russo: O Círculo Lingiiístico de lvloscou e a OPOL4Z • 185

para os trabalhos dos franceses A. ]'vIeillet, E. Ernault e M. Grammont, que haviam


feito parte da primeira geração da Escola de Genebra, colegas e ex-discípulos de
Saussure, Cl~Os ensinamentos prolongavam.
No primeiro programa de estudos então organizado, em 1915 ainda, os
moços de Moscou trataram de delimitar suas áreas de interesse: pesquisar novos
métodos na ciência da linguagem, especialmente na área da fonética e da fonologia
(a divisão entre essas duas disciplinas não chegara sequer a ser esboçada, então),
e, dentro do domínio da literatura, a linguagem poética e o estudo do folclore (o
estudo das manifestações da cultura popular tinha, na Rússia dos inícios do século,
uma importância muito maior do que em qualquer outro país europeu).
Dentre esses moços estavam, além do próprio Jakobson, um dos maiores
lingüistas do século XX, o filólogo Nicolai Yakovlev, caucasólogo, um folclorista
pré-estruturalista avant la leUre no cam po da etnologia eslava, Pietr Bogatyrev,
Brulaev e Buslaev; mais tarde, juntaram-se-Ihes G. O. Vinokur, Ossip Brik, B.
Tomachevski e os poetas Boris Pasternak, "tvIandelstam e Maiakóvski (este, apesar
de ter-se tornado uma espécie de bandeira oficial da poesia marxista, anos
depois, apresentou alguns trabalhos seus no Círculo e foi assíduo freqüentador
das primeiras sessões; não se aprofundara, ainda, a dissensão entre os marxistas
e os formalistas).

A Teoria da Literatura: A OPOIAZ) Sociedade Sâo-peterslnl'rguense para o Estudo


da Linguagem Poética

Alguns dos membros do Círculo Lingüístico de Moscou vieram a integrar,


também, uma' sociedade que se organizou para estudar a linguagem poética-
poética era o nome pelo qual se abrangia, àqueles anos, os discursos literários
em verso e em prosa, equivalendo, l)ois, à literatura tout court - em São
Petersburgo.
Essa escola, conhecida pela sigla OPOIAZ, abreviatura de Sociedade São-
petersburguense para o Estudo da Linguagem Poética (literária), foi fundada
em 1917 por iniciativa deJ akobson e Ossip Brik. Na residência deste último foram
efetuadas as primeiras reuniões, às quais compareceram, além deles, Victor
Chklovski, B. Eikhenbaum, S. Bernstein, LevY'1kobinski e Polivanov, dentre outros.
Havia importantes diferenças entre as duas correntes que hoje costumamos,
por comodidade didática, associar na mesma rubrica de formalismo russo, uma·
voltada mais para os estudos lingüísticos propriamente ditos - o Círculo de
Moscou - , outra mais direcionada para a promoção de investigações teóricas e
críticas da literatura - a OPOIAZ. Mas, seus componen tes não raro eram membros
das duas entidades, ou dedicavam-se tanto aos trabalhos lingüísticos quanto aos
trabalhos literários, de modo que não há grande prejuízo em continuar consi-
186 • A Identidade e a Diferença

derando-os englobadamente como membros do formalismo russo, a despeito de


sabermos que os moscovitas estavam mais particularmente interessados na cons-
trução de uma fonética/fonologia e na sistematização dos estudos das línguas e
dialetos eslavos, ao passo que os problemas capitais dos petersburguenses eram a
definição do procedimento de construçâo - ou "princípio de camposiçâo" (do russo
priem) - , a definição da funçâo jJoética Uimçâo literária) da linguagem e a sistemática
observação dos efeitos de sentido, que vão chamar de singularizaçâoou estranhamento
(do russo ostranienie).
As obras principais desse primeiro período do estruturalismo formalista-
do formalismo russo, no sentido estrito - refletem tais preocupações; são elas,
Como Está Feito o "Quixote", de V. Chklovski; A Arte como Procedimento, do mesmo
autor; ComoFoiFeito "O CajJote", de Gogol, de B. Eikhenbaum; e A Nova Poesia Russa,
de R Jakobson.
No segundo período do estruturalismo formalista, problemas especialmente
focalizados são os apresentados pela definição não-conteudística da evolução his-
tórica da literatura, que os avatares do realismo crítico marxista, fundados em
uma visão positivista da história e no modelo ingênuo da teoria do reflexo, con-
cebiam, ainda, como um epifenômeno da evolução social. Devido a isso, esses
anos são marcados pela polêmica, nem sempre branda nem exclusivamente dis-
cursiva, dos marxistas com os formalistas. Surgem, a partir daí, as radicalizações,
que, de um e de outro lado, tornam impossível a convivência pacífica entre as
duas correntes. É assim que formalistas como Chklovski, por exemplo, absolutizam
as formulações anticon teudísticas da teoria formal, não encontrando melhor meio
de combater a dogmática historicista do materialismo dialético do que exacerbar
os aspectos puramente mecanicistas dessa fase do estruturalismo. É conhecida a
lamentável conseqüência de tais intransigências: a brutal repressão desencadeada
pelo marxismo no poder acabou por causar a debandada, a (felizmente pequena)
defecção e apostasia dos formalistas, silenciando à força o movimento durante
trinta anos, de 1930 a 1960.
No segundo período do estruturalismo formalista, o do formalismo soviético
stricto sensu, destacaram-se sobremaneira, além de Jakobson e Chklovski, que-
vinham da fase anterior, do formalismo russo, Iuri Tinianov, talentosíssimo pre-
cursor quase nunca devidamente reconhecido, das noções-chave de funçâo e de
intertextualidade-ainda tratadas, só, em termos de dialogicidade e citaçâo-, Mikhail
Bakhtin e Vladimir Propp, Cl~O pensamento em parte se beneficiou dos esforços
pioneiros de Tinianov.
Dentre as principais obras daqueles anos estão: O Fato Literário (1924), de
r. Tinianov; Da Evoluçâo Literária (1927), do mesmo autor; Sobre a Teoria da Prosa
(1928), brilhante realização de V. Chklovski; lVIOljologia do Conto ivIaravilhoso (1928),
de V. Ja. Propp; e Problemas da Poética de Dostoiévshi (1929), de .M. Bakhtin.
o Estruturalismo FOl7nalista Russo: O Círculo Lingüístico de l\1oscou e a OPOIJ1Z • 187

Com a vitória da Revolução de 1917, as concepções marxistas se converteram


em slogans, enunciados dogmáticos e ordens do dia. Batidos por toda a parte na
União Soviética, os formalistas se viram diante da contingência de exilar-se ou de,
permanecendo em sua pátria, abjurar de suas convicções "con tra-revolucionárias",
sob pena de, em caso contrário, sofi'er a feroz perseguição do período stalinista,
que não raro se exprimia na imposição do domicílio forçado, da perda do em prego,
da censura que os proibia de publicar quanto faziam, e, mesmo, da prisão.
Reduzidos ao silêncio por trinta anos, só a partir de 1960 suas concepções
foram reeditadas em seu próprio país. Puderam, então, circular mais livremente,
e o resultado foi que o formalismo tornou a aparecer,já agora atualizado, na forma
da semiótica soviética, Cl~O centro é a Escola de Tartu, na Estónia.

A Semiótica Soviética: A Escola de Tartu

A chamada Escola de Tartu (e é bom nos lembrarmos de que essas deno-


minações, freqüentemente pregadas aos movimentos culturais pelos seus adver-
sários mais ferrenhos e com intuito depreciativo, são sempre rotulações muito clis-
cutÍveis, quando não francamente rejeitadas, como impróprias, pela maioria
daqueles a quem classificam para a posteridade), reúne um grupo heterogêneo
de pesquisadores, alguns dos quais remanescentes do formalismo das décadas
iniciais do século, como os folcloristas Bogatyrev e E. M. Mieletinski, ao lado de
outros, mais moços, da Academia das Ciências, do Instituto Eslavo e do Instituto
da Língua Russa, de Moscou, Leningrado e Tartu.
Apesar de publicarem suas pesquisas em diferentes órgãos, destacam-se,
dentre as revistas que os abrigam, Semeiotihe: Trudy po Znalwwym Sistemam, que se
publica em Tartu, dirigida por Iuri Lotman, Semeiotihe, editada pela mesma escola,
que publica em especial as comunicaçõe's apresentadas sobre o assunto durante
as " esco1
as c1 - " (cursos cIe"ienas
e verao "').
O campo dos estudos semióticos soviéticos é extremamente 21mpIo. Ele cobre
a tipologia das culturas, asemiótica das línguas naturais e artificiais, além de inúmeras
semióticas particulares, a semiótica do cinema, da arte, da música, da etiqueta, dos
ritos, do folclore, da mitologia, da moda, dos costumes, dos sistemas de adivinhação
etc., todas as modalidades, enfim, de sistemas modelizantes secundários, nome que
os tartuenses usam aplicar a todos os sistemas semióticos não-verbais.
Apesar de, como sublinhamos, nem todos aceitarem ser conhecidos como
formalistas, nem como membros da Escola de Tartu, os estudiosos que costumam
publicar seus trabalhos nesses anais não teriam muita dificuldade em se reco-
nhecer na definição do que constitui objeto de estudo para eles, que é, grosso
modo, toda prática social que utilize, no domÍhio da produção, da circulação e
do consumo, informações processadas por intermédio de sistemas de signos
188 • A Identidade e a Diferença

que, sem embargo de se organizar em estruturas autónomas e diferenciadas, só


funcionam em interdependência; no jargão da semiótica européia dos nossos
dias, poderíamos dizer que, para os tartuenses, cada semiótica em particular se
caracteriza por um dado funcionamento intersemiótico. Por causa disso, é comum
a convicção deles de que, cobrindo aspectos totalizantes da cultura de cada
comunidade, só a semiótica da cultura pode ser considerada a metaciência capaz
de descrever e explicar as semióticas particulares, na qualidade de ciência que
se encarrega de observar a interdependência funcional dos diferentes sistemas
de signos.
O problema capital da semiótica da cultura, assim, é construir o modelo do
funcionamento hierarquizado das semióticas particulares, dentro de um todo
abrangente modelo de funcionamento da cultura. Do ponto de vista dessa hie-
rarquia, por exemplo, será adequado considerar unicamente a língua natural
como o sistema modelizante primário, quer dizer, como o modelo universal de
su perohtenaçao'clt: ldoos- 05- I ÔL<lÚ'lC;{ -epblFlDeDO",:-é'ú'q th":~p<l'i'Ce~~m::rCÜílfu" ü

maior parte dos tartuenses).


Colocado como conexo a esse, está o problema do lugar que se deva atribuir
a cada sistema em particular por referência a outro (s): qual é o papel das mate-
máticas, ou da música, ou dos sistemas de adivinhação, dentro do conjunto? Que
significa e particulariza o cinema em face do teatro, da pintura ou da poesia con-
temporâneos? Tais perquirições são básicas tanto para a elaboração de uma tipologia
estrutural quanto para a problemática da e\'olução da cultura: que fatores con-
correm objetivamente para as mudanças e como atuam eles?, que modelo adotar
para esclarecer o dinamismo interno dos ~ustamentos mútuos e das interações
que intervêtl1 nos processos de aculturação?
Esse imenso programa de cstudos contempla, ainda, a possibilidade de
transferir, como ressalta Zolkiewski (1972, p. 209), resultados obtidos numa área
para outra, tornando mutuamente esclarecedores domínios que permaneceram
até aqui refratários à comparação, como a arte, a ciência e a política, por exemplo,
ou a pintura e o ycstuário, campos tradicionalmente encarados separadamente,
mas que a todas luzes ocupam espaços complementares na estruturação final dD
espaço cultural.
Trata-se, como se Yê, de projeto extremamente ambicioso, em que se ocupava,
por volta de 1970, cerca de meia centena de semioticistas de um ou outro modo
ligados à Escola de Tartu. Como, todayia, a consideração de seus trabalhos refoge
aos objetivos desta obra, nas páginas restan tes estaremos nos limitando a investigar,
apenas, a contribuição que trouxeram para o desenvolvimento das modernas
teorias estru turais da narrativa na yerten te da semiótica francesa, as idéias surgidas
só entre os formalistas russos e soyiéticos, dá primeiro e do segundo período (os
que escreveram entre 1914 c 1930 aproximadamen te).
o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingiiístico de 111oscou e a OPOlJiZ • 189

o ESTRUTURALISMO FORtvIALISTA: O FORI'vIALISMO RUSSO DE 1914 A


1930. PRIMEIRA NOÇÃO DE FORlvLL\

As forlllas da ar/e são e.\jJlicadas jJelas leis da ar/e.

CIIKLOVSKI

No princípio, os formalistas não tinham sequer uma doutrina - eram, de


fato, contra toda e qualquer doutrina; e tampouco se consideravam "formalistas",
etiqueta que, à época, sobre ser bastante depreciativa, era, no mínimo, amea-
çadora, naqueles anos de rotundas afirmações ideológicas prenhes de apelos aos
comprometimen tos revol ucionários.
lVIas, sem descurar de seus particulares posicionamentos políticos, os forma-
listas estavam mais interessados em tratar, em matéria de engajamento intelectual,
com os mecanismos da língua e da literatura, coisa que se evidenciajá em seus pri-
meiros trabalhos, apresen t:1.dos por ocasião do simpósio da OPOIAZ, Estudos da Teoria
da Linguagem Poética, colet:-1nea de 1916, posteriormente ampliada com novos ensaios
e republicada por O. Brik, Eikhenbaum e Chklovski, sob o título Poética, em 1919.
Um dos alicerces do formalismo russo era o simbolismo, no que tange à
consideração dada àforma, por exemplo, enquanto instrumento de comunicação,
autónomo e auto-expressivo. Era a forma, assim concebida pelos simbolistas como
linguagem que nada mais exprime além de si mesma, mas que, pelo contrário, se
vale de meios rítmicos, associativos e conotativos, a responsável pela construção
da linguagem poética (literária), enquanto instrumento de comllnicação oposto à
linguagem utilitária, não-literária. Mas os simbolistas pecavam por excessivo
idealismo e, na medida em que o faziam,' eram n;jeitados pelos formalistas, mais
in teressados em liberar a metalinguagem teórica de seus vínculos com teorias filo-
sóficas e estéticas subjetivas; assim, faziam eles questão fechada de iniciar um
exame mais rigorosamente científico do fato literário: "Estávamos decididos a con-
a-apor aos princípios estéticos subjetivistas dos simbolistas uma postura-científica
objetiva perante os fatos. Daí provém o novo paLhos do positivismo científico que
caracteriza os formalistas; repudiavam-se as conjecturas filosóficas e estéticas"
(Eikhenbaum, 1925, apudBroekman, 1974, p. 46).

Reivindicaçào da Autonomia da Obra de Arte Literária:


Formalistas ou l\!IOlfologistas?

Pretendendo isolar e descrever os procedimentos de natureza peculiarmente


literária, os formalistas concederam atenção especial ao exame de certos pro-
190 • A Identidade e a Diferença

cedimen tos rí tmicos e fonêmicos do poema, em detrimento do conteúdo dele.


Por motiyo semelhante, desprezaram inicialmente "o sentido da mensagem" e,
mais que tudo, a "pesquisa de suas fontes", as ancoragens históricas de todo tipo,
como, por exemplo, as que pretensamente se pinçayam na biografia do seu
"autor" - tudo o que, no seu modo de ver, acabaya por reduzir o complexo
fenômeno da eyolução literária à condição de epifenômeno das mudanças
ocorridas contemporaneamente no seio de uma dada formação social. Inutilizam-
se, assim, para seus propósitos, os repertórios de infinitos "dados" leyantados
pelas abordagens extrínsecas ao texto, todas, no fundo, notações de discutível
caráter sociológico, historiográfico, psicológico, biográfico, em síntese, apor-
tações culturológicas, que a teoria e a crítica acadêmica tradicional costumayam
mobilizar à época para, utilizando o texto como um pré-texto (yale dizer, um
"álibi" e uma "motiyação"), fabricar seu próprio discurso; um discurso que, ao
invés de dizer o texto, dizia infinitamente outra coisa (jJretensamente) a jJrojJósito do
texto-objeto propriamente dito.
Uma negação nítida e rotunda, como se vê, daquilo mesmo que o Programa
de Estética do Partido Comunista SoYiético defendia por escrito ainda em 1948,
definindo a arte como "uma forma de conhecimento social" e o artista como "um
porta-voz e sua obra (como) um testemunho".
Nesse sentido, para os comunistas ainda da metade do século, "todo romance
é uma reportagem, e todo romancista é um sociólogo mais ou menos in tuitivo"
(Mora, 1964, p. 15).
Para os formalistas, contudo, o texto literário está dotado de um valor subs-
tan tivo, valia por si mesmo e em si mesmo; a arte, argumentavam eles, é uma
prática huniana autodetenninada: "As formas da arte são explicadas pelas leis da
arte" (Chklovski, ajJud Erlich, 1955, p. 172).
Em que pese, porém, atribuirmos, hoje, a eles, um corpo de doutrina travado
e coeso, no princípio nada disso foi assim tão claro. Por isso,]akobson resumiu
assim os principais caracteres do formalismo inicial:

a. Inexistência de doutrina (debatiam-se todas as linhas teóricas, com a


maior liberdade).
b. Inexistência de método único (havia uma cerrada confrontação de
pontos de yista conflitantes).
c. Mais do que mera coincidência e simples contato, havia uma yerdadeira
colaboração entre os membros de cada um dos grupos.

Suas idéias mestras eram, então,

a. O rechaço de todo e qualquer dogmatismo.


o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingiiístico de },;foscou e a OPOIJtZ • 191

b. A exigência de abordar a obra literária como tal, considerando-a uma


totalidade em si, autônoma, indivisível e independente de qualquer
outra obra ou de qualquer outra série de fatos sociais; a obra literária
era considerada então um texto unicamente organizado e regido por
um procedimento dominante, que é o verdadeiro objeto de estudo do
técnico e do teórico da literatura.
c. A exigência de não se segmentar a obra, separando-a em seus consti-
tuintes menores, a fim de poder compreendê-la na rede de seus inter-
relacionamen tos intradiscursivos.

Logo veremos que, no que concerne ao requisito (b), o formalismo dos anos
seguintes iria adotar uma postura menos rígida, mais conciliatória; em especial,
a reivindicação do princípio dajúnçâo autónoma (ou comparativa) obedeceu à neces-
sidade de nuançar mais e melhor o livre jogo de dependências e citações de uma
obra em relação a outras.
Como quer que seja, sem nunca ter chegado a constituir um grupo intei-
ramente coerente, os principais expoentes do formalismo se entendiam na defesa
solidária de uns quantos princípios quase-doutrinários básicos, dentre os quais
destacamos os mais importantes.
Talvez o mais elevado desses princípios tivesse sido, em todo caso, aquele
que serviu de emblema para a imediata e, às vezes, apressada, identificação do
membro do grupo, a saber, a premissa que afirmava a necessidade de se colocar a
obra, enquanto objeto semiolingüístico autonomamente construído (e não enquanto
objeto histórico, sociológico, biográfico etc., culturológico, enfim), no centro das
jJreocujJações dó crítico e do teórico da literatura, erigindo-a como o único objeto de trabalho
deles, para lá dos interesses outros que pudessem vir a relacionar-se de fora dela
com ela, únicos fatores realmente focalizados pelos estudos culturológicos. Por
isso, precisamente, é que os primeiros formalistas, mas também alguns dos últimos,
como Pro pp, cuja obra máxima é de 1928, consideravam-se fautores de uma mor-
fologia literária, com preendendo pelo termo "morfologia" o estudo das conexões
funcionaisdas partes em uma totalidade orgânica, bem nos termos de um modelo -
botânico defendido, desde 1800, por Goethe, e, antes dele, por Geoffroy Saint-
Hilaire: qual é o princípio unificador dos processos subjacentes à organização
esquemática especificadora dos organismos - à Ulpflanze, nas palavras de Goethe
- , graças aos quais podemos efetuar a classificação deles em espécies diferentes?

Costumam chamar de "formalista" o nosso método. Eu preferiria denominá-lo de JIlOlla-


lógico para distingui-lo de ontros métodos críticos como o psicológico, o sociológico etc., nos quais
o objeto da Ílwestigação não é a obra em si, mas aquilo qlle, conforme o estudioso, aparece refletido
na obra (Eikhenbaum, 1922, ajJZldD'Arco, 1970, p. 41).
192 • A Identidade e a Diferença

A alusão nada sutil à teoria do reflexo consubstanciava uma alfinetada, bem


corajosa, então, às idéias do realismo crítico marxista.
Um ano antes, Jakobson havia declarado algo parecido, e essa declaração
viria a celebrizar-se a partir de 1965, como uma espécie de motto da doutrina for-
malista:

o objelo ela ciência literária não é a literatura, mas, sim, a literarieelaele, ou seja, aquilo que
faz ele uma obra elaela uma obra literária.

Ainda a Noçâo de Forma. A História como Evoluçâo da Forma Imanente.


Os Procedimentos do Desvio e da Construçâo

Les belles OeIlVlY'S sontfilles de lellrfomle.


P. V.o,LÉRY

Pensavam esses "morfologistas" que o conhecimento das condições his-


tóricas que cercaram a criação da obra servia apenas para conhecer a origem
dela, mas não tinha a menor utilidade quando se tratava de definir o seu valor
especificamente literário. A vida, o mundo, a história, cuidavam eles, contam
como matéria-prima para o mister do escritor. Mas, por um lado, este não tem
acesso direto a essas coisas todas senão que só toma conhecimento delas através
da mediação dos discursos que delas tratam. O especificamente artístico no texto
de arte deve surgir, portanto, como um traço diferencial da obra em relação aos
textos de quãlquer outra natureza. Nem se trataria, de fato, de uma diferença
reportada à natureza dos discursos de diversa tipologia, mas, antes, à funçâo que
se lhes atribuía em dada condição de uso:

A existência ele um fato literário elepenele ele sua qualielaele diferencial (ou seja, ela sua cor-
relação com a série literária ou com uma série extraliterária) ou, por outras palavras, ela suafll1lçr7o
(Tinianov, ajJlld Toelorov, 1965).

Não admira que o mesmo Tinianov, um dos mais destacados vultos do for-
malismo inicial, tivesse tido a ousadia de formular, em 1928,juntamente com R.
Jakobson, um certo número de teses programáticas focalizando o problema da
relação entre as séries de obras literárias e extraliterárias (históricas, políticas,
econâmicas), pondo de parte o determinismo da infra-estrutura econâmica,
elevado a dogma nos altares da ortodoxia marxista. Estava já então claro para
eles que todo escritor submete seus discursos'a um trabalho de seleção e de trans-
formação estilísticas intratextualmente motivadas, visando a dar a tais elementos
---
o Estrut uralismo Formalista Russo: O Círculo Lillgiiístico de i\loscou e a OPOJAZ • 193

uma funcionalidade estética. A funcionalidade estética de dado procedimento


de construção reside no papel que cada princípio de composição desempenha
na construção daforma, vis-rl-visde todos os demais procedimentos que integram
o conjunto:

Afonna da obra literária de"e ser sentida como forma dinâmica. Esse dinamismo se manifesta

na noção de jJrocedimellto de collstruçâo. Não há equivalência entre os diferentes componentes da


pala"ra [do discurso?]; a forma dinâmica não se manifesta nem por sua reunião, nem por sua fusão
(cf. a noção corrente de "correspondência"), mas por sua interação e, em conseqüência, pela
promoção de um grupo de fatores a expensas de outro (Tinianov, 'i\. Noção de Construção", 1923,

ajmd Jakobson et aI., 1970, p. 87).

Três destaques obrigatórios para o fragmento de Tinianov, acima:

a. A concepção, moderníssima, de forma como estruturação dinâmica Uá


veremos que sobre ela V. Chklovski baseou toda sua Sobre a Teoria da Prosa) .
b. Anoção de hierarquia entre os princípios de composição, internamente
motivada.
c A antevisão do que viria a ser, andando o tempo, compreendido como
o princípio de estranhamento, a seguir formulado:

o Luor promo"ido [ao primeiro plano] deforma aqueles que lhe estão subordinados.
Pode-se dizer, então, que sempre percebemos a forma no curso da evolução da
relação entre o fator subordinante e construtivo e os fatores subordinados. Não
estalnos obrigados a introduzir a dimensão temporal no conceito de evolução [con-
fronte-se com a posiç,'ío de Saussure, pronunciando-se a favor da adoção de um
critério de evolução interna, endógerada: "no fundo, a incapacidade de manter
uma identidade certa não de"e ser levada à conta dos efeitos do TemjJo [ ... ] mas está
depositado de antemão na própria constituição do ser" - vide capítulo 4 desta obra]
(idem, ibidem).

Não se veja na declaração acima nenhuma desconsideração da diacronia,


mas, sim, ao contrário - e exatamente na linha preconizada vinte anos antes por
Saussure - , o reconhecimento expresso de que a diacronia existe em sincronia;
ou, como acentuaJakobson, em 1921:

Cada fato da linguagem poética contemporânea é apreendido por nós em confrontação ine-
vitável com três momentos- a tradição poética existente (que veio do passado), a linguagem prática
do presente, e a tendência poética subjacente ao respecti"o enunciado (i. e., o embrião, no presente,
dos sucessivos desdobramentos do discurso no futuro) (ajJlld Kloepfer, 1984, p. 55).
194 • A Identidade e a Diferença

Assim como a árvore do futuro está contida de antemão, ainda que na forma
de um programa - uma Ulpflanze-, na semente que germina hoje, o embrião dos
textos de amanhã contido nos textos do presente. Assim, pôde dizer Tinianov que

A evolução, a dinãmica, podem ser consideradas em si mesmas como um movimento puro,


fora do tempo. A arte vive dessa interação, desse cont1ito. O fato artístico não existe fora da sensação
de submissão, de deformação [de desvio] de todos os fatores [funções] pelo fator construtivo (a
coordenação dos fatores é uma característica negativa do princípio de construção - V. Chklovski).
Pois se a sensação de interação dos fatores desaparece (e esta pressupõe a presença necess;\ria de
dois elementos, o subordinante e o subordinado), o fato artístico desaparece: a arte torna-se auto-
matismo (ajJlld]akobson, 1970, p. 87).

Aí estão explicados magistralmente tanto o princípio da evolução interna,


do dinamismo histórico endogerado, quanto o princípio do desvio e estranhamento
que os formalistas sustentarão como inerentes à obra de arte.
Se, pois, a arte está necessariamente associada à desautomatização da per-
cepção, a automatização dela vai desrealizá-Ia na sua condição artística: o belo não
se compadece com a banalização própria do discurso utilitário:

Introduz-se, assim, uma dimensão histórica na noção de "princípio [procedimento] de cons-


trução" e de "matéria", enquanto que a história literária demonstra a estabilidade desses princípios
fundamentais e do material. O sistema tõnico do verso de Lomonosov foi um fator construtivo
[uma função estética]; mais tarde, na época de Kostrov, ele se associa a um certo sistema de sintaxe
e de léxico. Seu papel subordinante, deformante, se debilita, o verso torna-se automático e só a
revolução de D'eryavin romperá essa associação e a transformará de novo em interação e não em
simples introdução de um fator qualquer. O metro, por exemplo, pode desaparecer quando se
fusiona de forma completa e natural com o sistema acentual da frase e com certos elementos
lexicais. Se colocamos tal metro em contato com novos fatores e o renovamos, despertamos nele
novas possibilidades construtivas (esse é o papel histórico da imit;lção poética). A introdução de
esquemas métricos novos contribui também para o restabelecimento do princípio construtivo do
metro (idem, ibidelll).

A concepção formalista de forma não pode, pois, ser confundida com a velha
divisão que a lingüística expressivo-intuitiva exprimia na antinomia forma versus
conteúdo,já que os formalistas ignoram a existência de qualquer forma a jJriori,
que pudesse subsistir como um recipiente ou um molde vazio em que se vertesse
a posteriori o conteúdo. Nem se trata, a rigor, aqui, de uma postura teórica exclusiva
das metodologias estruturalistas. Pelos mesmos anos, um sábio romeno insuspeito
de contaminaçôes formalistas, Michel Dragomirescu, considerando o discurso
literário um fenômeno psicofísico, advertia:
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingiiistico de lvIoscou e a OPOIAZ • 195

Esses fenômenos não podem ser encarados como físicos por causa do fundo, nem como psí-
quicos por causa da forma. Cada elemento físico só pode ser compreendido em sua essência com
o sentido psíquico que ele toma emprestado de sua relação com os outros elementos e com o todo:
cada elemento psíquico, por sua vez, não pode ser isolado do elemento material pelo qual ele se
exprime. Tentando separar o fundo da forma, falseiam-se os sentidos das obras-primas que são antes
do mais unitárias. O fundo e a forma da obra-prima são absolutamente inseparáveis [... ] e o fenômeno
que eles constituem por sua síntese absoluta, que é a harmonia, não é nem físico nem psíquico, mas,
antes, um fenômeno psicofísico (1928, vaI. I, p. 46).

Os formalistas sentiam, também, que forma e conteúdo existem em pressu-


posição recíproca e são, por isso, contemporâneos entre si. Tal como eles a
concebem, é o emprego que se faz da matéria à disposição do escritor que lhe
confere até mesmo as propriedades materiais que lhe reconhecemos.

O Procedimento contra as Interpretações Biográfica e Historicista Exogerada.


Primeiras Noções de Função Autõnoma e Função Sínoma

o problema da forma está, para eles, associado ao problema do jnvcedimento


tomado em sua júnçâo autónoma ou comjJarativa, enquanto jJrincíjJio de comjJosição
capaz de ser utilizada em n outras obras, e em suajúnção sínoma- a saber, na uti-
lidade local dele, definida pelo papel estrutural que aquele princípio de com-
posição desempenha com exclusividade na construção da obra considerada.
Rejeitando a concepção tradicional da forma oposta ao conteúdo e separável
dele, os formalistas estavam convictos de que o específico da arte não reside
tampouco nos elementos primeiros do discurso. No caso da literatura, esses fatores
são todos lingiiísticos: sua eSjJecificidade literaria rejJousa, jJois, numa jJarticular utilização
deles.
Por aí, a obra literária lhes aparece como um sistema lingüístico de segundo
grau, dotado de leis próprias, distintas das que regem o funcionamento da lin-
guagem utilitária, coloquial, de todas as ocasiões. Não há, pois, como aceitar a uti- -
lização dos "dados historiográficos" ou dos "subsídios da biografia" para inter-
pretar o sentido de um texto cl~a significação é intratextual, visto que, como
sublinha Eikhenbaum,

nenhuma frase da obra literária pode ser, em si, expressão direta dos sentimentos pessoais do autor,
ele é sempre construção ejogo (ajJudTodora\', 1969, p. 32).

o dado da construção é o mot d'oTllre· que a estética formalista opõe à


marxista, o pilar em que assentará a distinção entre a linguagem utilitária e a
196 • A Identidade e a Diferença

lin(Yuao'em
b b
l)oetlca ' quer dizer, literária. No ver da OPOIAZ, o discurso é o
resultado de uma construção conscien te dos meios de expressão: "A obra literária
é asoma total dos procedimentos artísticos que nela se aplicam", é um enunciado
de alcance geral, dele; e Chklovski reitera: "A obra (literária) é inteiramente
construída".
Firmando-se no postulado da construção, o teórico mais coerente da nar-
rativa, e por vezes também o mais exaltado de todo o movimento, V. Chklovski,
não raro rejeita tanto as transcendências inefáveis da crítica impressionista, sim-
bolista, quanto as teses marxistas que se aferravam à decisão partidária de só enxergar
na obra um reflexo ideológico, supra-estrutural, das condições materiais da exis-
tência social. Para o autor de Sobre a Teoria da Prosa, portanto, o que a arte faz é nos
proporcionar a sensação das coisas "como elas são percebidas, e não como são
conhecidas", dirá ele em um artigo de 1917 (ajmel lvlerquior, 1974, p. 221). Não
estamos distantes, aqui, nesse remoto ensaio de 1917, da versão ultra-romântica da
função estética, na sua suposta qualidade de "desinteressada contemplação do pro-
cedimento técnico em si mesmo". Por esse caminho, apregoando a autonomia da
arte em face das motivações psicossociais que atuaram em seu autor, para pôr no
lugar delas o desvio das percepções automatizadas como o supremo procedimento
artístico, o pensamento de Chklovski vai fatalmente desembocar na reivindicação
do avatar romântico da arte pela arte, cujo caráter alienado e anti-historicista será
ressaltado, em 1924, no artigo "Literatura e Evolução ", que Trótski redigirá expres-
samente contra os "desvios" (ideológicos) formalistas.

A Funcionalidade do Texto Literário. Noção Formalista da Função e do Ritmo

Não que os formalistas negassem qualquer relação do texto com o seu espaço
p.y;tr?c\ey.. t\.wLrlP.~p.!-"1J?.tptn('i<.l.:Irulcedell(LoJdevo qarticular à funcionalidade, vale
dizer, ao princípio da utilidade apresentado porum elemento ou um procedimento
construtivo no_ interior de um sistema (uma "obra", na sua terminologia), eles se
valiam das relações extratextuais mais especificamente para o fim de caracterizar
o discurso utilitário, que supunham caracterizar-se pelo que Jakobson chamará,
depois, de função referencial, marcando~a algo ambiguamente, como aquela em
que o enunciado se dirige predominantemente para o contexto (a ambigüidade
decorre, aqui, do fato de muitos confundirem, então - e o próprioJakobsonnào
foi imune a isso - , os conceitos distintos de contexto e de situaçâo de fala).
Talvez não seja inútil abrirmos parênteses aqui para recordar que o que os
formalistas preferiam chamar de Junçâo, Saussure e os genebrinos tinhamjá batizado
de lJalor- o exemplo do jogo de xadrez, no Cours; assim, como faz notar Borillo,
"o termo funçâo [... ] vem provavelmente de que a análise era aplicada na origem
o r-struturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingúístico de 111oscou e a OPOIAZ • 197

ao russo, onde a palavra traz consigo sua função na forma de desinência; nós pre-
ferimos o termo "valor" (1969, p. 106, nota 6).
Nas Teses de 29, de Jakobson, Trubetzkoi e Karcevski (os dois primeiros
estiveram originalmente vinculados ao formalismo russo, e o último ao estrutu-
ralismo saussuriano da Escola de Genebra), essa especificação funcional vem
sublinhada: "Em seu papel social, é preciso distinguir a linguagem segundo a
relação existente entre ela e a realidade extralingüística. Aquela desempenha ou
bem uma função de comunicação, quer dizer dirigida para o significado [... ] ou
bem uma função poética, dirigida para o próprio signo".
Se, assim, os sons da língua são utilizados com um valor instrumental do
poema, no qual vêm a adquirir uma utilidade sui generis, subordinada ao todo, é
do in terrelacionamento da totalidade dos elemen tos no poema que resulta o verso
como a forma da construção mais perfeita.
Também os sociólogos estruturo-funcionalistas da década de 50 anotariam
que, conforme ensinara Saussure, "toda função dentro de um sistema é uma
variável relativamente a qualquer outra função do sistema, de modo que qualquer
mudança em uma função repercute na estabilidade geral do sistema. É o que se
denomina jJrincípio da reciprocidade funcional" (Badía, 1968, p. 112).
O poético passa a residir, então, não mais naquilo que se diz, no conteúdo
da mensagem, como ocorre no discurso utilitário, mas, antes, no modo específico
de dizê-lo. As repetições de sons idênticos ou análogos em um poema, por exemplo,
aportados na forma dos procedimentos da rima, da assonância, da aliteração etc.,
não têm outra finalidade que a de organizar essa mensagem como uma construção
unificada pelo princípio da melhor OIganizaçâo: "os sons e as consonâncias não são
um puro suplemento eufõnico, mas o resultado de ym planejamento poético
autõnomo [... ]. A rima, a aliteração etc. são apenas uma manifestação aparente
[... ] de leis eufõnicas fundamentais", diz Brik ("Les Répétitions des sons". Em
Recueils SUl' la théorie de la langue jJoétique, fase 2, Petrogrado, 1917).
Nesse caso, a repetição dos sons desempenha, por si só, um papel estético.
Tais idéias, comuns a todos os estruturalismos Uá as vimos na primeira
parte desta obra, quando da explanação da teoria anagramática formulada por
Saussure, e vemo-las agora no formalismo russo), serão mais amplamente dis-
cutidas no formalismo tcheco, notadamente na obra deJan Mukafovski, sendo
notória a sua importância para a melhor conceituação da função estética (ou
função poética).
Brik, um dos melhores teóricos e críticos de poesia entre os formalistas,
afirmará, contrariando o sentimen to então predominan te fora das cidadelas estru-
tm-alistas, que a construção do verso seria governada pelo ritmo. No seu sentir, o
verso nasceria do ritmo inerente a uma particular comoção íntima do poeta, que
se exprime na "linha melódica" característica do ritmo. Construindo-se sobre este,
198 • A Identidade e a Diferença

o verso viria então a equivaler a uma espécie de tradução ideoplástica, substancial


e exterior, do ritmo associado a um dado estado de espírito, interior.
Na seqüência dos trabalhos de Brik, a focalização da pura métrica desliza,
contudo, gradativamente, para um segundo plano. Não só ele, na verdade; de
fato, todos os formalistas pareciam compartilhar da concepção de que a métrica
não é muito mais do que uma espécie de alfabeto poético elementar, canhestro,
embora convencional, cl~a consideração pode ser até mesmo afastada para os bas-
tidores, a fim de que emerja para o primeiro plano a questão mais relevante de
saber "como está feita a poesia".
Para que esse desiderato se concretize, importam, mais do que os elementos
materiais da obra, os procedimentos técnicos utilizados no seu manejo, como prin-
cípios de construção. Da interação entre dois elementos isolados, ou entre um
elemento isolado e o todo, de um lado, e o elemento isolado na sua função e o
princípio composicional, de outro, é que depende o valor estético da obra:

na arte, avaliamos cada componente à luz da estrutura da obra em questão, e o ponto de referência
estará determinado cm cada caso particular pela função que dito componente desempenhe na
estrutura (Muk<üovski, 1970, p. 110, nota 29).

É certo que nem Mukarovski, que é um formalista tcheco, nem a data desse
pronunciamento (que é de 1932) se inscrevem no movimento que ora estudamos,
do formalismo russo dos 20; não menos certo é, porém, que tanto Muk<:üovski
quanto o decênio de 30 são herdeiros diretos, continuadores e intérpretes auto-
rizados do que se passara poucos anos antes na União Soviética.

o Procedimento do Desvio e o Efeito do Estranhamento

o conhecido, jJor ser conhecido, é desconhecido.


HEGEL

Essa sintomática insistência na noção de que a função de um procedimento


se determina na sua relação para com o seu contexto lingüístico de ocorrência,
seu intratexto, os valores singulares do elemento subordinando-se aos valores que
lhe advêm da sua inserção em um todo que é, como ocorre para qualquer mensagem,
irrepetível (o próprio do discurso, segundo Saussure, é a sua liberdade de com-
binação), irá desaguar na idéia de que a fuilcionalidade de um elemento em uma
obra é, ela também, irrepetível. Em virtude de os contextos. das mensagens não se
o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingiiístico de lvIoscou e a OPOIAZ • 199

repetirem jamais, o emprego de dado elemento, dado procedimento, no discurso,


é necessariamente original- "original" quer dizer, aqui, que, como tudo o que nos
aparece pela primeira vez, ele é surpreendente; não o captamos do mesmo modo
jamais, anteriormente, nem voltaremos a captá-lo exatamente assim, como agora,
no futuro.
Se ao fenômeno do caráter "surpreendente" da mensagem, em que se garante
o seu grau de informatividade - informação totalmente previsível é igual a
nenhuma informação - , adicionarmos, agora, uma deformação intencional no
uso das regras previstas pelo sistema, provocaremos um desvio das normas de com-
posição Cl~a leitura provocará no leitor ou ouvinte o efeito de sentido da "singu-
larização" ou estranhamento.
Chklovski será um dos principais responsáveis pela elaboração do conceito
de ostranienie, que aborda desde o ensaio de 1916, "AArte como Procedimento".
Na conformidade do seu pensamento, é típico do texto artístico apresentar-nos uma
forma dificultada, deformada, em conseqüência de tê-la submetido o autor a um desvio.
Exatamente por estar dificultada, ela provoca um estranhamento que atua no
leitor desautomatizando-Ihe as percepções rotineiras. Assim liberada dos auto-
matismos da cognição (que, se, por um lado, nos facilitam a vida fazendo dela
uma rotina, por outro lado, nos embotam a inteligência e a sensibilidade ao
converter os discursos em formas banalizadas pelo hábito - o que dá razão ao
aforismo de Hegel: "O conhecido, por ser conhecido, é desconhecido"), a
forma literária se investe do seu verdadeiro papel de promotora do conhe-
cimento:

o objetivo da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;
o procedimento da arte é a singularização dos objetos, o que con~iste em dificultar [a percepção]
de forma a aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção na arte é um fim
em si mesmo e deve ser prolongado (Chklovski, ajJlldTodorov, 1965, p. 83).

N esse particular, coincidem os propósitos e objetivos da arte e da retórica;


assim, para Chklovski, "existem figuras da narrativa que são projeções das figuras
retóricas" (Todorov, 1969, p. 56), ou seja, relatos montados sobre os mesmos meca-
nismos do paralelismo, da antítese, do quiasmo, da gradação, da metonímia, da
sinédoque, da ironia, da metáfora etc.

O Efeito de Estranhamento no Discurso Literário: O Estranhamento na Poesia

Quando falam no procedimento da forma dificultada, hoje englobado na


teoria retórico-estilística do desvio, enfatizam os formalistas não as imagens trópicas
200 • A Identidade e a Diferença

utilizadas pela "linguagem figurada" (já que os tropos desse tipo de linguagem,
metáfora, metonímia, sinédoque, ironia etc., são, por igual, empregados tanto na
poesia quanto na prosa, na linguagem poética como na utilitária); referem-se,
mais, aos modos de utilização contextuaI desses metaplasmos, procurando isolar
sua função local.
Caracteristicamente, o que todo desvio faz é provocar um estranhamento,
e a primeira função dele é, de modo também característico, a desautomatização
da percepção, sem a qual não existe arte digna desse nome:

A arte é feita para dar a sensação de coisa enquanto coisa que está sendo vista e não enquanto
coisa reconhecida; o procedimento da arte é o procedimento da "representação estranha"; a arte
é o meio de viver a coisa no seu processo de fazer-se; em arte, o que foi feito não tem importância
(Chklovski, 1973, p. 16).

Luminosa, essa observação de Chklovski nos ensina que o efeito estético é


incompatível com o efeito de sentido da banalidade. Assim que o uso de dado pro-
cedimento estilístico se deixa reduzir à condição de artificio formular, ele perde a
sua especificidade artística, e se torna preciso, então, imprimir-lhe uma nova
deformação - "desviá-lo", de modo a revitalizar seu potencial crítico, nua primeira
modalidade de manifestação é ade provocar um estranhamento. Foi o que fizeram,
por exemplo, nas artes plásticas do começo do século, o cubismo e o surrealismo.
Por outro lado, o discurso da poesia é auto-referencial: ele se autodesigna
e "se significa" a si mesmo. Seu objetivo não é nunca prático, não se interessa pela
transmissão de dada informação exterior, nem com a representação de algum tipo
de saber extí'ínseco à sua mesma forma. Não só a poesia possui escassa função
informativa, como também ela é rigorosamente intraduzível - devido a isso é
que Paul Valéry, que nunca foi um formalista, mas nuas intuições em matéria de
arte são invariavelmente irretocáveis, escreveu que "tudo o que jJode ser traduzido é
jJrosa". Não longe dele, o romeno Pius Servien (Pius Serban Coculescu) fazia
observar, pelos mesmos anos, que a linguagem poética (lírica, para ele) tem uma
ausência absoluta de sinonímia e uma infinidade de homonímias, em contraste
com a linguagem científica, de homonímia zero e sinonímia infinita.
Tudo se resume na idéia de que a linguagem poética não distingue sua
condição de atividade-meio da sua condição de atividade-fim. Longe de se deixar
instrumentalizar pelo que quer que seja fora dela, ela atrai e retém a atenção do
destinatário, canalizando-a paraasua própria forma, enquanto construção dotada
do melhor arranjo possível. Seu plano de expressão se converte, assim, em sig-
nificante de formas que ela mesma funda, as quais se expressam por meio dos
procedimentos não-inteiramente transcodificáveis do ritmo, da rima, do metro,
das assonâncias, dos anagramas, do paralelismo. Em suma, a palavra poética vale
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lil1giiistico de lvIoscou e a OPOlJiZ • 201

por si mesma, substantivamente, não em função de outra coisa - o que fazia


Saussure jJensar na palavra poética como um símbolo, quer dizer, uma entidade em
que a relação entre o significante e o significado é internamente motivada, dis-
tinguindo-a, assim, da palavra prosística, que é u'm signo, ente em que a mesma relação
significante-significado é arbitrária, ou seja, não-necessariamente motivada: "O
símbolo tem a característica de não serjamais completamente arbitrário; o símbolo
não é vazio. Há um rudimento de vínculo entre a idéia e o signo, no símbolo"
(Saussure, apwlWunderli, 1976, p. 56). E Jakobson, ressaltando que a palavra
poética é auto-suficiente, que ela vale por si mesma: "O traço distintivo da poesia
reside no fato de que uma palavra é percebidacolTlO uma palavra e não meramente
um mediador para o objeto denotado ou a expressão de uma emoção, de que as
palavras e seu arranjo, seu sentido, sua forma exterior e interior adquirem peso
e valor próprios" (Jakobson, 1971, p. 27).
No desenvolvimento ulterior dessas idéias, a poética estrutural reconheceria
que o sentido habitual das palavras não pode nunca ser totalmente separado delas,
pois que nenhuma palavra possui um sentido "simples". Pelo fato de ser sempre
empregado em dado contexto, ao lado de outras palavras, o sentido do termo A
não é nunca simplesmente A: ele muda e varia na conformidade das covariações
das relações de assimilação e dissimilação fónicas e sêmicas emergentes nos diversos
contextos em que A venha a situar-se.
Mais do que fazem suporos argumentos deJakobson, contudo, palavranenhu-
mafuncionanunca como mera mediadora para o oqjeto denotado, e isso pela simples
razão de que a jJoesia se constrói como o espaço em que a língua jJensa, além do seu objeto, a
si mesma, enquanto linguagem. É exatamente por isso que ela é infensa à tradução,
como noticiavaValéry: é que o texto jJoético não nos permite separar um plano de expressão
de um plano de conteúdo, o que se diz do modo conw é dito isso que se diz. Em uma palavra:
"o que" a jJoesia diz é "o como" ela o diz.
Não admitindo nunca a tradução, o poema nos condena a uma eterna
re-citação; não é esse um dos sentidos maiores da teoria anagramática de Saussure,
que um texto se cita e se re-cita infinitamente sob o aspecto do texto do outro,
de outro texto?
Nada disso esvazia, contudo, o sentido das palavras, antes o multiplica; não
por acaso Birkhoff lembrou, em algum lugar, o dito de Harmstehuis de que "o
belo é o que dá o maior número de idéias no menor espaço de tempo", concepção,
de resto, que Voltaire já antecipara, ao notar que "a poesia diz mais e em menos
palavras do que a prosa".
Essa polivalência significativa, condicionada pelos procedimentos da metri-
ficação, do ritmo e da rima, é determinada tanto externamente, pelas convenções
das escolas e dos gêneros selecionados pela tradição, quanto internamente, pelas
expectativas de continuidade e descontinuidade que a própria sintagmática,
202 • A Identidade e a Diferença

enquanto contexto de curta diacronia, engendra, a partir do primeiro verso que


cria as pautas dos módulos a repetir - padrões de ritmo, módulos de rima, de
metro, de anagramas etc., - e que os versos posteriores seguem, ou, na alter-
nativa, modificam inesperadamente, introduzindo um desvio que irá produzir o
efeito de estranhamento.

Desvio e Estranhamento no Teatro. O Aproveitamento de B. Brecht

A teoria do desvio e do estranhamento fez escola ao início do século, na


prosa, na poesia e no teatro. Enquanto deformação intencional, ela surge com
Chklovski, mas, no fundo, Chklovski provém de uma longa tradição européia
que, mais proximamente, vem da estilística de Ch. Bally (que parece ter tomado
o nome, écart, "desvio", de Brunot). Mais remotamente o termo provém de
Aristóteles, especificamente da sua Retórica, Cl~O fundamento implícito é a dis-
tinção da existência, nas línguas naturais, de uma linguagem ''própria'' (hoje diríamos
"de grau zero") e de uma linguagem "tTópica" (i. e., "imprópria"), centrada, esta
última, nos processos do entimema, cuja teoria Aristóteles aborda nos Tópicos,
dedicado aos meios de manifestação dos procedimentos de manipulação per-
suasiva e dissuasiva. Ora, mesmo em Aristóteles, o emprego da palavra "imprópria"
com finalidade manipulatória envolve alguma espécie de "desvio" intencional da
palavra "própria".
A lista dos autores que se pronunciaram acerca dos desvios, dos retóricos
antigos (Aristóteles), clássicos (Quintiliano, Cícero, Horácio e outros), até os
modernos (Bally, L. Spitzer, Auerbach, Cohen, Riffaterre e outros), é demasiado
extensa para que a possamos examinar aqui. Suas idéias, porém, podem ser clas-
sificadas em umas poucas notas,já que desvio significa, na dependência das idios-
sincrasias focalizadas e do ponto de vista daquele que a emprega,

a. Quebra de expectativa, como em eh. Bally e em J. Cohen;


b. Submissão de todos os elementos da obra ao fator construtivo dominante,
como em V. Chklovski e J. Tinianov;
c. Artificio para a evidenciação dedado componente, como emJ. Mukafovski;
ou
d. distanciamento, como no teatro de B.Brecht.

Brecht visitou a União Soviética em 1935 e lá ouviu falar pela primeira vez
nisso. São esclarecedoras a esse respeito as notas que ele deixou para a montagem,
em Copenhague, da peça Cabeças Redondas; Cabeças Pontudas, sátira encenada em
1936 contra o agigantamento do nazismo. Nessas notas surge o termo VeTfremdung,
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingiiistico de i\1oscou e a OPOIAZ • 203

"afastamento", "distanciamento", "singularização", com que ele traduzia o russo


ostranienie (em notas anteriores, Brecht se valera de bejremdlich, "estranho").
Na prosa de Tolstói, o estranhamento era provocado pelo procedimento de
ocultação da denominação combinado com o procedimento da descrição "imprópria"
do objeto em foco; tal como fará, muito depois, J. Cortázar (por exemplo, em
"Casa Tomada"), Tolstói escamoteia o "nome próprio" das coisas, substituindo a
denominação pelo artificio de descrever o objeto como se o estivesse vendo pela
primeira vez. Trata-se de um procedimen to ligado à motivação estética, quer dizer,
ao sistema de técnicas e princípios de composição que justificam a introdução de
determinado motivo na obra a partir da sua utilidade ornamental ou cognitiva na
qualidade de instrumento de evidenciação de algo novo, até então desconhecido,
naquilo mesmo que estávamos habituados a ver como banal e corriqueiro, sem
interesse algum. Tomachevski lembra que, em Guerra e Paz, Tolstói singularizou
um conselho de guerra mediante o expediente de descrevê-lo do ponto de vista
de uma camponesa que interpreta à moda rústica o que vê e ouve dos partici-
pantes do ritual, sem compreender em momento algum a essência dojúri; também
em Kholstomet~ Tolstói descreve as relações dos seres humanos tais como poderiam
elas se refratarem no hipotético "psiquismo" de um cavalo.
O estranhamento tinha, nesses casos, a função de criar a experiência de
uma visão original, do encontro com algo que nunca vimos antes nem nunca
mais provavelmente tornaremos a ver; e como essa visão original deriva, afinal
de contas, apenas de um ponto de vista insólito tomado para ver um objeto
rotineiro, ela acaba por ensinar ao leitor algo que este antes não sabia.
Brecht construiu seu estranhamento, que ele chamava deejéito V (de Verjrmndung,
"distanciamento"), por intermédio do procedimento da ocultação de um traço
pertinente para a identificação do ator (ser ou objeto focalizado) ou do evento
encenado, com o que lograva suscitar espán to e curiosidade da parte do espectador.
Foi assim que ele utilizou o estranhamento em um sentido não-exclusivamente
cognitivo, mas ideológico: criando um afastamento entre o espectador, destinatário
da sua peça, e o personagem dela, ele evi tava que o lei tor viesse a iden tificar-se com
o agonista, assumindo-o e personificando-o, coisa que barrava o processo da embreagem
do sujeito observado pelo slúeito observador, e, assim, mantinha intactas as dis-
táncias entre os dois mundos da ficção, habitado pelo atar observado como um ele-
lá-então, e o mundo da "realidade", habitado pelo espectador, observador que se
autodefinirá como um eu-aqui-agora. O estranhamento tem, destarte, no teatro de·
Brecht- oposto, nisso, ao teatro trágico da teoria de Aristóteles, no qual a tragédia
se construía em torno do postulado da catarse, fundado no procedimento empático
da embreagem cognitiva do leitor, destinado a assumir e identificar-se com as
paixões do herói-vítima da fatalidade - , um aspecto, ou melhor, uma funciona-
lidade ético-ideológica: ele visava a causar a desalienação do espectador.
204 • A Identidade e a Diferença

Como quer que seja, qualquer que possa ser a acepção particularmente
visada pelo anis ta - (a) quebra de expectativa, (b) subordinação do todo à
dominan te construtora, (c) evidenciação de algo habi tualmen te despercebido,
ou (d) ou distanciamento "debreativo", o contrário dajunção embreativa- duas
características se mantêm intocadas ao longo da tradição de utilização do desvio
pelo autor do discurso artístico: a primeira é concernente à infração a uma
norma qualquer, mediante a qual (inüação) o artista visa a substituir uma lógica
comprometida com os esquemas de visão impostos, todos feitos (desde Valéry,
que definia o poeta como "um agente de desvios", até Banhes, para quem "a
tarefa revolucionária da escrita não é repetir, mas transgredir" [Banhes, 1982,
p. 56]); e a segunda característica invariante do desvio envolve a definição com-
ponencial que propusemos para a descrição desse procedimento (Lopes, 1987,
pp. 16 e ss.) enquanto princípio de composição que reúne uma decepção com
uma surpresa:

decepção (o que se espera que venha, não vem)

desvio +

surpresa (o que se espera que não venha, vem)

A Historiogmfia Imanente do Formalismo: O Formalismo nâo é Anti-historicista

Reduzir a jJoesia a quem a escreveu,

e quem a escreveu àquilo que lhe aconteceu,


não nos deixa mais adiantados do que deduzi-la
das condições lzistóJicas em cuja jJersjJectiva surgiu Selt autor.

Uma e outra intl'ljm!tação minimizam forçosamente a poesia

a ser "o que resulta de"( ... )

CASAIS MONTEIRO

Os formalistas acentuavam a necessidade de interpretar a evolução literária


nos termos de uma historiografia imanentista, buscando compreender o eixo
causal das mudanças históricas das obras dentro da própria série literária, des-
ligada, pois, de qualquer vínculo com as mudanças que ocorriam ao mesmo tempo
nas séries extrali terárias, na sociologia, na política, na econon;üa etc. Não negavam
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingúístico de 111oscou e a D?DIA.Z • 205

eles que entre os dois terrenos, o da série dos Ditos literários e os das demais séries
de fatos sociais, não-literários, existissem vínculos e conexões, mas lhes importava
principalmente assinalar que as alterações sofridas pelas formas artísticas derivam,
antes do mais, de mudanças verificadas nos procedimentos construtivos e/ou nas
funções que tais procedimentos vinham desempenhando, dentro das obras, no
decorrer do tempo.
Amainadas as paixões dos extremismos que se exprimem nos movimentos
de ataque e defesa próprios a todo e qualquer novo estilo de arte, é fácil perceber,
hoje, conforme deixamos acentuado no início desta segunda parte, que nenhum
estruturalismo, inclusive o formalista, foi, de fato, refratário à história, nem, muito
menos, francamente anti-historicista, como proclamavam, à época, seus adver-
sários. O que Jakobson escreveu a esse respeito é bastante significativo:

No interior de cada classe hierárquica, as formas e as funções constituem sistemas [... ]. Cada
sistema reflete um aspecto homogêneo da realidade, chamado por Tinianov "série". Assim, numa
época encolllramos, ao lado da série literária, uma série ulllsical, teatral etc., mas também uma série
de fatos económicos, políticos e outros. Ainda uma \'ez, a ordem lógica das relações desempenha
aqui um papel primordial: é apenas por seu conhecimento que chegaremos a abarcar a totalidade
dos fatos. Semelhante ponto de partida permite integrar a dimensão histórica no estndo estrutural
da literatura (ou de qualquer outra atividade social) (1965'1, pp. 20-21).

Demonstra-se aí que, ao contrário do que ficou em moda afirmar na


esteira dos marxistas, inimigos jurados do formalismo, estes nunca foram a-his-
toricistas. Não poderiam sê-lo aqueles q.ue apregoavam o estudo da função
autónoma ou comparativa, de caráter diacrónico, e, portanto, penetrada deter-
minações histórico-sociais.
Mas, ao passo que os marxistas tin'lbravam em querer estudar as mudanças
verificadas na série literária relacionando-as diretamente com mudanças homólogas
verificadas em paralelo no espaço-tempo social, fora da literatura, os formalistas
preferiam estudar a evolução histórica observando as mudanças comprováveis
entre duas obras que se sucedem ao longo do tempo, dentro da mesma linha, do·
mesmo gênero:

Se admitirmos que a evolução é uma nmdança de relações entre os termos do sistema, quer
dizer, llIna alteração de funções e de elementos formais, a evolução se desvenda como uma "substituição
de sistemas". [... ] Fenõmenos que parecem totalmente diferentes e que pertencem a sistemas funcionais
diferentes podem ser anftlog·os na sua função e vice-versa (Tinianov, ajJlldTodorov, 1965, p. 136).

O que separa o modo marxista do modo formalista, no estudo histórico, é


um diferente ponto de vista doutrinário, uma diversa metodologia, ancorados,
206 • A Identidade e a Diferença

finalmente, em duas ideologias contrárias. Pois ali onde os marxistas afirmarão


existir uma ordem determinística de subordinação, vendo na obra, apenas, enquanto
supra-estrutura ideológica, o reflexo üwertido da infra-estrutura económica do
meio em que ela nasce, os formalistas afirmarão a existência, entre uma e outra
coisa, entre a obra, que é de estatuto imaginário, e as condições históricas con-
cretas que cercaram a sua produção, de um elemento mediador, que é, antes, uma
dimensão inerente à própria língua natural em que essa obra se exprime, para lá
do particular sistema económico em vigência, a dado instante, no espaço social
em que a obra se criou.

A Dialogicidade do Discurso: Diacronia e Sincronia em Termos de Teoria da


Literatura

o discurso encontra o discurso do OutlV


em todos os caminhos que conduzem ao seu objeto.

B.-\KI-ITIN

No sentir dos formalistas, sempre foi problemático produzir qualquer


explicação convincente do modo como se opera a transposição das mudanças
ocorridas no espaço social, fora das obras, para as mudanças ocorridas no espaço
intradiscursivo, dentro delas - mormente quando se prescinde, como fez quase
invariavelme"nte o marxismo (contam-se nos dedos da mão as exceções), da
mediação necessariamente dialógica da dimensão ideológica da língua em que
as obras se manifestam.
O problema é saber como transformações sociais e históricas se convertem
em transformações literárias. No seu entendimento, mais avisado seria, sem negar
a existência de uma correlação entre as mudanças extratextuais e as intratextuais,
que ninguém conseguiria dizer como ocorrem, colocar esse problema entre
parênteses para fixar-se unicamente na observação e descrição das alterações
ocorridas ao longo do tempo no interior da própria série de fatos literários.
Isso se pode fazer observando, por exemplo, o que é que muda de uma obra
mais antiga para outra, mais recente, dentro da mesma tradição, do mesmo estilo
e/ou do mesmo gênero de composição. Bastava, para tanto, enxergar cada obra
como o ponto de cOlwergência e de encontro de uma multiplicidade de fatores,
todos intraliterários, submetidos por igual às pressões antagónicas de duas forças
opostas, uma conservadora, inibidora das alterações, outra reformista, promotora
delas. A história da literatura poderia ser entendida, então, como o movimento
,........

o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingüístico de Aloscou e a OPOIAZ • 207

resultante da composição e do livre jogo dessas forças, uma espécie de tmnsaçâo


entre a permanê.ncia e a mudança de princípios de composição e das funções sobre
os quais se monta a evolução do que se chama uma "tradição artística".
Chklovski mencionava muitas vezes essa progressão dialógica da literatura:

Cada época literária contém n<10 uma, mas várias escolas literárias. Elas existem simulta-
neamente na literatura e uma dentre elas toma a dianteira e é canonizada. As outras existem como
não-canônicas [... ] (ajJllc/ Toelorov, 1965, p. 69).

Nesse diálogo, são as camadas inferiores que se promovem à condição de


novas fon11as:

Ela é relegada para um lugar ele espera, mas poele ressurgir uma outra vez [... ]. As coisas se
complicam [... ] pois a nova hegemonia não consiste em mero restabelecimento ela forma antiga,
visto que outras escolas mais novas e traços herdados de sua preelecessora vêm enriquecê-la, ocupando
um papel auxiliar (idelll, ibidelll).

Excluída, por definição, a possibilidade de compreender a evolução da série


literária por intermédio do apelo às mudanças verificadas paralelamente em
qualquer outra série extraliterária, condenados como estavam a postular a exis-
tência de um processo histórico imanente, interiorizado em cada obra, entendida
como ponto de convergência de n tendências literárias heterogêneas, não era
dificil concluir que cada texto literário opõe-se, no sentido estrutural (isto é,
afirmando-se como idên tico a si mesmo por meio da negação de seu con trário) ,
a outros textos análogos do passado, tomados como seu modelo.
Era, basicamente, a mesma idéia que nutria o pensamento de Saussure ao se
entregar aos seus exercícios anagramáticos, desejoso de desvendar, no texto poético,
subjacente aele, um princípio dialógico-por ele formulado, anteriormente mesmo
à seleção do nome "anagrama", no jJJindpio da dualidade- que viria a ser um segundo
discurso, latente, o do hipograma, sob o primeiro discurso, patente, o do anagrama,
outra genial antecipação daquilo que, decorridos um quarto de século e coisa, nos
finais dos anos 20, o formalista Bakhtin vai formular assim:

o discurso encontra o discurso elo outro em toelos os caminhos que conduzem ao seu objeto
e ele não poele deixar ele entrar em interação viva e intensa com ele (1981, p. 98).

Cada nova obra que vem à luz, acreditavam eles, tem a pretensão, declarada
ou não, de começar de novo a história da literatura, fundando-a ex ovo. A obra do
presente inclui, portanto, uma intenção fundadora, que na ambição mesma de
se ver publicada confessa sua veleidade de substituir todas as obr.as análogas, ainda
208 • A Identidade e a Diferença

em vigência, do passado. Estas, por sua vez, que foram, em razão mesmo do peso
da sua autoridade, erigidas em modelo, reproduzidas sem cessar até a exaustão,
teriam, assim banalizadas, acabado por perder sua eficácia original, passando à
condição de lugar-comum, depósito de clichês e estereótipos; assim sendo, toda
obra de arte conteria o germe da sua própria negação.
Não é difícil ver a conexão disso tudo com a teoria do estranhamento, que
vinha robustecer tais convicções. Incessantemente reproduzida, a obra-prima se
esvaziaria aos poucos do seu poder de causar um peculiar estranhamento, que
era o garante da sua eficácia artística; era o tempo, então, de ser substituída por
uma nova obra, um nov~ estilo.

A Função Autónoma e a Função Sínoma: Sincronia, Diacronia e Intertextualidade

Reconheciam os formalistas, a partir de tais premissas, dois tipos de funções


desempenhadas pelos procedimen tos que constituem os princípios de construção
da obra de arte, a júnçâo comjJarativa ou autónoma e a funçâo sínoma:

a. A função comparativa ou autõnoma é aquela que responde pelo esta-


belecimento de uma relação comparativa entre uma obra x, qualquer,
do presente, e as obras A, B, Cetc., de sua mesma classe, que lhe serviram
de modelo, vindas do passado.
Assim, um autor inglês (não-formalista), Tylliard, notou que certos
escritos clássicos serviram de bachground permanente para a criação da
épica inglesa, a Ilíada e a Odisséia, de Homero, a Eneida, de Virgílio, a
Pharsalia, de Lucano, e a Tebaida, de Estácio, entre os poemas, mais a
CirojJédia, de Xenofonte, e a AethiojJica, de Heliodoro, entre os relatos
em prosa: "Essas obras [... ] eram reconhecidas como as clássicas na
composição épica e quando um escritor inglês dos períodos Renascentista
ou Neoclássico pretendia escrever uma obra épica ele os tinha, cons-
ciente ou inconscientemente, em mente como seus pontos de refe~

rência" (1954, p. 19).


As obras que Tylliard dá como modelos constituem o que preferimos
chamar, hoje, de intertextos, conjuntos significantes que constituem o
que nós, por nosso lado, já denominamos em várias ocasiões de con-
textos jJressujJostos - contextos pressupostos da literatura épica greco-
romana, no caso, particularmente a dos séculos XVI e XVII, dos quais
capítulos ou segmentos menores não raro figuram nas obras britânicas
como intertextos explícita ou implicitamente citados (nas estilizações,
paródias, alusões, pastiches etc.).
o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingiiístico de lHoscou e a OPOIAZ • 209

o tópico da intertextualidade e o princípio da dialogicidade que lhe


dá sustentação vêm, como se nota, na sua modalidade moderna, das
especulações formalistas acerca da função autônoma da obra literária.
Embora se associem em nossa memória, imediatamente, com o nome
de Bakhtin e de MukaI-ovski, o certo é que elas têm um claro precursor
na teoria anagramática de Saussure (d. Parte I) e na distinção saus-
suriana sincronia/diacronia, retomada pelos formalistas respectivamente
como função sínoma (sincronia) /função autônoma (diacronia); ocorre,
apenas, que a distinçâo de Saussure remonta aos idos de 1890, ao passo que
a dos formalistas, que a atualiza, é de 1916.
Assim équeem um obscuro artigo de 1916, "O Nexo entre os Procedimentos
de Instalação do Tema e os Procedimentos Estilísticos em Geral",
Chklovski assinala que a própria forma da obra de hoje depende estri-
tamente da sua conexão com outras obras preexistentes:

Aqui também tem aplicação uma lei geral: "[Oo.] toda obra artística se cria como paralela
e oposta a um modelo anterior. Nenhuma forma nova surge para exprimir um novo
conteúdo [alusão a um dos postulados defendidos por Vesselovski e Fortunatov], surge
para substituir uma forma antiga que perdeu seu caráter de forma artística (ajmcl
Eickenbal1l11, 1970, p. 35).

Tinianov observou existir uma-lJierarquia entre as funções sínoma e


autônoma:

A função autônoma, quer dizer, a correlação de um elemento com uma série de ele-
mentos semelhantes que pertencem a outras séries, é uma condição necessária à função
sínoma, à função construtiva desse elemento.

Assim,
b. A função sínoma se define, nesse fragmento, como função construtiva
da totalidade da obra, vale dizel~ como a capacidade que dado elemen to
ou segmento de um discurso tem de entrar em relação com outro
elemento ou segmento correlato, dentro do mesmo discurso.

o primeiro passo para a sistematização disso tudo fora dado por Tinianov,
ao conceber a júnçâo como o pajJel construtivo que determinado item ou elemento da·
obra desempenhava no conjunto dela:

Chamo jl/nção construtiva de um elemento da obra literária como sistema, sua possibilidade
de entrar em correlação com os outros elementos do mesmo sistema e, em conseqüência, com o
sistema inteiro.
210 • A Identidade e a Diferença

[... ] essa função é uma noção complexa. O elemento entra ao mesmo tempo em relação
com a série dos elementos semelhantes que pertencem a outras obras-sistemas, ou a outras séries
e, por outro lado, com os demais elementos do mesmo sistema (função autônoma e função sínoma).
Assim, o léxico de uma obra entra simultaneamente em correlação [... ] com o léxico literário
e o léxico em seu conjunto, de outra parte com outros elementos dessa obra (ajJlldJakobson et al.,
1970, p. 32).

A concepção formalista das [unções sínoma e autónoma abre bilateralmente


para os contextos passado e futuro de uma longa tradição, que, começando com
Saussure, se prolonga até os nossos dias. Do passado ela continua, como vimos,
os tópicos saussurian~sda parelha sincronia/ diacronia, por um lado, dos estudos
anagramáticos e dos dois eixos da linguagem sin tagmática/ paradigmática (eixo
das associações, no jargão do professor de Genebra); para o futuro, ela representa
um dos primeiros escorços do que viria a ser, andando o tempo, um dos temas
bakhtinianos por excelência, o do dialogismo e da intertextualidade:

Tinianov introduz uma distinção importante na noção de função: esta pode definir-se
seja relativamente às outras funções semelhantes que poderiam substituí-la (função paradig-
mática), seja relativamente ás funções vizinhas, com as quais ela entra em combinação (função
sintagmática) (Todorov, 1965, p. 20).

Tinianov e]akobson fazem questão de explicar, outrosssim, que não acredi-


tam em sincronia ou diacronia "puras" (e se tivessem lido duas páginas à frente
do Cours, em que tal distinção se formula, veriam que Saussure tampouco acre-
ditava nisso:

O sincronismo puro demonstra ser hoje (sic) uma ilusão: cada sistema sincrônico contém o seu
passado e o seu futuro que são os elementos estruturais comparáveis do sistema (A. o arcaismo como
fato de estilo; o conjunto lingüístico e literário que se percebe como um estilo morto, passado de moda;
13. as tendências inovadoras na língua e na literatura percebidas como uma inovação do sistema. [... ]
A noção de sistema sincrônico literário não coincide com a noção ingénua de época, já que
ele se constitui não só de obras de arte próximas no tempo, mas também de obras carreadas para
o sistema e que provém de literaturas estrangeiras ou de épocas anteriores (1965, p. 139).

Por essa verten te, as concepções funcionais formalistas se ligam ao passado,


mais especialmente ao modelo semiolingüístico geral, inaugurado pelo COLas;
numa outra vertente, todavia, elas se abrem para o füturo,já que nelas repontam
os primeiros sinais de dialogismo e da intertextualidade. Feitos os reparos colocados
pela última citação, pode-se dizer que a função autónoma remete a uma intertextua-
lidade diacrónica (nos termos que preferimos, fundada nos contexto~ pressupostos da cultura,
o Estruturalismo Formalista Russo: O Circulo Lingiiistico de lvIoscou e a OPOliiZ • 211

que integram a competência semiótica das pessoas); e aJunçâo sínoma remete à intratextua-
lidade sincrônica (em nossos termos pessoais, fundada no contexto posto, que é da ordem da
pelformance enunciativa - do enunciador e do enunciatário - da mensagem).
Para deiinir a função autônoma in tertextual no terreno da poesia, basta atentar
para o fato de que cada poema é gerado ou pré-escrito de algum modo por todos os
outros poemas de seu mesmo gênero, que o precederam no tempo, servindo agora
de seu modelo formal: um soneto de hoje é feito a partir do molde formal de outro
soneto-tipo, de duzentos ou trezentos anos atrás, que tem catorze versos divididos
em dois quartetos e dois tercetos, com o esquema de rimas abab + abab + ale + dcd
(ou abba+ abba+ cdd+ ceeetc.), do mesmo metro (decassílabo, do decassílabo etc.),
e assim por diante - tudo o que se estoca, na competência das pessoas afeiçoadas ã
poesia como um contexto pressuposto para fazer sonetos a partir de esquema de um
dado discurso-tipo (soneto-tipo, no caso), Cl~a reprodução permitirá a todos nós,
leitores, reconhecer determinado discurso, com tais e quais características, como um
discurso-ocorrencial daquela mesma classe (um soneto-ocorrencial, no caso). É,
assim, a júnçâo autônoma que nos permite comparar cada discurso-ocorrencial, da ordem da
performance, com n discursos-tipo, da ordem da competência, tomando o primeiro como rea-
lização local, variável, do segundo, esquema invariante.
Se postularmos, agora, que existe, em cada ato de com posição de um discurso,
uma diacronia curta (cremos que a expressão é de J. Starobinski), de breve duração,
é possível afirmar que o mesmo princípio de reescrita se mantém; foi isso exatamente
que levou Saussure a investigar anos a fio, na sua teoria anagramática do poema, a
recorrência de uma palavra-tema, o hipograma, que funcionando como uma espécie
de sinopse reapareceria no todo ou em parte no espaço descontínuo do anagrama
e do paragrama. Não quer isso dizer, de modo algum, que os formalistas tivessem
sido diretamente influenciados por Saussure, mas é inegável que, nesse particulal~

Saussure (Cl~Os exercícios anagramáticos permaneceram inéditos e ignorados até


por volta de 1969, quando Starobinski os publicou) foi seu antecessor.
A forma do texto literário não se define, contudo, tão-só como um conjunto
de procedimentos articulados na totalidade da composição. Antes, pelo fato de
estarem todos articulados em uma mesma totalidade cujas propriedades devem
assumir na qualidade de partes constituintes, esses princípios se deixam hierar-
quizar, uns em relação aos outros, a partir da função constru tiva que desempenham
no tocante à construção do conjunto da forma. Essa função estruturante dentro
do microuniverso construído em cada obra em particular e esse papel intratextual·
sincronicamente desempenhado por todos os segmentos e cada princípio de com-
posição são batizados pelos formalistas de função sínoma. E, apesar de não se
terem preocupado com a "definição formal" desse conceito, de tudo quanto
sabemos hoje acerca do pensamen to deles, podemos extrair a seguin te concepção
da forma, segundo os formalistas:
212 • A Identidade e a Diferença

Forma Procedimento ([função autónoma] ± [função sínoma])

Articulação do Procedimento, enquanto Princípio de Composição, com as


Funções Autónoma e Sínoma. O Exemplo do Romance Picaresco Espanhol

Do ponto de vista de sua função autónoma, um princípio de composição-


um procedimento - é comparável com outras utilizações suas em obras do passado;
do ponto de vista de ~ua função sínoma, ele entra em correlação intratextual com
outros procedimentos dentro da mesma obra.
Em nossa tese de doutorado, Principios )' Funciones en la Novela Picaresca
Espmlola (FFLCH/USP, 1970, inédita), comprovamos que o romance picaresco
espanhol dos séculos XVI e XVII se caracteriza como üma forma narrativa arti-
culada em torno de três procedimentos principais (dentre outros, menores ou
locais), o jJrincípio da viagem (o pícaro é um sl~jeito que se desloca incessantemente
de lugar), o jJrincíjJio do serviço (o pícaro é um criado de muitos amos) e o jJrincíjJio
do relato direto, autobiogrétjzco (o pícaro transmite um conhecimento da ordem do
sabfl~ quer dizer, construído por sua própria experiência de vida, não um conhe-
cimento revelado, da ordem do cre)~ construído pela experiência do outro, que a
revelasse num rejJorted sjJeech, em relato indireto, de segunda mão).
Do ponto de vista de sua funcionalidade autónoma, tais princípios são, de
fato, procedimentos construtivos tão invariantes que o texto em que não ocorram
não pode ser 'considerado um relato picaresco. Mas, do ponto de vista de sua hUl-
cionalidade sínoma, da sua utilidade local, cada um desses princípios difere de
uma obra para outra, pois ao se relacionar dentro de cada uma com uma série de
outros componentes contextuais, ele desempenha um papel diferenciado, intra-
textualmente motivado.
Assim, o princípio da viagem é utilizado nO Lazarillo de Tormes (1554) (primeira
narrativa picaresca plenamente exitosa em toda Europa, que serviu, durante mais
de um século, de modelo da jJicaresca-tijJo a reproduzir) com a finalidade de propiciar
uma fuga ou uma busca ao pícaro. Mas, não basta ligar o procedimento da viagem
a uma hmção sínoma dele - /para fugir de x/,/para buscar a x/(... ); é preciso ligar,
além disso, um procedimento a outro procedimento, uma função a outra função,
hierarquizando-as en tre si, afim de perceber o papel que desempenham no cOl~unto.
Para ficar no exemplo do Lazarillo, o princípio da viagem intervém no relato
quando o pícaro, Lázaro de Tormes, tem de escapar à ira de um amo cruel de
Cl~OS maltratas acabou de vingar-se, ocasião'em que, para não morrer à míngua,
depois de fugir dele, busca um novo amo com quem se pqssa empregar, asse-
o l<-strutu ralismo Formalista Russo: O Círculo Lingiiístico de J\loscou e a OPOJAZ • 213

gurando O seu sustento. É assim que o princípio da viagem se articula com o


princípio do serviço.
Ele se anicula, ainda, de modo igualmente "funcional", com o terceiro dos
procedimentos que mencionamos acima como o princípio do relato direto. É
que, vi<0ando sem cessar de um para outro lado da Espanha, mudando de um
para outro amo, Lázaro entra em contato com as diferentes classes sociais consti-
tutivas da sociedade espanhola da época (entenda-se: tal como ela é construída no
romance, coincida ou não, essa sociedade literariamente fundada, com a descrição
da sociedade espanhola da época, o~jeto dos textos da história): um dos seus amos
é um pedinte cego, outro é um padre vendedor de bulas e indulgências, outro é
um orgulhoso fidalgo arruinado etc.; e o que Lázaro aprende é que todos esses
dignos representantes de suas classes se igualam no particular de possuírem duas
faces contrárias, uma virtuosa ao modo do parecer, outra viciosa, ao modo do ser.
Isso não é matéria de opinião, como ocorre com os conhecimentos hauridos de
segunda mão - não é conhecimento revelado, da ordem do crer; é a verdade
pura, conhecimento da ordem do saber, porque construído pela própria expe-
riência de vida do protagonista, que serviu a tais amos e sofreu na própria carne
as misérias que mais tarde, ao redigir o romancezinho, narra.
Criar, a partir da utilização pioneira do relato direto, do foco narrativo em
primeira pessoa, na ficção européia da época (na qual era norma a narração
efetuada com o foco na terceira pessoa), a ilusão da realidade, principiando, assim,
o primeiro experimento do realismo literário-Qo Ocidente, é outra das funções
autónomas resultantes do emprego do relato autobiográfico, no Lazarillo.

O Processo da Análise Formalista e o Processo da Montagem Cubista. A Análise


do Tema Geral e sua Decomposição en1 Temas Parciais. A Decomposição dos
Temas Parciais em :tvIotivos

Transparecem aí, uma vez mais, as aproxiniações da estética formalista com os


procedimentos construtivos da estética cubish'l, a que fizemos referência na introdução..
Se, como afirma a teoria opoiazista, a obra literária é o resulh'ldo de seus procedi-
mentos construtivos, o que primeiro se coloca para o crítico literário é a obrigação
de submeter a obra a uma análise da sua forma, com vistas a isolar seus procedi-
mentos compositivos, e, em seguida, averiguar suas funções autónoma e sínoma.
O conteúdo de toda obra pode ser resumido na forma de um tema geral, sus-
cetível de decomposição em temas secundários.
Mobilizando o sistema de partições sucessivas, segmen ta-se o tema geral nos
temas parciais de que ele se compõe, e, numà segunda operação, segmentam-se
os temas parciais em unidades de conteúdo menores ainda, até nos depararmos
214 • A Identidade e a Diferença

com os temas mínimos ou motivos, que são, por definição, indecomponíveis, já que
cada motivo constitui, jJraticamente, o tema de cada enunciado.
Desse modo, o tema geral da integração do sujeito no espaço social como
espaço próprio é divisível, no Lazarillo, nos temas parciais da /integração ao modo
do parecer/ + /não-integração ao modo do ser/ etc.; a /não-integração ao modo
do ser/subdivide-se, por sua vez, enquanto tema parcial, outras vezes mais até
produzir o tema mínimo, que se corporifica no motivo do "vilão aceito" (inverso ao
motivo do "herói réjJrobo", de tantos mitos e contos infantis): no final da história,
Lázaro está casado com uma senhora que é criada e amante de um abastado arci-
preste: ao modo do ser, ela é aman te do patrão; mas, ao modo do parecer, é apenas
criada dele. Con-.o Lázaro viu, porém, por toda a parte, que a sociedade é um
espaço de imposturas, que ninguém vale grande coisa ao modo do ser, mas que
todos simulam ser muito virtuosos, ao modo do parecer, e que lhe convém, se
quiser viver segura e confortavelmente o resto de seus dias, continuar a gozar da
proteção e das comodidades que lhe são proporcionadas pelo "emprego" da esposa
junto ao arcipreste, ele finge não saber de nada; por isso jura, cinicamente, numa
frase de duplo sentido, que "sua mulher é tão boa quanto outra qualquer que viva
dentro das portas de Toledo" e afirma- é o final da história e da narração: "Nesse
tempo eu estava no auge da minha boa fortuna".
Com esse motivo do "vilão aceito", Lázaro, que começara por ser um "herói
réprobo", expulso de casa ainda criança, se reintegra, finalmen te, no espaço social
de que fora banido.

A Análise do Conteúdo do Texto Literário. O Motivo como Unidade Mínima da


Fábula. Fábula e Trama

Os formalistas distinguiam a fábula da trama. Ainda que a tradução dos


termos de que se serviam, em russo, sejafreqüentemente discordante nas diversas
línguas em que suas obras se verteram, no Ocidente, optamos por reter, aqui, as
seguintes traduções:

a. Fábula ou história (fI'. fable) é o que aconteceu, o que é narrado - o


coruunto de eventos supostamente acontecidos, narrados em sua sucessão
cronológica, sobre um eixo de causalidade, de tal modo que cada evento·
de dado ponto vem a ser o efeito de um outro, antecedente, e a causa
de um terceiro, seu conseqüente, unificando-se todos entre si como as
etapas do princípio, meio e fim de uma mesma história.
b. Trama (rus. siujét, fI'. sujet, ingl. jJlot) é aquilo de que se fala (Tomachevski,
ajJud J akobson, 1970, p. 199), mas na acepção, aqui, do modo pelo qual
o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingüístico de J'vloscou e a OPOJil.Z • 215

o leitor toma conhecimento da história. Por trama concebemos, pois, os


eventos tal qual surgem para o leitor, tal como o leitor toma conhecimento
deles, no lugar da sua colocação no discurso, sem respeitar uma sucessão
cronológica estrita, mas incluindo, ao contrário, estratégias discursivas de
retrospecções e de prospecções; assim, alguma coisa que aconteceu no
passado pode ser narrada muito depois de outros acontecimentos poste-
riores na história (procedimento da retrospecção, ing1.jlashback, aI. Vorgeschichte,
"exposição retardada"; ou, ao contrário, pode-se fazer o relato antecipado
de eventos que ocorrerão no futuro - caso da profecia, do sonho pre-
monitório, da antevisão, que em português chamaremos de "exposição
antecipada" ou, simplesmente, "antecipação" (aI. Nachgeschichte).

Tanto a fábula quan to a trama se compõem dos mesmos elementos temáticos,


como se vê. Sua única diferença consiste em que o leitor entra em contato diretamente
com a trama, mas deve ir reconstituindo a ordem causal cronológica dos acontecimentos que
integram a história.
Assim, ele lê os elementos temáticos na ordem em que foram colocados
pelo narrador, poucas vezes coincidente ponto por ponto com a ordem crono-
lógica das fases seqüenciais da história, e quase sempre, ao contrário, dispostos
na forma de seqüências não-ordenadas, dirigidas pelas estratégias discursivas que
alternam antecipações prospectivas com retrospecções. Assim se conta, por meio
da exposição retardada, dado acontecimento muito depois de ter ele ocorrido,
no passado - o acontecimento reconstruído pelo procedimento do flashbach é
de utilização praticamente obrigatória em certos tipos de relatos que, como o
policial, fazem no final a revelação de como, de fato, se deu o crime, elucidando
o mistério até então impenetrável. E, de modo semelhante, pode-se relatar, no
presente, acontecimentos que só irão aéontecer, de fato, no futuro - o proce-
dimento da antecipação está presente em toda narrativa cujo desenvolvimento
vai obedecer às sucessivas etapas de realização de dado programa narrativo (relatos
que narram buscas de "tesouros perdidos", por exemplo), ou que focalizam a
materialização de profecias (como a tragédia grega, por exemplo, centrada na
realização fatal de um destino, da moira).
Exatamente porque não coincidem quase nunca os dois ordenamentos, o
do discurso relatante da trama, com suas idas e vindas, suas determinações pros-
pectivas alternadas com determinações retrospectivas, e o da história relatada, o .
lei tor vai recompondo a "ordem natural" dos acon tecimen tos da história à medida
que vai ouvindo ou lendo a trama. Por isso é que, depois que assistimos a um filme,
vemos uma telenovela, lemos um livro, recapitulamos a história toda em nossa mente,
remontando-a, agora, sobre o percurso narrativo, que vai, por meio de seqüências ordenadas
reconstituídas, do começo para o meio e daí para o fim da história: esse resumo da história
216 • A Identidade e a Diferença

feito em seqüéncias ordenadas sobre um eixo de causalidade - primeiro se atira, depois o


corpq cai - é que constitui a fábula.
Diremos, portanto, glosando à nossa conta o pensamento formalista, que o
leitor lé a trama - o como aconteceu - para com ela reconstruir a fábula - do "como"
aconteceu extraindo "o que" aconteceu.
A fábula é a manifestação de um tema geral, aquilo de que a obra fala na sua
totalidade, e que lhe confere uma unidade de sentido. Para a análise de uma nar-
rativa, os formalistas começavam por reduzir a trama (o que liam) à fábula (o que
entendiam), localizando, aí, o tema geral; em seguida, utilizando a técnica semio-
lingüística da segmentação (tal como a vimos anteriormente neste capítulo), dividiam
esse tema geral em temas parciais (aquilo de que se fala em cada uma das partes da
obra, como constituinte do tema geral), prosseguindo por divisões sucessivas delas
aos subtemas parciais até atingir o nível em que as partes constituintes desses subtemas
não poderiam ser subdivididas em porções menores ainda, nas quais se localizariam,
segundo eles, as "unidades mínimas" da fábula - os temas mínimos ou motivos:

A noção de tema é uma categoria sumária que une o material verbal da obra. Esta possui
um tema, e ao mesmo tempo cada uma de suas partes possui o seu. A decomposição da obra consiste
em isolar as partes caracterizadas por uma unidade temática específica. Assim, o relato de Pushkin,
O Disj){{rD, pode ser decomposto em dois relatos: o dos encontros do narrador com Sílvio e com o
conde, e o que se refere ao conflito entre Sílvio e o conele. O primeiro, por sua vez, se eleixa decompor
na história da vida no regimento e na história ela vida no campo; no segundo distinguimos o primeiro
duelo ele Sílvio com o conde e seu segundo encontro.
Por intermédio dessa análise ela obra em unidades temáticas chegamos finalmente às partes
não mais analis<lyeis, a saber, às menores unidades do material temático: "A tarde caiu", "Raskolnikov
[protagonista do C/illle e Castigo, de Dostoiéyski] assassinou a yelha", "O herói morreu", "Chegou
uma carta" etc. O tema de uma das partes não analisáveis da obra chama-se /Ilotivo. Na realidade,
cada proposição possui seu próprio motivo (Tomacheyski, ajJ1ld]akobson et aI., 1970, p. 203).

Corroborando o que dissemos páginas atl'ás, é visível, na compreensão acima,


a influência das técnicas mobilizadas para o estudo do folclore, que em toda a
Rússia teve sempre uma importância muito maior do que no restante da Europa.

Classificação dos Motivos: Motivos Associados, Livres, Dinâmicos, Estéticos,


Introdutórios e Suplementares

Os formalistas elaboraram uma importante classificação tipológica dos


motivos narrativos. Distinguiram, por exemplo, os motivos introdutórios, suple-
mentares, associados, livres, dinâmicos e estáticos:
o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingiiístico de iVloscou e a OPO/fiZ • 217

a. il1otivos introdutórios são aqueles que apresentam a situação inicial que


será transformada no transcorrer da história (situaçâo== relacionamento
existente a dado instante entre dois ou mais personagens da história;
exemplo, A ama B que ama C).
b. lvlotivos sUjJlementares são os que dão con tinuidade à situação inicial, des-
dobrando uma das linhas de ação virtualmente contidas em tensão no
motivo introdutório (todo motivo introdutório é tenso, quer dizer,
potencialmente capaz de se desenvolver em um ou outro sentido
diferente); exemplo, A tenta convencer o pai de B a ajudá-lo a con-
quistar as boas graças de sua filha, B, desistindo de C.
C. il1otizJOS associados são aqueles que narram even tos que não podem ser
excluídos do relato da fábula sob pena de destruir os nexos crono-
lógicos, lógicos e/ou causais entre as ações, de modo que ou a fábula
original fica incompreensível ou se acaba por con tal' uma ou tra história,
diferente da original. Como a seqüencialidade dos motivos é ordenada,
o motivo associado é tipicamente aquele que, quando involuntariamente
o omitimos ao contar a história a um amigo, nos obriga a deter o relato
para dizer: "Ah! ia me esquecendo de dizer que, antes disso, A tinha
tentado intrigar B com C, fOIjando cartas anónimas com falsas impu-
tações... etc."; os motivos associados con têm, portan to, a expressão do
que aconteceu na história e não podem ser dela eliminados.
d. iVlotivos livres, ao contrário dos associados, são os que podem ser excluídos
do resumo que fazemos da obra sem que por isso fique prejudicada a
história que se conta. Os motivos livres pertencem, portanto, ao nível da
trama (do como se conta) e, apesar de poder desempenhar importante
papel na narrativa, não se inscrevem no nível da história (no que se conta).
e. i\lolivos dinâmicos são os que ilarram ações que provocam uma trans-
formação na situação anteriormente retratada. As ações dos personagens
que causam transformações no estado anterior da história são, portanto,
motivos dinâmicos. Exemplo: a leitura de livras de cavalaria por don
Alonso Quijano, no Dom Quixote, que lhe transtorna ojuízo, convertendo- .
o na figura imaginária do invencível Cavaleiro da Triste Figura.
I ivlotivos estáticos são aqueles Cl~a in tradução não transforma uma si tuação
anterior. Exemplo: a leitura de livros de cavalaria pelo cura, no Dom
Quixote, informa-nos, apenas, acerca dos hábitos de leitura de um atol',
mas, ao contrário do que fez ao fidalgo donAlonso, não lhe transtorna
o juízo.

Os motivos livres e estáticos, que não sãà necessários para contar a história,
surgem em virtude de outro tipo de motivação qualquer que llão as puramente
218 • A Identidade e a Diferença

fabulares: motivações estéticas, encaminhadas ao acabamento ornamental da cena;


e1}wtivas, para provocar certos efeitos de sentido passionais no leitor - alegria,
tristeza, nostalgia etc. - ; nalistas, para criar o efeito de sentido "ilusão de rea-
lidade", "verossimilhança" (como situar o espaço dos acontecimentos numa cidade
realmente existente, São Paulo ou Rio, digamos); indiciais, para construir as carac-
terísticas físicas ou psicológicas do personagem (tomar um vinho nobre para
denotar riqueza ou bom gosto etc.); infonnacionais, que dizem respeito aos cir-
cunstantes de ancoragem em dado espaço-tempo da história etc.
Os formalistas deram-se conta, também, de que determinado evento que
se consideraria, tomado como integrante de uma dada posição dentro de certa
série, um motivo estático ou livre, pode, se considerado de outro ponto de vista,

..
como evento não de uma primeira seqüência, Seq. 1, mas de uma segunda, Seq.
2, converter-se em motivo associado ou dinâmico. É o caso, que acabamos de ver,
do motivo "leitura de livros de cavalaria", que, narrando um fazer do fidalgo don
Alonso, transforma-o em dom Quixote - motivo dinâmico e associado, pois - ,
mas que, relatando um fazer do cura da aldeia, serve apenas para marcar uma
motivação indiciaI ou informacional, constituindo, desse ponto de vista, um
motivo estático e/ ou livre.

o Formalismo e a Análise Estrutural da Narrativa


Sem embargo de surgirem como opostos sob outras circunstâncias, tanto o
formalismo quanto o marxismo reconheciam a centralidade da noção de junçâo.
Nela concentraram as duas doutrinas tudo o que pensavam acerca do fazer dos
atores, persoÍlagens de um relato fictício ou operadores pragmáticos da atividade
social. Mas, enquanto o pensamento marxista deriva a noção de junçâo do fazer
empírico do homem concreto preso na teia das determinações históricas de sua
classe, dentro de determinado enquadramento social, a junçâo em que pensam
os formalistas é, ao contrário, denominação para as relações entre os atores de
um discurso que realizam, por meio de suas ações, atividades simbólicas - fazeres
que emergem nos espaços de defrontação de um sl~eito operador com outro
sl~eito narrativo qualquer.
De qualquer modo, com a mais clara explanação de noções tais como jimçâo
(autónoma, sínoma, jJoética etc.) , jJrocedimento construtivo (rus. jJriem) , fábula, trama,
motivo (associado, livre, din âmico, estático etc.) , os formalistas jJraticaram uma jJrimeira
distinçâo entre os dois níveis da narrativa, o nível da histó-ria (da fábula) e o nível do discurso
ou narraçâo (da trama). Provocaram, assim, uma salutar renovação na metodologia
tradicionalmente retórica da teoria da literatura, convertendo-a, de atividade bele-
trista, fundada na noção classista do bom gàsto e do belo, base de toda estética
extrínseca, para a qual o sentido remetia primariamente à int~nção original e sub-
--
o Estruturalismo Formalista Russo: O Círculo Lingiiístico de iVloscou e a OPOIAZ • 219

jetiva do autor (i. e., do enunciador, não do enunciatário), em uma etapa moderna,
estruturalista jus sui, fundada na estética intrínseca, do efeito no destinatário.
Repudiando qualquer normativismo e reconhecendo que os elementos-objetos ana-
lisados, do jJrocedimento construtivo ao motivo, não possuem nenhum valor absoluto, que
eles nada signijicam isoladamente, senão que só adquirem um valor em Júnção de sua uti-
lidade local dentro de um dado contexto e em razão do papel que desempenham na cons-
(I trução da totalidade do relato, os formalistas elaboraram o primeiro modelo semiolingiiístico
da análise estrutural da narrativa.
Dois elos pontos altos mais puros e mais maduros de todo o movimento vão
corporificar-se nas obras ele Propp e Bakhtin, que estudaremos no próximo capítulo.
8

A OBRA DE PROPP E A DE BAKHTIN

l'ingegno aUro n01l ii che lavoro


d'intorno a cose che si FÍcorelano.
G. n. VICO

A CONTRIBUIÇÃO DE PROPPPARA A ANÁLISE


ESTRUTURAL DA NARRATNA

Au contraim eles jJoellles,


1l1l lVlIlall jJeut étm rés1llllé.
P. VALÉRY

Vladimir Iakovlevich Propp (1895-1970) passou boa parte de sua vida repu-
diando o rótulo de "formalista" que volta e meia lhe pespegavam, para tormento
seu. Mas, aquele que lembra que "formalista" era, na União Soviética de 1915 até
1930, designação tão perigosa - senão mais - quanto "comunista" em certas'
partes da América Latina entre 1960 e 1980, não deve se deixar impressionar por
isso; se não pela intenção subjetiva, pela sua própria obra Propp foi certamente
não só um formalista, mas um dos maiores dentre eles. E a tal ponto que não é
de modo algum exagerado dizer que ele apresenta hoje para o estudioso da lite-
ratura, e especialmente para o da narrativa, importância comparável à que Saussure
222 • A Identidade e a Diferença

teve para a constituição da lingüística geral, da semiologia geral e do estrutu-


ralismo para as ciências humanas e sociais de nosso tempo.

o caminho de Propp foi exemplar, não só no plano cicntífico e no sentido ético. Motivo de
ref1exõcs deve se tornar, igualmcntc, o seu apego de estudioso ao marxismo, não tanto pelo par-
ticular cmprego que na sua pesquisa ele fez dos conceitos orinndos desse sistema intelectnal, quanto
do ponto dc vista de UIll vínculo correto entrc uma Í1westigação científica específica cm ato e aquele
conjunto de resultados de uma pesquisa prático-científica em devir que deve ser o marxismo. Propp
não partiu de uma "aplicação do marxismo ao seu campo de pesqnisa, não se preocupou com ela,
nem tentou combinar o marxismo com um ontro iSlIlo em circulação. No curso de uma investigação
em qne nsou instrumentos então disponíveis e antecipon outros então infieli, ele se deparou natu-
ralmente cOIllnoções marxistas essenciais e as acolheu, adaptando-as ao seu próprio horizonte de
análise, perseverando em um trabalho concretamente original. E hoje já não suscitam nem mesmo
cnriosidade as acnsações dc "idealismo" e de "formalismo" qne os "dogmáticos" lançaram contra o
sábio leningradcnse Q,movic, 1975, pp. VIII-IX).

Mescla de formalista e de marxista, Propp deixou-se seduzir, também, pelo


controvertido ideário marrista. Nem mesmo o veto com que Stalin em pessoa
fulminou, em 1950, a teoria estadial de N. 1. Marr foi o bastante forte para apagá-
la totalnlente das cogitações e da forma mentis proppianas - ele permaneceu fiel
a elas até o fim de sua vida.
Nikolai Iakovlovich Marr (1864-1934) elaborou a teoria estadial, que, pre-
tensamente apoiada em argumentos marxistas, afirmava que a língua não passava
de uma manifestação supra-estrutural de classe, como se podia observar pela exis-
tência de diferentes dialetos sociais. Apesar de contar com o respaldo de
Meschchaninov, então diretor do Instituto da Linguagem e do Pensamento da
Academia de Ciências da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, no parecer
de quem seria "inaceitável construir uma verdadeira ciência lingüística marxista
sem Marr", em maio de 1950, Stalin decretou que "como meio de comunicação
[... ] a língua serve igualmente a todos os indivíduos na sociedade e [... ] é [... ]
indiferente às classes" (Stalin, ajJUdMachado Filho, 1974, pp. 179-180). E rema-
tou: "b) a existência dos dialetos sociais não refuta, antes confirma, a existência
de uma língua comum a todas as pessoas [... ]; c) a fórmula 'natureza classística
da língua' é uma fórmula errónea e an timarxista" (idem, ibidem).
A competência semiótica de Stalin não parece ter preocupado Propp em
demasia - nem, na verdade, era para tanto. Mas, o fato é que, com a mistura de
marxismo e de marrismo, mais uma boa quantidade de influxos de vária ordem
hauridos num intenso contata com os pesquisadores da cultura popular russa-
é notável a consideração que Propp sempre" devotou à probidade intelectual de
Vesselovski - , eclético e tudo, Propp produziu dois livros exeJ)lplares e ainda hoje
A Obra de ProjJjJ e a de Bahhtin • 223

indispensáveis sobre o conto popular de sua terra, a J\1orJologia do Conto J\1ara-


vilhoso (1928) (que deveria ter-se chamado iVIOIjàlogia do Conto de iVlagia, não tivesse
seu título sido arbitrariamente trocado pelo editor, sabe-se lá louvado em quê) e
As Raízes Históricas dos Contos de iVlagia (1946).
Propp concebeu originalmente os dois livros como partes complementares
de uma mesma pesquisa, na qual a 1110rfologia do Conto lUaravilhoso en traria como
uma espécie de introdução à outra, mais voltada, como diz o título, para as
origens dos contos mágicos populares e infantis, contos de fadas e assemelhados.
E, desde logo, para alguém que sempre estadeou sua condição de marxista
marrista, renegando a etiqueta de "formalista" como um apodo indesejável, é
paradoxal perceber que a investigação de As Raízes não foi guiada pelas teorias,
que os marxistas então trombeteavam por toda a parte, do "reflexo condicionado",
adotando, ao contrário, uma metodologia formal, segundo a qual uma forma
literária do presente deriva de uma forma literária do passado (na sua versão
etnológica) :

É certamente um erro procurar na yida real uma correspondência à narratiya realista. Ex.:
está errado considerar a personagem Penélope e as ações ele seus pretendentes como correspon-
dentes à yida real grega e aos costumes gregos do casamento. Os pretendentes de Penélope são os
falsos pretendentes [i. e., o actante que na i\101fologia do Conto AIamlJi!lzoso surgirá como o illljJostOl]
que a poesia épica do mundo intciro bcm conhcce. É preciso isolar os elementos folclóricos (Propp,
1971, p. 245).

o sólido bom senso de Propp triunfava, aqui, dos preconceitos marxistas


do "reflexo" C' marristas do "estadia", e isto graças à sua formação formalista.

As Raízes Históricas dos Contos de lV1agi'a

Em As Raízes, Propp expõe sua convicção de que o núcleo primitivo dos


contos mágicos provém dos rituais de iniciação das comunidades primitivas.

Aquilo que é narrado pelos contos - ou que escondem em suas metamorfoses - tem seus
paralelos: atingida uma certa idade, os mcninos eram separados da família e levados ao bosque
(como Pequeno Polegar, João e Maria, Branca de NC\'e), onele o chefe da tribo, assustadoramente
vestido, com o rosto coberto por horrÍyeis máscaras (que nos remetem logo aos mágicos c às bruxas),'
submetia-os a provas difíceis [oo.] os meninos escutavam a narrativa dos mitos da tribo e recebiam
armas em consignação (os objetos mágicos, distribuídos por doadores sobrcnaturais aos heróis em
perigo) [oo.] e finalmente retornavam às suas casas, freqüentemente com um outro nome (também
o herói das fábulas rcaparece incógnito) [oo.] maduro i)ara o casamcnto (nove entre dez contos
terminam com uma fcsta de núpcias) (Rodari, 1982, p. 65).
224 • A Identidade e a Diferença

A idéia de Propp é, como se Yê, extremamente sedutora. Segundo ele, a


estrutura do conto de magia repete a estrutura de um ritual de iniciação antigo.
Na origem, o conto desse tipo não teria sido mais do que o relato desse rito, feito,
talvez, a crianças que ainda teriam de passar por ele, ou, o que é mais provável,
recapitulado jJost facto na convcrsação dos adultos que já tinham passado por ele.
O conto, em si, teria passado a existir independentemente da prática que
descrevia, a existir como um relato autônomo, pois, quando o antigo rito iniciático
deixara de ser praticado, de modo a ir caindo, aos poucos, no esquecimento,
enquanto prática pragmática, sua macroestrutura funcional fora refugiar-se, para
sobreviver na memória coletiva feito uma prática cognitiva - como uma moda-
lidade de narrativa que era a expressão simbólica de um rito prático-mítico esquecido.
E como os rituais de iniciação, por realizar passagens entre o espaço-tempo
profano e o espaço-tempo sagrado, envolvem sempre algum tipo de cantata com
o numinoso, o misterioso transcendental de que os contos em si mesmo mal con-
servam algum vestígio, no curso de milénios teria ocorrido uma espécie de
"degradação histórica" do sagrado:

As L'íbulas [os contos], em suma, teriam nascido da 'descida' do mundo sacro ao mundo
laico: o mesmo aconteceu com os objews (]lle no mundo infantil transformaram-se em meros brin-
qncdos, quando em eras pretéritas eram objetos culturais e rimalísticos - por exemplo, a boneca
e o pião. E na origem do tcatro, não houve o mesmo percnrso do sagrado ao profano? (idelll, ibidelll).

A obra As Raízes constitui uma investigação diacrônica de uma classe de


relatos Cl0a cabal compreensão requeria, an tes, uma prévia investigação da ordem
sincrônica, encaminhada à solução dos problemas atinentes à funcionalidade
sínoma dessc tipo de raconto. Tal será o papel da NIOlfologia do Conto Nlaravilhoso:

No cstudo da espccificidade do conto de magia, Propp partiu do princípio scgundo o qual


o estudo diacrônico (histórico-genético) devcria ser precedido dc uma descrição sincrônica rigorosa
[observemos, à nossa conta, que se trat,1\'a, ainda, invertida ou não, da marca da sua fidelidade ao
postulado formalista que Tinianovemmciara em termos de "a função autônoma [... ] é uma condição
necessária à função sínoma"]. Ao elaborar os princípios de semelhante descrição, Propp se propôs
a tarefa de evidenciar os elementos constantes (invariantes), aqueles que se encontram sempre pre-
sentes no conto de magia, e que o Ílwestigador não perde de vista, mesmo quando passa de um
enredo para outro (lvleletinski, 1984, p. 145).

A NIOIfologia do Conto Nlaravilhoso. O Resumo Textual do Discurso.


Substituiçâo do Nlotivo pela Funçâo como Unidade Mínima da História

Publicado na União Soviética em 1925'c praticamente silenciado pelo dog-


matismo marxista na versão stalinista da época, o livro de Propp teve de esperar
A Obra de Fropp e a de Bahhtin • 225

outros trinta anos até ressurgir numa tradução em inglês que a tornou acessível
para o Ocidente - a jl,lmjJlwlogy oJtheFolktale (Bloomington, Indiana University
Research Center in Anthropology, Folklore and Linguistics, 1958) - , para que
aí começasse a exercer sua imensa influência.
No prefácio do livro, Propp adverte que a matéria de seu trabalho é o conto
de magia, o conto de fadas popular, russo, nome pelo qual abrange os relatos que
estão classificados no Índice de Aarne e Thompson entre os números 300 e 479.
No atinente ao método, ele se dispõe a comparar entre si os temas de uma certa
centena desses contos, analisando suas partes constituintes de um ponto de vista
que se afasta dos pressupostos históricos, sociológicos ou genéticos, que, conforme
vimos, são o objeto de As Raízes, para se ater a um estudo descritivo, Cl~O resultado,
pensa ele, será a produção de uma morfologia, no sentido goethiano (ou seja, da
descrição das partes constituintes de um organismo - a palavra rnorfologíaremetia,
então, dircto para um modelo botânico - e das relações existentes entre elas):

A palawa IllOlfologia significa o estudo elas formas. Em Botânica, a morfologia compreende


o estudo das partes constitutivas de uma planta e o da relação de umas com outras e com o conjunto;
dito de omro modo, o estudo da estrutura de uma planta (Propp, 1984, p. 11).

Propp começa por questionar a conclusão de Vesselovski segundo a qual


se poderia atribuir ao motivo a condição de unidade mínima do relato: "Por
motivo entendo a unidade mais simples da narração" (Vesselovski, apud Pro pp,
1984, p. 21). Vesselovski entcnde o enredo, ou, como preferimos chamar, a fábula,
como um complexo de motivos:

Um motivo pode relacionar-se com enredos [fábulas] diferentes.


[oo.] "Os enredos variam: alguns motivos invadem enredos, os enredos combinam-se entre
si." "Por enredo entendo o tema, no qual se interpenetram diferentes situações - os motivos." Para
Vesselovski, o motivo é primário, o enredo secundário. O enredo é um ato de criação, de conjunção.
Daí decorre para nós a necessidade ele estudar não tanto segundo os enredos, mas, antes de tudo,
segundo os moti\'os (Propp, 1984, p. 20),

O primeiro empcnho de Propp é demonstrar que o motivo se localiza, na


prática, por meio da técnica do resumo da narrativa lida ou ouvida: à medida que
recebe o relato de uma história, o destinatário reelabora mentalmente a matéria
que lhe contam, efetuando um resumo dos acontecimentos narrados, os quais vai
retendo, assim condensados, como os momentos essenciais e internamente asso-
ciados da história: "Um dragão rapta a filha do rei" (exemplo de Propp, não de
Vesselovski) seria, por exemplo, um motivo; logo, uma unidade mínima, no sentir
ele Vesselovski. Sendo "mínima", por definição, tàl unidade não poderia ser partida
em segmentos menores ainda do que ela, individualmente dota-dos de sentido.
226 • A Identidade e a Diferença

Propp não crê nisso. Ele pensa, inversamente, que o motivo citado por
Vesselovski se deixa subdividir em quatro segmentos distintos, "o dragão", "o
rapto", "a filha", "o rei", 'que são, todos, independentes entre si no sentido de
admitirem individualmente muitíssimas substituições: em certos contos, o dragão
é substituído por um redemoinho, pelo diabo, por um falcão, ou por um bruxo;
o rapto pode ser trocado por um encantamento; em lugar da filha, a vítima pode
ser uma irmã ou uma noiva do rei; em lugar do rei poderíamos encontrar, em
outros racontos, um lavrador; e assim por diante.
Antes de prosseguirmos descrevendo o trabalho de Propp, compreendamos
o que ele está fazendo aqui: está reconstruindo paradigmas de elementos nar-
rativos - no caso, de personagens ou atores - estocados na competência do
escritor; é, portanto, o mesmo método de Saussure (que Propp, com quase certeza,
não conhecia, entre 1927 e 1928), de reunir elementos semelhantes em classes
onde eles vinham a vincular-se por meio de relações associativas (paradigmáticas).
De fato, Propp reconhece os quatro paradigmas do "dragão", do "rapto", da "filha"
e do "rei", Cl~OS elementos são eqüipolentes, podendo se substituir mutuamente
em dado ponto do mesmo contexto.
Desse modo, selecionando-se de dentro de cada um deles um membro da
classe e combinando-o, a seguir, com outro membro da classe seguinte, sobre o
mesmo eixo sintagmático, obtemos 17 motivos diferentes. Para ficarmos nos exem-
plos que Propp fornece:

I II III IV
o drag'ão o rapto a filha o rei

~ ~ ~ t
a. um redemoinho um encantamento a irmã um lavrador
b. o diabo um ferimento a nOIva
c. um falcão um envenenamento
d. um bruxo

As diferentes combinatórias sintagmáticas nos permitiriam obter, só com


esse repertório de personagens e ações, comutando membros de cada paradigma
no mesmo ponto da cadeia, um bom número de outros motivos, por exemplo:

a. o dragão lança um encantamento à" filha do rei;


b. um redemoinho rapta a irmã de um lavrador;
A Obra de Propp e a de Bahlztin • 227

c. O diabo fere a noiva do rei;


d. um falcão seqüestra a filha de um lavrador;
e. um bruxo envenena a noiva de um lavrador;
f um dragão elwenena a irmã de um lavrador etc.

Propp não fez exatamente isso, mas fez coisa bem parecida: começou por
demonstrar que a unidade mínima do relato não é o motivo: "Apesar de Vesselovski
[... ] o motivo não é uno, nem indivisível" (idem, p. 21).
Disposto a encontrar essa unidade mínima, Propp principia a comparar os
resumos de quatro segmentos narrativos que ele condensou assim:

a. Um rei dá uma águia A águia transporta o herói


ao herói. ---)
- -- para outro reino.
b. O velho dá um éavalo O cavalo leva Sutchenko
a Sutchenko. ---)
- -- para outro reino.
c. O feiticeiro dá um O barco transporta Ivã
barco a Ivã. ===) para outro reino.
d. A filha do czar dá Do anel sai um grupo de jovens que
um anel a Ivã. ---)
- -- conduz Ivã para o outro reino.

Propp faz notar que em cada um desses resumos se localizam partes que se
repetem, trechos que se conservam invariavelmente os mesmos, de um conto para
outro, ao lado de partes variáveis, que aparecem de um jeito em dado relato mas
não nos demais. Assim, selo variáveis os:nomes dos protagonistas e os das coisas dadas,
"rei", "águia", "herói", no primeiro lllOtiVO, "velho", "cavalo" e "Sutchenko", no
segundo motivo, e assim por diante. O conjunto dos elementos variáveis do motivo
constitui a trama (a tradução brasileira editada pela Forense-Universitária, do Rio,
em 1984, teve certamente boas razões para traduzir o russo siujét por enredo, mas
preferimos trama), componente que exatamente por ser variável não pode cons-
tituir a base de nenhum estudo científico, ao passo que há um outro conjunto de ele-
mentos invariantes, que constituem j}ropriamente a fábula (ou história) e que são os que
reproduzimos em nossos resumos e condensações, quando relatamos uma história
a um amigo, ou a recapitulamos mentalmente:

Todo conteúdo ele um conto pode ser emmciaelo por meio de frases cnrtas como estas: os pais
saem para o bosque, proíbem qne seus filhos saiam de casa, o dragão rapta a donzela, etc. Todos os
228 • A Identidade e a Diferença

jm'Ciicados elão a composição elo conto [a fábula] e toelos os sujeitos, comjllementos e elemais partes ela
oração constituem o enreelo [a trama] (idem, p. 104).

Por isso, como afirma Propp, a mesma fábula pode servir de base para
tramas diferentes:

Se o elragão rapta a princesa, ou o eliabo rapta a filha elo camponês, ou elo jJojJe [o cura ela
aleleia], é ineliferente elo ponto ele vista ela composição [ela Lílmla]. Por outro laelo, esses casos poelem
ser consieleraelos como enreelos [tramas] diferentes.

Deixando de lado os elementos variáveis que compõem a trama - os motivos


livres, os motivos estáticos, os nomes dos personagens, quer como sl~eitos quer como
complementos do motivo-oração - , Pmp!Jvai se dedicarinleiramenleá consiâeraçâo das com-
jJonentes invariantes da narrativa, que se localizam, mostra ele, no nível das ações dos jJersonagem:

o que muela s~\O os nomes (e, com eles, os atributos) elos personagens; o que não nlllela são suas
ações, ou funções. Daí a conclusão de que o conto mara\"illlOSO atribui freqüentemente ações iguais a
personagens diferentes. Isto liaS jJer/llite estudar os contos a jJ{{I1ir das jUllções dos jJersollagens (ide/ll, p. 25).

De fato, voltando a obsenar os quatro resumos comparados por Propp, veri-


ficamos que ali não muda nunca o que os personagens fazem - uma doaçâo
(alguém dá alguma coisa a alguém) e um traslado (algo ou alguém transporta
alguma coisa para algum lugar); uma leitura vertical, da ordem paradigmática,
do primeiro ao quarto, nos permite, utilizando a técnica da redução, extrair as
seguintes funções invariantes:

Eixo A
paradigmático I
(A- B) ~ eixo sin taLgmático
B --------::=----=,=-----.~ X
(B-X)
a. Um rei dá uma águia A águia transporta o herói
ao herói. -* para outro reino.
~ ~
b. O velho dá um cavalo O cavalo leva Sutchenko
a Sutchenko. para outro reino.

c.
~ ~
O feiticeiro dá um O barco transporta Ivã
barco a Ivã. para outro reino.
~ ~
d. A filha do czar dá Do anel sai um grupo de jovens que
um anel a Ivã. conduz Ivã para o outro reino.

DOAÇÃO
t TRASLADO
t
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 229

Outro dado complementar a reter é o caráter contextual da júnção: a função


é uma ação que se relaciona com outra ação e que se concebe como o ato de per-
sonagem definido do ponto de vista de seu significado para o desenvolvimento
da fábula (da história), considerada como um todo.

As Trinta e uma Funções do Conto Popular Maravilhoso

Tendo isolado a sua unidade descritiva de base, Propp testa sua descoberta
sobre o COlPUS estabelecido por cem contos mágicos populares da Rússia, os que
aparecem numerados de 50 a 151 na coletânea de Afanássiev (Propp, 1984, p. 28).
Ao cabo de sua pesquisa, ele concluirá que:

a. Os elementos constantes, jJermanentes, da história de um relato são as jimçães


- os fazeres executados pelos personagens, definidos a partir da sua
utilidade local para a construção da fábula, independentemente da
identidade do atol' que os executa, da motivação que o leva a agir, do
modo pelo qual ele age.
b. As funções constituem as unidades mínimas para efetuar a descrição da
narrativa, no nível da fábula.
c. O número das funções constantes dos contos de magia populares é
limi tado.
d. As funções surgem em seqüências ordenadas, cl~a ordem de apare-
cimen to é sempre a mesma.
e. Todos os contos de magia, populares, russos, são monotípicos quanto
à construção (idem, pp. 27-28).

Interpretando em nossos própriostermos os ganhos teóricos da JVlorfologia


do ContoJVlaravilhoso, podemos dizer que Propp efetuou uma espécie de mapeamento
estrutural invariante para todos os contos que examinou, construindo, afinal, uma
espécie de esquema Júncional imanente de um conto-tijJo - quer dizer, do con to-tipo
de magia, popular, russo - , esquema esse que serve de modelo para n realizações
locais, infinitos contos de magia ocorrenciais, praticamente iguais no que se refere
. à sua fábula, uma vez que todos contêm o mesmo elenco de funções, mas sempre
diferentes entre si no que tange à sua trama.
O esquema funcional imanente do conto-tipo de magia é composto de uma·
série de 31 funções, que passamos a designar a seguir, lembrando antes que pre-
ferimos utilizar para tanto uma nomenclatura própria, o mais próximo possível
do original (da lVIOIJologia) , mas adaptada para os nossos fins, a partir do cotejo
das terminologias que encontramos nas edições norte-americana, francesa,
espanhola, italiana e brasileira; adaptamos, igualmente, a desG:rição da situação
230 • A Identidade e a Diferença

que as funções denominam e omitimos, por fim, por amor à clareza da exposição,
os "signos convencionais" que Propp utilizou para marcar as funções:

O. Prólogo ou Situação Inicial


Apresentação do herói e/ou da vítima, em suas circunstâncias de
ancoragem no tempo e no espaço.
1. Afastamento
Um dos membros da família afasta-se de casa.
2. Regra ou Interdição
Proíbe-se ou ordena-se a alguém que faça alguma coisa.
3. Transgressão
A regra é violada.
4. Interrogação
Introdução do futuro vilão, tentando obter informações.
5. Informação
Alguém fornece a informação pedida.
6. Anlil ou iVlanobra de Engano
O vilão, de posse da informação, arquiteta um plano de ataque.
7. Cumplicidade Involuntária
A vítima age na conformidade do que fora planejado pelo vilão e assim
o ~uda sem querer.

Essas sete primeiras funções constituem um subconjunto que funciona


como uma espécie de "relato preparatório" (hoje diríamos, em termos da
semiótica greimasiana, que correspondem às fases de manipulação e de
aquisição de competência do vilão) ao engajamento da ação propriamente
dita. Mas a ação só começa verdadeiramente pela transformação da situação inicial,
definida no prólogo. Essa transformação tem lugar na altura da oitava função,
o dano:

8. Dano ou Carência
O vilão prejudica a vítima; o dano pode manifestar-se também na forma
da privação de algo necessário ao personagem, ou que ele deseja obter.
9. Pedido de Auxílio ou Mediação
Pede-se ao futuro herói que repare o dano causado.
10. Empresa Reparadora ou Investidura do Herói
O futuro herói aceita reparar o dano causado pelo vilão (e é investido
da condição de agente reparador, sl~eito delegado).
11. Partida
O herói deixa seu espaço próprio em busca do vilão, que fugiu.
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 231

12. Prova Qualificante ou Primeira Função do Doador


O herói recebe a proposta de submeter-se a uma prova para poder
receber um objeto mágico (de que necessitará para a sua busca).
13. Reação do Herói
Resposta do herói à proposta feita em 12 (se recusar, haverá nova
proposta, e outra ainda - caso da triplicação - , até que ele aceite
realizar a prova).
14. Transmissão do Objeto lvlâgico
Tendo executado a prova proposta, o herói recebe o auxiliar mágico.
15. Traslado ou Deslocamento
O herói vai ou é levado pelo auxiliar mágico ao encontro do vilão.
16. Luta (Prova PrincipaC)
O herói e o vilão se enfrentam numa prova decisiva.
17. l11arca
Durante a luta, o herói recebe uma marca.
18. Vitória
O herói vence a luta.
19. Reparação do Dano
O dano antes praticado pelo vilão é reparado.

A função dezenove representa a culminação da fábula. Assim como a per-


formance do vilão, que comete o dano- função oito - , invertera a situação do
estado inicial, que fora explícita ou implicitamente definida como 'Justa",
"legítima", no início do conto: "Era uma vez, num reino muito distante daqui,
onde todo mundo vivia muito feliz, um rei e sua filha ... ", a pe'ljonnancedo herói,
agora, vencendo a luta e impondo a reparação do dano, inverte o estado histórico
anterior, em que o vilão tinha o mando das situações que se definiam, em virtude
disso, como "situações injustas", "ilegítimas", dano. Desse modo, invertendo o
que antes fora invertido, o conto opera, aqui, um retorno da história ao estado
inicial; fecha-se, assim, um ciclo de desordem, e tudo volta à "ordem" retratada
no prólogo.
Mas, não raro, o relato continua narrando o regresso do herói ao espaço
de origem:

20. Regresso
O herói começa a retornar para o seu espaço próprio.
21. Perseguição
Durante o regresso, o herói é perseguido.
22. Salvamento
O herói escapa à perseguição (só ou com o auxílio de um adjuvante).
232 • A Identidade e a Diferença

Este é um outro ponto em que pode acabar-se a história, rematando a nar-


rativa com a chegada do herói são e salvo ao lugar de que partira. Ela pode, por outro
lado, continuar ainda um pouco mais; nesse caso, surgem as seguintes funções:

'23. Chegada do Herói Incógnito


O herói chega a um lugar próximo do seu espaço de origem, mas rea-
parece agora sob outro aspecto, disfarçado ou com outro nome, e,
portanto, sem ser reconhecido. Nesse lugar, ele se depara com um
imjJostorque pretende fazer-se passar pelo herói desaparecido.
24. hnjJostura
Um impostor tenta fazer-se passar pelo herói.
Prova Glorificante ou Tarefa Difícil
A fim de estabelecer a real identidade dos dois personagens, o herói
incógnito e o impostor, ambos são submetidos a uma prova difícil, que,
em princípio, só o verdadeiro herói poderia realizar (uma modalidade
desta última classe de tarefas difíceis é a exibição, pelo herói, da marca
que ele antes recebera, quando da luta com o vilão - cf. função 17).
26. Realização
O herói realiza a tarefa difícil.
27. Reconhecimento do Herói jJela NIarca
O herói é reconhecido, quer por ter realizado a prova que, por definição,
só o verdadeiro herói poderia executar (ex.: Ulisses, nos trajes de
mendigo, envergando o arco de Ulisses, na Odisséia) , quer por ter
exibido a marca que recebera - função 17 - na luta que tivera, antes,
co'ntra o vilão.
28. Desmascaramento do ImjJostor
O impostor, que fracassa na realização da prova, é identificado como
um falso herói.
29. Transfiguração
O herói recebe uma nova aparênCia (como a Gata Borralheira, que
. reaparece instantaneamente vestida com seu traje de baile assim que
calça o sapatinho de cristal).
30. Punição
O vilão recebe uma sanção negativa; geralmente é castigado, mas pode,
também, ser perdoado, depois de publicamente execrado.
31. RecomjJensa ou Casamento
O herói recebe uma recompensa.

Como essas 31 funções descrevem, porito por ponto, e na ordem do seu apa-
recimen to, as ações que desenvolvem a fábula de qualquer dos .cem con tos de magia
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 233

analisados, Propp conclui que todos esses relatos pertencem ao mesmo tipo de conto
- o conto de magia. É necessário esclarecer que ProjJjJ afirmou a jJertinência desse tijJo
de esquema funcional sintagmático unicamente jJara esse tijJo de relato. Isso não obstante,
a partir do conhecimento da lYI01fologia do Conto Maravilhoso pelos investigadores de
outras partes do mundo, o que só se deu depois da sua tradução - da tradução da
sua segunda edição às línguas do Ocidente (primeiro, na edição norte-americana,
já citada, de 1958, e a seguir nas suas versões italiana, francesa, espanhola, todas
lançadas até 1970) - , mais e mais evidênciasforam carreadas jJara comjJTeendero esquema
funcional jJroppiano como um modelo ajJlicável jJara todo e qualquer gênem de narrativas,
não só adequado para descrever as histórias infantis, de magia, ou populares, que
são menos elaboradas, mas, também, adequado paraa descrição de narrativas escritas,
não-populares, inclusive as literárias.
Um exemplo das inúmeras extrapolações que a JVlmjologia do Conto NIaTa-
vilhoso induziu é ó que se refere à extensão da noção proppiana de "função" que
Tzvetan Todorov amplia até abranger todo e qualquer elemento de uma obra
dotado da possibilidade de entrar em correlação com outro elemento da mesma
obra (quando Propp fora mais restrito, compreendendo por "função" unicamente
o fazer do personagem que se insere na linha causal da história, como anteceden te
e/ou conseqüente de outro fazer): "O sentido (ou função) de um elemento da
obra é a sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos dessa
obra e com a obra toda" (Todorov, 1971, p. 212).
Percebe-se que o que Todorov conceitua aí é, mais propriamente, a função
no sentido tradicional formalista, mais extenso do que a peculiar acepção que
esse termo adquire na ll/Imfologia do Conto JVIamvilhoso.

Seqüências Expandidas e Seqüências Condensadas. A Ordem Invcuiante de


Ocorrência das Funções

Em outro trabalho que dedicou ao mesmo assunto (1970a, pp. 177-198), o


autor da NImjologia do Conto lyIaravilhoso estuda os vários procedimentos que provo-
cam o aparecimento ou o desaparecimento de certos detalhes de um quadro ou"
de uma cena descrita, ocasionando o aparecimento das chamadas variantes. Trata-
se do estudo do que hoje denominaríamos ''jJmcedimentos de eXjJansão e de condensação
discursiva", usando a terminologia greimasiana, não a proppiana; Propp, de fato,
preferiu denominá-los "procedimentos de redução e de amplificação".
Assim, por exemplo, a morada de um vilão pode aparecer descrita de modos
muito variados, em diferentes versões do mesmo conto de magia, como:

a. uma cabana sobre palafitas no bos"que;


b. uma cabana sobre palafitas;
234 • A Identidade e a DiJerenra

c. uma cabana no bosque;


d. uma cabana;
e. o bosque;
J não se menciona a morada.

Uma leitura de a a fmostra a atuação do procedimento de redução: o


resultado é o aparecimento de seqüências cada vez mais condensadas.
U ma leitura no sen tido inverso, ascenden te, de f a a, evidencia como funciona
o procedimento de amplificação, construindo seqüências expandidas.
Os procedimentos de redução e de amplificação, já bem conhecidos da
retórica antiga, não se aplicam, todavia, unicamente aos motivos livres e estáticos,
componentes variáveis da trama. Eles funcionam também com os motivos asso-
ciados e dinâmicos, componentes invariantes da fábula. Assim, quando com-
paramos segmentos homologáveis de três diferentes narrativas-ocorrenciais do
mesmo gênero, observamos, por vezes, três diferentes organizações seqüenciais:

conto a:
Regresso ~ Perseguição ~ Auxílio ~ Salvamento --+ Chegada

conto b:
Regresso ~ Perseguição ----------------:~~Chegada

conto c:
Regresso -----------------------J~~
Chegada

Naforma mais expandida, a do conto a, há menção explícita do salvamento


do herói perseguido, obtido por intermédio darecepção de um acijuvantequalquer;
na versão média, b, é a própria chegada do herói ao seu lugar de origem que constitui
também seu salvamento; na versão mais condensada, enfim, não ocorre perse-
guição alguma durante a viagem de regresso.
Embora tais variantes representem importantes diferenças relativamente
à organização da trama, Propp notou que a ausência de uma ou mais funções
dentro de um dado segmento - no caso ilustrado, dentro da seqüência Regresso
~ Chegada do Herói - não alterava em nada a ordem de colocação das funções
remanescentes. Na seqüência supra, qualquer que seja o número de funções par-
ticipantes, a última função, chegada, aparece sempre posposta à função ante-
cedente, regresso.
A Obra de Propp e a de Ba/;htin • 235

Dessa observação, Propp extraiu um princípio geral que afirma que, inde-
pendentemente do número de funções que componham dada seqüência nar-
rativa, "a sucessão das funções é sempre idêntica" (1970, p. 38).
Além disso, o autor da lHmjologia do Conto iVlaravilhoso assinalou que a ordem
das funções é irreversÍ"\'el. Nos exemplos acima, se ocorrerem uma perseguiçclo e
um auxílio, eles só poderão aparecer colocados nessa mesma ordem de conti-
güidade, e nunca na ordem inversa.
Para explicar a constância observada na ordem de colocação das funções
dentro da série, Propp lançou a hipótese de que existiriam, possivelmente,
funções mutuamente incompatíveis, que se excluiriam uma à outra dentro do
mesmo contexto de uma história. Se uma função C, qualquer, ponhamos, surge
em dado racon to, ela poderia, sob certas circunstâncias, excluir automaticamen te,
por sua mera presença ali, a ocorrência de uma outra função qualquer, D, na
mesmaseqüência. Teríamos, então, por hipótese, esquemas alternativos, do tipo:

conto a: A ----l~~ B --c~


.. F ...

conto b: A ---J.~ B
•• ----l~~ D ----l.~ F ...

Se essa hipótese se verificasse, poderíamos dizer que o esquema funcional


invariante, das 31 funções, se deixaria subespecificar em noutros subesquemas
funcionais alternativos, esquema C, esquema D etc., contextualmente excluintes
um de outros. O inventário da distribuiçclo de microtextosfuncionais compatíveis e incom-
patíveis entre si jJoderia propiciar-nos, supunha Propp, uma boa base para o estabelecimento
de uma tipologia mOljológica, capaz de descrevi![ mais acuradamente classes e subclasses
narrativas diferenciadas. Teríamos, hipoteticamente, dentro da mesma classe dos "-
contos populares", uma subclasse de contos de estrutura em C, não-D, e uma outra
subclasse de contos de estrutura não-C, D, e assim por diante.

o Esquema Actancial de Propp: Definição do conto de Magia conforme o


Elenco de seus Personagens ou de Esferas de Ação

Propp produz na iVlmjologia do Conto iVlaravilhoso duas diferentes definições


para o conto de magia popular:
• A primeira, funcional, que acabamos de interpretar, concebe o conto de
magia como a narrativa que realiza de modo variável, no nível da mani-
236 • A Identidade e a Diferença

festação, um mesmo esquema funcional de 31 pe,formances invariantes


no nível imanente.
Para chegar a esse resultado, Propp começou por abandonar, como vimos,
as componentes variáveis da trama, dentre elas, o personagem que executa
tais ações. No sexto capí tulo da NI01Jologia do Conto Nlaravilhoso, en tretan to,
ele retoma o exame desses personagens para produzir uma segunda
definição do mesmo gênero:
• A que concebe o conto de magia como a narrativa que distribui aquelas
31 funções em sete esferas de ação, cada uma das quais constitui o fazer
de dada classe de personagens (classes de personagens = actantes):

Numerosas funções se agrupam logicamente segundo determinadas esferas [... ] (que)


correspondem, grosso modo, aos personagens que realizam as funções. [oo.] No conto mara-
vilhoso encontramos as seguintes esferas de ação:

1. A esfera de ação do A1\TAGO:\'ISTA (ou malfeitor), que compreende o Dano, a Lllta


e as outras formas de combate contra o herói, a Perseguição.
2. A esfera de ação cio DOADOR (ou Provedor), que compreende a preparação cla
Transmissão do Ol~jeto l\lágico e o fornecimento do Objeto Mágico ao herói.
3. A esfera de ação do AUXILIAR, que compreende o Deslocamento cio herói no espaço
[o traslado], a Reparação do Dano ou Carência, o Salvamento durante aPerseguição,
a Resolução cle Tarefas Difíceis, a Transfiguração do herói.
4. A esfera de ação da PIU:\,CESA (personagem procurada) e SEU PAI, que compreende:
a proposição de Tarefas Difíceis, a imposição de um estigma [marca], o Desmascaramellto
[cio illljJOstOI], o Reconhecimento [do herói incógnito], o Castigo cio segunclo mal-
feitor [o illlpostO!], e o Casamento [a recolllpensa].
5. A esfera de ação do ?\H1\DANTE. Inclui somente o envio do herói [oo.] [pedido de
auxílio ou II/edia[rlo e ell/jJl'esa rejJ(I/'{/(/ora ou investidura do herói].
6. i\ esfera ele ação cio HERÓI. Compreende: a Particla para realizar a procura, a Reação
perante as exig'ências do Doador, o Casamento [oo.].
7.' A esfera ele ação do FALSO HERÓI [o iII/postai], compreendendo também a Partiela
para realizar a procura, a Reação perante as exigências do doador, sempre negativa,
e como função específica, as Pretensões enganosas [impostura] (Propp, 1984, pp.
73-74; com algumas adaptações).

Dessa forma, o esquema actancial de Propp - ou seja, o elenco total das


classes de personagens que ele levantou - define a narrativa-tipo "conto de magia
popular russo" como um gênero n0as 31 açõés são executadas por sete classes de
atores, apenas:
A Obra de ProjJjJ e a de Bahhtin • 237

1. O vilela (ou antagonista);


2. o doador (ou provedm) ;
3. o auxiliar;
4. a vítima (ou princesa procurada e seu pai);
:J. o mandante;
6. o herói;
7. o impostor (ou falso herói) ;

afora, even tualmen te, certos personagens especiais, necessários para a ligação das
partes entre si (como, por exemplo, os informantes, delatores, espiões, caluniadores
etc.), além de objetosmágicosoutros que transmitem informações etc. (um espelho,
um tapete voador, uma varinha mágica etc.)
Com referência aos papéis desempenhados pelos personagens, Propp par-
ticulariza que podem dar-se dois casos principais:

a. Um mesmo atol' pode desempenhar papéis normalmente atribuídos a


outros personagens, invadindo as esferas de fazeres alheios: "O homenzinho
de ferro quc pedc para ser tirado da torre, e que recompensa Ivã com
o dom da força e o presenteia com uma toalha que se dobra sozinha,
e, finalmente, o ~uda a matar o dragão, é ao mesmo tempo Doador e
Auxiliar" (idem, p. 74).
É o caso da acumulação de papéis (hoje diríamos: sincretismo actancial):
o rei que manda o herói numa expedição c lhe entrega mapas e armas
é ao mesmo tempo mandante e doador- e assim por diante.
},1as, pode dar-se igualmcnte o caso inverso:
b. Uma única esfera de ação é ocupada porvários personagens; exemplo:
um atol' propõe que o herói se submeta a uma prova difícil, um segundo
julga do cumprimento ou não da tarefa, c um terceiro recompensa o
herói por mero acaso.

A Posteridade de Proi)i): Avanços e Recuos Teóricos

Ser é ser o valor de '{{ma vaJiável.

W. QUINE

Já dissemos que a Nl010logia do Conto Nlaravilhoso, de Propp, assumiu para a


elaboração dos métodos de análise estru tural da narrativa importância comparável
à que o COUTS, de Saussure, teve para a constitüição da semiolingüística estrutural.
E isso apesar de ter sido o russo quadruplamente suspeito:
238 • A Identidade e a Diferença

a. Aos estudiosos da cultura popular, etnólogos e folcloristas, por inventar


uma metodologia exótica, "morfológica", importada da botânica, para
estudar racontos populares que eram tradicionalmente matéria de
inspeção por meio de outro ínstrumental.
b. Aos olhos dos formalistas por viver proclamando sua adesão aos pos-
tulados ideológicos marxistas.
c. Aos marxistas por trabalhar com procedimentos técnicos que, malgrado
suas públicas profissões de fé marxistas-lenínístas, eram inocultavelmente
formalistas.
d. Suspeito, finalmen te, da perspectiva de todos eles, por não ter abjurado
nunca do esdrúxulo ideário marrista.

Não estranha, assim, que, depois de vir à luz em primeira edição de 1928,
a NIOIJologia do Conto j\1aravilhoso tivesse de esperar outros 31 anos para tornar a
reaparecer em segunda edição na União Soviética, em 1959, edição essa precedida
até mesmo pela tradução norte-americana de 1958, que abriu caminho para sua
própria propagação no Ocidente.
O nome de Propp começou a ficar conhecido, por isso tudo, só a partir de
1960, quando Lévi-Strauss escreveu o artigo "La Structure et la forme" (reim pressa
em Antroj}ologiaEstruturalIl). A partir de então, ele influenciou a análise dos mitos
(Lévi-Strauss, Greimas e outros), o estudo dos contos populares (P. Maranda e
outros), das narrativas literárias (Bremond, Barthes, Todorov, Genette e outros):

Em 1963-1964, tratou-se de Propp no Curso de Semântica que A.]. Greimas ministrou no


Instituto H. Poiílcaré. Em 1964, Cl. Bremond publica um artigo sobre a mensagem narrativa no
número 4 da revista C01ll7llunicatiollS. No ano seguinte, T. Todorov traduz alguns textos dos forma-
listas russos na Théoriede la littératllre [... ]. Em 1966, aparece a Sé7llântiquestructuralede Greimas, que
dará nascimento à corrente da semiótica narrativa e o imponante número 8 da revista COllwl7lnications
[... ] com artigos de Banhes, Bremond, Eco, Genette, Greimas, Metz e Todorov (que) marcam a
chegada de uma narratologia de inspiração estruturalista (Adam, 1987, pp. 5-6).

Desde os anos 60, a NIOIjàlogia do Conto Nlaravilhoso veio a tornar-se, assim,


ponto de referência obrigatório na abertura de qualquer teoria estrutural da nar-
rativa.
Um quarto de século depois, isso tudo parece-se mais ou menos com a pré-
história dos estudos estruturais da narrativa. O mais notável é que, apesar disso,
ainda hoje, qualquer levantamento dos pontos positivos e negativos evidenciados
pela, agora,já tosca AIOIJologia do Conto Nlaravilhosoproppiana faz ressaltar a enorme
preponderância dos ganhos teóricos e metoClológicos que ela apartou, para lá e
acima de suas e\'entuais imperfeições.
A Obra de ProjJp e a de Bahhtin • 239

Ora, a verdade, a incômoda verdade já de algum modo entrevista pelos fun-


cionários da estrita obediência à ortodoxia marxista, é que os avanços da JVlmjàlogia
do Conto JVlamvilhoso são devidos ao ideário formalista que, a crer em Pro pp,
malgrado suas declarações, ele em prega ao trabalhar. Vejamos como isso trans-
parece nos pontos positivos da obra.
Logo depois de haver definido provisoriamente os contos de magia, Propp
se explica:

Empreenderemos a comparação en tre os enredos [tramas] destes contos. Para isso, isolaremos
[ ] [suas] partes constituintes; após o que compararemos os contos segundo suas próprias partes
[ ]. Obteremos como resultado uma morfologia, isto é, uma descrição do conto maravilhoso segundo
as partes que o constituem e as relações dessas partes ellLre si e com o conjunto (1984, p. 25).

Nitidamente formalista, o projeto se dispõe a descrever, uma depois da outra,


a funcionalidade sínoma (descrição sincrônica das partes de um todo e seu in ter-
relacionamento) e a funcionalidade autônoma (descrição diacrônica, histórico-
comparativa, da obra sob exame com outras de sua mesma linha).
Assim utilizado, ao contrário do que sempre assoalharam os crentes da
vulgata marxista plekhanovista e stalinista, essa passagem demonstra que o método
estrutural formalista não se opõe, antes complementa, ao método histórico-com-
parativo, dando-lhe um sentido que este, isoladamente, nunca possuiu.
Nas palavras do nosso autor:

Afirmamos que enquanto não existir uma elaboração morfológica correta [i. e., a localização
e o recorte preliminares das partes constituintes de um relato] não poderá haver uma elaboração his-
tórica correta. Se não soubermos decompor um conto maravilhoso em suas partes constituintes, não
poderemos estabelecer nenhuma comparação exata. E se não soubermos comparar, como poderemos
projetar luz, por exemplo, sobre as relações indo-egípcias, ou sobre as relações da fábula grega com
a f{ilmla indiana etc.? Se não soubermos comparar os contos maravilhosos entre si, como estudar os
laços existentes ellLre o conto e a religião, como comparar os contos e os mitos? (idem, pp. 23-24).

Aí se comprometem e se solicitam mutuamente o método estrutural for-


malista e o método histórico-comparativo, incompatíveis, ambos, com o sim-
plismo do historicismo genético, base acrítica de muita sociologia da literatura
ingênua.
A JVlorfologia do Conto JVlaravilhoso foi concebida como a primeira etapa,
apenas, de um trabalho planejado para ser executado ao longo de anos de pesquisa,
em duas fases: " A JVlmjologia e As Raízes Históricas representam, por assim dizer, as
duas partes ou os dois volumes de uma única e vasta obra. O segundo deriva dire-
tamente do primeiro, o primeiro é a premissa do segundo" (Propp, 1984a, p. 212).
240 • A Identidade e a Diferença

Com essa concepção, a .i\1OJjàlogia do Conto iVlaravilhososozinha revolucionou


os estudos científicos da narrativa, oral e escrita, culta e popular. Mesmo res-
tringindo-nos a ela, teremos sempre de contar, entre os ganhos teóricos devidos
a Propp, uma série de coisas:

ao Ter empreendido a definição e o estudo das partes constituintes do


relato, localizando, em lugar do motivo usual em seus dias, a junção,
enquanto unidade mínima.
b. Ter concebido afunção - tal como Saussure postulara vinte anos antes,
no ms. fro transcrito por De Mauro (1972, po 348) e na primeira parte
desta obra in jine, como o fazer do personagem (com a vantagem de,
invertendo a óptica de Saussure, que via na função uma variável do
relato, ter identificado nela a unidade mínima a descrever qua inva-
riante estrutural da narrativa).
c. Ter reconhecido a existência de dois níveis no relato, os quais, em
termos de hoje, podemos compreender como um nível imanente e um
nível de manifestação (d. também Saussure, distinguindo, no primeiro,
a langue e, no segundo, a parole) o

• o nível imanente, das junções invariantes, que é propriamente o nível nar-


rativo - na terminologia proppiana, o da fábula ou história, e
• o nível de manifestação, das figuras variáveis por meio das quais emergem e
vêm realizaF-se no discurso as funções do nível imanente, em cada relato ocor-
.rencial- na terminologia de Propp, o nível do Si'Ll.jét (russo), que a
edição brasileira verteu por enredo, mas que para nós se identifica
antes com trama ou o discurso.

d. Ter empregado de modo sistemático a técnica da redução (que depois


será uma das pedras de toque da análise estrutural na sua versão glos-
semática), por in termédio da qual infinitas figuras variáveis do discurso
se deixam reduzir às 31 funções do esquema narrativo invariante que
Propp isolou.
eo Ter descoberto que as júnções não surgem nunca isoladamente, mas como pontos
de incidência de uma estrutura jimcional elementm; da ordem binária, ou seja,
por meio da percepção, pelo leitor, de dois termos-objetos como cor-
relatas narrativos; Propp havia assinalado, de passagem,

as funções II [interdição] e III [transgressão] constituem um elemento acoplado (1970,


p.49),
A OfJra de Propp e a de Bahhtin • 241

que as fúnções se associam aos pares para compor seqüências elementares,


de tal modo que se uma dessas funções associadas emerge a dada altura
do relato, em outro ponto qualquer dele surgirá a sua correlata: dada
interdiçâo, por exemplo, em algum lugar à frente surgirá ou interdiçâo obe-
decida ou interdiçâo violada [transgressâo].
J Há ocasiões, con tudo, em que uma dessas funções permanece implícita;
Propp formulou o caso assim:

o segundo termo pode às vezes existir sem o primeiro. Os filhos do rei vão ao jardim
e voltam para casa atrasados. Aqui, a Interdição de voltar [atrasado] foi omiticla (idem,
p.49).

Em outros termos, lidamos aqui com uma função omitida no plano


de expressão mas suprida pelo significado da outra, no plano do
conteúdo. Tratando-se de uma ausência manifesta, poderíamos
denominá-la, talvez, de "função zero" (à semelhança do que faz a mor-
fologia semiótica ao se referir, por exemplo, ao "morfema zero que
é índice do singular" nos nomes do português).
g. Ter descoberto, sinalizando o percurso do herói, a ordem seqüencial
das funções no interior da série toda, dela fazendo uma espécie de "-
marcador sintagmático subjacente" encarregado de traçar o mapa lógico
do ordenamento manifestante das funções em seqüências ordenadas
- quer dizer, dotadas de começo, meio e fim. No meu entender, foi
esse marcador sintagmático a matriz de que derivaria, mais tarde, o
percurso narrativo da semiótica greimasiana.
h. Ter· abandonado qualquer definição "essencialista" do personagem,
encarando-o não como entidade "humana", mas como atol' antropo-
morfizado participante de uma história, ou seja, como lugares textuais
discretos, sobre os quais incidem as predicações do discurso, fundando-
lhes o ser e o fazer (a competência e a pe10nnanee, em terminologia de
hoje). Na kIOJjólogia do Conto klaravillloso, elementos animados ou não-
animados, como, ponhamos, um feiticeiro, um anel mágico, um tapete
voador, uma varinha de condão etc., surgem como "personagens",
definidos unicamente pelo seu fazer (ou o seu ser), em relação com o
fazer total da história narrada.
z. Ter distinguido os personagens duplamente:
• como atores individuais de uma trama, de um discurso ocorrencial,
pelo seu fazer sínomo (intratextual);
• como aetantes, na terminologia de Greimas - não de Propp - ,
membros de uma classe de atores, de um gênero de discursos,
definindo-os a partir de suas respectivas esferas de ação.
242 • A Identidade e a Diferença

J. Ter produzido duas diferen tes definições do gênero "narrativa popular


de magia russa":
• concebida, do ponto de vista do seu repertório de funções, como uma
espécie de relatos que contêm um esquema funcional de 31 funções,
• concebida, também, do ponto de vista do seu elenco actancial, como
um gênero que se deselwolve ao redor de sete classes de atores ou
personagens - sete actantes, cada um deles caracterizado por sua
específica esfera de ação (o vilão, o doador, o adjuvante, a vítima, o
mandante, o herói e o imjJostor).

Seria im possível que, contando tan tos acertos, a j'vI0I10logia do Conto Nlamvilhoso
não incluísse também alguns vícios de origem. Dentre eles, são os mais importantes:

1. Ter optado por fazer a sua descrição funcional orientada pelo método
empírico-indutivo: "Concordando com Vesselovski que na descrição a
parte deve vir antes do todo [... ]" (idem, p. 21). Essa opção levou Propp
a supor que poderia partir da análise concreta de cem narrativas ocor-
renciais, efetivamente realizadas, a partir da comparação do que se
pudesse extrair de comum de todas elas - aplicação do princípio for-
malista da funcionalidade autónoma - , para, a seguir, tomar como
aplicável a qualquer conto desse gênero as invariantes de cem exem-
plares dele. Essa extrapolação indutiva, que toma a propriedade do
exemplar particular como propriedade da classe toda a que esse exemplar
pertence, é, no entanto, uma falácia metodológica: como advertiu
Popper em algum lugar, o fato de nos encontrarmos em um levan-
tamento da plumagem dos cisnes com duzentos cisnes brancos não nos
autoriza a concluir daí que não existam cisnes negros.
Tratando-se, como no caso da ivI0I10logia do Conto iWamvilhoso se tratava,
da elaboração de uma teoria científica, o único método válido é o hipo-
tético-dedutivo, trinta anos antes utilizado por Saussure.
2. Ao não praticar um recorte epistemológico sobre os dois eixos da lin-
guagem, também já isolados por Saussure, o sintagmático e o paradigmá-
tico (em Saussure, "associativo"), Propp, a despeito de ter operado uma
descrição noventa por cento sintagmática, por intermédio da qual isolou
pares de funções correlatas, formando seqüências elementares do tipo

Partida Chegada
Dano Reparação do Dano
Marca Reconhecimento pela Ma.rca etc.,
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 243

nem sempre soube evitar que se intrometessem abusivamente em sua


descrição funções paradigmaticamente definidas; assim, a prova incluída
na primeirajúnçào do doador é seguida, na descrição de Propp, por uma
Teaçào do herói, que é inadmissível em uma descrição sintagmática, já
que reaçào do heTói é uma cover-wordque engloba tanto a aceitaçàoquanto
a nào-aceitaçào da prova, ao passo que a proposta de efetuar a prova teria
de se resolver, em qualquer narrativa ocorrencial, ou bem em uma
coisa, ou bem em outra (explicitando localmente essa Teaçào do herói).
3. As opções cpistemológicas e mctodológicas equívocas de Propp levaram-
no a trabalhar não com um percurso narrativo desinvestido, de máxima
abstração, nuo teor ou conteúdo só se determinaria in acto, no interior
de um leque de opções abertas por uma lógica combinatorial, mas, ao
contrário, levaram-no a trabalhar com percursos já-investidos, de con-
teúdos fixados no nível do gênero "conto de magia", mas nem por isso
válidos ou fixados no nível de todo e qualquer tipo de narrativa. E é exa-
tamente por trabalhar com conteúdos genéricos, mas não universais, que
nem sempre Propp conseguiu descontaminar sua descrição de impreg-
nações ideológicas, prejudiciais no âmbito de uma teoria científica que
se pretenda universal. Ao colocar a função vitória do herói como subse-
qüen te da antecedente luta, Propp descreve, de fato, o que costuma ocorrer
nos contos de magia, em que o herói sai indefectivelmente vencedor dos
combates que trava - a descrição proppiana é perfeitamente adequada
para o gênero narrativo que enfoca - , mas em outros gêneros de relato
nem sempre a luta se resolve com uma vitÓJ7a do herói - basta recordar,
por enquanto, a espécie de relatos que aparece na tragédia grega, em que
o herói é invariavelmente derrotado (e desse ponto de vista, a descrição
proppiana é genericamente correta, mas universalmente inadequada).

É inútil prosseguir no recensear das colocações'illenos felizes do "modelo


proppiano" de análise da história. Para lá das hoje fáceis restrições que pode-
ríamos elencar para ele, permanece o fato de que a NIorfologia do Conto lWaravillwso
foi, e continua sendo, um dos momentos altos da história da narratologia - na
ordem cronológica, ela se ergue, ainda, como um marco solitário, no campo das
descrições estruturais, o primeiro a dar uma demonstração convincente de que
era não só desejável mas possível elaborar-se um modelo teórico compreensivo,
de base científica, para o estudo da ficção.
Na nossa convicção, a Morfologia do Conto lWaravilhoso de Propp funda a fase
moderna de nossos trabalhos. E nem poderia, de modo algum, sem grave injustiça,
ser inculpada dos abusos cometidos pelos que quiseram tomar o seu nome em
vão. Aliás, como que se preparando de antemão para responder às críticas que
244 • A Identidade e a Diferença

lhe dirigiria, trinta anos depois, nem sempre com pertinência, Lévi-Strauss, Propp
já acentuara que seu modelo não poderia ser encarado como uma panacéia uni-
versal para resolver todos os problemas suscitados pela observação dos contos:

É bem possível que o método de análise das narrativas segundo as funções das personagens
se revele útil também para os gêneros narrativos não só do folclore, mas também da literatura.
Todavia, os métodos propostos neste volume [... ] possuem também seus limites de aplicação. Eles
são possíveis e fecundos no caso de uma repetição em ampla escala. [... ] lvlas quando a arte se torna
campo de ação de um gênio irrepetível, o uso dos métodos exatos dará resultados positivos somente
se o estudo das repetições for acompanhado pelo estudo daquele algo único para o qual até agora
olhamos como a manifestação de um milagre incognoscível. [... ] o gênio de Dante e o de Shakespeare
não se repetem e sua análise não pode ser reduzida aos mêtodos exatos (1984a, pp. 223-224).

Por outras palavras: Propp adverte-nos, nesse "aviso aos navegantes", que,
cingindo-se à descrição da fábula, do que é repetível, que é onde se situa o com-
ponente "história", seu método não cobre, absolutamente, nada da descrição da
trama, do discurso irrepetível, que é onde se situa o componente estético do texto,
aquilo, precisamente, que faz de dado discurso, um discurso literário, e não cien-
tífico, nem utilitário. E mais, no mesmo gesto avisa que a definição do propriamente
literário deve, como toda e qualquer definição, obedecer ao mecanismo duplo
da definição, que é, desde Aristóteles, composto da: 1. conjunção do objeto com
o "gênero próximo"; mais 2. disjunção dele relativamente aos outros do mesmo
gênero, pela determinação de sua "diferença específica", servindo, o modelo
fundado pela lvIOIfologia do Conto lHamvilhoso, para cumprir o primeiro desiderato
- para a taI-efa da "generalização" - , mas nunca para realizar a segunda incum-
bência, da "particularização", que é onde se define a especificidade inimitável de
cada obra literária, cujo ser- para glosar a frase de Quine que pusemos de epígrafe
a este tópico - é "ser o valor de uma variável", e, daí, inapreensível pela meto-
dologia proppiana.
Propp viu-o muito bem; e isso se chama lucidez.

A CONTRIBUIÇAO DE BAKHTIN

o jJrójJ/io monólogo é dialogiwdo.


B.\KHTIN

Ivrikhail rdikhailovitch Bakhtin (1895-1975) nasceu em OreI, estudou na


Faculdade de Filologia de Petrogrado e doutorou-se em 1940 com uma tese
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 245

sobre François Rabelais (François Rabelais na História do Realismo), publicada em


1965 como A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade lvIédia e da
Renascença.
Bakhtin é um dos mais importantes e controyertidos autores e atores do for-
malismo russo. Em torno de sua obra e de sua pessoa yeio a concentrar-se uma
imensa, equiyocada e, por yezes, mal-intencionada polêmica, que colocou em
campos contrários - como sempre - formalistas e não-formalistas, notadamente
marxistas (então ainda denominados "ideologistas").
Seus escritos figuraram durante a maior parte de sua yida no Index Librorum
Prohibúorum do Estado soviético, e ele próprio, relegado ao ostracismo, foi quase
esquecido em yida. Só em 1957, quando contava mais de sessenta anos, foi ele
admi tido nas funções de professor de literatura em Saranski, obscura universidade
da igualmente obscura República dos Mordves.
Deye-se sem dúyida às suspeitas e restrições com que foi sempre olhado o
seu labor pelos círculos da ciência burocrática e oficialista do Estado toda a
complexa trama de despistamentos, meias-verdades e ambigüidades, que, parte
de propósito, parte sem querer, foi sendo urdida ao longo dos anos em torno de
seu nome. V. V. Ivanov, que conviveu com ele, testemunhou, por exemplo, que
sob o nome de dois de seus alunos mais fiéis, Voloshinov e Miedviêdiev, desapa-
recidos ambos na voragem da intolerância repressora dos anos 30 e 40, se editaram
os primeiros livros de Bakhtin que vieram à luz em sua terra: Freudismo (1927) e
Nlarxismo e Filosojia da Linguagem (1929), que correm como da lavra de V. N.
Voloshinoy, e O 1\1étodo Formal nos Estudos Literários. Introdução Crítica à Poética
Sociológica (1928), firmado por P. N. Miedviédiev (apud Schnaiderman, 1979, pp.
21-22) - coisa que significa que o chamado "Círculo de Bakhtin", ordinariamen te
limitado a esses três nomes, nunca existiu de fato, pois que se restringiu, no
fundo, à única pessoa dele.
De uma outra publicação, a que concederemos mais atenção nas páginas
seguintes, saíram duas edições, a primeira em 1929, COm--D título Problemas da Obra
de Dostoiévshi, e a segunda em 1963, com o nome alterado para Problemas da Poética
de Dostoiévshi, que parece sinalizar para uma mudança de enfoque na medida em
que Problemas da Obra se entende como questões apresentadas por algo que
Dostoiévski compôs, enquanto autor, ao passo que Problemas da Poética, tendo em
conta o vezo russo de empregar poética na acepção de teoria da literatura, dá a
im pressão de focalizar mais exatamen te a teoria da literatura implícita ou explíci ta
na obra de Dostoiévski; como quer que seja, Problemas da Poética é uma reedição
corrigida e aumentada de Problemas da Obra, sem que, en tretanto, nada de essencial
da primeira edição tivesse sido expungido da segunda.
Em decorrência do boicote erguido contrà ele em sua própria terra, a obra
de Bakhtin, apesar de sua extraordinária importância, só veio a se tornar mais
246 • A Identidade e a Diferença

bem conhecida no resto do mundo depois que Julia Kristeva a abordou em um


primeiro artigo lançado na revista Critique (1966), hoje incluído em Semeiotihé. De
lá para cá, o interesse por Bakhtin não cessou de crescer.

A Herança Recebida por Bakhtin. A Poética Histórica de Vesselovski e a Teoria do


Romance de G. Lukács

Bakhtin é beneficiário das principais linhas de abordagem teórico-prática


da obra literária que corriam na União Soviética do primeiro vintênio do século,
com as quais iria defrontar-se o formalismo. Uma delas é a corrente historicista,
de larga tradição, tanto no âmbito dos estudos folclóricos e dos usos e costumes
populares, quanto ao estudo das letras das elites, virada muito mais para a arte
literária européia em geral do que para a cultura russa autóctone.
Assim, o principal livro de Vesselovski, Poética Histórica, que acabamos de
ver influenciando claramente a iHolfologia do Conto lvlamvilhoso de Propp, foi a
peça mestra da corrente ligada à historiografia genética da época. Tendo retido
da experiência estrutural formalista o básico de sua concepção acerca da neces-
sidade de estudar a significação literária na sua materialidade verbal, Bakhtin não
romperá jamais de todo quer com uma, quer com outra tendência.

o objetivo de sua análise não é mais elucidar "como foi feita uma obra" [alusão à quase
monomania "construtivista" dos primeiros formalistas], mas situá-la no interior de uma tipologia
de sistemas significantes na história. Nesse sentido, ele propõe um estudo da estrutura romanesca
tanto na sua particularidade estrutural (sincrônica) quanto na sua emergência histórica. A estrutura
romanesca é para ele um ;;modelo do mundo", UIll sistema significante específico que se deve
apreender na sua novidade histórica; é assim que ele é capturado ao mesmo tempo em uma visão
histórica, situado relativamente a uma tradição: o gênero como depósito da memória literária; e os
achados da análise diacrônica Ca diacronia confirma a sincronia"). Desse modo, tendo colocado
os traços fundamentais da organização romanesca em Dostoiévski, Bakhtin irá encontrar seus pre-
cursores na tradição menipéia e carnavalesca (Kristeva", 1970, pp. 10-11).

Os ensaios em que Bakhtin se pronunciou acerca do romance foram escritos


nos últimos anos 20, e ao longo dos 30 e 40, numa época em que Mikhail Lifshitz
e Gyorg Lukács tinham elaborado,já, uma teoria do relato baseada em fundações
hegeliano-marxistas. Para Bakhtin, como para Lifshitz e Lukács, a arte, e particu-
larmente a literatura, na medida mesma em que se dirigem a um outro, seu des-
tinatário - o leitor, o público - e na mesma medida em que sua matéria provém
do outro, destinador- a comunidade do artista, sua classe social etc. - , é sempre
um artefato de natureza social. Nas palavras de Schnaiderman, que faz radicar aí
a noção de poética sociológica mencionada em um dos livros.de Bakhtin,
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 247

esse dialogismo fundamental é que tem de ser le\'ado em conta em todas as abordagens da lite-
ratura, Em essência, a linguagem é sempre dialógica. O monologismo, isto é, a concentração da
obra em torno da \'OZ do autor, constitui um artifício de que este lança mão para centrar tudo em
seu próprio núcleo ideológico. A tarefa do estudioso da literatura seria desvendar esse dialogismo
essencial (1979, pp, 22-23).

ou, na formulação lapidar de Bakhtin: "O próprio monólogo [do Crime e Castigo,
de DostoiévskiJ é dialogizado".
Essa concepção constitui a chave da oposição Bakhtin-formalistas (no entanto,
sabemos que Saussure assinalara, há tem pos, a radical dialogicidade do discurso),
não suas considerações sobre "o momento ético-cognitivo", por ele referidas, que
chegam, num regresso empobrecedor, a remontar até a, já àquela altura, ultra-
passada oposição entre "o conteúdo" e "a forma", Na sua perspectiva, expressa
nos anos 20, não tem sentido apontar para a necessidade de um estudo imanente,
seguido de um estudo da relação da obra com as outras séries históricas. Pois,
pensa ele, ao fazer-se aquele estudo - Cl~a importância, em que pese tais "dis-
tingos", é por ele sublinhada - , só se alcançaria o cerne da questão considerando-
se a linguagem em seu aspecto dialógico, na relação com o outro "fundamen-
talmente social e histórico".
Por meio desse crivo, a obra de Bakhtin ganha sentido e se desenvolve tanto
nos diferendos que a separam dos aspectos exclusivamente construtivistas visados
pelo primeiro formalismo, quanto nos aspectos que o apartam, por igual, da
sociologia do romance de embasamento marxista.
Certamente, suas próprias convicções se enquadram no domínio das teorias
histórico-materialistas de que Lukács se fez porta-voz por excelência naqueles dias.
Mas, apesar disso, seus ensaios não se deixaram nunca contaminar do essencialismo
idealista hegeliano, comum, ainda, naquela fase do realismo crítico tão marcada
pela concepção que Hegel exprimiria do romance ao tomá-lo como "a moderna
épica burguesa".
Foi moda, com efeito, atribuir o desenvolvimento do romance à ascensão
do capitalismo burguês moderno verificada em paralelo ao desenvolvimento de
sua contraparte ideológica, que se corporificara na face visível do individualismo
liberal, proprietário, base do apogeu da burguesia industrial e mercantil. É
verdade que mesmo vinculando o romance à burguesia, Hegel pensa, na Aesthetik,
a relação entre forma intema do romance e as condições sociais que o enquadram
externamente em termos dialéticos, não unideterministas nem mecanicistas: a
forma "romance" trabalha, no seu entender, um mundo totalizado, por meio
de uma representação épica da realidade; mas essa forma perdera, em troca, o
estado poético original que havia inspirado, n'a origem, a épica primordial, a
verdadeira épica.
248 • A Identidade e a Diferença

Desse ideário, nem sempre muito nítido, de Hegel, sai, como se sabe, o núcleo
ideológico da obra seminal de Lukács, Temia do Romance, composta no inverno de
1914-1915. O teórico húngaro trata, logo, de aprofundar a explicação da oposição
hegeliana entre a epopéia e o romance, refundindo-a, dentre outros moldes, nos
termos das oposições rastreáveis entre os protagonistas de uma e outra forma nar-
rativa. A epopéia - crê Lukács - enfoca o herói invariavelmente como um simulacro
de sua coleüvidade; o indivíduo é, aqui, em virtude de esse gênero representar a
luta de uma comunidade unida contra a ameaça de um inimigo externo, o resumo
das virtudes heróicas de seu povo (coisa que se pode comprovar, ainda, acres-
centamos, no herói da maior epopéia dos tempos modernos, Os Lusíadas, em que
Vasco da Gama é o resumo das virtudes ideais do povo português).
Por outro lado, em razão disso, a epopéia opera a representação da história
de uma comunidade por meio da representação do destino aparentemente (mas
só aparentemente) individual do seu herói, particular que está a demonstrar, mais
do que o caráter de representatividade do protagonista em relação ao seu povo,
a consubstancialidade indissolúvel de um e outro.
Já no romance, que Lukács concebe como a forma prototípica dos conflitos
que estalam no seio da sociedade burguesa, em que o verdadeiro protagonista, o
motor da história, é a luta de classes (tal como em Marx e, depois, em Althusser),
o objeto é, antes do mais, o conjunto das contradições existentes entre o herói
individual e a sua sociedade. Não que o herói romanesco, à semelhança do épico,
deixe de representar e até mesmo se identificar com sua coletividade; na forma
romance, porém, o herói se identifica com uma das classes, em luta contra todas
as demais classes da sua sociedade.
O rol11anCe inaugura, sob essa óptica, o modo de fazer da vida privada, par-
ticular, do indivíduo, tornando-o o verdadeiro material da narrativa longa, de ficção.
Isso tudo é atestável na primeira modalidade de realismo que surge na lite-
ratura européia moderna, que é, pensamos nós, por nossa vez, o romance picaresco
espanhol. Aí se focaliza a vida privada de um indivíduo identificado com uma
classe - na origem primordial, de fato, ideútificado com o marginal sem classe,
o rebotalho do lúmpen - , a classe servil mais baixa, em luta contra todas as demais
classes que o oprimem, a burguesia civil e eclesiástica, e a classe dos fidalgos
poderosos ou não (os venidos a menos), tentando conseguir um lugar ao sol e
promover-se na escala social. Aqui o herói é, tal como o viu Lukács enquanto herói
romanesco, um ser problemático, em busca da realização de valores autênti.cos
(amor, poder, liberdade, glória etc.) , num mundo de valores degradados. E como
nesse protagonista se manifestam todos os traços característicos de sua classe, e
apenas eles, o herói do romance é, na verdade, um tipo- um modelo que exprime,
ante as forças boas e más de uma dada formação social, uma dada classe, um
segmen to seu, não a sociedade toda.
A Obra de ProjJjJ e a de Bahhtin • 249

Bahhtin contra os Teóricos Nlarxistas e os Teóricos Formalistas:


A Reivinelicaçáo ela Natureza Social da Literatura

Ebbene, che cosa si jJuõ ricavare ela t71tto qllesto ba1lo?


Se, jJer esellljJio, ael uno scrittore venisse l'idea di
desoivere una scena cos~ vemmente com 'é? Si, in un
livro, e che fosse cosi jJri1Ja ele senso come lo é nella
realtà. C/ie cos'é, si jJensel<'bbe, una cosa 1Il0mle o imlllomle?
lvla sellljJliceJllen te sa il diavole cose!
GOCOL

Se Lukács e seguidores enxergavam no romance a expressão da luta de


classes figurativizada nos embates que um indivíduo trava, enquanto tipo repre-
sentativo de uma dada classe, com as demais classes da sua sociedade, tentando
nela ascender e realizar valores autênticos em um mundo de valores degradados,
é prova da originalidade de Bakhtin ter oferecido uma explicação alternativa para
a gênese c a natureza do romance, vendo nele não mais uma ramificação da épica,
em termos hegelianos, mas, antes, sua antítese - uma força antigenérica e ino-
vadora da série literária. O dado distintivo do romance é, para Bakhtin, uma
oposição constante, sistemática e fundamental a tudo o que em dada formação
social estiver já feito e fixado.
Por meio dessa confrontação, a obra teórico-crítica de Bakhtin dialoga com
os excessos construtivistas do estruturalismo formalista e com os excessos conteu-
dísticos e ideológicos do marxismo, contrapondo-se, de um lado, à desconsideração
dos contextos históricos de emergência do texto literário e, de outro, à concepção,
do marxismo vulgar, do reflexo, que surgirá com a maior força na União Soviética
pós-revolucionária, em conseqiiência da consolidação oficial da linha teórica
Lifshitz - Lukács, pelos anos 30.
Um estudioso da obra de Bakhtin, Jha, assinalará que Bakhtin acreditava
haver um fosso en tre a teoria holística, que é o materialismo histórico, que já havia
construído a essa altura uma teoria adequada para a explicação da produção ideo-
lógica em geral, e a análise concreta de produtores setoriais específicos da produção
ideológica, como é a literatura. O resultado era que, na prática, "ou se desinvestia.
o texto de sua especificidade ou se tratava tal especificidade isolando-a de qualquer
contexto social" (Jha, 1985).
Para solucionar o impasse, Bakhtin proporá uma poética sociológica, que,
mesmo permanecendo histórica, deveria especificar as formas e os objetivos
materiais da literatura:
250 • A Identidade e a Diferença

Cada área tem sua própria linguagem, suas formas e procedimentos próprios para essa
linguagem, e suas próprias leis específicas para a refração ideológica da realidade comum. O
marxismo não opera, absolutamente, o nivelamento dessas diferenças nem ignora a pluralidade
essencial da linguagem da ideologia. A especificidade da arte, da ciência, da ética e da religião
não deve obscurecer sua unidade ideológica como supra-estrutura de uma base comum, nem o
fato de que elas seguem as mesmas leis sociológicas do desenvolvimento. Mas, essa especificidade
não deve ser apagada pela formulação geral dessas leis (Miedviédiev & Bakhtin, 1978, pp. 3-4).

Por conseguinte, levando em conta que os formalistas tinham assumido


então o papel de "especificadores da literariedade" do texto literário, Bakhtin
efetua a crítica do método deles, utilizando para tanto o critério marxista - que
é, no fundo, um truísmo - de considerar a literatura como necessariamente socio-
lógica por ser ela necessariamente social: "Cada área da produção ideológica é
um fenômeno social", acentua.Jha (1985), interpretando Bakhtin, "e é essa dimensão
social dos produtos ideológicos que o formalismo descura mas que se deve estudar:
os equívocos formalistas repousam essencialmente no seu desconhecimento de
que a literatura só pode ser estudada como uma categoria histórica".
Isso no que concerne ao formalismo.
No que se entende com o marxismo, Bakhtin exproba-lhe o vezo de um
sociologismo à outrance, que mais não faz do que tentar efetuar a análise da
natureza social da arte em termos de seu con teúdo e de sua ideologia, tomando-
a como um reflexo direto da vida soCial e dos microuniversos de valores, numa
. aplicação mecanicista e empobrecedora de bases do magistério de Marx e de
Lenin, com o resultado de um inevitável desconhecimen to das propriedades
específicas do texto literário, por exemplo, enquanto mensagem do "tipo
literário", inconfundível com um panfleto ou um documento, independente
de sua gênese:

A estrutura literária, como qualquer outra estrutura ideológica, refrata a realidade socioe-
conômica que a gera, mas o faz a seu modo. Ao mesmo tempo, porém, em seu "conteúdo", a lite-
ratura reflete e refrata as reflexões e refrações de outras esferas ideológicas (ética, epistemologia,
doutrinas políticas, religião, etc.). O que quer dizer que, em seu "conteúdo", a literatura reflete a
totalidade do horizonte ideológico de que ela própria é uma parte constituinte. O conteúdo da
literatura reflete [oo.] outras formações ideológicas não artísticas (éticas, epistemológicas etc.). Mas,
ao refleti-Ias, a literatura engendra novas formas, novos signos do intercurso ideológico. E tais
signos são obras de arte, que se tornam parte real da existência social que rodeia o homem.
Refletindo algo externo a elas, as obras literárias constituem ao mesmo tempo fenômenos sin-
guiares [... ]. Seu papel não pode ser reduzido ao [... ] auxiliar, de refletir outras ideologias. As
obras literárias possuem um papel ideológico da existêneia socioeconômica (Miedviédiev & Bakhtin,
1978, p. 18).
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 251

As restrições de Bakhtin são corajosas e justas no tocante aos radicalismos


dos marxistas vulgares, todos empenhados, então como ainda hoje, nas demons-
trações de zelo exemplar pela ortodoxia monolí tica e ocupados, em conseqüência,
com o rastreio de forças e fatores dedutíveis da classe, da biografia, das fontes e
influências, e assim por diante.
Não se pode, contudo, esquecer que, mesmo no que condiz com os parti-
dários da teoria do reflexo, Bakhtin carrega demais nas tintas e acaba por obs-
curecer o seu pensamento. Pois nem mesmo nos limites estritos das idéias de
Plekanov há lugar para o primarismo de supor uma relação de reflexo imediato
entre a obra literária e a realidade, exceto, é claro, para os "críticos burocráticos",
que eram mais "funcionários do Partido".

o característico do processo da criação artística" - generaliza Lukács - "é que o resultado

pode fixar-se e tomar forma na obra contradizendo os preconceitos e inclusive a concepção de


mundo do artista"; "a sensibilidade do espírito de observação, a fantasia espontânea etc. permitem
criar formas e fazer surgir situações o0a própria lógica interna ultrapassa preconceitos da persona-
lidade particular e entra em conflito com eles"; "na vida das figuras artísticas, na lógica interna das
situações, viu-se amiúde o signo distinti\'o do autêntico caráter artístico e outras tantas vezes já se
observou que, quando o criador intervém nessa vida própria da obra, isso conduz ao fracasso artístico
(Lukács, ajJlldAmbrogio, 1975, p. 51).

Mais injustas ainda, por infundadas, são as objeções que Bakhtin levanta
contra os formalistas, cujo in teresse primário fixado nas "dissecações morfológicas"
do texto derivava diretamente da necessidade premente, àqueles dias, de con-
trapor, à praga dos delírios marxistóides acerca do caráter "documental" da obra,
o distingo de seus traços pertinentes. E é fato incontroverso que, nas linhas dos
melhores deles, a pregação da doutrina das análises imanentes, destinadas a colocar
em relevo a natureza semiolingüf~tica desses característicos intrínsecos, nunca
embaçou uma clara compreensão da natureza histórico-social da arte literária.
Finalmente, é preciso ser justo também com Bakhtin, lembrando que em
nao raras ocasiões ele próprio se encarregou de sublinhar o valor das contri-
buições teóricas carreadas para o melhor conhecimento das coisas ligadas à lite-
ratura pelo approach formalista:

No conjunto, o formalismo desempenhou um papel fecundo. Ele trouxe á luz os problemas


essenciais da ciência literária e isso de um modo tão agudo que já não se pode mais doravante
contorná-los ou ignorá-los (1981, p. 61).

No que se refere ao pensamento e à vida de Bakhtin, nada pode, no entanto,


ser simplesmente afirmado de uma vez por todas. Pois, no momento mesmo em
252 • A Identidade e a Diferença

que produzia as afirmações que acabamos de estampar, acerca da importância


decisiva do formalismo, nesse mesmo ano de 1928, em outro texto acusaria ele
seus colegas formalistas de conceder um estatuto autárquico ao texto literário -
coisa que ele sabia perfeitamente bem não ser verdadeiro - , rompendo desse
modo os vínculos que o texto literário mantém para com a vida ideológica das
sociedades. Nisto, precisamente, é difícil compreender qual é a posição de Bakhtin;
pois não ignorava ele que, atirando-lhes o labéu de serem cegos no respeitante às
relações que a obra mantém para com a vida social, fazia ele, Bakhtin, passar sub-
repticiamente a idéia de terem os formalistas servido de arautos para a tese do
inutilismo da arte, como se estivessem mergulhados na estética kantiana, a serviço,
por conseguinte, do mottoreacionário, (muito concretamente ameaçador naqueles
idos), da ars gratia artis.

A Construçâo Dialógica do Sentido da Obra Literária

Toda obra de arte é Cliada jJaralelamente

e em ojJosiçâo a um modelo.

CHKLOVSKI

Tendo acertado, bem ou mal, suas contas com o formalismo e com o marxismo,
Bakhtin deslocou o centro de gravidade da teoria da literatura ao marcar sua
posição relativamente ao problema capital dela: a questão da teoria da literatura
não é nem pinçar, na obra literária, os "reflexos" da realidade extraliterária, como
proclamavam os marxistas, nem chegar a saber como o texto foi construído, como
queriam os formalistas - era, antes, tentar compreender como ocorre, nos textos da lite-
ratura, a produçâo do sentido: como o texto literário vem a significar o que significa? E foi
tentando responder a essa questão via postulados do materialismo dialético que,
paradoxalmente, ele tornou a encontrar-se, uma vez mais, com as reflexões e
posturas formalistas.
Bakhtin, que, tal como a maior parte de seus coevos, lingüistas de profissão
aí incluídos (e o exemplo deJakobson, Meillet e Benveniste é dos mais chocantes
e sin tomáticos disso), tresleu Saussure a vida inteira, nunca passando de umas
colocações obscuras do Cours, alardeou sua oposição aos conceitos de parole e de
sincronia; em conseqüência, quando se meteu a emendar o que não compreendia,
seus reparos caíram no vazio. Um exemplo está nas observações que faz ele contra
a parole, que pensou sempre em termos de realização de uma fala puramente indi-
vidual, não obstante ter Saussure afirmado sempre que por parole queria dizer a rea-
lizaçâo individual da langue coletiva, vendo nela, na "langue [.,'.] a condiçâo jJClra a
A Obra de Fmpp e a de Bahhtin • 253

existência da parole, exatamente como a sociedade é a condição para a existência


do indivíduo" (Lopes, 1976, p. 77), fato de que deriva a conseqüência de que

pode-se, deve-se considerar a langue fazendo abstração da parole mas não a parole fazendo abstração
da langue (Saussure, ajJ1ld Godcl, 1957, p. 151).

Quanto à sincronia, sabemos que ela era, na mente de Saussure, só uma


resultante da adoção de determinada perspectiva de descrição a do ato de comu-
nicação in fieri, selecionada pelo ponto de vista projetado sobre o cOIjJUs em
questão pelos interesses analíticos do descritor, sem que a adoção dessa pers-
pectiva implicasse qualquer forma de negação da legitimidade de aplicação da
perspectiva diacrânica, sempre que ditada por interesses outros do descritor.
Destarte, enquan to que uma se voltava para a descrição de uma relação elementar
entre dois elemen tos-objetos den tro do mesmo estado histórico da língua, a outra
mirava à descrição da transformação de uma mesma forma entre dois estados
históricos sucessivos do idioma. E como tais coisas acabavam por sincronizarem-
se no presente em que se efetuava a descrição, o resultado é que a metodologia
preconizada por Saussure acabava por demonstrar que a diacronia existe sempre na
sincronia, conforme vimos na primeira parte da presente obra (vide capítulo 4).
Apesar de descontar o que, no seu equivocado entendimento, Saussure
chamara de "abordagem sincrânica", mas que, acabamos de ver, de Saussure
mesmo não tem nada, Bakhtin deixou-se influenciar pela demonstração do mestre
de Genebra de que a linguagem não possui em si mesma nenhum sen tido e de
que o significado - na acepção de valor quer dizer, de significação posicional,
tal como figura no Cours - constitui uma função de fatores derivados da tota-
lidade da cultura. Isso provava, tal como Bakhtin via as coisas, que o sentido da
obra, de cada obra, deveria ser pesquisaQo no modo como ela é entendida (enten-
dimento que implicava readmitir pela janela a mesma concepção saussuriana de
sincronia que ele, Bakhtin, havia expulsado pela porta).
Ora, o jeito pelo qual um texto é percebido determina-se, achava ele, pelo
seu modo de inserção en tre vários sistemas, cada um dos quais possui o seu próprio
discurso (e. g., político, religioso etc.), dos quais se entretece o saber de cada
cultura, tan to quan to depende de seu estatuto na hierarquia estipulada en tre esses
sistemas. Tudo o que, bem vistas as coisas, não é mais do que o que preconizavam.
os formalistas, tal como o dizJakobson:

No interior de cada classe hierárquica, as formas e as funções constituem sistemas [oo.]. Cada

sistema reflete um aspecto homogêneo da realidade, chari1ado por Tinianov "série". Assim, numa

época encontramos, ao lado da série literária, uma série musical, teatral etc., m'lS também uma série
254 • A Identidade e a Diferença

de fatos económicos, políticos e outros. Ainda uma yez, a ordem lógica das relações desempenha

aqui um papel primordial: é apenas por seu conhecimento que chegaremos a abarcar a totalidade

dos btos. Semelhante ponto de partida permite integrar a dimensão histórica no estudo estrutural
da literatura (ou ele qualquer outra ati\·idaele social) (196501, pp. 20-21).

o método formalista para a recuperação da dimensão histórica da obra


permite compreender o sentido dela exatamente em função da covariação que
se trava entre o estado histórico em que se situa o momento da leitura e a signi-
ficação do texto. Explica-se assim que um texto possua diferentes significados em
diferentes ocasiões: as Confissões de Santo Agostinho, por exemplo, eram parte da
série religiosa no mundo romano do V século a. D., mas depois passaram a integrar
a série literária da cultura européia.
Além disso, a série literária de Roma tem, nos níveis da cultura do século V
a.D., um lugar diferente do que ela possui na hierarquia existente entre as séries
que compõem a cultura da Eurapa neste século XX. Bakhtin pensa, por isso, que
é crucial considerar a totalidade constituída do contexto de emergência (a situação)
de cada texto, pois que no mundo da inteligência não há nem atares isolados nem
obras singulares (cf. Jha, 1985).
Engana-se, todavia, quem venha a supor que Bakhtin derive a idéia que
sempre defendeu da condição entranhadamente histórica do discurso literário da
ancoragem dele em dada situação histórica, prescindindo de qualquer referência
às propriedades semiolingüísticas dessa obra. Ao contrário; a teoria bakhtiniana
da literatura radica no conceito de discuTSO entendido como um mecanismo dinâmico,
do qual vocábulo algum pode ser compreendido em si mesmo, pois que todos os
termos de um texto vêm inseridos em múltiplas situações, em diferentes contextos
lingüísticos, históricos e culturais; assim, para Bakhtin, um texto possui sempre um
sentido plural.
De modo parecido, língua nenhuma constitui um sistema semiótica homo-
gêneo. As línguas são, inversamente, mesclas nunca inteiramente homogeneizadas
e resolvidas de dialetos, socioletos, idioletos, jargões, normas e registras diversos,
desse cOl~junto muI tifário e con traditório derivando a multitextualidade do discurso.
E por tudo isso, o sentido de uma obra literária é fruto de uma construção dialógica.

Condiçâo Pluridiscursiva do Texto Literário. A Intertextualidade, segundo os


Formalistas ''Puros'' e segundo Bahhtin. A Citatividade e o Problema da
Enunciaçâo Enunciada

A originalidade da teoria bakhtiniana sobre o romance procede diretamente


dessa sua concepção de multidiscursividade· da língua e da multitextualidade do
discurso.Jha observa que,
A Obra de Propj} e a de Bahhtin • 255

para ele, o romance é a representação da yida da enunciação e do discurso. Ele pinta o drama do
discurso confrontando discursos [oo.] para assimilar, argumentar, parodiar, estilizar, corroborar,
condicionar, reportar, enquadrar ou ignorar deliberadamente outros discursos. O romance é o
gênero metalingüístico por excelência. Em suas páginas interagem "línguas" e "discursos" de grupos
sociais yariados; o que o caracteriza é, portanto, a sua discursi,'idade yariada. As palavras no romance
são, como as palavras na yida, conscientes do "pano de fundo" lingüístico da cultura que elas
exprimem, do diálogo que já considerou o objeto acerca do qual ele se pronuncia, e das possíyeis
palayras que o tomarão como objeto no futuro. O romance é, destarte, a mais consciente herme-
nêutica da yida social cotidiana.
Nesses termos, a língua não é simjJlesmente o meio que o rDnwnâsta tem jJara rejJresentar o mundo;
ela é, também, o IJIlllldo que ele rejm!senta. Cada texto romanesco não é mais do que um sistema de

línguas. Os personagens existem para que se possam enunciar as palavras - cada personagem de
um romance é mn ideólogo, que traz para o texto sua própria yaloração, positiva ou negativa, da
realidade social (idem; grifos meus).

Como se percebe, em A Poética deDostoiévski- em que mais sistematicamen te


se enunciam tais noções - , temos, mais do que a primeira interpretação mate-
rialista dialética da obra de Dostoiévski, o esboço da primeira teona estrutural do fim-
cionamento intertextual da narrativa, no caso, da narrativa longa, do romance.
E não sem razão: todas as acepções com que esse vocábulo, intertextualidade,
virá a ser enunciado a partir da década de 60 encontram-se já prefiguradas em
termos da própria terminologia bakhtiniana, como multidiscursividade, pluridis-
cursividade, dialogismo e polifonia, mais particularmente.
N o prefácio da tradução francesa de A Poética de Dostoiévski,]. Kristeva definiu
como segue a intertextualidade constitutiva do romance, segundo Bakhtin: "Bakhtin
é um dos primeiros a substituir o recorte estático dos textos por um modelo onde
a estrutura literária nâo é mas se elabora em relação a uma outra estrutura [oo.].
Cruzamento de superfícies textuais, diálogos de várias escrituras [... ] todo texto
é absorção e transformação de outro texto. No lugar da noçâo de intersubjetividade
instala-se a noçâo de intertextualidade (1970, p. 13; grifos meus).
Há dois destaques para as palavras de Kristeva:

1. um, acerca da idéia de que "a estrutura literária nâo é" - vale dizer, de
que ela não está nunca constituída completa e perfeitamente, de uma
vez só e para sempre, antes da leitura que a tira do limbo e a repõe em
movimento - "mas se elabora em relação a uma outra estrutura"; é .
uma intuição notável, prenhe de sugestões;
2. e outro que diz que "todo texto é absorção e transformação de um outro
texto", que repõe em circulação uma velha concepção formalista (de
Tinianov, mais exatamente, pelo menos desde 1919) a respeito da citati-
vidade; ou melhor, de que um texto literário não resulta diretamente de
256 • A Identidade e a Diferença

uma língua natural, resulta, antes, de um outro texto literário, seu pre-
decessor, ou colocado nas entrelinhas do discurso manifestante (tal como
havia demonstrado Saussure com seus anagramas, por volta de 1900).

São premissas mansas e pacíficas da teoria da literatura e da crítica de hoje,


mas eram, se não inteiramente originais, pelo menos largamente ignoradas naqueles
dias em que o artigo pioneiro de Tinianovjazia desconhecido entre as páginas de
uma pequena revista antiga, redigido numa língua que poucos liam no Ocidente;
e em que os exercícios anagramáticos de Saussure teriam de aguardar outros trinta
e tantos anos antes de serem desentranhados de seus cadernos de manuscritos
inéditos, organizados e editados por]. Starobinski.
Não só Tinianov, contudo, tivera a intuição da intertextualidade derivada
dos procedimentos alusivos da estilização e da citatividade. A verdade completa
é que o germe disso tudo se encontrava já, mesmo que precariamente (in)for-
mulado, no ideário daqueles mesmos a quem Bakhtin zurzia, seus colegas forma-
listas; pois no mesmo ano em que saía A Poética de Dostoiévski de Bakhtin, imprimia-
se também o Sobre a teoria da prosa, de Victor Chklovski, dos mais extremados mas
também dos mais argutos formalistas. E nesse livro ele diz que

a arte é feita para dar a sensação de coisa enquanto coisa que está sendo vista e não enquanto coisa
reconhecida; o procedimento da arte é o procedimento da representação estranha: a arte é o meio
de viver a coisa 1/0 seu jJlocesso de fazelcse; em arte, o que foi feito nâo tem imjJOItância (1973, p. 16).

E ainda: "O discurso poético (literário) é um discurso-construção" (idem,


p.27).
É a primeira idéia de que "a estrutura literária não é", mas está incessan-
temente "sendo construída".
Quanto à outra idéia, que está na raiz das modernas concepções da inter-
textualidade, a saber que "todo texto é absorção e transformação de outro texto",
recorda B. Eikhenbaum no importante ensaio que redigiu em 1925 (três anos
antes de aparecer A Poética de Dostoiévski) , no qual se traça o primeiro balanço
ordenado do método formalista, cobrindo os anos que vão de 1916 a 1925:

o começo da mudança [que o formalismo trouxe aos fundamentos da teoria da literatura]


estava contido nesse mesmo artigo de Chklovski [Eikhenbaum alude a "O Vínculo entre os
Procedimentos de Composição e os Procedimentos Estilísticos Gerais" que Chklovski lançou em
Poética, em 1919]. Ao discutir a fórmula de Vesselovski tomada do princípio etnográfico "a nova

forma aparece para expressar um conteúdo novo", Chklovski propõe outro ponto de vista: "A obra
de arte é percebida em relação com as outras obras artísticas, e com ajuda de associações que são
feitas com elas. Não apenas o pastiche, mas toda obra de mte é oiada jJaralelamente e em ojJosiçâo com
11m modelo qualqzteJ: A nova forma não aparece para exprimir um conteúdo novo, aparece para subs-

tituir a velha forma que perdeu seu caráter estético (1970, p. 35; grifos. mens).
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 257

De fato, nem a idéia da intertextualidade é criação de Bakhtin nem talvez


seja sua a melhor formulação do procedimento, que pode ser tenha sido pro-
duzida por Chklovski; e, mais abaixo: "No final do artigo, Chklovski cita a F.
Brunetiere, segundo o qual 'de todas as influências que se exercem na História
de uma Literatura, a principal é a das obras sobre as obras'" (idem, ibidem).
O que aqui se debate põe em questão o problema da citação, a qual, levada
ao extremo da inversão paródica do discurso original citado, nos conduzirá ao
procedimento da carnavalização, mas que nos conduz, por ora, por intermédio
do artifício de interiorizar o discurso citado no discurso citante, à problemática
da obra dentro da obra- ou, como dizemos hoje, em semiolingüística, ao problema
da enunciação enunciada:

o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação [no enunciado], mas


é ao mesmo tempo um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. Aquilo de que
nós falamos é apenas o conteúdo do discurso, o tema das nossas palavras. Um exemplo de um tema
que é apenas um tema selia, por exemplo, "a natureza", "o homem", "a oração subordinada" [ ]. Mas
o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso; ele pode entrar no discurso [ ].
[... ] quando passa a unidade estrutural do discurso narrativo, no qual se integra por si, a
enunciação citada passa a constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo [... ]; o tema
autónomo então torna-se o tema de um tema (Bakhtin, 1979, p. 130).

Para Bakhtin, a unidade da língua é a enunciação, que não é senão a expressão


do diálogo social - dialógica, portanto, e, daí, visceralmente ideológica.
Nem é a obra literária coisa diferente. Como pontualiza Eikhenbaum, ao
comentar Chklqvski, "a obra literária não é percebida como um fato isolado e sua
forma é apreciada em relação com outras obras e não por si mesma" (1970, p. 36).
Desse conjunto de noções, já bem trabalhado pelos formalistas, Bakhtin
derivará sua teoria do romance polifônico.

o Romance Polifônico e o Romance Monológico. A Ocupação

Toda jJalavra dos jJersonagens de Dostoiévski


engloba illljllicitalllente a do seu inter!oC'lttOl:
BAKHTIN

Bakhtin pensa que o gênero romance se caracteriza não pela imagem do


homem que projeta, mas pela imagem da língua: é a imagem da língua enunciada,
quer dizer, necessariamente vinculada com a imagem do homem, que se torna
imagem artística.
258 • A Identidade e a Diferença

Bakhtin aplicou suas idéias ao romance para tentar apreender, inicialmente,


o relacionamento ideológico que ali se instala entre o autor da obra e seus per-
sonagens. É nessa relação, autor versus personagem, que Bakhtin situa o critério
para distinguir duas diferentes modalidades de romances, os monológicos e
os polifónicos:

a. São monológicos os romances que utilizam vários personagens, que são


sempre veículos de posições ideológicas, para exprimir unicamente
uma visão do mundo, uma ideologia soberana, a do próprio autor da
obra. Assim, embora nesses romances muitos personagens falem, todos
eles exprimem a voz do autor. Conforme Bakhtin, Tolstói é o repre-
sentante máximo desse tipo de narrativa longa, na Rússia.
b. São jJolifônicos os romances em que cada personagem funciona como
um ser autónomo, exprimindo sua própria visão do mundo, pouco
importa coincida ela ou não com a do autor da obra. A polifonia ocorre
quando cada personagem fala com a sua própria voz, exprimindo seu
pensamento peculiar, de tal modo que existindo n personagens cada
um deles exprime uma particular e diferente cosmovisão. Para Bakhtin,
não existem, assim, posições ideológicas abstratas, fora das "persona-
lidades" dos personagens. No seu entender, Dostoiévski inaugura o
romance polifónico na Rússia.

Com o tema do dialogismo, Bakhtin opera a distinção entre a atividade mental


solipsistae a "atividade mental social". Nas palavras deJakobson: "aatividade mental
do eu" (não'modelada ideologicamente, próxima da reação fisiológica do animal,
característica do indivíduo pouco socializado) e a "atividade mental do nós" (forma
superior, que implica a consciência de classe)" (1979, p. 6).
Por isso, para Bakhtin, toda enunciação é um fazer coletivo, expressão de
um sentido que, desde o momento em que é "sentido", em que "faz sentido", não
pode deixar de ser social.
A exposição de uma estrutura romanesca monológica, expressão da própria
consciência do autor, subordina toda a lógica do mundo dos personagens à sua
própria lógica. Assim se eliminam as ambigüidades e contradições que constituem
a riqueza intertextual do romance, fazendo-o perder toda a sua complexidade,
em benefício de uma coerência unificadora que distorce e falseia a realidade da
existência humana.
Em troca, a preservação de várias vozes, independentes e contrárias entre
si, no romance polifónico, preserva a multiplicidade de pontos de vista e de visões
acerca de uma mesma existência, um mesmo mundo, conferindo alta qualidade
à obra; tal é, diz Bakhtin, a originalidade do romance de D.ostoiévski:
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 259

Não há em suas obras pluralidade de caracteres e de destinos desenvolvidos dentro de um


único mundo, mas, verdadeiramente, multiplicidade de consciências [... ] cada uma das quais possui
seu próprio Illundo e se combina aqui na unidade de um acontecimento, continuando sem se con-
fundir. Efetivamente, os heróis jJrincijJais deDostoiéuski, na concepção do próprio escritor, não são ajJenas
jJrodutos da fala do mi/GI; sâo, também, sujeitos do seu j}/"ójJlio dizer [... ]. Nesse sentido, a representação
do herói não é em Dostoiévski essa representação objetiva do herói que se encontra comumente no
romance tradicional. Dostoiévski é o criador do romance polifônico (1970, pp. 10-lI).

Contribui, nesse sentido, para a arte de Dostoiévski a utilização que ele faz
da figura retórica da ocupação, que consiste em antecipar, rejeitando-a ou não, de
antemão, uma objeção que o interlocutor parece estar a ponto de proferir a pro-
pósito do discurso do falante. Assim, "toda palavra dos personagens de Dostoiévski
engloba, implicitamente, a de seu interlocutor, imaginário ou real. O monÓlogo é
sempre um diálogo dissimulado, o que determina [... ] a profunda ambigüidade das
personagens dostoievskianas" (Todorov, 1969, p. 57).
Supondo que o romance hajasido até então, na Europa, essencialmente mono-
lógico (coisa que não significa, como adverte em nota, Bakhtin, que Dostoiévski se
situe à parte na história do romance europeu, nem que o romance polifônico criado
por ele não tenha tido predecessores), Bakhtin assinala que nem o drama, nem a
épica, por mais que o queiram ou simulem, podem ser autenticamente polifônicos.
O drama porque, a despeito de apresentar-se multinivelado, o universo nele repre-
sentado contém um único mundo: é da natureza do drama exprimir um único pon to
de vist:1. (assim, em cada peça de Shakespeare há uma única voz plenamente valorada) ,
o que faz dele um gênero estritamente monológico. O mesmo se dá, mutatis mutandi,
para a épica. Nessa modalidade de ficção, a fábula se diz por intermédio de um
discurso que não pode voltar-se contra si mesmo, o que constitui um fator inibitório
do "autodiálogo" característico da polifonia. O modo representativo da estrutura
épica, das digressões descritivas e narrativas do seu discurso, é sempre o monológico.
Nela, o autor não se vale da fala do outro, e se há um interplay dialógico na ordem
da representação, isso se dá sempre no nível do narrador, não se estendendo nem
se exteriorizando nunca no nível da narração, da manifestação discursiva, como
ocorre no r0111ance. Desse modo, inexiste qualquer diálogo entre a enunciação no
nível da história e a enunciação no nível do discurso: ambas permanecem subor-
dinadas e limitadas ao ponto de vista absoluto da voz do autor, que se identifica com
a voz unânime de toda a sociedade, no que ela tem de simulacro da "voz de Deus".
Em contrapartida, o próprio do romance moderno é, contudo, o seu caráter
dialógico, polifônico. O romance moderno nasce do encontro de vozes diferen-
ciadas que se somam, se interenunciam, se contradizem, se homologam e se infirmam
umas às outras; em síntese, relativizam-se mutuamente. Aqui, a intertextualidade
nasce da percepção de uma disjunção entre essas duas vozes, essas ~uas consciências,
260 • A Identidade e a Diferença

esses dois discursos, homólogos narrativos das contradições profundas que coe-
xistem a cada instante dentro e fora das pessoas de uma mesma coletividade.
Quando o discurso se constrói de dois textos que apresentam uma disjunção
total, de tal modo que um deles se apresenta como a inversão jocosa, paródica,
do outro, produz-se uma típica inversão risível da visão de mundo costumeira, a
que Bakhtin denomina de camavalização.

Camavalização e Dialogicidade. O Mundo de Cabeça para Baixo e a Paródia da


"Vida Séria"

( ... ) la jJlace de l'in/eNlit, qui est


l'i II tra-dit d 'un ell tre-deux-sujets.

LACAN

Bakhtin não acompanhou todo o itinerário dessa imensa força transfor-


madora da cultura popular que é a cultura do riso, mas estudou o suficiente da
vida cotidiana do povo da Idade Média para perceber que ela transcorria como
uma existência dupla, cada uma das quais vivida no interior de certo espaço -
no espaço fechado da casa, lugar da ordem, das manipulações que culminam
nos contratos sociais, topia, pois, da impostura nunca assumida, e no espaço aberto
da praça, lugar da desordem, das trocas injustas e portanto da polêmica, topia,
assim, da transgressão. Em outras palavras, a própria existência humana dos
viventes do Medievo transcorria, em si mesma, como um texto gestual carnava-
lizado, que a partir da vida mesma se transpõe para a ribalta do teatro nos textos
dos espetáculos públicos e, ao mesmo tempo, se transpunha para os discursos
verbais da literatura.
Na Europa dos séculos XVI e XVII o Carnaval surgia, ainda, como uma forma
vitae, um tipo de comportamento, quando as pessoas simples do povo

viviam duas vidas, uma dominada pelo princípio do medo e da submissão, e uma outra carnavalesca.
Na praça, livre, cheia de riso ambivalente, de sacrilégios, profanações, degradações e obscenidade,
do cantato familiar com tudo e com lOdos (Anltis, 1978, p. 176).

Como Bakhtin notou, o Carnaval é um espetáculo não-observado, mas vivido


numa espécie de existência invertida, num mundo de ponta-cabeça, em que se sus-
pendem todas as regras, as ordens e proibições que regem as horas do tempo de
trabalho na "vida normal", quando a ordem,.o bom senso e as hierarquias de nosso
mundo cotidiano são revirados para o avesso, e as distância~ firmemente estabe-
A Obra de Propp e a de Bakhtin • 261

lecidas pelas convenções são abolidas. Instala-se, nessas ocasiões, "um novo modo
de relações humanas, oposto às relações sócio-hierárquicas todo-poderosas da vida
corrente. A conduta, o gesto c a palavra do homem se libertam da dominação das
situações hierarquizadas (camadas sociais, graus, idades, fortunas) que as determinam
inteiramente fora do Carnaval e se tornam excêntricas, deslocadas do ponto de
vista da lógica da vida habitual" (Bakhtin, 1970, p. 170).
Mas, desdobrando-se nesse cenário, o que prende a atenção do autor de A
Poética de Dostoié7.ls!ti é o fino da transposição do Carnaval para a literatura:

É essa transposição do Carnaval na literatura que chamamos carnavalização (idelll, p. 169).

Qual é, a seu ver, o resultado da interiorização do Carnaval, enquanto texto


de um espet:í.culo cómico, de inversão paródica da ordem, na literatura? Primeiramente,
a dialogização narrativo-discursiva: as categorias literárias carnavalizadas, escreve,

contribuíram para a abolição do distanciamento épico e trágico e para a transferência do repre-


sentado ã zona do contato livre. Disso deri\',U11 importantes conseqüências na organização do assunto
e das situações temáticas, na familiaridade particular do autor em face de seus personagens (impossível
nos gêneros superiores), na nova lógica das ligações promíscuas, das lIlésallirlJlces e dos rebaixa-
mentos prof~llladores; enfim, sua influência foi determinante para a transformação do estilo verbal
na literatura. Tudo isso é já bastante nítido na (sátira) menipéia (idem, p. 171).

Com a interiorização dos procedimentos de carnavalização na prosa de


ficção, a literatura se torna paródid( ou seja, ambígua. Ela pode, então, voltar-se
para si mesma e, desdobrada numa clave séria e numa con traclave cómica, construir-
se feito um diálogo intratextual, que não se presta mais a servir à ideologia da repre-
sentaçâo do lado (pretensamente) sério da vida:
Paródico e dialógico, o texto se torna auto-reflexivo. Ele se divide, então,
en tre uma prática do sério e uma prática subversiva, da gravidade de uma norma e do
ridículo que toda norma entranha, de modo que o discurso encenará, agora, o
espetáculo da sua própria constituição. Incluindo a outra voz, a voz do outro, que
é sempre expressão da loucura, da blasfêmia, da subversão, da insensatez, do
escândalo, em suma, o discurso dialógico

se torna profundamente polifônico, pois várias instâncias discursivas acabam por nele fazerem-se
ouvir. O qlle Bakhtin ouve nessa palavra [nesse discurso] não é uma lingüística. É a divisão do sujet
[ambiguamente, do "assunto" e do "s10eito"] cindido de início já que constituído pelo seu outro,
para tornar-se a longo termo o seu próprio outro, e daí múltiplo e inapreensível, polifônico. A lin-
guagem de mn determinado romance é o território onde se om'e esse desmantelamento do "eu"
- seu polimorfismo. A ciência dessa polifonia será pois uma ciência da metalinguagem mas não
uma Iingüística: Bakhtin chama-a metalillgiiistica (Kristeva, 1970, p. 13).
262 • A Identidade e a Diferença

Esse diálogo do romance polifónico é uma conversação entre o eu do autor


e o eu de seus personagens - como sempre se fez - , mas é, ao mesmo tempo,
uma prática desenfadada, irónica ou cumpliciatória, à moda das digressóes inter-
pelativas tão caras, por exemplo, ao nosso Machado de Assis, travada entre o seu
eu vicário, encarnado na figura do narrador, e o eu do narratário, cujo vir a saber
se delega, embreado, no leitor. No fundo, o romance polifónico complexifica
todos esses eus, baralhando-os à imitação da obra de Dostoiévski, de tal modo que
muita vez se perde de vista quem é o sujeito ou o assunto sobre o qual o romance
se pronuncia. Nas palavras de Kristeva,

o texto de Dostoiéyski se apresentará, pois, como uma confrontação de instância discursiya:


oposição de discursos, conjunto contrapontístico, polifônico. Ele não forma uma estrutura totalizável:
sem unidade de 511jet ["sl~eito" e "assunto] e de sentido, plural, antitotalitário e antiteológico, o "modelo"
dostoievskiano pratica a contradição permanente e não poderia ter nada em comum com a dialética
hegeliana [...]. Nesse uniyerso aberto e sem decisão, o personagem nada mais é do que uma posição
discursiva do "eu" que escreye atrayés de outro "eu"; um discurso/palawa em diálogo com o discurso
do "eu" que escreye e consigo mesmo [... ]. Esse personagem é urna "YOZ pura", não o yemos, não o
ouvimos tampouco; escutamo-lo dissolver sua objetalidade no discurso (idem, pp. 14-15).

Escritura não-dogmática, o dialogismo faz-se assim radicalmente polêmico.


Bakhtin vai encontrar suas raízes na sátira menipéia, no diálogo socrático, nas
escritas dionisíacas ou carnavalizadas, que correspondem à lógica libertária do
desejo, a cavaleiro da encruzilhada entre o sério e o jocoso, cuja mésalliance funda
a ambivalência do discurso literário a exprimir um subversivo desejo do outro, de ser
o outro ou de ser de outro modo, não do modo sério, mas do modo astuto- carnava-
lização da seriedade culpada de uma sociedade que sincretiza todas as posições
mas afoga as oposições dominadas, carnavalização, enfim, em que se ultrapassam
todas as oposições que servem de fundamento ao discurso dogmático, aí incluído
em primeiro lugar o que estipula o universo de diferenças entre o sério e o jocoso,
entre o solene e o burlesco, entre o sensato, dotado de sentido, e o insensato, des-
semantizado, entre o verdadeiro e o falso.
Nesse pormenor de pensar o discurso presente como uma construção, uma
montagem efetuada a partir da matéria-prima de outros discursos do presente e
do passado, aos quais este de agora cita, explícita ou implicitamente, em que se
afirma sem cessar que o textual é de natureza intertextual, visto que "o discurso
encontra o discurso do outro em todos os caminhos que conduzem ao seu objeto
e ele não pode deixar de entrar em interação viva e intensa com ele" (Bakhtin,
1981, p. 98), nesse pormenor da citatividade enquanto jogo dialogal entre axio-
logias contrapostas, enfatizamos, Bakhtin é tão formalista como quem mais o seja;
pois foram indubitavelmente os fonnalistas que por primeiro teorizaram a relação da obra e
A Obra de Propp e a de Bahhtin • 263

do discurso com o seu outro, com a outra obra, com o discurso oposto, como consti-
tutivada produção da mensagem. E ésuficiente-viu-o Maingueneau-transpor
seu peculiar léxico psicologizante, para a ordem da metalinguagem discursiva
para sentir até que ponto, nele - em Bakhtin - , a propriedade intertextual do
discurso não é derivada nem secundária, mas é primeira e fundante, até mesmo
em razão de estar radicada no cerne do ser do homem:

o próprio ser do homem (exterior como interior) é uma comunicação profunda. Ser sig-
nifica comunicai: .. O homem não possui um território interior soberano, ele se situa todo e sempre
em uma fronteira: olhando jJara o seu inteliDl; ele o olha nos olhos do OUtlV ou através dos olhos do outro
(idem, p, 140; grifos meus).

Sendo assim tão formalista, fica dificil entender a oposição tenaz que Bakhtin
moveu aos formalistas. E quando, em Problemas da Poética de Dostoiévski, seu autor
toca no tema da intercitatividade das obras literárias, fica mais do que dificil, fica
mesmo estranho não encontrar ali nenhuma alusão nem referência a um ensaio
precursor de Iuri Tinianov, Dostoiévski e Gogol (Para uma Teoria da Paródia), publicado
em 1919, trabalho pioneiro e muito importante no campo desses temas da citação
e da paródia, que Bakhtin conheceu mas não menciona para nada (cf. Schnaidermarl,
1979, p. 20, nota 25; e também Schnaiderman, 1980, p. 89).
Outro tanto ocorre com o tema conexo do dialogismo que, afora a teoria
anagramática de Saussure, que Bakhtin então não podia conhecer (seu livro é de
1929 e Starobinski deu as primeiras notícias acerca do ana:gramatismo saussuriano
em 1968), era corren te e já havia adquirido relevo na obra dos formalistas anterior
a 1929, "fato'que não se percebe pela mera leitura de Bakhtin (esclarece
Schnaiderman). É preciso reconhecer, ninguém elaborou este tema com a mesma
riqueza e profundidade, mas também é preciso render justiça aos compatriotas
que ele omite ou aos quais se refere com evidente má vontade" (Schnaiderman,
1979, p. 24).
9

o ESTRUTURALISMO FUNCIONALISTA TCHECO:


O CÍRCULO LINGÜÍSTICO DE PRAGA

Ubi mate/ia, ibi geometria.


KEPLER

o CÍRCULO LINGÜÍSTICO DE PRAGA E AS ESCOLAS BA LINGÜÍSTICA


ESTRUTURAL NAS DÉCADAS DE 20 E 30

Die SjJnlche ist das bildende Olgan das Gedanlum.


HUMBOLDT

No primeiro quarto de nosso século, havia, espalhadas pela Europa e pela


América, quatro grandes escolas de lingüística estrutural, com graus diversos de
consolidação, influência e consciência do que eram: a de Genebra, a de Copenhague,
a norte-americana e a de Praga.
A Escola Geralista de Genebra, fundada em 1891, por ocasião do retorno de
Saussure à Suíça, com a qual se iniciaram, ao mesmo tempo, a teoria estrutural ge-
ral e a fase contemporânea da lingüística, deve, e não só por motivos puramente cro-
nológicos, ser contada em primeiro lugar. Com ela, a lingüística deixou de ser uma
disciplina atomística, baseada no método histórico-comparativo e aplicadora da meto-
266 • A Identidade e a Diferença

dologia empírico-indutiva, dedicada ao exame de partes isoladas dos fenômenos


semióticos, aos quais encarava unicamente do ponto de vista diacrônico-genético,
para se transformar em uma disciplina sistemática, baseada nas noções de relação e
de. estrutura (dependências internas ao sistema), que se valia pela primeira vez na
modernidade do método hipotético-dedutivo, para estudar conjuntos significantes
da ordem de grandeza do enunciado oracional, com vistas a construir uma teoria
geral da linguagem, do ponto de vista sincrônico. É o concurso disso tudo que vai
converter a lingüística, nas mãos de Ferdinand de Saussure, de disciplina pré-cien-
tífica em disciplina científica - a primeira, aliás, a poder ostentar esse título entre
todas as disciplinas humanísticas, e por isso mesmo logo tomada como modelo for-
necedor de categorias críticas e de técnicas para o resto das ciências humanas e sociais.
Integram a primeira geração da Escola de Genebra, além de seu fundador,
Saussure, E. Ernault, Maurice Grammont, Paul Passy, Antoine Meillet, que foram
alunos de Saussure em Paris, e Serge Karcevski, A. Riedlinge, Charles Bally e Albert
Sechehaye (os dois últimos, organizadores e editores do Cours de linguistique
générale) , que freqüentaram suas aulas em Genebra.
Na segunda geração sobressaem R. Godel, organizador e fino comentador
dos manuscritos inéditos de Saussure, R. Engler, autor de importante obra orga-
nizada à base dos demais cadernos de apontamentos dos alunos do COUTS, Tullio
de Mauro, que preparou uma monumental edição crítica do Cours - a melhor
que ainda temos - eJean Starobinski, a quem ficamos a dever a revelação de uma
faceta até então desconhecida do mestre suíço, a de semiólogo da poesia, feita
através da publicação que ele empreendeu dos anagramas de Saussure (Les Mots
sous les mots, 1971).
Uma segunda escola estrutural é a constituída pelo Círculo Lingüístico de
Copenhague, fundado por Louis Hjelmslev e Viggo Br0ndal em 1931. Hjelmslev
é o autor da glossemática, tendência que sob o aspecto da formalização científica
é a que melhor continua certos projetos seminais da obra de Saussure, e cuja
grande obra é o extraordinário Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem (1943).
Hjelmslev nasceu em Copenhague em 1899; estudou em várias universidades
européias, fundou o Círculo de Copenhague em 1931 e as Acta Linguistica (AL),
em que se editavam os trabalhos do Círculo, em 1939. Em 1937, foi nomeado pro-
fessor titular de lingüística comparada da Universidade de Copenhague, vindo a
falecer nessa mesma capital em 1965.
Dos três grandes mentores do Círculo de Copenhague, Viggo Br0ndal, H.
J. Uldall e Louis Hjelmslev, é esse último que sobressai como o criador do mais
abstrato e geometrizado dos modelos semiolingüísticos estruturais, os Prolegômenos,
exemplo acabado, ainda hoje, de uma tendência que, inspirada em parte contra
o Círculo Lingüístico de Praga, preferiu segu'ir as pegadas de Saussure para desen-
volver uma teoria semiótica pura, opondo-se, nesse particular, aos praguenses,
o Estruturalismo FunGÍonalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 267

que visaram sempre, em última análise, à realização de trabalhos práticos, do


âmbito da lingüística aplicada.
Deve-se assinalal~ ainda, que as Acta Linguistica, surgidas em 1938, traziam já
no subtítulo, Revista Internacional de LingüísticaEstrutural, a expressão da clara cons-
ciência de seus editores de estarem afazer uma disciplina plenamente estruturalista.
A lingüística descritiva norte-americana, por sua vez, desenvolveu-se com
um forte sentimento de independência relativamente às doutrinas lingüísticas
que então vicejavam na Europa; mesmo a influência de grandes nomes da lin-
güística britânica, Ogden, Richards, e nomeadamente Firth, era quase imper-
ceptível, então. De fato, a lingüística norte-americana procede mais dos trabalhos
de campo executados antes por antropólogos e etnólogos de valor, como Franz
Boas, Malinmvski e Benjamin Lee vVhorf, para citar só os mais conhecidos, do que
dos trabalhos preceden tes de lingüistas mais an tigos. A lingüística norte-americana
nasce, assim, separada da lingüística européia, e esta será uma das razões pelas
quais ambas caminharão por estradas diferentes, desde sua origem até hoje.
Distinguem-se, nela, duas ramificações principais nos anos 30, ambas
igualmen te in teressadas nas aplicações práticas da lingüística ao estudo dos
fenômenos de transculturação, das relações entre a língua em particular e a cultura
como um todo, bem como do melhor conhecimento das línguas indígenas do
país: uma corrente, dita mentalista, foi chefiada por Edward Sapir, e outra corrente,
fortemente mecanicista, Cl~O mentor máximo foi Leonard Bloomfield, fundador
da chamada Escola de Yale. No futuro, essa última acabaria por prevalecer, retomada
que foi pelas diferentes orientações que os norte-americanos seguiriam nos anos
seguintes, de modo que os influxos de Bloomfield se fazemnotar até na gramática
gerativa e transformacional que Noam Chomsky inaugura em 1957.
Uma quarta escola que se destacou pelos mesmos anos, entre 1920 e 1940,
foi a da lingüística estru tural funcionalista, do Círculo Lingüístico de Praga, tomada,
desde o início, como inspirada - daqui a pouco veremos que não foi totalmente
assim - no formalismo russo, isto é, nas teses defendidas pelo Círculo Lingüístico
de Moscou e pela OPOIAZ, movimentos que a haviam precedido imediatamente
e de onde provinham dois de seus principais articuladores russos, jakobson e
Trubetzkoi (o outro lingüista russo de destaque no grupo de Praga, Serge Karcevski,
provinha, como vimos, da Escola de Genebra).
O Círculo de Praga, constituinte do hoje chamado estruturalismo (ou for-
malismo) tcheco, reuniu grande número de pesquisadores: os tchecos, B. Havránek, .
V. Skalicka,]. Mukafovski, T. Vachek, Cirevski, Wellek, B. Trnka, V. Mathesius; os
russos, R. jakobson, N. S. Trubetzkoi, S. Karcevski; os franceses, L. Tesniere, ].
Vendryes, E. Benveniste, A. Martinet; o holandês, W. de Groot; o norueguês, A.
Sommerfelt; o polonês, W. Durossewski; o austríaco, K. Bühler; e o iugoslavo, A.
Belic. Uma plêiade de grandes nomes que constitui, sem dúvida, o mais influente
268 • A Identidade e a Diferença

grupo de estudos lingüísticos na Europa do período entre a Primeira e a Segunda


Guerra Mundial. Foi, também, o que se beneficiou do maior número de influências,
o que mais esteve aberto, dada a grande categoria e a grande diversidade de pro-
cedência de seus integrantes, às novas idéias que agitavam o panorama das ciências
humanísticas entre 1920 e 1940.
O Círculo de Praga absorveu influxos maiores ou menores, diretos e indiretos,
de quase todo canto: da fenomenologia de Husserl (mormente das Logische
Untersuchungen, que já vimos influindo em Saussure e em Jakobson) , bem como
de seu discípulo polonês Roman Ingarden; das escolas lingüísticas de Moscou
(Fortunatov) e de outras partes da Rússia (Baudouin de Courtenay, Kruscewski e
outros); e de Genebra; sem contar, é claro, com os fortes vínculos que a atavam à
grande tradição de estudos filológicos tchecos, desde o "formalismo" herbartiano,
do passado, até a obra,já no final do século, de Josef Durdik, Otakar Hostinski e
Otakar Zich (cuja poética, de aspectos pré-estruturalistas, deixou vestígios em
Mukai'ovski). Com isso tudo, a influência predominante no estruturalismo tcheco
do Círculo de Praga permanece sendo, de um lado, a da Escola de Genebra -
tanto a do COUTS de Saussure, diretamente, quanto indiretamente, por intermédio
de Sechehaye, de Karcevski, de Benveniste (ex-aluno de Meillet, discípulo de
Saussure) - e, de outro lado, a dos trabalhos do formalismo russo:

No plano mais diretamente lingüístico, impõe,se uma referência - declarada, reconhecida


explicitamente pelos membros do Círculo-a de Saussure. Historicamente, na formação da reflexão
lingüística de Praga, o pensamento de Sanssure desempenhou um papel de catalisador. [... ] Os pra,
guenses [... ] ado taram em bloco o ponto de vista sanssuriano, que lhes permitia opor a essa atituele
historicista [elos neogram,'iticos] uma concepção ele lingüística que escolhia como objeto de estudo
no seio da linguagem a língua definida como estrutura de signos. Os praguenses - poder-se-ia dizer
-utilizaram Saussure contra os neogramáticos. Receberam de Saussure o legaelo de uma lingüística
desligada das disciplinas que outrora a haviam submetido, acedendo ao estatuto de ciência (Fontaine,
1978, p. 35).

O Círculo de Praga apresenta a sua fase mais ativaentre 1929 e 1945. Fundado
em 1926, seus trabalhos acham-se reunidos nos oito volumes editados entre 1929
e 1938 sob o título Travaux du Cercle Linguistique de Prague. Embora inclua artigos
muitos variados, versando sobre fonologia, morfologia, teoria da literatura (ou
poética, como se dizia então, à moda eslava), história das línguas, folclore e cultura
popular, seu exame comprova que:

a. Os praguenses deixam-se guiar por duas opções metodológicas bem


visíveis - pela abordagem sincrôiüca, de um lado, e pela modalidade
funcional do método estruturalista.
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 269

b. Quantitativamente, existe um marcado predomínio da pesquisa prática,


aplicada, sobre a pesquisa teórica, pura- característica que a aproxima
da lingüística descritiva none-americana e a afasta tanto da Escola de
Genebra quanto do Círculo de Copenhague; como afirmou Vachek,
"contrariamente a muitas outras correnteslingüísticas, o Grupo de Praga
nuncase dedicou a problemas exclusivamente teóricos [...] (mas) sempre
se fez notar por seu esforço sistemático no sentido de chegar a con-
clusões práticas, por meio de suas pesquisas teóricas" (1978, p. 30).
c. São muito mais numerosos, outrossim, os estudos de natureza puramente
lingüística, em comparação com uma mais modesta proporção dos tra-
balhos dedicados ao texto literário (essa última característica não se
aplica, contudo, nem aJakobson, que, contrariamente ao que se costu-
ma pensar, publica muito mais sobre literatura do que sobre lingüística,
nem a Mukafovski).
d. No domínio dos trabalhos lingüísticos, uma acentuada maioria de publi-
cações versa sobre fonologia, a tal ponto que se pode dizer que o estru-
turalismo tcheco foi, antes do mais, uma escola fonológica - a fun-
dadora, de fato, como se sabe, da fonologia estrutural, a primeira dis-
ciplina realmente científica dentro da lingüística aplicada e por muito
tempo a fornecedora dos modelos a serem seguidos pelas outras.
e. No domínio dos estudos literários, uma marcada preferência pela
abordagem da poesia, em detrimento da prosa e da narrativa.

Em 1929 aparecia o primeiro trabalho coletivo do Círculo de Praga nas teses


apresentadas por Trubetzkoi, Jakobson e Karcevski, os--três russos do grupo,
conhecidas desde então como Teses de 29, que se deram a conhecer no Primeiro
Congresso de Filólogos Eslavos, celebrado em Praga. Nelas, além das bases da lin-
güística estrutural, que completavam as linhas já dadas à publicidade do Primeiro
Congresso Internacional de Haia, em 1928, havia uma definição da linguagem
poética como linguagem centrada sobre o valor autônomo do signo:

Resulta da teOlia que cliz que a linguagem poética tende a enfatizar o valor autônomo cio signo,
que todos os planos de um sistema lingüístico que desempenham na língua da comunicação só um papel
instrumental tomam, na linguagem poética, valores autónomos [00']' Os meios de expressão agrupados
nesses planos assim como as relaçôes mútuas existentes enu-e eles, que tendem a se tornar automáticas
na linguagem da comunicação, propendem, ao contrálio, na linguagem poética, a se atualizar [quer
dizer, a se evidenciar em primeiro plano e a contrair uma vinculação ad !wc] (Yllera, 1974, p. 69).

o tema da linguagem literária e especialmente da função poética está ligado


de modo indissolúvel aos nomes deJakobson e Mukafovski, duas das figuras expo-
nenciais do Círculo. Mas é preciso ressaltar que existiu sempre il)1portante diver-
270 • A Identidade e a Diferença

gência de princípio entre eles. Em "L'Art comme fait sémiologique" (em Actes du
8 Q Congres Intemational de Philosophie à Praglle, 2-7 set. 1934), "Mukarovski desen-
volveu a concepção da poesia como parte integrante da semiologia e não da lin-
güística, concepção que trinta anos depois iria impor-se na Europa ocidental" (idem,
p. 70), ao passo queJakobson, nisso muito mais "arcaico" que Mukai'ovski, sustentou
a vida toda, desde 1919 (quando publica A Nova Poesia Russa) ,que a poesia era uma
espécie de "estilística vinculada à lingüística e não à semiologia" (idem, ibidem).
Posteriormente -lembra, ainda, Yllera, a reflexão deJakobson sobre as teorias
literárias do poeta Gerard Manley Hopkins o faria reformular o princípio de toda
técnica poética como manifestação do princípio de paralelismo:

a todos os níveis da língua a essência, em poesia, da técnica artística reside em retornos reiterados
[afirmação que se encontra hoje em Qllestions dePoétiqlle]. A poesia se tece sobre uma complexa relação
de estnlturas fonológicas e gramaticais de que o poeta não há de ser necessariamente consciente
(Jakobson, ajJud 'i'Hera, 1974, p. 71).

A última observação - "a poesia se tece sobre uma complexa relação de


estruturas fonológicas e gramaticais de que o poeta não há de ser necessariamente
consciente" - respondia, dezenas de anos depois, à pergun ta que Saussure se havia
formulado quando dos estrênuos esforços que despendeu na construção da sua
teoria anagramática - "terá o poeta consciência da paragramatização a que submete
o hipograma, a palavra-tema inicial?" - e Cl~a falta de resposta parece ter sido a
causa principal de haver ele suspendido seus estudos nesse rumo. Pena não tivessem
podido colaborar o mestre de Genebra e o mestre de Moscou, tão próximos em
seus interesses intelectuais - mais teórico um, mais "prático" o outro - e, no
entanto, tão distantes durante tanto tempo. Porque assim como Jakobson levaria à
prática a idéia primeiramente saussuriana da descrição componencial do fonema
como um conjunto de traços distintivos (e aqui a coincidência é tão grande que os
nomes fonema e traços distintivos primeiramente usados por Saussure foram mantidos
pelo quase com certeza devido a indicação de Trubetzkoi) e assim como respondia
ele agora, debruçando-se sobre os problemas apresentados pelo Sprung Rhythm de
Gerard Manley Hopkins, observando como a métrica desse bizarro poeta apre-
sentava metros "reversed or counterpointed" (expressão de Hopkins), às dúvidas
que atormentaram e finalmente paralisaram os exercícios anagramáticos de Saussure,
do mesmo modo aproveitou-se ele da descoberta saussuriana dos dois eixos da lin-
guagem para exprimir, de forma lapidar, o princípio retor da construção do poema
na famosa definição da fimçâo poética:

A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo da seleção [paradigmático; asso-


ciativo, em Saussure] sobre o eixo da combinaÇ<lo [sintllgmático em Saussure ~ (Jakobson, 1963, p. 248).
o Estruturalis711oFuncionalista Tcheco: O Círculo Lingiiístico de Praga • 271

Não foi de modo algum mera coincidência o ter levado Jakobson à for-
mulação prática aquilo mesmo a que, em tantos e em tão diversos terrenos - na
fonologia, nos fundamentos gerais, na teoria da poesia - , Saussure dera, ante-
riormente, uma formulação exclusivamente teórica. Tendo em conta o papel de
primeiríssima plana desempenhado porJakobson tanto no formalismo russo quanto
no estruturalismo tcheco, no descritivismo norte-americano e depois na vertente
lingüística quanto na literária, antes de nos aprofundarmos em seu pensamento,
tentemos deslindar algo da influência nele exercida por dois de seus maiores ante-
cessores, que foram, à época - excetuado o ideário comum aos formalistas russos
- Saussure, com a teoria semiolingüística, e Trubetzkoi, com a teoria fonológica.

A Influência de SaussuTe e de Trubetzlwí sobreJakobson

Com relação ao formalismo russo, já sabemos que acima de todas as suas


ocasionais diferenças, o que aproxima os dois estruturalismos iniciais, o russo e o
tcheco, é sua comum referência aos modelos mais avançados da lingüística da sua
época - uma época em que era, ainda, da competência da lingüística o estudo
do texto litexário, convencidos como estavam os seus cultores de que esse último
representaria apenas o resultado de procedimentos lingüísticos aplicados à lite-
ratura.Já frisamos, aliás, queJakobson morreu convencido de que não havia no
fenômeno literário muito mais do que funções e usos particulares de procedi-
mentos lingüísticos. Não por outra razão advertia ele, ao encerrar, com sua con-
ferência, um congresso de especialistas, em 1960:

Se há ainda críticos que du"idem da competência da lingüística em matéria de poesia, eu,


pelo meu lado, suponho que eles de"em ter considerado que a incompetência poética de alguns
lingüistas limitados era uma incapacidade fundamental da própria ciência lingüística. Cada um ele
nós aqui, porém, compreendeu definiti"amente que um lingüista surelo para a função poética assim
como um especialista de literatura indiferente aos problemas e ignorante dos métodos lingüísticos
constituem, ambos, daqui para a frente, flagrantes anacronismos (1963, p. 248).

E aqui, para não fugir à regra que parece ter assinalado todo o seu destino
intelectual, Jakobson exprime, uma vez mais, o pensamento de Saussure - o
fundador da lingüística geral e, ao mesmo tempo, o fundador da semiologia da
narrativa (com seus estudos sobre os Nibelungen) e também da semiologia da poesia
(com sua teoria anagramática do poema).
Já se disse, com certo exagero, que a principal característica do estruturalismo
tcheco do Círculo de Praga foi a ten tativa de efetuar a conciliação en tre as dicotomias
do estruturalismo saussuriano, por um lado, e, de outro, as posições defendidas pelo
estruturalismo formalista russo (cf. Helenstein, 1978). Mas, exageros à parte, exa-
tamente a primeira tentativa séria desse empreendimento conciliador está instruindo
272 • A Identidade e a Diferença

os escritos que J akobson dedicou à história da fonologia russa, a saber:. The Concept
ofthe Sound Law and the Teleological CriteJion (1928), com V. Mathesius, N. Trubetzkoi,
Ch. Bally e A. Sechehaye - esse dois últimos, como se recorda, os organizadores e
editores do Cours de Saussure - , as Theses [em Actes du Premier Congres International
de Linguistes à la Raye, 10-15 abro de 1928 (Leiden, 1930)], e Remarques sur l'évolution
phonologique du msse (1929). Neles, o jovem sábio moscovita insiste em que as leis
operantes no funcionamen to sincrónico do sistema fonológico de uma língua atuam,
igualmente, no desenvolvimento diacrónico dele, de sorte que é possível considerar-
se que sincronia e diacronia constituem uma unidade dinâmica indivisível.
A última observação é mais uma alfinetada, dentre várias outras que se
seguirão anos afora - e invariavelmente fora de propósito - , que Jakobson apli-
ca, com mão de gato, à negação saussuriana acerca da possibilidade de aplicação
da noção de sistema à diacronia. Mas, se mantivermos em mente que, na doutrina
do Cours, o termo sistema refere-se invariavelmente à langue e não à parole - à
langue compreendida, é bem de ver, como um conjunto ou tout se tient, "a langue
é um sistema Cl~as partes todas podem e devem ser consideradas na sua solida-
riedade sincrónica" (Saussure, 1972, p. 124) - , é Saussure e nãoJakobson quem
está com a razão; corrobaram-no as Notas de aulas publicadas por Engler, em que
se lê, extraída dos cadernos de anotações de Riedlinger, Gautier, Bouchardy e
Constantin, "só o sincrónico forma um sistema".
Também no respeitante à oposição sincronia/diacronia, que, conforme
demonstramos na parte I, deve ser lida, como todas as demais dicotomias saus-
surianas, qua partes constituintes complementares, tese e antítese, de uma tota-
lidade categorial que, como toda unidade sígnica, é um constituinte duplo - uma
síntese dialélica daquela tese e daquela antítese - , de modo que essa dicotomia
não possa nunca ser lida como uma antinomia irredutível, o que é anti-saussuriano
(haja vista "tudo na língua gira em torno de identidades e diferenças"), no res-
peitante à oposição sincronia/diacronia, dizíamos, Jakobson andou treslendo
Saussure desde, pelo menos, 1929, quando afirmava, com endereço certo mas
com a encomenda errada,

não poderíamos erguer barreiras intransponíveis entre os métodos sincrânico e diacrânico, como
o faz a Escola de Genebra (Teses de 29, p. 1),

asseveração que continha pelo menos três impropriedades:

a. Não foi a Escola de Genebra quem propós a distinção sincronia/ dia-


cronia; foi Saussure.
b. Uma impropriedade terminológica: não se trata de "métodos", no caso,
mas de "pontos de vista" adotados pelo descritor:. "A oposição entre os
o 1,struturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 273

dois pontos de vista - sincrânico e diacrânico - [... ]" (Saussure, 1972, p.


119), ou - o que dá no mesmo - de perspectivas, como diz Saussure:

Seria absurdo desenhar um panorama dos AI pes tomando-o simul taneamen te de vários
cumes doJura; um panorama deve ser tomado de um único ponto (de vista). O mesmo
para a língua: só é possível descrevê-la ou fixar normas para o uso dela colocando-nos
em um certo estado. Quando o lingüista segue a evolução da língua, ele se assemelha
ao observador em movimento que vai de uma extremidade à outra do Jura para notar
os deslocamentos da jJersjJectiva (idem, p. 117).

E terceira,
c. Saussure afirmou que o lingüista deve adotar um dos dois pontos de
vista, uma das duas perspectivas, a sincrónica ou a diacrónica, porque
a adoção das duas ao mesmo tempo é impossível: elas são incompa-
tíveis simultaneamente (como mostra a última das citações que fizemos,
"seria absurdo desenhar um panorama dos Alpes tomando-o simulta-
neamente de vários cumes do Jura; um panorama deve ser tomado de
um único ponto (de vista). O mesmo para a língua". Isso, que foi, é e
continuará sendo sempre verdadeiro, não significa afirmar, apesar do
que pensaJakobson, que existam "barreiras intransponíveis entre os
métodos (sic) sincrónico e diacrônico". Aliás, De Mauro e Mounin viram
bem a inconseqüência desse passo das Teses de 29. De Mauro recorda
que o COUTS continha todas as afirmações necessárias para evitar esses
mal-entendidos jakobsonianos (Corso, nota I %, pp. 421-424); e tem
ainda-razão ao afirmar que é "incrível poder-se ter esquecido" aquilo
que Saussure diz explicitamente sobre as relações entre a sincronia e
a diacronia, sobre a dificuldade 'epistemológica e metodológica de os
separar" (Mounin, 1973, p. 70).

E, no entanto, em outras muitas ocasiões, Jakobson, que parecia alternar


momentos de valorações negativas absurdas com momentos de valorações positivas
despropositadas relativamente aos cometimentos de Saussure, não regateou
aplausos à "genialidade" do seu predecessor - ou era oito ou oitenta. Nada há,
pois, a estranhar que a convivência intelectual entre os dois maiores lingüistas do
século tenha sido sempre apaixonada demais para poder ser justa. O que, afinal,
fizera ou dissera Saussure que incomodava tanto Jakobson? E como se portava
este com relação a outro precursor genial, Trubetzkoi?
Lecionando, de 1920 a 1940, filologia russa e literatura tcheca antiga na
Universidade Masaryk, de Brno, o jovem Jakobson elaborou aos poucos a teoria
dos traços fonológicos distintivos, que vai assinalar a ultrapassag€m histórica da
274 • A Identidade e a Diferença

fase representada pelos Princípios de Fonologia de Nikolai S. Trubetzkoi (1890-


1938), que foi,junto comJakobson, o verdadeiro fundador da fonologia estrutural.
Nos Princípios de Fonologia, Trubetzkoi delimita os territórios cobertos pela
fonética e pela fonologia.
Sabe-se hoje que o termo fonema, criado por A. Dufriche-Desgenettes na
sessão de 24 de maio de 1873 da Société de Linguistique de Paris, de que Saussure
foi secretário, só passou a ser adotado depois de ter sido reproduzido pelo autor
do Cours na sua Jl,'fémoire, de 1878. Foi da Mémoire, que saudou com uma entu-
siástica resenha publicada em 1880, que Kruszewski , discípulo de Baudoin de
Courtenay, retirou o termo, introduúndo-o definitivamente no vocabulário técnico
eslavo (invertendo as bolas,Jakobson disse certa vez que Kruszewski haviainfluen-
ciado Saussure!); e foi de Saussure, igualmente, mas desta vez do Cours e não da
JWémoire, que Trubetzkoi pinçou o termo e o passou para toda uma geração de lín-
güistas europeus através dos Princípios de Fonologia. Assim, descontadas intuições
mais ou menos confusas e difusas de Courtenay, Sweet, Passy, Noreen e Scerba,
nem todos conhecidos por Saussure (mas Courtenay, sim, das reuniões da Société
de Linguistique de Paris), foi Trubetzkoi quem deu uma definição formal ao
conceito de fonema, ao designar com esse nome

"qualquer oposição fônica de dois sons que, em uma dada língua, possa diferenciar significações";
por exemplo, em alemão, /iI e /0/ são fonemas porque a sua oposição basta para distinguir so

"assim" - sie "ela", Rose "rosa" - Riese "gigante", etc. As diferenças entre dois sons que não servem

para opor significações [... ] não são fonologicamente pertinentes; quer se pronuncie lieberFreund
"caro amigo" com soantes e vogais iniciais breves, num tom neutro, ou liiieberFreund "caaaro amigo"
com entusiasmo, com ironia, com indignação, num tom persuasivo, com mágoa ou piedade, as
palavras veiculam o mesmo significado lingüístico; /1/ breve e /1/ longo, /iI breve ou /iI longo
não são aqui fonemas diferentes mas sim variantes expressivas [hoje diríamos alofones] dos dois
fonemas iniciais: "O fonólogo não deve considerar em termos de som aquilo que desempenha uma
determinada função na língua" (ajJlld Mounin, 1973, p. 111).

Assim despojada de qualquer contaminação psicologizante, a fonologia apa-


recerá, como se nota do fragmento acima transcrito, como uma fonética funcioúal.
No concernen te à fonologia da palavra, Trubetzkoi desvenda as três funções
básicas dos fonemas, que são, no seu entender:

a. A função culminativa, que marca a unidade fonética mais acentuada,


que serve de centro ou núcleo para a construção.
b. A função delimitativa, que se encarrega de delimitar os limites entre
as diferentes lexias de um enunciado.
c. A função distintiva, por meio da qual operamos a diferenciação entre
as lexias, enquanto unidades significativas difqencíais da língua.
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Circulo Lingüístico de Praga • 275

Na função distintiva se concentra, privilegiadamente, o maior e o melhor


desenvolvimento dos princípios científicos basilares do estruturalismo fonológico,
a começar daquele - que devemos aJakobson - que reduz todos os tipos de
oposições verificáveis no plano da expressão das línguas naturais a doze eixos de
oposições polares de traços distintivos.Jakobson fará a exposição completa desse
trabalho de descrição binarista em 1955, no Fundamentals oJLanguage, que redigiu
em co-autoria com M. Halle. Sua primeira sistematização dessa teoria surge,
porém, no ensaio de 1938, "Observations sur le classement phonologique des
consonnes" (um trabalho, por sinal, daqueles que ele abre com uma das suas
referências valorativas à obra de Saussure):

Não se poderia melhor definir a tese fundamental da Fonologia do que citando a fórmula clássica
de Ferdinand de Saussure: os fonemas são antes de tudo entidades opositivas, relativas e negativas
(1973, p. 123).

Em pelo menos uma de suas entrevistas, Jakobson afirmou ter tido conhe-
cimento do Cours de Saussure apenas em 1926. Não temos motivo nenhum para
duvidar da memória do autor dos Essais de linguistique générale no respeitante ao seu
conhecimento pessoal do livro do professor de Genebra, mas o fato é queJakobson
tomou conhecimento das teses centrais do Coursmuito antes disso. De fato, em outra
ocasião, ele mesmo lembraria o dia em que Serge Karcevski, que tinha sido aluno
de Saussure em Genebra e continuava, ainda, a lecionar nessa cidade (onde per-
maneceuaté morrer, em 1955), expôs, em 1917, aos participantes do Círculo Lingüís-
tico de Moscou, em Moscou mesmo, as idéias principais de Saussure. Mounin escreve:
'Jakobson relata-nos a forma como Karcevski, durante os dois primeiros anos que
permaneceu em Moscou - 1917-1919 - "fired the young generation ofMoscow
linguists with the Cours de linguistique générale (Portraits, 2, p. 494)" (1973, p. 104).
Também Trubetzkoi atribui a Karcevski a divulgação da Escola de Genebra
na Moscou da época, fervilhante e pegando fogo já com a polêmica que se abrira
à raiz do ataque que Trubetzkoi desfechara contra um livro de Sakhmatov, seguidor
de Fortunatov, negando, precisamente, alguns dos mandamentos mais estritos
deste último, até então reputado um dos maiores, se não o maior dos mestres da
filologia eslava.
E assim, "a influência da Escola de Saussure não tardou a somar-se à agitação
criada pela conferência" (apud Mounin, 1973, p. 104).
Nesse difícil relacionamento deJakobson com Saussure, tão passionalizado
pelo russo, não foram poucas as vezes em que ele fez questão de aplaudir algumas
idéias mais avançadas do mais velho. R. Godel informa, por exemplo, que, quan-
do, em 1964, Jean Starobinski publicou Les lvlots sous les mots: les anagrammes de
Ferdinand de Saussure, Jakobson "apaixonou-se" pela pesquisa do genebrino,
276 • A Identidade e a Diferença

chegando mesmo a enxergar "na descoberta dos anagramas a manifestação mais


rutilante do gênio saussuriano" (1982, p. 155), avaliação que, francamente, é mais
do que exagerada quando sabemos que a teoria anagramática nunca passou de
um conjunto de rascunhos, brilhantes e antecipatórios o quanto se queira, das
modernas teorias de construção do poema, mas que empalidecem necessariamente
se a pomos a par da estupenda realização que é a Nlémoire- em certos pontos tão
ou mais importante do que o COUTS- e, sobretudo, desse marco fundador da lin-
güística geral, da semiologia e do estruturalismo, que é o Cours.
Como quer que seja, é inegável que o suíço influiu de modo decisivo em
toda a geração de Jakobson, nele inclusive,já insinuando,já homologando suas
próprias reflexões acerca das dicotomias formal substância, sincronia/ diacronia,
sin tagmática/ paradigmática, metonímia/metáfora, som/fonema, função uti-
litária/função poética, pares de conceitos encontradiços por igual na obra dos
dois sábios, mas que na sua origem provêm, antes, só de Saussure, do que de todo
o grupo formalista com que nos acostumamos, por pura preguiça men tal, a associar
mais imediatamente todo o labor de Jakobson.
Para ficar em apenas uma das duas mais preciosas, férteis e duradouras
mostras ela contribuição elo suíço ao russo (a outra é a da relação entre os ana-
gramas e a função poética, de que trataremos mais tarde), é bastante ter em mente
que a reelução operada porJakobson, de todos os tipos ele oposições verificáveis
no plano de expressão das línguas naturais a doze eixos de oposições polares, não
significava mais do que levar à prática, tornando-a operacional, uma velhíssima
idéia de Saussure, expressa em seus dois aspectos mais notáveis como "a língua é
forma e não substância" (o que dava a diferença entre o som, base física, e o fonema,
entidade fUlicional erguida sobre essa base) e "a língua gira inteiramente sobre
identidades e diferenças" (que era, na prática, a primeira definição do teste de
comutação necessário para distinguirfonemasde aZofones). E se isso tudo não bastasse,
não custaria lembrar que ao mesmo Saussure se devia a afirmação de que para a
organização e o funcionamento da língua não conta a matéria através da qual ela
vem a manifestar-se, mas unicamente o fato de que cada elemento dela se define
em função do conjunto de oposições de que ele participa no interior ele um sistema
(da Zangue) e em função do conjunto de contrastes que o situam no processo sin-
tagmático da cadeia discursiva que esse elemento integra.
Não menos determinante para que Jakobson encontrasse o seu próprio
caminho foram as revoluções que implicavam a aceitação da reivindicação de que
à lingüística cabia considerar, além do plano do significante, também o plano elo
significado - postulado com o qual Saussure reintroduziu a semântica entre as
disciplinas lingüísticas - , bem como da lição de que o vaZor de um signo se
determina no duplo enquadramento dele pelos dois eixos da linguagem, o das
escolhas paradigmáticas (associativas, em Saussure) e o das.combinações sintag-
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 277

máticas, O primeiro da ordem da langue, e o segundo da ordem da parole. Sem essa


lição teria sido impossível aJakobson elaborar suas teorias da afasia, das funções
da linguagem e, notadamente, da função poética, bem como efetuar a distinção
entre as figuras retóricas da metáfora e da metonímia.
Retrabalhando distinções saussurianas, como as de som/fonema, Zangue/parole,
sincronia/diacronia, Trubetzkoi montara toda uma fonética à base de feixes de
traços articulatórios. Utilizando em lugar deles, traços acústicos - no que foi,
ainda uma vez, precedido por Saussure, como expressamente reconheceu ao
resenhar o valor da doação de manuscritos inéditos dele a uma das bibliotecas de
Harvard -,Jakobson aperfeiçoou a fonética funcional, reduzíndo-a a uma com-
binatória de doze eixos de traços distintivos. Ele inaugurava, assim, a lingüística
estrutural aplicada, de base binarista, manifestada, aqui, na forma histórica da
primeira fonologia estrutural plenamente operacional.
Mas, é tempo de nos determos mais longamente na contribuição deJakobson.

A Contrilmição de jalwbson

Roman OssipovitchJakobson (1896-1981) espalhou pessoalmente suas idéias


pelo mundo todo, desde 1920, quando trocou a União Soviética pela Tchecoslováquia,
até o fim de sua vida. Em 1939, a Tchecoslováquia é invadida pelas tropas de Hitler,
eJakobson, sendo judeu, volta a exilar-se. Sucessivamente tangido pelo avanço do
exército alemão, para a Dinamarca, para a Noruega e para a Suécia, é aqui, como
visiting professor das Universidades de Uppsala e de Estocolmo, que começa seus
estudos sobre a linguagem infantil e a afasia. Em 1941, afinal, abandona a Europa
conquistada diúgindo-se para os Estados Unidos. De 1942 a 1946 foi professor de
lingüística geral e de estudos tchecoslovacos na Escola Livre de Altos Estudos de
Nova York, onde fundou, em 1943, o Círculo Lingüístico de Nova York.
Fixando-se nos Estados Unidos, Jakobson lecionará lingüística geral na
Universidade de Columbia (1943-1949), língua e literaturas eslavas e, a partir de
1960, lingüística geral, em Harvard. Foi, ainda, professor emérito (1967), institute
professor do MIT, visitingproJessor do College de France (1967-1974) e das Universi-
dades de Yale, Princeton, Brown, Louvain e Nova York.
Doublé de lingüista e teórico da literatura, Jakobson foi um dos três ou
quatro maiores semiolingüistas do século. Não há nessas áreas domínio algum
que não tenha visitado com um conceito novo, um ponto de vista instigante, uma
glosa original, um adendo esclarecedor. Nossa dívida para com ele não pode ser
medida - basta dizer que é impossível fazer-se qualquer idéia de como teria se
desenvolvido o estruturalismo e, por via de conseqüência, como teriam evoluído
as ciências humanas e sociais deste século, nào tivesse Jakobson se dedicado
durante toda a sua vida à lingüística e à teoria da literatura.
278 • A Identidade e a Diferença

Sem embargo disso tudo, é também verdade queJakobson não foi nunca
um teórico à altura do seu próprio gênio como investigador de pesquisa aplicada.
Para comprová-lo, basta verificar que se, por um lado, ele tornou operacionais as
geniais intuições de Saussure - este sim, fundador da teoria estrutural-, desse
modo júndando a prática estrutural, por outro lado, muito do que pensou teori-
camente nunca pagou senão módicos dividendos aos seus investidores: sua teoria
acerca da afasia nunca funcionou na prática, por exemplo; e, do mesmo modo,
tendo meditado por meio século a fio acerca da teoria das funções da linguagem
e, mais especialmente, da teoria da função poética, a primeira começou a fazer
água mal fora publicada e vastamente divulgada, na década de 60, enquanto que
a segunda nunca logrou uma aplicação prática, em um "estudo de caso", media-
namente convincente.
Nada disso, contudo, obscurece o valor e o talento incomuns do mestre de
tan tas gerações.
Dono de uma inteligência luminosa, trabalhador infatigável, fundador
de círculos de estudos, animador cultural maravilhoso, nada no campo das
ciências sociais e especialmente no da lingüística seria hoje o que é não fosse
o trabalho dele.
Dos escritores mais prolíficos de nosso tempo,Jakobson é autor de 475 escritos
(dados do tomo I do To Honor Rmnan]alwbson, Haia, Mouton, 1967), dos quais 374
correspondem a livros e artigos e 101 a textos menores (artigos de jornais, prefácios
etc.). Fato curioso: até 1940, mais de oitenta por cento de sua pmdução referia-se ao domínio
da teoria da literatura, área em que nunca obteve fama nem de longe comparável com a que
lhe valeu asua atividadede lingüista; e cerca de dez a quinze por cento do total, apenas,
representa sua con tribuição aos estudos lingüísticos, área em que desfrutou sempre
da melhor e mais merecida reputação. O essencial de sua lavra, nesse campo, acha-
se consubstanciado em algumas poucas obras capitais, dentre as quais:

1. Sobre o Verso Tcheco, publicada em 1923, em russo, junto ao Círculo de


Moscou, e em 1926 em tcheco - trabalho em que, afirmando convir
melhor ao verso tcheco a métrica quantitativa do que a qualitativa;
Jakobson demonstra a relevância dos aspectos fonemáticos (ou fono-
lógicos) sobre os aspectos meramente fonéticos do verso e assinala, por
outro lado, que a poeticidade está ligada à imposição, sobre o material
verbal da língua, de determinadas convenções estéticas, expressando
desse modo a tradição formalista de oposição às reflexões impressio-
nistas das demais escolas de análise literária.
2. ''Problemas de Investigação Literária e Lingüística", que Jakobson
publicou em co-autoria com L Tinianov na revista Nowy Lef (n. 12,
1928), dedicado aos problemas da evolução literária,. contendo os pontos
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 279

de vista que vão constituir o núcleo do estruturalismo tcheco posterior


a esse respeito; e, particularmente, as
3. Teses de 29do Círculo Lingüístico de Praga, assinadas porJakobson-
autor de quase todo o escrito - , Trubetzkoi e Karcevski.
4. Onze trabalhos reunidos no Essais de linguistique générale (1963);
5. No campo da literatura, mencionem-se ainda cinco estudos sobre a
função poética; e, mais que tudo,
6. A análise que fez com Claude Lévi-Strauss do poema "Les Chats", de
Baudelaire (em L'Homme, II, 1962), que forneceu durante muito tempo
o tom, o método e o padrão de análise da estilística estrutural aplicada
à poesia.

Igualmente fecundo foi seu labor de promotor cultural. O conhecimento


que travou, nos anos 40, com Lévi-Strauss, em Nova York, a seguir com Noam
Chomsky (seu aluno em Harvard) e Morris Halle e, mais tarde, com Lacan, tanto
quanto seus contatos anteriores com Trubetzkoi, Karcevski, Mathesius, Mukafovski
e tantos outros, foi decisivo para a vitoriosa disseminação de suas tdéias pelo mundo
todo e para o transplante do método estrutural na literatura, na semiologia, na
antropologia, na sintaxe gerativa, na fonologia gerativa e na psicanálise. Desde
1920 e pela vida afora, até 1970 pelo menos, éJakobson o principal responsável
pela nouvelle vague estruturalista, que invade todo o território das ciências humanas,
e o principal promotor da superação, dentro da estagnada lingüística norte-ame-
ricana, do magistério de Bloomfield e de Sapir, influenciando positivamente a
reforma implantada pela gramática gerativo-transformacional, de Chomsky.
Sem alcançar a importância que teve em outros campos, parte, pelo menos,
do ressurgimento da retórica em anos recentes é devida, também, a seus estudos
sobre a função poética, a metonímia e a metáfora. Jakobson parece ter tomado
de Potiebniá a idéia de que a essência da poesia, no que se entende com a sua
contradistinção perante a linguagem utilitária, repousa na metáfora. Para os for-
malistas todos, aliás, longe de poder ser confundida com qualquer resíduo meta-
fisico de um "além da linguagem", com um "mistério inefável", a função poética
é, simplesmente, um produto verbal, construído sobre os princípios do desvio e
do paralelismo, que, deformando o objeto significante, destroem o automatismo
da percepção.

o Binarismo no Estruturalismo Fonológico e no Estruturalismo Poético.


A ''Polêmica Implícita" deJakobson com Saussure

Malgrado se valha da terminologia cunhàda por Saussure para os traços dis-


tintivos (e mesmo quando reprisa a de Trubetzkoi, que este foi, 'em parte, buscar,
280 • A Identidade e a Diferença

também, no antecessor suíço) , Jakobson não o menciona para nada nos FundamentaTs
of Language. Do mesmo modo silencia ao discutir a escala dicotômica - que, a
bem dizer, não é uma "escala" pois está ausente dela qualquer gradualisrno. Parece
que, deixando de pagar seus débitos,Jakobson permitiu, se não estimulou, a crença
de que a análise componencial que ele empreende saiu pronta de seu cérebro e
se desenvolveu com quase absoluta independência de predecessores; os poucos
que reconhece expressamente se situam antes no terreno mais afastado da teoria
matemática e teoria da comunicação do que do território lingüístico propriamente:

Embora desenvolvendo-se com total independência mútua, a análise fonernática e a teoria


matemática da comunicação chegaram nos últimos anos a conclusões fundamentalmente similares
e complementares, que possibilitam uma cooperação frutífera entre ambas as disciplinas Uakobson
& Halle, 1966, p. 60).

E apresenta, a seguir, um exemplo do que afirma, no qual particulariza a


razão pela qual optou pela seleção binária de traços: 'Toda mensagem falada
oferece ao ouvinte duas séries de informação complementares: por um lado, a
cadeia de fonemas proporciona uma informação codificada em forma de seqüência
e, por outro, cada fonema se compõe de vários traços distintivos. O número total
desses traços equivale ao número mínimo de seleções binárias necessárias para
determinar um fonema" (idem, pp. 60-61).
Nenhuma palavra de reconhecimento ao pionelnsmo de Saussure. E,
entretanto,Jakobson e Halle redigiram essas linhas em 1965, quando ninguém
mais ignorava que a própria teoria de segmentação das unidades seqüenciais
do plano de expressão, a queJakobson, Trubetzkoi e Karcevski deram uma bela
formalização nas Teses de 29 (fonológicas), só se tornara possível depois que
Saussure reivindicara a linearidade da cadeia dos significantes e operara os
recortes binaristas das célebres dicotomias do seu Cours, com elas desvendando
o mecanismo do funcionamento estrutural da língua, duplamente articulada.
Portanto, reconheçam-no ou nãoJakobson e Halle, foram esses procedimentos
saussurianos da segmentação binária dos sintagmas, e das segmentações lineares
seguidas nos dois níveis de articulação da língua natural, que instruíram, de
fato, sua opção pela descrição binarista dos traços distintivos, como fizemos
constar na Parte 1. Acrescente-se que a Saussure se devem, dentre outras coisas,
a distinção entre som e fonema, montada na diferença entre substância e forma
da expressão, com expressa indicação de que a análise lingüística deve ser uma
análise formal (não da substância):

É impossível que o som, elemento material, pei-tença por si mesmo à língua. Para ela, ele é
uma coisa secundária, uma matéria que a língua utiliza (Saussure, 1972, p. 164).
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Ling;iiístico de Praga • 281

A indicação de que essa análise formal deveria ter o caráter componencial,


ele a utiliza expressamente no esboço de semiologia da narrativa que nos deixou,
na análise componencial, por traços distintivos, do personagem. Confira:

"Assim, Dietrich (personagem da legenda germânica), tomado em sua verdadeira essência,


nâo é um personagem histórico ou a-histórico: ele é jmramente a combinação de três ou quatro traços que
jJodem dissocialcse a qualquer momento, acarretando a dissolução da unidade inteira" (Saussure, ajJ1ld

Wunderli, 1976, p. 54; vide, aqui mesmo, capítulo 2).

Só oito anos mais tarde, depois de publicado Fundamentals Df Language, é


queJakobson reconhecerá, examinando os manuscritos recém-doados à Biblioteca
de Harvard, ter sido Saussure o primeiro lingüista a preconizar a definição da
identidade dos elementos do plano da expressão (e também do plano de conteúdo,
como vimos) em termos de traços distintivos:

A necessidade que Saussure proclamou de firmar uma definição purameIlcte relativa e opo-
sitiva aos elementos diferenciais tornou-se a base de qualquer análise coerente em termos de ele-
mentos "últimos" ou em termos de "traços". A idéia de "as diferenças entre as propriedades são
[serem] de fato, discretas" e que seu aspecto diferencial "é realmente o conceito fundamental"
encontra-se nos diversos domínios da ciência moderna Qakobson, 1973, p. 139).

Jakobson acabou por reconhecê-lo, afinal; mas, por que não o fez em
Fundamentals of Language?, quando já se havia familiarizado de há muito com o
Cours, em que se pode ler:

o que se cha.ma comumente um "fato de gramática" [... ] exprime sempre uma oposição de
termos; somente essa oposição mostra ser particularmente significativa; por exemplo a formação
do plural alemão do tipo Nacht: Niichte. Cada um dos termos colocados em presença do fato gra-
matical [... ] é constituído por todo um jogo de oposições no seio do sistema: tomados isoladamente,
Nacht e Nàchte nada são: logo, tudo é oj)osiçâo. Dito de outro modo, jJode-se eXj)r1lnir a relaçâo Nadtt: Nachte

j)or uma fórmula algébrica a/b em que a e b não são termos simples, mas resultam, cada um deles, de

um conjunto de relações. A língua é, por assim dizer, uma álgebra que possuiria só termos com-
plexos (Saussure, 1972, p. 168).

E se fosse preciso ser mais claro do que isso, o que significa, afinal de contas,
a tão citada frase do Cours: "o mecanismo lingüístico gira inteiramente sobre iden-
tidades e diferenças", senão a expressa indicação da dupla natureza, positiva e
negativa, de todo elemento semiótico, aí incluído, evidentemente, o fonema? Fonema,
por sinal, que Saussure foi o primeiro a conceber na sua formulação moderna, o
que é reconhecido, de resto, pelo mesmo Jakobson, no ensaio "Réflexions inédits
de Saussure sur les phonemes" (agora constante dos Essais de linguistique générale
(l973a), ao comentar um manuscrito àquela altura inédito em que·o autor do Cours
282 • A Identidade e a Diferença

traça o esboço de um tratado de fonética, onde surge, dentre outras, a seguinte


definição: "Fonema = oposições acústicas". Ora, se acrescentarmos, agora, uni-
camente "feixe" para fazer: "Fonema = feixe de oposições acústicas" (operação que
não envolve nenhuma extrapolação indevida de nossa parte, hcya vista que acabamos
de mostrar uma compreensão de atol' narrativo, de Saussure, em termos de feixe
de traços diferenciais), teremos uma definição que o próprio Jakobson assinaria.
Tendo tudo isso em mente, francamente, não vemos que se haja feito algo
absolutamente inédito quando, mais de sessenta anos decorridos sobre essas ante-
cipações de Saussure,Jakobson e Halle escrevem: "Os traços distintivos inerentes
que se descobriram até esta data nas línguas do mundo e que, junto com os pro-
sódicos, regem a totalidade do repertório léxico e morfológico delas, se reduzem
a doze oposições, dentre as quais cada língua escolhe as suas [... ]" (1966, p. 40).
E assim se isolam os doze pares de traços acústicos distintivos, oito de sono-
ridade, quatro de tonalidade:

1. vocálico / não-vocálico
2. consonântico/não-consonântico
3. denso/difuso
Traços de 4. tenso/normal (relaxado)
sonoridade 5. sonoro/surdo
6. nasal! oral
7. contínuo/descontínuo
8. estridente/melodioso (ingI. mellow)

9. interrompido/fluente (ingI. cheched/ uncheched)

!
Traços de 10. graveiagudo
tonalidade II. tom menor (bemol) /tom natural (ingI. fiat/ plain)
12. esganiçado (sustenido) / claro (ingI. sharp/ plain)

(idem, pp. 40-44)

Há, sem dúvida, uma sistematização dos dados, e isso não é para menos-
prezar; mas não se trata, repetimos, de algo absolutamente inédito.
Esse mesmo espírito de sistema comparece nas reflexõesjakobsonianas acerca
do discurso literário. Para ele, a poética - um avatar formalista, no sentido de
teoria literária - faz parte da lingüística. Assim, seu interesse maior é o de des-
crever a função poética da linguagem no interior de uma teoria lingüística mais
ampla. Para tanto, ele vai buscar duas outras dicotomias - a dos pares signi-
ficante/ significado e oposição/combinação - e dois outros princípios teóricos-
o do binarismo e o dos dois eixos da linguagem - outra vez em Saussure.
o Estrutumlismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lin[!;Üístico de Fmga • 283

o binarismojakobsoniano é, como o de Saussure, polar, quer dizer, não-


gradual, mas descontínuo. Segundo Saussure, uma categoria qualquer da langue
pode ser concebida como um eixo em que se opõem dois traços distintivos polares,
a exemplo do que acabamos de ver no caso dos doze pares de traços pertinentes
para a descrição do fonema em Jakobson e Halle.
Por isso mesmo, qualquer um seria levado a pensar, tendo em vista a evolução
histórica da lingüística, queJ akobson busca inspiração para a sua teoria em Saussure.
No entanto, ao invés disso, ele se diz inspirado não por um lingüista, mas por um
filósofo, Husserl, em cuja terceira "investigação lógica" o binarismo surge, na
verdade, numa forma embrionária, dentro de uma difusa "teoria dos todos e das
partes". É dificil saber, hoje, por que, se o caso deJakobson era o de buscar ins-
piração nos antecedentes filosóficos das teorias do todo e das partes, não foi ele
buscá-la logo na fonte, em Platão, ou em Proclos, um neoplatônico de séculos
depois (Bizâncio, 412, Atenas, 485), que faz dessa oposição o fundamento con-
sistente de toda uma teoria cosmológica, desenvolvendo-a até as últimas conse-
qüências, de forma muito mais abrangente e coerente do que HusserI. O fato é
queJakobson não o fez e preferiu, ao invés disso, ficar nas intuições difusas e não
muito claras de Husserl, às quaisJakobson se referirá um dia, quando de uma con-
ferência, em Praga, como uma Fundamentalbetrachtung, "uma concepção funda-
mental" para o estruturalismo - coisa que é pelo menos estranha quando se sabe
que Saussurejá a havia desenvolvido cabalmente tan to na Mémoirequan to no Cours,
e dentro do terreno comum a ambos, dos estudos literários e lingüísticos.
Não se limita a isso, entretanto, a "estranheza" que parece ter assinalado o
relacionamen to deJ akobson com Saussure, aI ternativamen te subestimativo e supe-
restimativo, rarámente equilibrado. Também a conceptualização teórica toda do
funcionamento dos dois eixos da linguagem (que será por meio século uma
Fundamentalbetrachtungnas reflexões do próprioJakobson) estavajá montada em
Saussure, que a elaborara ainda nos anos 10, numa visão mais extensamente semio-
lógica, pois que a estampara ele no Cours, aplicando-a não só aos fenômenos lin-
güísticos, como também às formações da arquitetura. Assim foi que Saussure
ilustrou o que pensava por eixo sintagmático e por eixo associativo (paradig-
mático) no exemplo da coluna de um templo grego:

• Na coluna de um templo grego, o eixo sintagmático corresponde-se


com a ordem de combinação de suas divisões morfológicas, na seqüência:
base + fuste + capitel + arquitrave + cornija.
• Na mesma coluna, o eixo paradigmático se situana escolha de suaespe-
cificação estilística, pois que ela teria de se enquadrar necessariamente
em uma, e apenas uma, das seguintes classes: classe jônica, dórica,
coríntia, compósita.
284 • A Identidade e a Diferença

Jakobson aplicará tal lição na análise do discurso. O discurso através do


qual o código (a langue) se realiza em uma mensagem (uma parole) é o resultado
da combinação de partes previamente selecionadas no interior de classes de ele-
mentos equivalentes (paradigmas) e a seguir seqüencialmente combinadas na
cadeia da fala (sintagmas). Da articulação em seqüências ordenadas - todas
binárias, constituindo sintagmas de diferen tes dimensões, vocabulares ou lexicais,
locucionais ou frasais, oracionais etc. - resulta a cadeia da fala (ou mensagem).
No nosso modo de ver, Saussure fundou a teoria estrutural e Jakobson
construiu a técnica da descrição estrutural, convertendo-a em uma tecnologia de
análise racional e funcionalista.
Já nas Teses de 29 assoma o aspecto funcionalista do seu labor, aspecto esse
que ele aprimorou, se não o herdou, dos formalistas e, mais exatamente, de
Tinianov, com quem gostava de trabalhar. Para ele, as línguas naturais nunca foram
muito mais do que "um sistema de meios de expressão que serve a uma deter-
minada finalidade". É sintomático que ele acabe por substituir a parelha langue/-
parole, de Saussure, pela parelha código/mensagem. Ocorre que assim era possível
reduzir a langue - que em Saussure tem um alcance epistemológico muitíssimo
mais vasto (a primeira função que Saussure vê na linguagem, por exemplo, a de
recortar o caos do pensamento amorfo, conferindo-lhe um sentido e uma forma
e transformando-o, assim, em logos, não foi nunca percebida porJakobson e, por
isso, apesar de ser, sem contradita, a mais importantefunçáo da língua, pois que é
graças a ela que podemos tomar conhecimento da existência do próprio "mundo
natural" enquanto "semiótica do mundo natural", não foi sequer arrolada por
Jakobson na sua teoria das funções), era possível reduzir a langue, repetimos, à
condição de'mero instrumento para a comunicação do pensamento.
Saussure não teria jamais concordado com a estreiteza de tal concepção.
Mas, excetuados uns poucos insatisfeitos, isso que constituía o cerne da funda-
mentação das Teses de 29 pareceu a todos, naquele instante, extremamente renovador.
A renovação em relação às idéias tradicionais está em que, aqui, os complexos lin-
güísticos, além de serem, como antes, compará\'eis histórica e socialmente, poderão
ser cotejados formal e funcionalmente, em suas atuações sincrônica e diacrônica.
Uma demonstração de como isso funciona está no segundo parágrafo das
Teses de 29, redigido por Jakobson, no qual se gizam as tarefas fundamentais da
análise estrutural na fonologia, sua redução a traços distintivos e suas correlações
dentro do sistema.
Passando dos fonemas às palavras, as Teses de 29 vão colhê-las, igualmente,
na sua funcionalidade; e como a finalidade da palavra é efetuar a designação dia-
crítica dos seres, o capítulo, que parece ter sido inspirado, agora, mais no pen-
samento de Trubetzkoi e de Mathesius, compreenderá a palavra como o resultado
da atividade denominativa do falante.Jakobson crê que a palavra é o meio de que
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 285

se valem as línguas naturais para analisar a experiência, recortando-a em unidades


que são designáveis por meio da atividade denominativa. E aqui ele está no bom
caminho, do mesmo modo como quando afirma que o ato fundamental do processo
da fala é efetuar a predicação.
No entendimento dos signatários do manifesto, o funcionamento lingüístico
do discurso é correlacionável com o funcionamento lingüístico da mente dos
sl~eitos, cada correlação caracterizando uma espécie de língua funcionalmente
diferente. É assim que se podem analisar e reduzir a um denominador estrutural
comum os acontecimentos mentais do falante, que o estruturalismo tcheco vai
designar como a função (ou língua) prática, emocional, poética etc.

Pontualização do Conceito de Função: Bühler, Mathesius,Jakobson e Muka'lovski

Ainda que a predominância dos estudos acerca do plano de expressão das


línguas naturais tenha sido tão grande no estruturalismo tcheco que esse movimento
viria a ser conhecido como a Escola Fonológica de Praga, os praguenses levaram
a efeito um trabalho de muito maior alcance, tentando articular os estudos gra-
maticais com os estéticos e os literários. Um dos modos que encontraram para
trabalhar essa convergência foi precisar certas noçõesjá anteriormente levantadas
pelos formalistas russos. Assim, à imitação de seus colegas soviéticos, os tchecos
desenvolveram toda uma teoria centrada na idéia de função.
Já na terceira das Teses de 29, seus signatários tratam especificamente das
funções da língua, distinguindo, dentre outras coisas, a linguagem intelectual (que
nranifesta uma finalidade social, de interrelacionamento entre sujeitos) e a lin-
guagem emocional, subjetiva, e subdividindo, a seguir, a linguagem social: "Em sua
função social, a linguagem deve ser diferenciada segundo a relação que mantém
com a realidade extralingüística. Pode ter uma função de comunicação, isto é,
estar dirigida para o significado, ou ter uma função poética, ou seja, estar dirigida
para o próprio signo" (1978, p. 3.a.3).
E, pronunciando-se especificamente sobre a função poética: "Uma das pro-
priedades específicas da linguagem poética é a de acentuar um elemento de
conflito e de deformação [oo.]" (alusão às teorias do desvio e do estranhamento)
(idem, p. 3.c.l).
Na origem das teorias formais da função parece estar uma idéia primei-
ramente biológica; daí o descritivismo analítico característico dos formalistas, tão
preocupados com uma pormenorizada notação das características morfológicas
de que é exemplo, dentre outros, na União Soviética, a Morfologia do ContoiVlaravilhoso,
de Propp. E daí também um mais característico ainda organicismo adaptativo de
cada parte do organismo ao todo, encarados sempre, na biologia como na lin-
güística estrutural, como sistemas autónomos, capazes de ativar reações de ajus-
286 • A Identidade e a Diferença

tamento da totalidade às alterações introduzidas em uma parte dela, com o objetivo


de reequilibrar o funcionamento do conjunto.
Aplicada a organismos de seres vivos, a funcionalidade adaptativa se garante
no princípio da homoestase - a capacidade que os seres vivos possuem de se reor-
ganizarem in ternamen te para resistir aos fatores de desestabilização que os acometam
- , princípio, pois, responsável pelo funcionamento harmônico dos organismos.
Transferida para o campo das organizações simbólicas e das formações
semióticas, essa teoria terá de dar conta da atuação de variadíssimos processos,
que vão dos sincretismos míticos às pressuposições e subentendidos semânticos,
processos, enfim, ClUa organização e ClUo funcionamento só poderão ser explicados,
hoje, à luz de programas do fazer (do fazer biológico, do fazer humano etc.),
segundo pensamos. Todas as instituições sociais, como as línguas naturais, por
exemplo, passarão a ser concebidas, assim, como desenvolvimentos funcionais de
procedimentos programados por esquemas imanentes, de tal modo que norma
e desvio, função dominante e função dominada, assimilação ou acomodação,
analogia, e anomalismo e paralelismo, surgirão como marcadores do fato de que
as funções sociais se slueitam a normas interativas, que se reajustam umas às outras
a partir da funcionalidade localmente dominante de uma delas funcionando,
além disso, como elemen tos que assinalam a inexistência de práticas sociais regidas
exclusivamente por uma única função.
Nos anos 20 e 30 muito disso estava ainda no ar, inspirando o nascimento
., nu -eSULT(lflàl1SIIlU~A'1'J1fc"àu0 à'lrn;I'annâ',-I~U--diUlTl;Lu'gld;'ê'rr(al1 <1SSfíll:' A ri" 10 1:51 d

poética é uma estrutura funcional e os seus diversos elementos não podem ser com-
preendidos fora da sua conexão com o conjunto. Elementos objetivamente idênticos
podem revestir, em estruturas diversas, funções absolutamente diferentes" (apud
Silva, 1973, p. 649). Os modelos teóricos do Círculo de Praga serão plurifuncionais.
A mais completa teoria funcional da linguagem nos anos 30 foi elaborada
pelo lingüista e psicólogo austríaco Karl Bühler (1879-1963), que não é raro ver
incluído entre as praguenses. Sua Teoria da Linguagem (1934) é uma das fontes
clássicas da psicolingüística. Bühler considera a linguagem, antes do mais, como
um instrumento para a comunicação humana, a partir da ativação do ato enun- .
ciativo no qual inten'êm três fatores distintos: 1. o falante, 2. aquilo de que se fala
e 3. o ouvinte: em todo e qualquer ato de fonação alguém fala algo para alguém.
Para poder cumprir a sua finalidade, todo enunciado deve, pois, manter
uma tríplice relação com esses fatores da comunicação, fenômeno que obriga o.
enunciado a desempenhar as três funções semânticas da língua:

a. A função de construir uma representação de algo (Darstellung).


b. A função de conferir uma expressão ao- pensamento do falan te (Ausdruck) .
c. A função de in terpelar a pessoa com quem se fala (l).pjJeT).
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 287

Nas funções de representação, de expressão e de apelo, de Bühler, os praguenses


encontraram o respaldo necessário para elaborar a sua própria teoria funcional.
Vários dos integrantes do Círculo de Praga aceitaram a teoria de Bühler e a man-
tiveram tal qual, sem maiores preocupações. Trubetzkoi, por exemplo, que era, de
longe, o melhor lingüista entre os três que haviam assinado as Teses de 29, não viu
nenhum inconveniente em assumi-la nos exatos termos em que Bühler a expusera.
Reservou, portanto, para o estudo do plano de expressão das línguas naturais em função
representativa, o nome de fonologia e deixou, para o estudo do estrato fônico lingüístico no
desemjJenho das outras duas funções, a expressiva e a apelativa, o título de fonoestilística.
Outra autoridade, hoje injustamente no ostracismo, Vilém Mathesius (1882-
1945) - em nuo gabinete na universidade foi efetuada a reunião que decidiu a
fundação do Círculo de Praga - , mesmo aceitando a teoria funcional de Bühler
como ponto de partida, fez observar, contudo, que cada ato de fala é estruturado
em dois modos diferentes, um dado pelo padrão gramatical da oração, outro for-
necido pela "estrutura portadora de informação do enunciado", detalhe que o
leva a distinguir entre duas coisas:

A estrutura portadora de informação da oração deve ser considerada em?posição à sua


estrutura formal. Enquanto a estrutura formal diz respeito à maneira pela qual uma oração se compõe
de elementos gramaticais, a estrutura portadora de informação diz respeito à maneira pela qual uma
oração se integra na situação factual durante a qual foi produzida. Os elementos básicos da estrutura
portadora da informação são a base do emlllciado- tudo o que em uma dada situação seja conhecido,
ou seja, pelo menos, óbvio, (Oo.) constitua um ponto de partida para o falante - e o cerne do enunciado,
isto é, tudo o que o falante afirme sobre a base do enunciado ou em função dele.

Os lingüistas reconhecerão no trecho acima, sob os nomes de base e cerne,


o par tema e rema - ou, numa nomenclatura para nós menos polêmica, a dua-
lidade complementar do suporte, informação velha, e do aporte, a nova informação
carreada pela predicação de cada enunciado - , concepção do enunciado como
construção de termos bimembres complementares que no outro lado da Europa
caracterizou as teorias de dois eminentes comparatistas, Vendryes e Meillet.
Toda\;ia, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento mais notáveis das funções
de Bühler podem ser encontrados nas célebres seis funções da linguagem com
que, em 1960, no ensaio intitulado "Linguistique et poétique" (hoje em Essais de
linguistiquegénérale (1), de 1963) ,Jakobson reelabora todo o esquema do professor.
austríaco, referindo-o, agora, aos seis fatores que, conforme pensa, intervêm em
todo ato de fala, onde 1. o remetente, 2. que está em contato com 3. um destinatário,
envia-lhe 4. uma mensagem que se refere 5. a um contexto ("verbal ou suscetível de
ser verbalizado", pormenorizaJakobson, enigmaticamente,já que é inaceitável a
idéia de um contexto não-verbalizado, quer dizer, não-lingüistica.mente realizado),
288 • A Identidade e a Diferença

mensagem essa que para ser compreendida requer ser decodificada por meio de
6. um código parcialmente conhecido dos dois interlocutores. Assim, cada enunciado
possuirá uma função dominante, ao lado de outras, secundárias, de acordo com
o fator que ela focalize privilegiadamente:

a. A mensagem que concede maior importância ao estado de espírito do


remetente possui uma função emotiva.
b. A que enfatiza o canal de contato entre os interlocutores possui uma
funçào fática.
c. A que focaliza an tes do mais o destinatário tem uma função conativa.
d. A que se dirige de preferência para a própria mensagem está dotada
de funçào poética.
e. A que incide mais sobre o contexto contém uma funçào referencial.
i A que visa antes de tudo ao código inclui uma função metalingüística.

Afora a função metalingüística, que poderia ter encontradojá teorizada como


função sínoma em Chklovski, para quem a trama de Tristram Shandy gira em torno
de como converter a história que se conta em sua própria trama (masJakobson se
comprazia em fazer de Chklovski, em tantos sentidos superior a ele como puro
teórico da literatura, uma espécie de cabeça de turco dos extremismos formalistas,
e por isso dificilmente o levaria a sério), todo o modelo funcional deJakobson sai
diretamente do de Bühler. Não se pode, porém, deixar de apontar que sua própria
teoria da função poética foi elaborada pelos mesmos anos em que Mukai'ovski ela-
borava a sua, homóloga, da função estética. Força é que vejamos em campo ampliado
o que significaram as duas funções. Comecemos pela de Jakobson.

A Função Poética) segundoJakobson

There has been no other sllbject dwing

my entire scholarly life that has cajJtured me


as jJersistently as have lhe jJarallelislll.

]AKOBSON

É em 1960, ao apresentar uma conferência que se encontra hoje denominada


de "Lingüística e Poética", que Jakobson rompe com a estilística tradicional e,
rejeitando a concepção que faz da poesia um desvio em relação à linguagem uti-
litária, preocupa-se em darum tratamento puramente lingüístico ao estudo da poesia.
A função poética da linguagem passa a ser considerada defin~tivamente, agora, um
--
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingiiístico de Praga • 289

fenômeno lingüístico como qualquer outra função, explicável, em última instância,


no relacionamento dos eixos paradigmático e sintagmático das línguas naturais:

a função poética projeta o princípio de equiyalência do eixo da seleção (o paradigmático) sobre o


eixo da combinação (o sintagmático) (Jakobson, 1960, p. 358).

Para ele, essa equivalência é posta em jogo em todos os níveis, o fônico, o pro-
sódico, o sintáxico e o semântico:

Como esse princípio de equivalência postula uma unidade de medida das seqüências (a sílaba
na prosódia francesa) pode-se medir e comparar tais seqüências com o fim de deduzir os princípios
de isocronia e/ou de equiyalência que governam o sistema. A equivalência inclui, pois, a recorrência
de certas seqüências da mensagem e, por isso, seu paralelismo (Nicolas, 1969, p. 97).

No caso do poema, exemplo particular desse paralelismo é a rima. Na rima,


Jakobson vê o espaço privilegiado do encontro das relações fônicas e semânticas
que vinculam os elementos do poema entre si e cada um deles cóm o todo. Pois,
para ele, a poesia será "o território em que o lugar entre o som e o sentido deixam
de ser latentes e se tornam patentes (... ) graças a uma acumulação superior à fre-
qüência média de uma certa classe de fonemas (com) a reunião contrastante de
duas classes dadas" (1960, p. 358).
Tanto as divisões fônicas, prosódicas etc., quanto as suas tensões internas
devem ser analisadas. Tendo em vista que elas não se recobrem necessariamente,
o que se deve examinar é a sua superposição e as suas relações internas, de modo
a isolar a estrutura original que dá sentido ao poema enquanto mensagem.
Jakobson aplicou tais princípios a dois poemas de Baudelaire, "Les Chats"
(1962, em co-autoria com Lévi-Strauss) e "Spleen" (1967), separando inicialmente,
através das divisões pontuadas pelos próprios poemas, os níveis gramaticaI e semântico,
para, em seguida, sobrepô-los um ao outro, com o objeto de proceder à análise de
sua estrutura geral. Anne Nicolas descreve assim oresultado: ambos os poemas

podem ser descritos em função de duas estruturas complementares, uma das quais faz da mensagem
poética, centrada em si mesma, uma estrutura fechada; a outra dá conta da dinãmica do poema, que
não se fecha no seu último vocábulo mas atinge uma signifIcação que toca ao cósmico, quando a oposição
entre percurso metafórico e percurso metonímico é ultrapassada. A estrutura fechada dos Chatsrepousa
sobre três divisões, obtidas por uma análise formal, uma tripartita, que os apresenta "do interior", e a
última, em quiasmo, que opõe os gatos em posição de objeto no primeiro quarteto e no segundo terceto,
aos gatos em posição de slBeito no segundo quarteto e no primeiro terceto. Sobreimposta aos prece-
dentes, uma outra divisão mostra a estrutura aberta do poema, esuLltura linear que faz passar diretamente
do real ao irreal, depois ao surreal. MasJakobson e Lévi-Strauss querem deselwolveJ: a significação dessa
290 • A Identidade e a Diferença

descriçáo estrutural. A análise termina pelo estudo das significações simbólicas: "Da constelação inicial (...)
formada pelos amantes e os sábios, os gatos permitem, por sua mediação, eliminar a mulher, deixando
frente a frente( ...) o poeta dos Clzals (...) e o uni"erso" (1969, p. 98).

jakobson faz, como se vê, um múltiplo aproveitamento dos dois eixos da


linguagem. Ele, que começara, ainda nos anos 30, estudando os problemas da
afasia - desordens nervosas constituídas (é a sua hipótese) por "distúrbios com-
binatórios", que afetam a capacidade de manipulação do eixo sintagmático, ou
por "distúrbios se1etivos", que afetam a capacidade de manipular o eixo paradig-
mático - , acaba reduzindo diferentes modalidades de mensagens - textos lite-
rários em prosa ou em verso, estilos literários realistas ou surrealistas... - à condição
de discursos regidos predominantemente pela construção de metáforas, no eixo
paradigmático, e pela construção de metonímias, no eixo sintagmático.
Essa é, no seu modo de ver, a marca registrada da função poética. A despeito
de seu evidente predomínio no discurso da poesia, a função poética se apresenta
em qualquer tipo de discurso, onde quer que seja necessário utilizar a palavra não
mais como um signo transparente, que remete a outra coisa, ausente, mas, sim,
como um signo opaco, que o olhar do leitor, longe de atravessar em busca de
outra coisa, fixa como dotado de valor em si mesmo, ou como constituinte não
do sentido do discurso, do seu plano de conteúdo unicamente, mas sim como
constituinte da sua forma, do seu melhor arranjo - elemento dotado, em conse-
qüência, de valor estético. A esse título, a função poética atravessa e compõe uma
infinidade de tipos diferentes de mensagens, do discurso da poesia ao da publi-
cidade, do da prosa de ficção ao discurso oratório, onde quer que, enfim, se projete
o predomínio de uma funcionalidade estética sobre uma funcionalidade prática,
puramente referencial, distintiva da mensagem utilitária.
Nesses termos, a função poética constitui para jakobson um efeito pro-
gramado de leitura:

A similaridade sobreimposta à contigüidade'atribui à poesia sua onipresente essência sim-


bólica, multivalente, polissemântica( ... ) Dito de modo mais técnico, tudo o que for seqüente será
similar. Na poesia, onde a similaridade se superpõe à contigüidade, toda metonímia é ligeiramente
metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico (1960, p. 358).

Sem embargo de fazer notar o primado do processo metafórico na poesia


e em determinadas escolas ou períodos literários, como o romantismo e o sim-
bolismo, em contraste com a marcante preferência da prosa e do realismo pelo
processo metonímico,jakobson amplia a aplicabilidade dessa antinomia a uma
série de domínios semióticos, não-verbais (no discurso pictórico, por exemplo,
o cubismo é metonímico, enquanto o surrealismo é metaf?rico), mas a aprofunda
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Circulo Lingüistico de Praga • 291

com indisfarçável preferência no terreno da poesia, fazendo constar que o pro-


cedimento metafórico de construir equivalências inesperadas é crucial aqui, iden-
tificando-se mesmo com o procedimento dominante na construção desse tipo
de discurso.
Tal como Saussure, quantas vezes obcecado pela freqüência onímoda dos
mecanismos analógicos do anagrama,jakobson, que com ele manteve uma curiosa
e anacrónica "polêmica implícita", rastreou, também, a vida toda, o mecanismo
da projeção do princípio da equivalência da classe paradigmática na cadeia sin-
tagmática, retirando daí os efeitos da analogia fónica, formal, métrica, rítmica e
de conteúdo. Toda a parafernália dos padrões e pautas instauradas e instaurantes
do poético na poesia, os metros, os ritmos, as assonâncias, as rimas etc., nua forma
de manifestação é o espaço do verso, resulta, de um ou outro modo, a seu ver,
deste princípio:

o princípio da similaridade subjaz à poesia; o paralelismo métrico das linhas ou a equiva-


lência fónica no rimar palavras colocam a questão do contraste e da similaridade semântica( ... ) A
prosa, ao contrário, é projetada essencialmente pela contigüidade. Assim, para a poesia, a metáfora,
~
e, para a prosa, a metonímia constituem as linhas de menor resistência [a seguir na construção do
discurso] (1966, p. 102).

Pois bem: depois de termos visto em ação, já na teoria anagramática de


Saussure (vide Parte I desta obra), o princípio de retroalimentação (feedback) do
discurso a fazer, anagramatizável, pelo discursojá-feito, hipogramado, é im possível
não perceber agora que papel desempenham na teoriajakobsoniana da função
poética as repetições constitutivas das equivalências. O paralelismo característico
do enunciado poético, do verso, por exemplo, enquanto unidade da dimensão
segmentaI a reproduzir, é o resultado da repetição (de um som, um acento, uma
imagem, uma rima, um pé, uma medida) que, depois de aparecer uma primeira
vez na cadeia sintagmática, é aí pinçada e daí retirada para funcionar como padrão
paradigmatizável - dispositivo que se arquivará em competência como uma
espécie de programa semiótico, fónico, semântico, sintático, figurativo etc., que
passa a vigorar como construção-tipo a ser de novo produzida no discurso sob a
forma de nova construção ocorrencial, análoga, i. e., equivalente, à primeira forma
pinçada pré-construída.
O paralelismo numa das dimensões do discurso, entretanto, elicita, por
indução, um paralelismo análogo em todas as outras dimensões. Palavras seme-
lhantes fonicamente se convertem, no poema, em palavras semelhantes semanti-
camente. É o que dá em resultado, de um lado, a ambigüidade do texto que se dá
a construir sobre um dado discurso poético com "seu sentido totalizado" e faz, por
outro lado, desse discurso feito, uma wO!k in jJrogress, um discurso em construção.
292 • A Identidade e a Diferença

A CONTRIBUIÇÃO DE MUKAROVSKI

É jJreciso jJassar do formalismo jJara o estruturalismo.


]AKOBSON & TINIANOV

As teorias lingüísticas do Círculo de Praga foram, em seus inícios, realizações


coletivas - exemplo clássico: as Teses de 29 - produzidas muito mais abundan-
temente do que as teorias literárias. Estas, que sempre ocuparam uma pequena
porção dos Travaux, foram o resultado do trabalho isolado de alguns poucos arti-
culistas, dentre os quais se destaca, pela quantidade e pela qualidade do que
produziu até certa altura,]an :tvIukafovski (n. 1891). Por se constituir no principal
teórico da literatura do estruturalismo de Praga, vamos passar revista à obra dele.
Mukai-ovski deve pouco à tradição autóctone dos estudos literários de sua
pátria. Segundo vVellek, nem na obra de Hostinski, nem na de seu sucessor, Zich,
nada há que sequer prenuncie os grandes temas que Mukafovski irá celebrizar.
Sua obra inicial acusa influências de Saussure, de Búhler, de Husserl, de Ingarden
e, mais fortemente ainda, do formalismo russo. É notável, outrossim, o influxo,
nele, do pensamento de]akobson, com quem manteve, desde a transferência do
russo para Praga, em 1920, uma convivência frutuosa. Ele começa, portanto, for-
malista, mas aos poucos vai se afastando deles, no rumo da construção de uma
doutrina em grande parte original.
A primeira obra de Mukai-ovski, Algumas Reflexões sobre a Estética do Verso Tcheco,
é de 1923. Trata-se de um estudo sobre a versificação utilizada pelos três principais
poetas da Tchecoslováquia de meados do século XIX, Neruda, Cech e Vrchlicki.
Nesse trabalho, nosso autor mostra que segue a metodologia de abordagem dos
alemães Sievers e Saran, sem o menor traço das influências que viria a sofrer depois.
O impacto do formalismo russo atravessa já seu segundo livro, O l'daio de
Mácha: Estudo Estético (1928). Aqui, Mukafovski prega a análise estética imanente
da obra, com abandono de qualquer referência ao autor e ao extratextual, bem
como a renúncia às noções tradicionais de forma e conteúdo. Ele crê indispensável,
agora, ater-se aos conceitos formalistas de forma e de matéria. Àmatéria pertencem,
tal como ele a entende, o tema e a língua, que são em si mesmos esteticamente
neutros. Já a forma, que é a organização artística da matéria, possui segundo ele
dois traços distintivos, a deformação e a organização - os sucedâneos mukarovs-
kianos para desvio e estranhamento e para a noção de construção formalista.
O Círculo Lingüístico de J'vIoscou encerrou suas atividades nos princípios dos
anos 20 eaOPOIAZ pelo final do mesmo decênio. Foi então que, a crer em]akobson,
este e Tinianov declararam profeticamente, em 1928, que
-
o Estruturalismo FUl1ciol1alista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 293

é preciso passar elo formalismo para o estruturalismo (1984, p. 22).

Ora, apesar de aderido, ainda, e bem de perto, às teses formalistas, foi no


mesmo ano de 1928 que j'vlukaI-ovski introduziu na língua tcheca, e desse modo no
Círculo Lingüístico de Praga, os termos estrutura e estruturalismo, que a seguir os pra-
guenses todos adotarão com o evidente intuito de evitar serem confundidos com
os formalistas russos, Cl~Os conceitos-chave de forma e formalismo eram, no prisma
dos tchecos, demasiado "vazios" e - ainda que pouco se distinguissem, àquela altura,
dos novos rótulos de estrutura e estruturalismo, demasiado sugestivo de fôrmas ou
moldes ocos. Como quer que seja, é no final de 1929, em 31 de outubro, que um
artigo deJakobson, publicado no jornal Gin (A(âo) , dá o testemunho de que os pra-
guenses já tinham consciência de estar fazendo "estnnuralismo": "Se quiséssemos
caracterizar brevemente o pensamento diretor da ciência atualnas suas manifes-
tações mais variadas, não encontraríamos termo mais adequado que estnlluralismo"
(ajmd Toledo, 1978, p. 8).
Em 1934, MukaI-ovski escreve juntamente comJakobson a História da 11ersi-
jica(âo Tcheca, quando desenvolve certas idéias que Jakobson expusera em seu
primeiro livro, As Bases do Verso Tcheco (l 926), dando-lhes a feição ~ um esboço
de teoria poética geral. Ele pensa, então, que a unidade básica do ritmo do verso
não é o pé, mas o verso todo e até mesmo o poema inteiro (idéia que é na origem
mais de Ossip Brik do que do próprio Jakobson) ,já que cada linha de um poema
só pode ser considerado como verso em relação ao poema todo. Os ritmos dos
versos se unificam em termos de uma melodia, que é o resultado do sincretismo
de dois diferentes esquemas intonacionais, o da intonação da frase e o da intonação
do verso, a primeira regida pelo acento principal da palavra (que no tcheco recai
sempre na primeira sílaba), e esta regida pelos padrões métricos tradicionais (por
exemplo, o iambo de cinco pés). Mukarovski diagramatiza a melodia de cada
poema, colocando em um dos eixos da figura os números de sílabas do verso e
em um segundo eixo as percen tagens que medem as divergências verificadas en tre
a intonação da frase e a intonação métrica; desse modo,julga ele, pode-se visualizar
a melodia dos versos de um poema.
Parece um procedimento analítico interessante. Mas, na prática, deixa a·
desejar, mormente quando se lida com poemas em línguas de acento a jJriori impre-
visível, como o português, capaz de recuar a tônica até a quartúltima sílaba da
palavra - hé~a vista os biesdrúxulos do português brasileiro, caracteristicamente
propenso a reconstruir sílabas travadas, terminadas em consoante, em sílabas
abertas, terminadas em vogal,

técnico, autóctone, amávamos-te, que dizemos


[' te - ki - ni - ku ] , [ aw - to - ki - to - ni ] , [ a - ma - va - mus - ti ]
I I

e que possui, além disso, acento subtônico ou secundário etc.'


294 • A Identidade e a Diferença

Complexas o quanto se queiram, tais noções constituem as premissas de uma


obra que, ampliada, foi desembocar em uma semiologia, termo que Mukafovski tomou
emprestado de Saussure para significar, como no Cours, uma teoria geral dos signos.
Um dos primeiros postulados da semiologia de Mukafovski afirma o caráter
icânico - como diríamos hoje; na terminologia dele, de signo aulônomo- da obra
literária: uma vez que não mantêm vínculo nenhum direto com a realidade, as
palavras da poesia perdem qualquer valor documental, funcionando apenàs como
intermediações entre os membros da sociedade que faz e que consome o texto.
O melhor desenvolvimento dessas premissas naqueles anos é dado por ele mesmo
no livre to Função, Norma e Valor Estético como Fatos Sociais, em que afirma que "o
signo estético mostra sua autonomia ao indicar a realidade como um todo e não
como uma parte dessa mesma realidade" (1936, p. 9).
Frase sutil, aguda, que diz muito mais do que parece à primeira vista. Mas,
trata-se,já, de um posicionamento inteiramente estruturalista, ainda que, despida
de implicações realistas, nitidamente de um estruturalismo idealista.
De 1936 a 1945, Mukafovski caminha no sentido de uma marxistização crescente
de suas convicções. Por volta de 1945, ele dá a impressão de estar bastante preo-
cupado em conciliar seu passado com seu presente, postulados estruturalistas com
postulados marxistas. Mas, como observa ~Vlellek, pelo final da década, deixa-se
conduzir cada vez mais para o aprofundamento de uma ideologização esquerdizante
e em 1951 sua metamorfose está completa. É então que Mukafovski, cuspindo para
cima, denuncia violentamente o estruturalismo como "um idealismo sutilmente dis-
simulado, portanto, o mais perigoso ", e se retrata, a seguir, publicamente, abjurando
de suas posturas anteriores, assumindo o marxismo como a única "ciência" verdadeira.
Enfim, para "que não faltasse uma nota ainda mais acabrunhante ao seu auto-de-fé,
contendo uma espécie de haraquiri intelectual, Mukafovski aceita o cargo de reitor
da Universidade de Praga, da qual não titubeou em "expurgar" todos os professores
suspeitos de não compactuar com o regime títere instalado em sua pátria.
Daí por diante, esse homo novus faz-se o arauto de Tes novae, robotizado porta-
voz das "novidades políticas", não se pejando de repetir os piores chavões e slogans
do marxismo vulgar, e renega, em conseqüência, tudo o que tinha feito até então.
Aceitando que "a obra de Mukúovski deve ser julgada por seus artigos anteriores
a 1948" (Wellek, 1978, p. 63), estaremos nos limitando, nas páginas que se seguem,
a comentar seus estudos compreendidos entre 1928 e 1948.

A Função Estética e a Evidenciação

Seguindo, nisso, como os demais praguenses, a concepção de Saussure para


a languecomo o sistema supra-individual que permite a comunicação entre as pessoas
por ser ao mesmo tempo um sistema de signos e um sistema de normas sociais,
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 295

Mukal'ovski lembra que o comportamento lingüístico pode ter uma funcionalidade


prática, o que ocorre quando utilizamos a linguagem utilitária para a comunicação,
mas pode, também, como qualquer outra modalidade de comportamento social,
possuir uma funcionalidade estética. Um texto adquire uma função estética,julga
ele, quando sofre uma distorção intencional em seus componentes lingüísticos, de
modo que seus enunciados viram foco de atenção em si mesmos, não por causa de
seu caráterinstrumental, de transparência, que apresentam quando servem de meio
de expressão para um outro fim, para transmitir um conteúdo que poderia, even-
tualmente, ser transmitido igualmente bem por outros enunciados. Ele crê que o
procedimento operador dessa estetização da mensagem seja a evidenciaçâo (em
tcheco ahtualisace, em ingl. joregrounding, o ato de trazer dos bastidores, de trans-
portar algo do segundo para o primeiro plano do objeto observado).
As Teses de 29 definiam, ao lado dos procedimentos de base da fonologia, o
que então se tinha, e desde os formalistas russos, na conta de função poética da
linguagem, compreendendo-a, para usar a metalinguagem de Mukai'ovski, como
o efeito de leitura "estranhada" provocado pelo encontro de um procedimento
de evidenciaçâo (para os russos, por um desvio):

a lingllagem poética tende a enfatizar o valor autônomo do signo [e daí] decorre qlle todos os
planos de llm sistema lingüístico, qlle na lingllagem de comllnicação desempenham llm papel ins-
trllmental, aSSllmem, na lingllagem poética, valores alltônomos mais Oll menos consider,1veis. Os
meios expressivos qlle se reúnem nesses dois planos bem como as relações que existem entre eles
e tendem a tornar-se ali tomáticas na linguagem da comllnicação, tendem, ao contrário, a serem
trazidos para o primeiro plano na linguagem poética (1978, p. 3, c.2).

É a essa funcionalidade artística que Mukai'ovski chamava de estética e que


hoje nos habituamos a designar no jargãodeJakobson função poética. Para um
e outro, todavia, a oposição entre a linguagem literária e a não-literária explicava-
se em termos de dominância local, nunca de exclusividade, pois que em qualquer
enunciado da língua convivem lado a lado, com graus diversos de evidenciação,
a função poética com a fática, a referencial com a conativa, a emotiva e a meta-
lingüística - para ficar só nas queJakobson arrolou (e que estão longe de ser as
únicas "funções da linguagem"). Uma maneira simples de entender a coisa seria
pensar que na mensagem comum, utilitária, o predomínio é, geralmente, da
função referencial, ao passo que na mensagem artística é da função estética ou
poética, que privilegia a enunciação sobre o enunciado, conforme pensa Mukafovski:

A fllnçào da linguagem estética consiste na máxima evidenciação da enllnciação (... ) posta


não a serviço da comllnicação, mas com o fito de trazer ao primeiro plano o ato da expressão e o
próprio ato da fala em si mesma considerada (1964, pp. 43-44).
296 • A Identidade e a Diferença

Outro modo de significar, com outras palavras, que a função poética - ou,
melhor, estética, já que não respeita unicamente ao texto literário, nem, muito
menos, tão-só à poesia, mas se estende igualmente por qualquer outro tipo de
discurso, convertendo-o em realização localmente artística - se manifesta não no
que se está dizendo, mas, de preferência, no como se está dizendo isso que se diz.
Recicla-se assim a velha noção formalista da singularização do modo de
expressão, encaminhada a privilegiar, através do procedimento da forma difi-
cultada, a consideração de uma qualidade ou de um traço original do texto que
se toma como estético, texto estético, esse que é assim encarado precisamen te por
articular em unidade indissolúvel o plano de expressão e o plano de conteúdo,
de sorte que esse texto - estamos parafraseando por nossa conta o que supomos
tivesse sido o entendimento de Mukai"ovski - só diz isso que diz porque o diz
como o diz, propriedade que inviabiliza, de antemão, qualquer tentativa de traduzi-
lo, na medida em que a tradução implica atribuir um outro plano de expressão
para o mesmo conteúdo do texto original: conhecemos bem o resultado comumente
desastroso de tentar-se efetuar a tradução de poesias de uma língua para outra;
no mais das vezes, provoca-se a destruição irremediável do caráter "literário",
poético, do original, ou, na alternativa e no melhor dos casos, cria-se outro poema,
inspirado no original, mas que bem pouco tem a ver, de fato, com ele; como dizia
Valéry, tudo o que pode ser traduzido é prosa.
Patente está, aqui, o que o procedimento do estruturalismo tcheco, da evi-
denciação, deve ao procedimento do formalismo russo, de singularização ou estra-
nhamento. Nos dois casos, lida-se com uma recuperação do artifício estilístico do
desvio, utilizado pelo artista para obter a desautomatização da percepção do leitor.
Mukafovski"o compreende mais no sentido de uma interação de funções entre os
componentes da obra de arte, por uma mútua referência deles a um componente
dotado da função dominante: "A violação sistemática da norma possibilita o apro-
veitamen to poético da língua; sem essa possibilidade, a poesia não existiria" (1981,
p. 320). E:

A evidenciação sistemática dos componentes de uma obra de poesia consiste na gradação


dos interrelacionamentos desses componentes, isto é, na sua mútna subordinação e superordenação.
O componente mais alto torna-se dominante. Todos os outros componentes, guindados ao primeiro
plano (foregrouuded) ou não, bem como suas interrelações, são avaliados do ponto de vista dominante.
O dominante é o componente que aciona e dá direção às relações de todos os outros componentes
(Mukar-o"ski, ajJud Galyin, 1972, pp. 243-244).

Garvin precisa que Mukal-ovski dá, para exemplo da dominante na poesia, a


linha prosódica- de fato, é a melodia, como "imos atrás, que seleciona traços como
o acento e a intonação, independentemente da ordem de colocação das palavras.
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Circulo Lingüistico de Praga • 297

Nada muito original, nesse detalhe, quando cotejado com o contributo


dos formalistas russos, tirante, quiçá, o pormenor de terem os russos concebido,
em geral, a linguagem poética como um sistema semiótico da mesma natureza
da linguagem utilitária, do dia-a-dia, à qual se impõe um certo número de
desvios intencionais, desviando, em decorrência disso, seu caráter referencial.
Já Mukafovski e boa parte dos praguenses estavam mais dispostos a ver a
mensagem como uma espécie de totalidade articulada entre várias linguagens
funcionalmente diferentes, caracterizando-se a literatura, e notadamente a
poesia, pela dominância que a linguagem em função estética apresenta sobre
as demais linguagens.
Na men te de muitos formalistas "históricos", en tretan to, a linguagem poética
permaneceria sendo sempre uma espécie de linguagem utilitária afetada de desvios
expressivos que causavam o deslocamento de seu "grau zero". Jakobson, por
exemplo, que nesse detalhe foi a vida inteira um formalista, morreu convencido
de que o estudo da poética constitui uma estilística, concepção a nosso ver hoje
inaceitável na medida em que reduz a linguagem estética a uma espécie de sub-
produto da linguagem comum figurada - a uma retórica, pois, não passando a
poética, em conseqüência, enquanto estudo da obra de arte literária, de uma dis-
ciplina filiada ao tronco da lingüística, e não da semiótica literária estética, o que
é um ponto de vista por demais reducionista e empobrecedor.
Mukal'ovski, ainda considerando, como há pouco vimos, ser "a linguagem
padrão [...] o pano de fundo contra o qual se dest:1.ca a deformação intencional
estética dos componentes lingüísticos da obra", nunca reduziu a função estética a um
mero trabalho sobre o plano da expressão, como soía fazer Jakobson; em vez disso,
elejamais deixo"u de acen tuar, ao lado dessa violação da norma do plano de expressão,
que a função estética implicava, também, um rearranjo dos efeitos de sentido, das
significações literal (lingüística) e trópica (figurativa) do discurso, mas, a par disso e,
igualmente, do seu significado social.

o Significado Social da Obra Literária:


Reivindicarâo da Necessidade de uma Semiologia Estética

Em diversas oportunidades, Mukafovski externou sua convicção de que a


obra de arte, o texto literário inclusive, é um símbolo sensível. Em A Arte como Fato
Semiológico escreve ele:

Toda obra de arte é um símbolo autônomo, que se compôe:


1. De uma "obra-coisa" que funciona como símbolo sensível.
2. Do objeto presente na consciência coletiva e que funciona como "signif1cado".
3. Da relação com a coisa designada [... ] (1981, p. 24).
298 • A Identidade e a Diferença

Descartadas naturais diferenças de nomenclatura (nosso autor usa símbolo


para rotular "um veículo de significado acessível aos sentidos"), é bem de ver, com
Tchervenka, que aqui se faz a aproximação de uma obra com a categoria estética
não a partir do seu plano de expressão, o que era usual, mas a partir do seu sig-
nificado. Sem embargo disso, o significado a que Mukai'ovski nos remete não é o
construído isoladamente pelo leitor, mas aquele que se apresenta à "consciência
coletiva" - e também, supomos, à consciência comum do escritor e do leitor
enquanto partes integrantes da mesma coletividade -como retórica e ideologia,
mais uma relação figurativa que o signo mantém para com a coisa designada.
Em outros termos: o que assegura a condição de fato semiológico à arte são
suas relações de sentido que ultrapassam tanto o "sentido códico", dicionarizado
em competência, quanto a consciência isolada dos indivíduos, do seu autor e do
seu leitor.
Há, nessa tomada de posição, um ganho teórico considerável sobre o for-
mularismo convencional, material e mecanicista, que alguns formalistas russos e
estruturalistas tchecos enxergavam com exclusivismo na obra literária. Da per-
spectiva de Mukaí'ovski, as análises e in terpretações cul turológicas - sociológicas,
econômicas, psicológicas, ideológicas, enfim - devem ser recuperadas e resti-
tuídas ao domínio da significação literária e estética.
Não afasta ele, por certo, o papel do autor, da sua subjetividade individual;
ocorre que, ainda sendo reconhecida, ela não se isola dos demais fatores sociais
que integram concorrentemente a significação da mensagem. Até para poder ser
reconhecida como tal, a subjetividade do artista terá de passar pelo teste da sua
reintegração à estrutura total da sua comunidade. E é nisso que pensa Muk<üovski
quando reclama a atenção para a obra na sua condição de signo.
Em conseqüência, na conferência que pronunciou perante o Congresso de
Filosofia de Praga, em 1934, convidava ele a audiência a ponderar que

os problemas do signo e do significado tornaram-se cada \'ez mais urgentes, pois cada conteúdo
intelectual que ultrapassa as fronteiras da consciência indi\'idual adquire o caráter de signo pelo
mero fato de sua conmnicabilidade. Essa ciência do signo (seJlliologia, conforme Saussure, sellm-
tologia, conforme Bühler) de\'e elaborar-se em toda a sua extensão; assim como a lingüística con-
temporânea (por exemplo, os in\'estigadores da Escola de Praga, quer dizer, do Círculo Lingüístico
de Praga) ampliou-se para o campo do semântico, assim também os achados da semântica lingüística
de\'em ser aplicados a todas as demais classes de signos [oo.] (1981, p. 48)

Mukai'ovski põe aqui a necessidade de passar a observar o texto literário


assumindo e personalizando a visão do seu destinatário social, não o ponto de
vista do seu autor, nem o do seu leitor individual. E mais: seguindo Saussure, na
célebre definição de semiologia, que figura à página 33 do Cçurs, Mukafovski pre-
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingiiístico de Praga • 299

coniza a extensão da aplicação dos modelos lingüísticos para o conjunto das


ciências humanas e sociais:

Existe, inclusiye, todo um grupo de ciências que se interessa especialmente pelas questões
ligadas ao signo (assim como pelos problemas da estrutura e do \'alor que, ele resto, têm grande afi-
nielaele com os problemas do signo); a obra de arte, por exemplo, é simultaneamente signo, estrutura
e yalor); as chamaelas ciências do espírito (sciellces IIlOrates), que trabalham com UlIl material que
apresenta mais ou menos claramente o caráter ele signo, e isso graças à sua elupla existência no
nnUlelo elos sentidos e na consciência coletÍ\'a (1948, p. 49),

Broekman vê nesse fragmento o princípio metodológico funcionalista de


Mukúovski, nua análise tem pouco que ver, no que tange ao in terrelacionamento
arte e sociedade, com a teoria marxista do reflexo.
De fato, esse é o período em que nas especulações do esteta há pouco lugar
ainda para o sarrabulho da vulgata marxista posta a circular por Plekhanov, segundo
o qual a arte não seria mais do que um reflexo direto das circunstâncias vividas
pelas formações sociais. Lógico que nosso autor não nega em absoluto que as
mudanças históricas se reflitam na obra, nem, tampouco, que as alterações na
história das artes ocorram como efeito da repercussão de alterações verificadas na
sua situação, no ambiente exterior em que está ancorada. O ponto é que isto, isto
só, é demais, ou é demasiado pouco: tudo o que se transjànna na história das artes
ajJarece transjànnado dentro da história das artes (que é, jJor sua vez, jJarte da história social),
e é aí que deve ser estudado, antes de se procurar averiguar que tipo de transformações
ocorreram, em razão disso, na relação entre a história das artes e a história social.
O que é importánte, e o único que é viável, é que tudo o que se transforma na arte
manifesta-se nas obras como modificações de seus mecanismos e procedimentos
de construção, sendo inviável ten tal' reduzi-los mecanicamente à condição de meros
reflexos das transformações concomitantemente verificadas no corpo social. Tal
como Mukafovski pensa a essa altura (mais tarde fará um giro de 180 graus, nesse
particular), inexiste qualquer relação causal mecânica, direta e não-mediatizada
entre a forma da obra artística e a formação social em cujo seio ela se originou.

A PluTifuncionalidade da Obra Literária. As Quatm Funções da Mensagem,


segundo Mukccrovski

As causas disso tudo estribam, de um lado, no caráter sígnico da obra e, de


outro, no caráter social da sua significação. A condição sígnica garante que suas
propriedades intrínsecas de "significabilidade" e de "comunicabilidade" repousem
numa ultrapassagem da consciência individual para assentar no interior da cons-
ciência coletiva da comunidade. Por outro lado, "símbolo exteFior de um signi-
300 • A Identidade e a Diferença

ficado (cultural) ", a obra de arte funciona como objeto estético unicamente na
medida em que funciona nos domínios de uma plurifuncionalidade.
A cOlwicção acerca do caráter plurifuncional da obra leva Mukai"ovski a
elaborar uma pequena tipologia das funções. Na conformidade do que ele pensa,
um mesmo texto pode ser estudado a partir da consideração de quatro funções,
a prática, a teórico-cognitiva, a mágico-religiosa e a estética. Merquior explica:

Na atitude prática, a consciência se satisfaz, pragmaticamente, com uma imagem simpli-


ficada da realidade. Na atitude cognitiva de tipo científico, os objetos da consciência tampouco são
fins em si: as coisas são dissoh'idas numa rede de relações genéricas, que são o conteúdo das leis
naturais. Na atitllde m~lgico-religiosa, cada fenômeno já se apresenta imediatamente como signo;
mas remete, não menos imediatamente, a uma realidade que o transcende - o sacro, o nlllninoso,
o divino ou demoníaco. Porém, na atitude estética, a atenção se concentra na própria realidade
que se torna signo. Por exemplo: quando bzemos um exercício físico, nossa atitude se subordina
a uma função prática (robustecimento do corpo pela ginástica etc.). Não obstante, podemos, no
curso do exercício, dar-lhe função puramente estética, valorizando cada mO\'imento jJorsi, indepen-
dentemente de seu sentido atlético, utilitário. Em todas essas atitlldes antropológicas que acabamos
de descrever, os objetos significam; representam algo em determinado contexto comportamental;
mas só na atitude estética a consciência se enamOl'a de seus objetos por eles mesmos; só então é que
a percepção dos signos se tonJa curiosa do "corpo" mesmo destes últimos (1974, p. 256).

Com a caracterização da função estética, que fornece uma imagem uni-


ficante da realidade refugindo às estéticas subjetivistas e hedonísticas, "a ação
do valor estético não consiste com efeito no englobar e reprimir os outros
valores, mas no destacar todo o valor singular no contato direto com [... ] o
sistema global daqueles valores que formam a força motriz da práxis da coleti-
vidade (Mukai'ovski, s. d., p. 124), obtemos o seguinte esquema das funções
mukai'ovskianas:

prática: orientada para o objeto;


imediatas: transformante;
{ teórica: orientada para o sujeito;
projetiva;
Funções:

, {Simbólica: orientada para o objeto;


com carater
operativa;
ele sig'nos:
---=--- estétiça: orientada para o slueito;
significante.
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 301

Nada disso é muito novo para quem já lidou com o formalismo russo.
Continuamos a pezunhar no ideário imanentista, sob Cl~o ponto de vista a mensagem
estética funciona como entidade autónoma, desligada de sua condição instru-
mental, de veículo para alguma coisa que a ultrapassa, embora seja essa alguma
coisa uma significação. Por isso, o tópico mukafovskiano da evidenciação, como
antes o formalista, do desvio e estranhamento, continua a insistir na capacidade
de isolamento do objeto contemplado, que se posta agora diante do observador
como um objeto de conhecimento uno, totalizado e individualizado, quer dizer,
diferente de qualquer outro objeto, irrepetível no seu modo de ser e no deleite
que é causado por sua contemplação, que é, afinal de contas, a observação raras
vezes feita de uma forma criada Cl~a construção obedeceu à diretiva do melhor
arranjo interno de seus componentes.
As raízes disso tudo são, claramente, formalistas. Mas há, ao mesmo tempo,
algo mais. Mukarovski assume, por exemplo, a tese funcionalista dos praguenses-
Trubetzkoi e Mathesius, os dois maiores lingüistas do grupo, não se cansaram de
insistir no caráter teleológico das mensagens - da finalidade autónoma da obra
de arte. Se aqui e lá, esparsa e episodicamente, algum formalista exacerbado adubou
alguma vez a reivindicação dessa autonomia com o fermento kantiano do suposto
~

"inutilismo" ou da pretensa "gratuidade" do objeto estético, esse não foi Mukai'ovski;


pois mesmo isolada na auto-suficiência una e totalizante com que se dá à contem-
plação, nem por isso a obra de arte corta qualquer de suas relações com a vida
concreta das pessoas. Explica-se: para Muka'í'ovski não existem objetos estéticos a
jJriori, quer dizer, independentes de uma concreta experiência. E como, para ele,
nada é estético por natureza, tudo pode tornar,se estético por função (MerquiOl~

1974, p. 257), afirmação que ganha todo o seu sentido quando nos lembramos de
duas ou três coisas:

1. De que, para Mukai'ovski, o belo não é uma propriedade do objeto,


mas da relação sl~eito contemplante vel~usobjetocontemplado; o belo
não é uma propriedade das coisas em si mesmas, independentemente
do homem.
2. De que o belo é um efeito de leitura intersubjetivo, que surge na relação
eu vel~us mundo, quando esse eu "escuta" o mundo e não quando se
desliga dele; mas,
3. Ao mesmo tempo, Mukai'ovski julga que o belo penetra e permeia,
pelo menos virtualmente, toda e qualquer atividade humana, sendo a
sua existência ou não sempre uma questão de técnica e de Junção, coisas
que (ao contrário do que apregoava 2l estética idealista) podem existir
dentro e fora do que chamamos o~jetos de arte propriamente ditos.
302 • A Identidade e a Diferença

Nem pode passar em branco a importância que assume, nessa teoria, o des-
locamento do posto do observador, do sujeito contemplante, do lugar do autor
para o lugar do leitor. Mas como Mukafovski frisa ao mesmo tempo o caráter
social da significabilidade e da comunicabilidade do texto estético, não se trata,
aqui, de um deslocamento de 180 graus, de um pólo para o outro, antípoda no
eixo de transmissão da mensagem - trata-se, mais, de um deslizamento gradual
dos dois, autor e leitor, enunciador e enunciatário, para um ponto médio,situado
a igual distância desses pólos, coisa que vai ocasionar o descentramento do sl~ei to,
na medida, pelo menos, em que esse vocábulo - sujeito - esteja comprometido
com uma acepção psicologizante, significando uma subjetividade solipsista.
Segue-se que o estético se identifica, agora, em Mukafovski, com um certo
efeito de leitura de um sujeito plural, não mais uma entidade de categoria psico-
lógica, mas uma entidade semiológica, que lê um efeito de sentido programado
no discurso como um efeito de leitura dominante, adrede instalado na mensagem
para suscitar no seu leitor o efeito de sentido "obra de arte" - pouco importa se
instale tal procedimento em um objeto de arte, ou em outro qualquer, utilitário
- um automóvel, por exemplo - , em uma mensagem artística, como um poema,
ou em uma mensagem utilitária, uma notícia de jornal, digamos.
Se se tem em mente, agora, que a função estética não exclui de modo algum
as demais funções do texto, que ainda que estejam ali localmente dominadas por
ela nem por isso se acham aniquiladas - um automóvel ou uma notícia de jornal,
independentemente de serem "belos" ou "feios", continuam a ter uma função
prática, uma função teórico-cognitiva, uma função mágico-religiosa-, então fica
claro que a obra de arte está permanentemente aberta a todas as outras relações
mediante as quais ela se insere numa dada formação social, às relações eco-
nâmicas, sociológicas, psicológicas, políticas etc., que naquelas quatro funções
de Mukafovski se contêm como expressões de conteúdos sociais apreensíveis
pelo leitor como atol' social.
Em suma: nem a arte nem o artista se criam jamais encapsulados na bolha
de um espaço ermo e isolado, senão que surgem nos quadros de um ambiente
social determinado, do qual provêm e para o qual retornam. Diante disso, o leitor,
que é apenas outro nome para "o público", a coletividade visada pela obra, encon-
tra-se sempre incluído nela.
A teoria mukai-ovskiana abre, nesses termos, uma nova via de acesso à inter-
subjetividade social, que já não pode se identificar nem mais nem menos com o
ethos e o pathos do escritor ou do leitor. Em conseqüência, o texto literário podia
emancipar-se da dependência unilateral à auctontas imperial de seu auctor, das
simplificações inerentes às teorias do reflexo, que desde a lei dos três estados, de
Taine, na obra de arte, rastreavam tudo o que não fosse artístico, a saber, os influxos
não-mediados de seu meio, de seu tempo, da raça ou da clas~e do autor, tanto faz.
o Estmturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 303

E não deixa de ser irônico q~le o mesmo crítico q~e iria um dia desertar das
fileiras estruturalistas, denunciando o seu formalismo alienante para ingressar na
vaga do realismo crítico marxista, tivesse sido dos primeiros a, paradoxalmente,
demonstrar a necessidade de retrabalhar a relação autor-produtor de modo a
rejeitar os simplismos do marxismo vulgar, que pretendia erigir um modelo extra-
semiótico em categoria crítica aplicável aos fenômenos semióticos, sem se dar
conta, nem mesmo, de que com ele, que estava fundado sobre o pressuposto do
n:fJexo. ,se tornava imqossível ~t:xqJ iC3J:-n~fata-rk_teL:.l.rpu:FálliGrn'i'iuu \..rn~'!'1.ruJl~-!l'",
mesma época o romantismo na Alemanha, na Inglaterra, na França, na Rússia,
no Brasil, no México etc., assim como surgiriam, depois, contemporaneamente,
o cubismo na França e na Rússia, a despeito de serem muito diferentes as his-
tórias, o grau de desenvolvimento, as raças, as infra-estruturas econômicas e as
supra-estruturas ideológicas de todos esses países. Para retomar o exemplo no
sentido inverso, tratava-se de um modelo impotente, do mesmo modo, para explicar
por que nações e sociedades de não importa que partes do globo compreendem
e apreciam os objetos de arte provenientes de outras épocas e de outros povos,
afastados, às vezes, de sua própria realidade, por séculos ou por milênios.
No Mukafovski anterior a 1948, isso tudo só encontra explicação a partir
da consideração do caráter de símbolo autônomo - hoje-uiríamos do caráter
icânico - inerente à natureza sígnica da obra de arte.

Aprofundamento do Processo de Descontinuidade:


O Descentramento do Sujeito na Teoria Estruturalista

I contain a multitude.
·W.WHIHJAN

Naus sOlllllles une 1JlultifJlicité qui s 'est

construit une unité illlaginaiTe.

NIETZSCHE

Sou Ulll drama elll gente.

F. PESSOA

Pouco antes de findar o século XIX, Nietzsche empreitarajá o trabalho de des-


centrar o sujeito por intermédio da demolição das categorias psicológicas e gramaticais
que respaldaram sempre a idéia dele, na história oCidental. Para o autor de Ecce homo,
todas as categorias unitárias da pessoa - o eu, a individualidade do slueito singular
304 • A Identidade e a Diferença

- provêm de uma ilusão da identidade pessoal, devida à crença supersticiosa no fato


de que as categorias gramaticais pudessem ser a expressão direta de categorias lógicas,
mentais. Parte da culpa desse espantoso qüiproquó pode ser descarregada na lin-
güística cartesiana, a da Grammaire générale et raisonnée dos iluministas de Port-Royal,
que botaram a circular a idéia de todo em todo disparatada da identidade radical do
pensamento e da linguagem. A redução que eles operavam de toda e qualquer pro-
posição à forma final de uma espécie de hernel sentence universal, que seria; no seu
modo de vel~ a proposição atributiva da forma: Sl~eito (Subst.) + V (ser) + Atributo
(Adj.), teria inspirado a Descartes a "certeza" de que "eu" fosse o sl~eito do verbo
"penso ", quando, na realidade, o que de fato ocorre é que não sou "eu" que penso, são,
antes, os pensamentos que se pensam dentm de mim. Fazendo-o, me levam a conceber o
lugar onde eles se pensam como a sede da minha subjetividade. Assim, segundo
Nietzsche, a crença na gramática traduzia apenas a vontade de "eu" ser a causa dos 'Ineus
pensamentos, quando selia, jJlVvavelinente, mais acertado dizer ser "eu" o efeito deles.
Desse modo, o sujeito, o "eu", o indivíduo são outros tantos falsos conceitos,
que transformam em substâncias unidades e construtos fictícios, entes da razão
que possuem unicamente uma existência lingüística. Em termos atuais, diríamos
que tais palavras não etiquetam mais do que simulacros, personagens interiores
que mascaram o fato de que cada um de nós é "um drama em gente", como viu
Pessoa, uma pluralidade de forças em luta, concorrentes e co-ocorrentes, que se
forjaram um centro arbitrariamente coerente e substancial a partir da sua "rea-
lidade" no espaço da língua e do seu encontro no espaço de um mesmo corpo.
São aproximadamente as mesmas idéias que levam a estética de Mukai'ovski
a pregar o descentramento do sujeito implicado na obra literária. Se no terreno
da filosofia pararracional impressionavam as idéias de Nietzsche, no terreno da
estética imperavam, até o advento de Mukafovski, os ditames da estética idealista
de Kant e Hegel. Seu pressuposto metodológico imediato era que o discurso
literário tinha de ser tratado do ponto de vista do seu destinador. Lidava-se, então,
com uma estética da produção, fundada na intencionalidade subjetiva e pessoal
do autor. Com a introdução, porém, por Mukafovski, da "subjetividade social" do
destinatário coletivo, o público visado pela obra - público esse que incluía, por
que não?, o próprio autor dela - , o ponto de vista que preside à construção do
significante e do significado da obra faz um giro copernicano e vai se situar,
primeiro, em algum lugar entre o escritor e o leitor, para fixar-se a seguir no posto
desse último, insinuando a construção de uma estética da recepção.
Assim, a teoria funcionalista de Mukafovski opera a objetivação da obra,
nela internalizando a subjetividade do leitor. Uma vez que esse leitor ideal acha-
se incluído nela, é o leitor~ agora, e não mais o escritor, que responde priorita-
riamente pelo significado do texto literário; o qual tem forçosamente uma deter-
minação social no fato mesmo de exprimir-se ele por signos.- a própria obra, de
o Estruturalismo Funcionalista Tcheco: O Círculo Lingilístico de Praga • 305

resto, é considerada sígnica só e enquanto mediadora entre as consciências dos


diferentes membros de uma mesma coletividade.
É a condição sígnica da obra, portanto, que assegura um mínimo de inteli-
gibilidade aos conteúdos dela, fundando-a, a essa inteligibilidade, no fato da sua
transmissibilidade e da sua compreensibilidade, da compreensibilidade, pelo
menos, de um conteúdo mínimo comum, partilhado.
Esse conteúdo mínimo compartilhado está constituído, pensa Mukarovski, de
um contexto comum e corrente, apreensíveis na forma das manifestações sociais em
que ambos, escritor e leitor, se acham mergulhados, como participantes das séries
filosófica, política, econâmica etc., do mesmo processo social. São os valores embutidos
nessas séries que constituem a simulação dos "alores semiológicos objetivos do discurso:

o eu, o sujeito que em toda arte e em toda obra aparece de algum modo, ainda que diver-
samente, não se identifica com talou qual indivíduo concreto dotado de corpo e alma, nem tampouco
com a individualidade do autor. Este é o ponto em que se concentra e em relação ao qual está
ordenada toda a estrutura artística da obra, sobre a qual, isso não obstante, se pode projetar qualquer
personalidade, tanto a de um autor como a de um destinatário (Mukal'ovski, 1948, p. 13).

o Descentramento do Sujeito no Ato Comunicativo:


O CaTáteT A ntitético do Diálogo

Eu não sou eu nem sou o outro;

sou qualquer coisa de intermédio,


pilar da jJonte do tédio,
que vai de mim para o outro.

SA CARNEIRO

Dentro em meu pensamento


Há tanta contrariedade
Que sento (sinto) contra o que sento,
Vontade e contravontade.
BERNARDII\! RIBEIRO

Bem longe estamos, agora, da tradição idealista da estética tradicional. No


parecer de Broekman, vai surgir aqui um tema que nos porvindouros anos se
transformará no ponto médio dos debates em torno do estruturalismo: o tema
do descentramento do sujeito. De nossa parte, estamos convencidos de que,
reatando nisso, em outros termos, com a dialogicidade inerente·à linguagem pri-
306 • A Identidade e a Diferença

meiramente vista por Saussure e em seguida desdobrada, em relação à obra literária,


por Tinianov e mais que todos por Bakthin, essa será a contribuição capital de
Mukai'ovski para a construção de uma estética estrutural.
Gizada em seus contornos nos anos 40, o tema do descentramento do sl~eito
constituía um avanço notável para a época, mas ficou, infelizmente, em grande
parte inexplorado. Sentimos, todavia, que ela contém o embrião de uma teoria
que devidamente desenvolvida permitiria aos estudos semiolingüísticos de hoje
sair do impasse em que se encontram desde Saussure e Jakobson com a con-
cepção de um percurso da comunicação linear, unidirecional e de sl~eitos pola-

rizados, que se supõem interagentes como atores isolados, quando se sabe, desde
Whitney e, paradoxalmente, passando por Saussure eJakobson, tanta vez respon-
sabilizados pelo esquema da teoria individual da comunicação, que tudo na língua
é coletivo - aí incluídas, em primeiríssima plana, a comunicação e a significação.
O fato, porém, é que Mukafovski percebe que não se pode mais pensar na
comunicação como um fenômeno processado de um e outro lado entre sl~eitos

estanques, o que seria supor que a comunicação pudesse ocorrer entre sujeitos inco-
municantes. Tais sl~eitos psicológicos, antidialéticos, solitários e estranhos, no fundo,
um ao outro, já que não se ligam por nenhum princípio de reciprocidade nem
interagem por ajustamentos mútuos às imagens que vão construindo de si mesmo e
do outro, no decorrer de sua conversação (estamos glosando em nossas próprias
palavras o que pensamos ser o pensamento do sábio tcheco), estão ausen tes do modelo
de comunicação mukarovskiano. Na tese dele se esfuma o conceito idealista de um
sl~eito "subjetizado", dotado de um ponto de vista soberano, autoritário dono da
verdade, a externalizaruma mensagem quejá estaria de fato de antemão feita e pronta
em sua mente, inerentemente investida de um sentido - e apenas um - imutável,
perene, que caberia ao leitor nunca reconstnlÍr nem interpretar (o privilégio da inter-
pretação do enunciado era reserva pessoal do enunciador, seu auctOl; e, por isso, o
único dotado de auctoritas para dizer o que ele queria dizer), mas unicamente pinçar.
No fundo, o conceito mukarovskiano da plurifuncionalidade do texto literário
não aniquila a individualidade. Mas ele concorre, pelo menos, para atenuar a
ênfase até então concedida à individualidade do enunciador, ao efetuar a slia
recondução para a periferia de um palco carente de centro, e no qual assomam,
agora, outras individualidades dotadas de igual valor-atores manifestantes todos
do actante único "enunciatário", quer se manifeste ele nas figuras localmente
diversas dos editores, dos críticos, dos leitores, dos marchands, até mesmo de grupos
que, como o formado pelas escolas literárias, pelas gerações ou correntes artísticas,
possam constituir uma individualidade mais ou menos homogénea. Impossível
encarar-se em face de tudo isso o indivíduo singular como um au tor isolado, único
responsável pela "sua" obra, assim como não se pode mais conceber, depois de
Marx, qualquer prática social como a peifonnance de um Sl~~itO singular, o que é
o Estruturalismo FU71cio71alista Tcheco: O Círculo Lingüístico de Praga • 307

fácil de ver quando se tem em conta que a conduta de qualquer indivíduo, na


medida em que repercute necessariamente sobre a esfera de atuação do outro,
possui a condição de uma prática social, quer dizer, de fazer de um sujeito plural.
Não cabe, outrossim, por motivos análogos, continuar a supor que se possa
estudar uma série qualquer de fenômenos sociais separada de todas as demais. Como
os artistas de todos os tempos, em especial os poetas, insistiram em proclamar:

Um homem não é nunca um indiyíduo, é, antes, um uniyerso singularizado por seu nas-
cimento, designado, a yida toda, pelo nome que se dá a essa singularização; ora, esse nome se
reconhece como pro\'isório e como signo. Esse reconheéimento é realizado no diálogo.

É O que escreve Mukarovski em um trabalho sobre o diálogo, feito em 1940.


Em um ensaio mais antigo ainda, sobre o discurso dialógico - Dialogisceslwi ReGi
- , L. P.Jakubinski classificara,já, o diálogo e o monólogo entre as linguagens fun-
cionais, mostrando que o emprego de um ou outro é determinado por um ato de
seIeção entre dois complexos lingüísticos diferentes. Trata-se de uma seleção do
enunciadOl~ evidentemente. Mas a escolha de uma ou outra modalidade de dis-
positio não é inteiramente li\Te, nem ditada só pela intenção consciente do enun-
--- tipo de escolha ou de
ciador, que talvez nem se dê conta de estar operando algum
contrato enunciativo ao monologar ou dialogar. Trata-se sempre de uma opção
efetuada na presença do outro, do enunciatário, que de algum modo a condiciona.
Diálogo e monólogo (que, por outro lado, podem ser compósitos, na medida
em que podemos ter tanto diálogos com caráter monológico quanto monólogos
dialogais) são comportamentos sociais que se exprimem pela linguagem: eles
vinculam modalidades de linguagem com modalidades de pautas de conduta
extralingüísticas, e assim devem ser estudados.
Muka'fovski está advertido disso. Destaca que predomina no diálogo a relação
de reciprocidade (a expressão é nossa, não dele), que leva à mútua conversão dos
dois interlocutores, um no outro, quando, ao findar-se um turno e iniciar-se outro,
sucede o revezamento de seus papéis de falante/ouvinte:

A polaridade entre o eu e o tu se destaca de tal modo no diálogo que nele se intercambiam


constantemente seus papéis - daquele que fala e daquele que escuta; a mútua relação entre os
interlocutores se experimenta portanto como uma tensão que não está de fato ligada a nenhuma
das duas pessoas que falam, senão que existe realmente entreelas [... ] (ap1ldBroekman, 1974, p.103).

E aí temos, de novo, a dessubjetivação dos atares do diálogo, sua redução a


ponto médio encarregado de realizar, na instância abstrata de um esquema
semiótico, um simples papel, de antemão previsto, de falante (primeira pessoa)
e/ou de ouvinte (segunda pessoa), por turnos revezados, um diante do outro.
308 • A Identidade e a Diferença

Interpretando, como temos feito, por paráfrases, o pensamento dele, pode-


ríamos talvez dizer que, para Mukal'ovski, a constituição do diálogo escapa de certa
forma da intenção subjetiva do locutor e do alocutário. Os sujeitos falantes estão
descentrados na medida em que o sentido do que falam se insL:'l.la no "entre" que
o ato de falar funda entre eles. Assim, o sentido do que eles falam na sua parole é falado,
na verdade, pela langue quefalam. Nem por outra razão, Broekman acresce, no estudo
que citamos, que esse "entre" é um elemento capital da filosofia dialógica, tal como
a desenvolverão posteriormente F. Ebner, F. Rosenzweig e M. Buber. A condição
prévia para compreender a estrutura do diálogo é o descentramento dos sL~eitos

comunicantes, a abertura entre eles do fosso-ponte desse "entre" - claras e impor-


tantes antecipações de toda uma problemática intertextual (outra vez o intel~ o
"entre"), que vai interessar, a partir dos anos 70, aos que se dedicam às teorias
textuais, às análises do discurso, à comunicação de massas, à pragmática e ãsemiótica.
Outra antecipação dos mesmos temas, desta vez virada para as atuais aborda-
gens de certa modalidade "realista" de pragmática, situa-se na chamada que Mukafovski
faz para o papel representado no ato interlocutivo pela situação de ancoragem dos
interlocutores, no ato da enunciação. Para ele, essa situação acaba sempre por penetrar
no componente lingüístico do diálogo, pouco importa. se ela vem ou não a ocupar
aí, na própria cOlwersação, um posto de primeira ou segunda plana. O fato é que,
em que pese subtrair-se ao domínio consciente dos interlocutores, que podem optar
por falar ou por não falar da situação em que se encontram conversando, a própria
situação se encarrega de "tomar a palavra" no interior de cada comunicação.
Um último destaque, nessa instigante e por vezes provocadora temática de
Mukafovski, é o que ele traz à tona ao tratar da construção semântica do texto.
Na enunciação dialógica, diz ele, diferentemente do que ocorre na comunicação
monológica, ocorre uma interpenetração de diversos contextos, que o diálogo se
encarrega de integrar, homogeneizar e resolver, por meio da atribuição a eles de
uma certa orientação vetorializada para dado rumo de sentido. No seu modo de
ver, essa unificação semântica é dada ao discurso por sua matéria, vale dizer, pelo
tema da comunicação.
Numa sumaríssima revista de quanto ficou dito até aqui, nesta segunda parte,
vimos que Propp, assim como os demais formalistas que se preocuparam com a
narrativa, distinguiu nela dois níveis, o nível da trama (ou da narração) e o nível da
fábula (ou da história narrada). Propp dedicou-se mais ao exame do nível do narrado,
com a proposta de seu modelo da seqüência fUrlcional das ações, ao passo que os
autores que depois dele resenhamos, Bakhtin, Jakobson e Mukafovski, preo-
cuparam-se, antes, com o nível da narração.
É tempo de voltarmos a considerar, agora, que prosseguimento teve o estudo
da história narrada, na seqüência dos tràbalhos estruturais iniciados por Pro pp.
A isso dedicaremos o restante desta segunda parte.
10

o ESTRUTURALISMO SEMIOLÓGICO FRANCÊS:


LÉVI-STRAUSS, BREMOND E BARTHES

o beati Sesti,
FitaI' SUlIlUIa brevis sjJelll '1105 vetat i'llc!loare 10ng(lIIl...
HORÁCIO

o ESTRUTURALISMO SEMIOLÓGICO FRANCÊS: RUPTURA E TRADIÇÃO

Dans 11'5 sciences du langage,


011 jJeltl faire remonteI' II' jJoint de (lue
structuraliste aux travaux de Saussure.
PETITOT-COCORDA

Como lembramos na epígrafe anteriormente citada no capítulo 9, Tinianov


e Jakobson haviam declarado em 1928, ao comprovar o encerramento das ati-
vidades do Círculo de Moscou e da OPOIAZ, "é preciso passar do formalismo para
o estruturalismo" (Jakobson, 1984, p. 22).
Pendores proféticos à parte, essa frase assinala:

a. Que o marxismo vencera o primeiro' round de um embate Cl~O trans-


correr parecia encomendado para dar o melhor exem.plo de aplicação
310 • A Identidade e a Diferença

prática ao princípio marxista-Ieninista do desenvolvimento dialético


da história; assim, no confronto entre marxistas e estruturalistas (na
época mais conhecidos como ideologistas e formalistas), os primeiros
venceram no momento da tese (1930-1960), mas foram batidos no
momento histórico seguinte, da antítese (1960-1985); tudo faz crer que
ambos se somem num mesmo complexo teórico a partir daí, quando
a era Gorbachev parece ter iniciado, com a perestroiha e a glassnost, o
momento da síntese.
b. Que, no que condiz com o desenvolvimento do estruturalismo, esses
fatos demarcam com clareza o instante da conclusão da fase formalista
(que incluía russos e tchecos) coincidente com o instante de abertura
da fase do estruturalismo semiológico, de recorte mais nitidamente
francês, agora; e, contrastando com essa percepção da descontinuidade
aparente, que se identifica com os instantes de tomada de consciência,
c. que nenhum dos dois signatários da exortação ou da profecia acima,
nem Tinianov, nemJakobson, se dava conta da existência de uma con-
tinuidade imanente, própria à dinâmica do movimento estrutural, que
continuava viva por baixo mesmo da sua descontinuidade aparente; se
não, que sentido poderiam ter as suas palavras que aludiam à passagem
de uma coisa para outra? Tivesse algum deles, na prática, aquela mesma
visão dialética da história que conheciam tão bem na teoria, teriam per-
cebido, de certo, que o que lhes parecia encerrar um ciclo não era mais
do que uma volta do parafuso para uma ulterior projeção evolutiva
dele, aquela precisamente que demarcava o momento de retorno do
. pêndulo, na passagem da fase da tese para a fase da antítese.

E, de fato, o formalismo funcionalista tcheco desenvolvera, como subli-


nhamos, o pensamento estrutural liberando-o do "construtivismo" de seus prede-
cessores do Círculo de Moscou e da OPOIAZ. Tinha sido ultrapassada, por exem pIo,
com a obra de Mukafovski, a etapa da consideração exclusiva dos mecanismos lin-
güísticos, peculiarmente verbais, da literatura, por intermédio da aplicação do
modelo pilo to da semiolingüística geral à estética vista como fenômeno abrangente
de todo o fazer social, objeto enfeudado, já, às especulações "científicas" da
sociologia, da psicologia, da política, da economia, da etnologia, da história, mas
território vedado, ainda, aos especialistas das áreas humanísticas - com exceção
da lingüística - , quer dizer, aos teóricos das comunicações, das artes, da teoria
da literatura, da retórica etc., Cl'U0 espaço de exercício era reservadamente o das
cogitações abstratas eruditas, guiadas pela sensibilidade, pela intuição e pelo gênio
peculiar do praticante do "beletrismo" retórico, voltado para a literatura "sorriso
da sociedade".
o EstmturalislllO Semiológico Francês: Lévi-Strauss, BTelllond e Banhes • 311

Mal começara a produzir seus primeiros frutos na ordem da estética, e da


semiótica da literatura, o estruturalismo tcheco fora abruptamente engolfado na
sucessão de crises e de convulsões de toda ordem que marcam a década de 30: o
craek da Bolsa de Nova York, com a recessão que se lhe seguiu, a derrocada da Liga
das Nações, solapada pelo ridículo resultante da ópera bufa montada por Mussolini
ao invadir a Etiópia, os "anos negros" dos expurgos stalinistas, a irresistível ascensão
dos totalitarismos de esquerda e de direita por toda a parte, na Europa, na Ásia e
naAmérica Latina- Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Seys-Inquart, Kemál Pachá,
Pilsudski, Getúlio Vargas, o austro-fascismo, a esquerdização da Estónia, da Letônia
e da Bulgária, a escalada do militarismo autoritário noJapão, fatores, todos, da per-
turbação g~ral dos esp~ritos, da fra2'161entacàfLf' r1::L.rp_rJ1):PX\'Í"'tid,..~,Y<f'Jer-7â,(.ufl'àc

alianças entre nações até ontem incompatíveis, foram todos fenômenos inter-
ligados, de Cl.~a convergência resultou a Segunda Guerra Mundial.
Tamanha agitação não deixou vagares para reflexões teóricas e especulações
metafisicas. Terminada a conflagração que varreu a face da Terra e mudou o mapa
do mundo, os anos que se seguiram foram dedicados em toda a parte à recons-
trução fisica e cultural dos países atingidos.
Assim, o refluxo da maré estruturalista, bruscamente interrompida na altura
em que melhor se desenvolvia o trabalho dos pragueltses, veio no momento
pendular da antítese dos anos 50, prenunciadojá no semi-estruturalismo de Sartre
e de Merleau-Ponty, no estruturalismo psicológico deJ. Piaget, genético de Goldman,
filológico de Dumézil e, logo depois, no estruturalismo já francamente semio-
lógico dos anos 60, com Barthes, Lacan, Althusser, Foucault, Lévi-Strauss, Kristeva,
Bremond, Greimas.
Menos do que um método e mais do que uma hipótese de trabalho, o que
essa gente tinha em comum era uma irritante paixão pelo rigor cientista e uma
abstrusa terminologia que, juntas, faziam ferver de cólera os arraiais existencia-
listas e marxistas. O fato é que naquelas eras podia-se, ainda, conferir a pertença
de um pensador a um sistema, confiar na sua adesão a um epistema e julgar de
sua atração por uma moda por meio do tipo de linguagem e/ou de metalinguagem
que ele utilizava; como diria, anos depois, Barthes respondendo à pergunta ine-
vitável nos idós de 50:

Que é o estrnturalismo? Não é uma escola, nem mesmo um movimento (pelo menos ainda
não) porquanto autores a quem se aplica ordinariamente tal designação não se sentem, de forma
alguma, ligados entre si por uma solidariedade de doutrina ou de combate. [oo.] É necessário, decerto,
remontar a pares como os de significante - significado e sincronia - diacronia, para termos uma
noção do que distingue o estruturalismo de outros modos de pensamento; primeiro, porque remete
para o modelo lingüístico, de origem saussuriana, e porque; no estado atual das coisas, a Iingüística
é, ao lado da economia, a própria ciência das estruturas; segundo, de uma maDeira mais decisiva,
312 • A Identidade e a Diferença

porque parece implicar uma certa reyisão da noção de história, na medida em que a idéia de sincronia
(embora em Saussure ela seja um conceito sobretudo operatório) autoriza uma certa imobilização do
tempo, e a de diacronia tende a representar o processo histórico como uma pura sucessão de formas.
Este último par é tanto mais distintiyo quanto parece realmente que a principal resistência ao estru-
turalismo é hoje ele origem marxista, e que é em torno da noção de história (e não de estrutura) que
ela se polariza. Como quer que seja, é proyayelmente no recurso sério ao léxico [oo.] que é preciso yer
em elefinitiyo o sinal falado do estnlturalismo: observe-se quem emprega significante e significado,
sincronia e diacronia e saber-se-á se a visão estnlturalista está constituída (1968, pp. 19-20).

Para a criação de uma teoria da literatura intrínseca, nos moldes do estru-


turalismo semiológico francês, foi decisiva a conjugação de uma boa quantidade
de fatores, dentre os quais:

a. O rechaço da crítica universitária erudita, "convertida em uma Estética


de motivações externas" (idem, ibidem) ao texto literário, e, na alter-
nativa, fundada, conforme à prática escolar da analyse des textes, na
tradição do que chamamos, na primeira parte, de "leitura filológica",
recheada de uma impressionante mole de informes, dados e notas
impressionistas, geoeconõmico-históricas, sociopolítico-psicológicas
etc., que faziam da obra de arte pretexto para disquisições brilhantes,
mais encaminhadas à decifração de enigmas da história social por meio
do livro, neste não vendo mais do que uma espécie de epifenõmeno
da evolução de uma comunidade ou da personalidade de algum modo
excepcional do seu autor.
b. A paulatina aceitação (que penetra e se visibiliza lenta mas sensivelmente
em todo o campo das disciplinas que estudam as diferentes práticas
sociais) do princípio epistemológico de passar a considerá-las diferen tes
modalidades de sistemas simbólicos, sistemas modelizantes secundários,
como os chamarão os semiolingüistas da Escola de Tartu, criados à
imagem e semelhança dos sistemas modelizantes primários, que são as
línguas naturais. Trata-se, em síntese, aqui, com um fenômeno que
acarreta a construção da semiologia não só como um sistema elaborado
à base do modelo da lingüística geral, mas, mais profundamente - o
que era, efetivamente, abusivo, na medida em que semiótica e lingüística
não se identificam mais do que a semiótica e a matemática, ou a lin-
güística e a retórica, digamos- como, puramente, uma outra disciplina
lingüística (v. g. a fonologia, a morfologia, a sin taxe), que como tal
deveria ser estudada.
c. A aplicação promovida por Lévi-Strauss, desde 1950, das técnicas da
fonologia estruturaljakobsoniana (J akobson influenciava diretamente
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 313

Lévi-Strauss desde 1949, conforme se vê em As Estruturas Elementares


do Parentesco, mas ambos só se avistaram pessoalmente no Congresso
de Antropólogos e Lingüistas da Universidade de Indiana, em 1952)
para o exame dos aspectos estruturais dos sistemas de parentesco e
dos mitos indígenas.
d. A tradução francesa, de Nicolas Ruwet, dos Essais de linguistique générale,
deJakobson, aparecida em Paris, em 1963, bem como o excepcional
aumento do número de edições francesas do COlas de linguistique générale,
de Saussure, a partir de 1964.
e. A tradução de textos até aí confinados em línguas eslavas, empreendida
por Tzvetan Todorov, primeiro - de que resultou o importantíssimo
Teoria da Literatura dos Formalistas Russos - , e, logo depois, por Julia
Kristeva (a tradução da Teoria, por Todorov, sai em 1965). .
f O aparecimento, em 1966, da Sémantique structurale, de A.]. Greirrias.
g. A publicação, no mesmo ano de 1966, da tradução da Morfologia do
Conto Nlaravilhoso, de Propp, levada a cabo por Marguerita Derrida,
Claude Kahn e T. Todo rov.
h. A tradução, em 1970, de A Poética de Dostoiévski, de M. Bakhtin, apre-
sen tada por J ulia Kristeva.
z. O esforço de divulgação, levado a efeito nos anos 60, por um conjunto
de jovens escritores influenciados pelas idéias expressas em todas essas
obras, dos trabalhos dos formalistas russos e dos estruturalistas tchecos,
reunidos em torno de revistas como Tel Quel, Ciitique, Change, Communications,
Poétique, LangueFranraisee Semiotica, prestigiadas por editoras como du
Seuil,. de Minuit, Hachette, PUF (Presses Universitaires de France),
Larousse, Klincksieck, Mamme, principalmente.
y. A constituição, devida ao apoio de Lévi-Strauss, de uma seção semio-
lingüística no Laboratório de Antropologia Social da École Pratique
des Hautes Études e do College de France de uma equipe de pesquisas
semiológicas, em 1966, cujo conjunto de investigações se repartiu em
1. teoria s'emiótica (A.]. Greimas,]. Kristeva, Ch. Metz, T. Todorov),
2. dimensão diacrônica (Greimas e R. Barthes); 3. semiótica e meta-
linguagens científicas (O. Dunot, Y Gentilhomme, Ch. Metz, B.
Pottier); 4. semiótica das formas e dos objetos literários (Greimas,
Barthes,].-Cl. Coquet, G. Genette,]. Kristeva, T. Todorov); 5. semióticas
particulares (Barthes, Greimas,]. Kristeva, Pottier, C. Schmidt, T.
Todorov, M. Lacoste, Ch. Metz).

A tais nomes vieram somar-se, pouco depois, filósofos como Foucaulte Derrida,
romancistas como Ph. Sollers eJean Ricardou, antropólogos e etnólogos como Lévi-
314 • A Identidade e a Diferença

Strauss e Lucien Sebag, psicanalistas como Lacan e Jacques Alain Miller, marxistas
como Althusser, Maurice Godelier e Alain Badiou, teóricos e divulgadores como U.
Eco,]. Parain-Vial e]. B. Fages - em resumo, nenhum valor desta grande geração
de pensadores, certamente a mais poderosa e instigadora que teve a França em todo
o século XX, ficou indiferente ao advento do estruturalismo e da semiolingüística,
nos anos 60,já que em face dele todos os intelectuais franceses foram chamados a
se pronunciar, pró ou contra, excluída qualquer possibilidade de neutralidade.
Por extensa e profunda que tivesse sido, contudo, essa influência, ela não
durou mais do que vinte anos (o que, considerando que as modas intelectuais
mudam, habitualmente, na França, como as modas indumentárias, é, já, uma
proeza): por volta de 1980, alguns de seus maiores representantes ou haviam
falecido (Barthes, em 1980, Lacan, em 1981, Foucault, em 1984, Braudel, em
1985) ou silenciado (Derrida e Lévi-Strauss, por exemplo, há muito não apareciam);
entrementes, os que sobreviveram e continuaram na ativa enveredaram por
caminhos outros, já francamente semióticos (como os da Escola de Paris, sob a
chefia de A.]. Greimas), ultrapassando, de vez, o estruturalismo.

LÉVI-STRAUSS: TRANSPOSIÇÃO DO MODELO LINGÜÍSTICO PARA A


LEITURA ESTRUTURAL DO MITO

A atividade inconsciente do eSjJúito


consiste em imjJorjonllas a 11m conteúdo.
LÉVI-STRAUSS

Lévi-Strauss (nascido em 1908) escreveu, a propósito do período juvenil de


sua formação intelectual:

o período 1920-1930 foi o da difusão das teorias psicanalíticas na França. Através delas eu
aprendia que as antinomias estáticas em torno das quais nos aconselhavam a construir as nossas
dissertações filosóficas e mais tarde as nossas lições - racional e irracional, intelectual e afetivo,
lógico e pré-lógico - se reduziam a um jogo gratuito. Primeiramente, além do racional existia
uma categoria mais importante e mais válida, a do significante, que é a mais alta maneira de ser
do racional, mas da qual os nossos mestres (mais ocupados sem dúvida em meditar no Ensaio sobre
os Dados Imediatos da Consciência do que no Ourso de Lingüistica Geral de F. de Saussure) não pro-
nunciavam sequer o nome. Em seguida, a obra de Freud revelara-me que estas oposições não o
eram verdadeiramente, pois que são precisamente os comportamentos mais afetivos, as operações
menos racionais, as manifestações declaradas pré-lógicas, que são ao mesmo tempo as mais signi-
ficantes (ajJ1ld Simonis, 1969, p. 13).
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Bmthes • 315

E: "a leitura de Ivfarx transportava-me [... ]: todo um mundo me era revelado.


Desde então esse fervor jamais se desmentiu. [...] Continuando Rousseau, e sob
uma forma que me parece decisiva Marx ensinou que a ciência social também se
constrói sobre o plano dos acontecimentos" (idem, p. 14).
Os nomes que Lévi-Strauss associa nessas recordações, de Freud, Saussure
e Marx, explicam-se mutuamente no contexto em que são evocados, como os
daqueles sábios que se unem pelo labor comum de efetuar uma sondagem que
penetrava fundo na aparência ocasional e local dos fenõmenos com que lidavam,
que era o lugar em que se localizavam as antinomias referidas pelo autor de Le
Cru et le cllit, racional e irracional, lógico e pré-lógico etc., para atravessando-as, ir
em busca quer da essência - entendida como modo de existência, modo de ser,
por oposição ao parecer fenomênico - , quer em busca da função de determinado
componente dos fenõmenos. A menção que Lévi-Strauss faz à categoria do signi-
ficante, afirmando-o como "a mais alta maneira de ser do racional", é sintomática
a esse respeito: há aqui, naturalmente, a projeção do pano de fundo da lingüística
Cl~o objeto de estudo, os discursos da comunidade, Lévi-Strauss considera homólogos
ao objeto de estudo da etnologia e da antropologia - os discursos práticos e
míticos de uma cultura.
Nesse contexto, a própria utilização do termo significante, não bastasse a
expressa citação do nome de Saussure, denuncia a importância de que aos seus
olhos se reveste o autor do Cours. Dele, Lévi-Strauss herdará por toda a vida o
vezo de pensar por dicotomias dinâmicas, num percurso dialético em que um
termo médio - o mediador de tantas análises suas do mito - fará as vezes de
operador da síntese entre os funtivos contrários ou contraditórios de partida.
O procedimento prático que vai, todavia, tornar operatório o acervo todo
das posturas teóricas e doutrinárias da lingüística geral de Saussure, esse, Lévi-
Strauss vai buscá-lo emJakobson, com quem se encontra nos Estados Unidos,
onde ambos então lecionavam. É por intermédio do lingüista russo, semeador
incansável de novas perspectivas c horizontes, que Lévi-Strauss vem a entrar em
contato com os procedimentos de substituição e· de comutação, da análise por
níveis e da segmentação de fragmentos isotópicos suscetíveis de serem reduzidos
à condição ele membros alternativos do mesmo paradigma - de todo o aparato
tecnológico, enfim, ela fonologia estrutural. Do mesmo Jakobson, Lévi-Strauss
receberá, também, as primeiras informações acerca da então desconhecida
lVI01jologia do Conto lVIaravilhoso, de Propp, ainda inédita nas línguas ocidentais.
Dessas duas vertentes, uma teórica, outra prática, da semiolingüística, Lévi-
Strauss recebeu, portanto, o impulso determinante dos rumos que vai imprimir
daí por diante à sua carreira. Elas como que lhe revelam, enfim, a sua própria
vocação. Foi, em primeiro lugar, por intermédio 'de Les Structllres élémentaires de la
parenté (1949), guiadas já por uma metalinguagem e uma metodologia lingüísticas
316 • A Identidade e {{ Diferença

adaptadas e não muito seguras, que os procedimentos da análise estrutural vão


ingressar no domínio até então alquímico da etnologia e da antropologia, refundindo-
o por completo e, por via dele, na área mais ampla de todas as ciências humanas
e sociais, provocando, na condição de novo modelo científico de descrição, uma
ruptura epistemológica com as fases anteriores dessas disciplinas, que a partir daí
serão, bem ou mal, estruturais.
Igualmente determinante foi o conhecimento de Propp, Cl~a obra, traduzida
para o inglês em 1958, tinha sido já estudada por Lévi-Strauss em 1960, ocasião
em que escreve pela primeira vez sobre a i\1mfologia do Conto iVlaravilhoso. Pouco
importa não tivesse sido a sua leitura a que o autor do livro desejaria que fosse; o
fato é que esse trabalho sobre a narrativa mágica russa serviu para confirmá-lo na
necessidade de distinguir, em seu objeto de estudo - a narrativa mítica - , os
dois níveis da manifestação -nível das unidades variáveis, do fazer ao modo figu-
rativo, ao modo do parecer, e o nível da imanência, em que se situam as unidades
invariantes, do fazer tematizado, ao modo do ser. Neste último é que ele situará
os mitemas. Homologava-se, assim, a prática da fonologia estrutural, que por meio
do nível do alofone, da variante no plano da manifestação, isolava, subjacen-
temente, o nível do fonema, invariante do sistema da Zangue.
Adotando os métodos e a tecnologia estruturalista, Lévi-Strauss passará a
ler os mitos como construções narrativas, doravante convicto de que

o mito faz parte integrante da língua; é pela jJarole que ele é conhecido; ele depende, em suma, do
discurso (ajmd Scarduelli, 1971, p. 67).

Ao descascar, assim, a estruturação verbal aparencial e lingüística do mito,


Lévi-Strauss deixa a descoberto, subjacente a ela, sua estruturação narrativa. Ao
fazê-lo, não ignora nem por um instante que o mito, enquanto formação his-
tórico-cultural de características próprias, transcende o terreno das línguas
naturais (Lévi-Strauss, 1970, p. 228); ocorre, simplesmente, que não é isso que
o preocupa no instante em que enceta a análise estrutural do mito,já que não
deseja, como explana,

mostrar como os homens pensam dentro dos mitos, mas como os mitos se pensam dentro dos homens,
e sem eles o saberem (ajJudSimonis, 1969, p. 206).

Para Lévi-Strauss não há, preliminarmente, diferença apreciável entre os


princípios que norteiam a construção do mito e os princípios de organização
da língua ou do inconsciente. Assim, descarta ele in limine, ao propor a sua
análise, qualquer explicação genética do' mito, procedendo, nesse particular,
como antes dele havia procedido Propp na iVlorfologia do Conto JVlaraviZhoso (mas
o EstnLturalismo Semiológico Francês: Lévi-Stmuss, Bremond e Banhes • 317

nao na geneticista As Raízes Históricas dos Contos de lVlagia) relativamente aos


contos populares de magia.
Posto isso, como é obrigação do leitor ater-se às regras do jogo que o autor
anuncia previamente que vai jogar - não se julga da correção dos movimentos
do jogo de xadrez com as regras válidas para jogar gamão - , não é justo con-
tinuar a acusar Lévi-Strauss de "desprezar a história", quando ele próprio afirmou,
na sua leçon inaugurale do College de France, que protesta não contra a história,

mas contra uma certa concepção genética e evolucionista que vê nas sociedades as etapas
de lU11 desenvolyimento Cl~o fim seria precisamente a sociedade ocidental do século XX: "sob uma
forma ou ontra, retoma-se a lógica hegeliana do progresso", cada sociedade ilustrando um gran de
. ~
realização da mesma Idéia. E desconhecer, pensa Lévi-Strauss, as diversidades no espaço e as des-
continuidades no tempo (oo.]. É, pois, contra uma dacIa filosofia da História que se ergue Lévi-Strauss,
não contra a História em si (Parain-Vial, 1969, p. 115).

o JVIitema, Unidade NIínima do Mito. Os Eixos Sintagmático


e Paradigmático do NIito

Lévi-Strauss se interessa pelo mito "como narrativa":

A substância do mito não se encontra no estilo, nem no modo de narraçâo, nem na sintaxe,
mas na histólia que é contada (1970a, p. 230).

É a mesma lição de Propp: o mito é uma história dotada de sentido uno e


terminalizado. Mas é pertinente observar que:

1. O sen tido dos mitos não pode ser confundido com o dos seus elemen tos
tomados isoladamente, pois que tal sentido deve resultar do modo
como esses elementos combinados são relacionados, de modo a compor
uma unidade significante.
Já em As Estruturas Elementares do Parentesco, ao detectar que a proibição
do incesto é uma Íluunção negativa universal, que obedece às leis da
cultura, Lévi-Strauss lembra, para explicar essa invariância de regra, a
invariância da relação, enquanto princípio regulador da estrutura: "Este
princípio regulador pode possuir um valor racional sem ser percebido
racionalmente" (1969, p. 117).
2. Como todo ser lingüístico, o texto mítico está formado por unidades
consti tutivas relacionais - os mitemas, na metalinguagem lévi-straussiana.
Os mi temas são unidades do plano de conteúdo, e da ordem sintag-
mática, que se repetem como outras tantas glosas a um mesmo tema,
em relação ao qual se comportam, portanto, como meras variantes.
318 • A Identidade e a Diferença

Devido a ISSO, OS mitemas podem ser associados dentro do mesmo


paradigma de sentido.
3. Não se identificando com as unidades lingüísticas inferiores à frase (o
fonema, o morfema, a lexia ou palavra, o sintagma locucional), os
mitemas devem ser procurados no nível das orações metalingüísticas
que resumem os acontecimentos relatados pelo discurso mítico (observe-
se que se trata, basicamente, do mesmo procedimento de redução
semântica utilizado por Propp na sua iVIOIfologia do Conto Nlamvilhoso).
4. Das observações acima se conclui que os mitemas são orações metalin-
güísticas, produzidas pela interpretação do enunciatário, ligadas entre
si por vínculos explicitáveis como feixes de relações homocategoriais.

No entendimento de Lévi-Strauss, a explicitação das relações só pode ser


feita após a leitura do mito sob a forma daqueles resumos da história, por meio
dos quais um leitor traduz o que ouve em frases ultracondensadas, de modo a clis-
tinguir as relações homo categoriais - que funcionam como variantes do mesmo
paradigma de sentido - das relações hetero categoriais - que funcionam como
variantes de outro paradigma semântico.
As relações pertencentes a um mesmo feixe podem aparecer muito afastadas
entre si no plano linear do discurso que relata a história. Devem-se, por isso, isolar
os dois eixos do relato, o eixo sintagmático do processo em que o mito encontra
sua expressão, figurável na forma de uma linha horizontal, que se lê da esquerda
para a direita, e o eixo das classes paradigmáticas a que se pode reduzir o seu
plano de conteúdo, sendo este concebível na forma de um eixo vertical em que
se superpõerll, de cima para baixo, segmentos homocategoriais, quer dizer, de sig-
nificação afim, da mesma história. Em outros termos, os elementos que aparecem
in pmesentia no discurso se situam sobre a cadeia sintagmática; lidos só sobre esse
eixo, eles parecem quase sempre embaralhados ou sem sentido, mas sua signi-
ficação real emerge - pensa Lévi-Strauss - unicamente depois que organizamos
a leitura de segmentos correlatas, "colunáveis", da mesma história.
Todo o problema da leitura do mito se localiza, pois, na questão de efetuar
a redução de segmentos semanticamente assemelhados da cadeia sintagmática a
"pilhas" de mitemas superpostos, em um eixo vertical de classes de sentido recor-
rentes, homo categoriais.
Lévi-Straussjulga que um dos procedimentos capazes de executar essa operação
- segundo escreve em Le Cru et le ruit-

consiste em recortar a cadeia sintagmática em segmentos suscetíveis de superposição, dos quais se


demonstrará que constituem outras tantas variações ~obre um mesmo tema (ajJud Sperber, 1970,
p.66).
-
o Estruturalismo Sem iológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 319

A LEITURA ESTRUTURAL DO MITO DE ÉDIPO: A CORRELAÇÃO


E O TERMO MEDIADOR

A superposição de fragmentos sintagmáticos sinonímicos ou parassino-


nímicos, que "constituem variações sobre um mesmo tema", torna-se factível
quando se observa que eles devem conservar uma mesma marca semântica na
base, coisa que nos autoriza a tomá-los como equivalentes, do ponto de vista da
sua significação geral. Essa superposição nos permite reorganizar o discurso antes
caótico em colunas em que se localizam feixes de elementos dotados da capa-
cidade de se substituírem mutuamente no mesmo ponto do contexto sintagmático.
Duas colunas que contenham segmentos homocategoriais - ou mitemas -
opostos, de significação contrária ou contraditória entre si - relacionando-se,
portanto, um com o outro como hetero categoriais - constituirão a significação
geral do mito: "Duas cadeias sintagmáticas ou fragmentos de uma mesma cadeia
que, tomados à parte não ofereceriam sentido algum, adquirem sentido pelo
próprio fato de se oporem" (idem, p. 67).
Tudo se passa como se estivéssemos diante de uma seqüência não-ordenada
de números inteiros, do tipo 1, 2, 4, 7, 8, 2, 3, 4, 6, 8, 1,4,5, 7, 8, 1, 2, 5, 7, 3, 4,
5,6,8, e nos pedissem para reagrupar em coluna todos os 1, todos os 2, todos os
3, de tal modo que todos os números iguais aparecessem só na mesma pilha, e as
pilhas, lidas da esquerda para a direita, uma depois da outra, compusessem um
conjunto de seqüências ordenadas sintagmaticamente (horizontalmente). No
caso dos números acima, nosso quadro ficaria assim:

1, 2, 4, 7, 8,
2, 3, 4, 6, 8,
1, 4, 5, 7, 8,
1, 9
-, 5, 7,
3, 4, 5, 6, 8

Se tivéssemos de narrar o mito, não nos ateríamos a essa disposição em colunas, mas leríamos,
antes, as linhas da esquerda para a direita e de cima para baixo. Tratando-se, porém, de compreender
o mito [... ] a leitura se faz coluna após coluna, tomando cada coluna como um todo (ajmd Fages,
1968, p. 89).

Assinalemos, aqui, que Lévi-Strauss introduz nessa passagem um importante


princípio metodológico da abordagem semiolingüistica, ao distinguir entre o fazer do enun-
320 • A Identidade e a Diferença

ciadO'l; autor do discurso - "se tivéssemos de narrar o mito" - , fazer esse da ordem
sintagmática, e o fazer do enunciatário, autor da intelpretação do discurso, interpretação
essa que o converte em um texto- "tratando-se [... ] de compreender o mito" - , que
é da ordem paradigmática.
Se um mito opõe, ponhamos, as isotopias antinâmicas da morte e da vida, todos
os mitemas que digam respeito ao conteúdo morte serão agrupados na mesma
coluna - a de número um, e.g. - em oposição à coluna dois, na qual serão empi-
lhados todos os mitemas concernentes ao conteúdo oposto, vida.
Na análise que leva a efeito, do mito de Édipo, Lévi-Strauss assinala que esse
mito relata, inicialmente, a transgressão das leis sociais concernentes ao parentesco.
É o sentido comum dos mitemas:

1. Édipo casa-se com sua mãe,]ocasta.


2. Antígona sepulta seu irmão, Polinice (apesar da interdição).
3. Édipo mata seu pai, Laio.
4. Etéocles mata seu irmão, Polinice.

Mas, examinando melhor os mitemas acima, vemos que 1 e 2 narram trans-


gressões efetuadas por meio de uma supervalorização do parentesco: um filho deve
amar a sua mãe, mas não a ponto de desposá-la; uma irmã deve sepultar seu irmão,
mas não quando as leis maiores da cidade o proíbem; ao passo que 3 e 4 relatam
transgressões efetuadas por intermédio de uma infravalorização do parentesco: o filho
não deve matar o pai, nem o irmão matar o irmão. Assim 1 e 2 serão agrupados
na mesma coluna um, enquanto 3 e 4 serão postos na mesma coluna dois, pois
que pertencem a paradigmas (no caso, colunas) diferentes.
A leitura paradigmática dos mitemas mostra que essa espécie de narrativa
repousa sobre a estruturação de uma contradição, cuja solução imaginá-ria é dada pelo mito:

o objeto do mito é fornecer llm modelo lógico para resolver llma contradição (Lévi-Strallss, 1958,
p.254).

Essa é a técnica de leitura que Lévi-Strauss aplicará ao mito de Édipo, com


a finalidade de apreender a sua estruturação semântica e de, por conseguinte, ler
o seu texto "subjacente", digamos assim. Para tanto, ele desentranha os mitemas
do relato, reduzindo-os a relações que se disporão em quatro colunas, como adiante:

1. Na coluna afigurarão as relações de parentesco superestimadas (quer


dizer, exageradas).
2. Na coluna b estarão as relações de parentesco subestimadas (i. e.,
degradadas) .
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 321

3. Na coluna c ficam as figuras que negam a autoctonia do homem (o


homem aparece dominando "monstros" que constituem uma repre-
sentação alegórica da Terra).
4. Na coluna d se dispõem os segmentos figurativos que afirmam a
autoctonia do homem (o homem surge dotado de defeitos físicos que
representam outras tantas marcas da sua origem ctónica).

Dispostos em colunas, os mitemas da história de Édipo dão a figura a seguir:

Cadmo procura sua irmã


Europa, raptada por Zeus Cadmo mata
o dragão -
Os Spartói
se exterminam
nnltu,unen te
Lábdaco
(pai de Laio) = coxo
Édipo mata seu pai,
Laio
Laio
(pai de Édipo) = torto
Édipo imola
a Esfinge
Édipo = pé inchado
Édipo esposa J ocasta,
sua mãe
Etéocles mata
seu irmão Polinice
Antígona enterra
Polinice, seu irmão,
violando a interdição

{{ b c d

Figura 14: Leitura Estrutural do Mito de Édipo.

Tomadas duas a duas, ae bde um lado, ce dde outro, essas colunas contêm
um conjunto de traços que sao ao mesmo tempo parcialmente iguais e par-
cialmente diferentes:
322 • A Identidade e a Diferença

1. a e b reúnem segmentos que são iguais no respeitante à menção de


parentes consangüíneos e são diferentes no que diz respeito ao tipo de
relacionamento passional existente entre eles. Os mitemas de a exprimem
relações exageradamente íntimas, reportando-se a um amor sexua-
lizado entre parentes consangüíneos, ao passo que os mitemas que
figuram em b contêm relações passionais de valor inverso, negativas
(do domínio do ódio).
2. c e d reúnem segmentos iguais relativamente à presença, neles, de ele-
mentos ctônicos, ligados à Terra: o dragão e a esfinge, em c, os defeitos
físicos no caminhar, tomados como marcas da origem terrestre do
homem, em d: as duas colunas contêm segmentos diferentes no que
tange ao predomínio do humano sobre o "terrestre", em c - homens
que matam "monstros" - , contraposto ao predomínio do terrestre
sobre o humano, em d - o terrestre inflige a sua marca no homem,
estigmatizando-o como fisicamente defeituoso.

Organizam-se, assim, três diferentes tipos de relações:

1. A relação a: b, que focaliza o parentesco consangüíneo entre os atores


míticos, significa o fato de que o parentesco surge em decorrência da
união sexual entre o homem e a mulher.
2. A relação c: d, que focaliza um parentesco ctônico entre os atores do
mito, significa que o parentesco deles decorre da comum origem ter-
restre de pais e filhos.
3. A correlação a: b:: c: d (correlação = uma relação que se estabelece entre
duas relações anteriores), que focaliza uma contradição insuperável, eis
que o parentesco surge afirmado aí ora como uma decorrência da origem
sexual do sistema de parentesco - afirmado na relação a: b-, ora, ao
contrário, como uma decorrência da origem não-sexual, mas ctônica,
terrestre, do mesmo sistema de parentesco (conforme a relação c: dJ.

O exame dessas relações permite a Lévi-Strauss concluir que o mito de Édipo

exprimiria a impossibilidade em que se encontra uma sociedade que professa a crença na autoctonia
do homem [... ] em passar dessa teoria ao reconhecimento do fato de que cada um de nós nasceu,
realmente, da união de um homem com uma mulher (1970a, p. 237).

A correlação finalmente produzida, a: b:: c: d, será lida, pois, do seguinte


modo: "a superestima do parentesco consarigüíneo está para a sua subestima assim
como o esforço para escapar à autoctonia está para a impo~sibilidade de fazê-lo".
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 323

Tal correlação exibe, assim, um impasse cultural, uma mudança de sistema


axiológico, dado na forma da incapacidade em que se encontra uma cultura de
solucionar uma das contradições reais que a dado instante aflora nela.
Para que o im passe se supere, requer-se o concurso de uma transformação.
Como nenhuma das duas afirmativas em choque se deixa reduzir diretamente
à outra, é preciso que as duas se comuniquem por uma mediação. Lévi-Strauss
postulará, portan to, a existência de um termo mediador encarregado de avocar a
si a diferença que opõe os dois termos da contradição, neutralizando-a, em
seguida, quer por obra de um "apagamento" de suas diferenças - o que seria
efeito de um mediador que nós, particularmente (não Lévi-Strauss) ,já chamamos
de mediador neutro (da forma nec ute;~ "nem um nem outro") - , quer por obra
de sua articulação conjuntiva num complexo capaz de subsumir tais diferenças
~

como complementares entre si, constituintes solidários, a esse título, da mesma


unidade de nível mais alto - o que, em nossa particular metalinguagem, já
denominamos em outro lugar de mediador complexo - da forma et... et, "tanto
um quanto o outro".
Posto isso, "dois termos entre os quais a passagem parece impossível [serão]
inicialmente substituídos por dois termos equivalentes que admitem um outro
como intermediário" (idem, p. 246).
Adaptando ligeiramente, a nosso modo, a análise que Lévi-Strauss propõe
para um mito Zuni, na qual vida versus morte aparecem como os termos polares
de uma contradição primária, suponhamos que tal oposição, que é de caráter
imanente, surja dada, no nível de manifestação discursiva, sob a forma da oposição
figurativa animal herbívoro versus animal carnívoro.
Suponhamos ainda que, como ocorre no intratexto do mito Zuni em tela,
essa oposição actorial-figurativa, de nível lexical, se deixa decodificar, internamente,
pelo conjunto sêmico de nível semionarrativo:

herbívoro [/animal que/ + /não mata outro animaI! + /não come carne]

carnívoro [/animal que/ + /mata outro animaI! + /come carne/]

Se postularmos, em seguida, que os animais carniceiros se definem pelo


cOl-uun to de semas

carniceiro [/animal que/ + /não mata outro animaI! + /~ome carne/]


324 • A Identidade e a Diferença

verificaremos que os carniceiros possuem um traço dos herbívoros (nenhuma das


duas espécies mata outro animal), associado com traço típico dos carnívoros
(ambas as espécies comem carne). Graças a essa propriedade, os animais carni-
ceiros podem figurar, no interior do mito, como o termo mediador (na nossa termi-
nologia, um termo mediador complexo) entre as duas espécies opostas de animais,já
que ele, tendo em comum traços dos herbívoros e traços dos carnívoros, pode
mediatizar a transformação de um herbívoro em um carnívoro ouvice-versa, o
que seria um modo figurado de manifestar a mediação da transformação temática
da "vida" en1 "morte" (ou vice-versa):

PE ... herbívoro ~ carniceiro ~ carnívoro

PC ...
1
vida ~
1
[ / vida / + / morte /J ~
1
morte

PE ... carnívoro ~ carniceiro ~ herbívoro

PC ...
1
morte ~
1
[ / morte / + / vida /J ~
1
vida

na dependência de cada contexto mítico efetivamente realizado.


Desse modo, é comum que nas culturas ameríndias a contradição entre a vida e a
morte seja jigurativizada na forma da contradição entre o mundo vegetal e o mundo animal
e, em seguida, sob uma formulação mais tênue ainda, numa contradição entre os her-
bívoros e os predadores: "nessa perspectiva 'americana' se coloca a interpretação do
mito de Édipo, onde a contradição está entre a autoctonia do homem, isto é, a con-
tinuidade vegetal do gênero humano, e a negação da autoctonia, ou seja, a suces-
sibilidade das gerações no ciclo discreto dos nascimentos-mortes (Janovic, 1975, p.
XII). É esse entendimento do mecanismo estrutural do mito que Lévi-Strauss
transcreve na fórmula geral: Fx(a) : Fy(b) : : Fx(b) : Fa-l (y), para significar que

todo mito (considerado como o cOl~unto de suas variantes) é redutível a uma relação canônica [... ]
na qual dois termos a e b sendo dados simultaneamente do mesmo modo que duas funções x e y desses
termos afirma-se que existe uma relação de equivalência entre situações definidas, respectivamente,
por uma inversão de termos e relações, sob duas condições: 1ª) que Ulp dos termos seja substituído
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-StraIlss, Bremond e Banhes • 325

por seu contrário (na expressão acima, a e a-I); 2') que uma ilwersão correlativa se produza entre o
valol" dafiulfão e o valor de termo de dois elementos (acima: ye a) (Lévi-Strauss, 1970a, p. 251).

GANHOS TEÓRICOS DO MODELO MÍTICO DA NARRATIVA,


SEGUNDO LÉVI-STRAUSS

Independentemente da "fortuna crítica" do modelo de Lévi-Strauss entre os


etnólogos e os antropólogos - e qualquer que seja a específica valoração que cada
um deles lhe reserve - , é impossível negar a sua importância histórica para a
evolução das técnicas de análise dos relatos, para lá das subespecificações esco-
lásticas com que costumamos dividi-los em "relatos míticos", "de ficção", "históricos"
etc. O fato é que o método de Lévi-Strauss inaugurou uma nova etapa, a etapa
estrutural, tanto para as narrativas que interessam mais imediatamente às ciências
sociais, quanto para os racontos beletristas, que constituem objeto privilegiado da
teoria da literatura, em geral, e, mais especialmente, da teoria da narrativa.
É nesse último aspecto que o modelo de Lévi-Strauss nos importa aqui.
Para o especialista em teoria da narrativa dos anos 60 foram particularmente
notáveis os ganhos obtidos, por meio da técnica lévi-straussiana, para a melhor
compreensão de tópicos como a relação entre o tema e a figura que o exprime
no plano de manifestação, a transformação dos conteúdos da história, a distinção
entre os níveis da manifestação (do parecer) e semionarrativo imanente (do modo
do ser), a obtenção de um esquema correlativo paradigmático, subjacente à for-
mulação sintagmática da narração, a definição implícita da narrativa como um
gênero de discürso encarregado de resolver imaginariamente uma contradição
radical irredutível, originariamente real, anoção de mediação, dentre outras aqui-
sições. O interesse que tudo isso apresenta para o "narratólogo", contudo - com
perdão da má palavra - , se engloba na importância muito maior da possibilidade
de estender a aplicação do modelo de Lévi-Strauss a qualquer outra modalidade
de relatos, dos da literatura, inclusive:

Lévi-Strauss estabeleceu desde 1955 os fundamentos do estudo estrutural dos mitos, ana-
lisando em A1;yt!z ologil] II es 1 (1964), II (1967), 111(1968), e 1V(1971), mais de oitocentos mitos [... ]
Nossa proposta é demonstrar que, se a estrutura mítica pode ser assinalada facilmente nos textos
mitológicos, ela participa também de texlos "não-mitológicos" e, de modo geral, de todos os fenômenos
culturais. A estrutura mítica é uma estrutura do universo mítico que pode manifestar-se de modos
muito variados. Eis porque ela governa, igualmente, os textos bíblicos [... ] (Patte, 1978, p. 78).

Assim como Saussure demonstrara, em seu embrião de semiótica da poesia,


que um mesmo segmento do plano de expressão inicial-um mesmo hipograma,
326 • A Identidade e a Diferença

ou palavra-tema, na sua terminologia - se reitera em dispersão, sob a forma


paragramática de anagramas, nos demais versos do poema, Lévi-Strauss evidencia
que algo semelhante ocorre com o plano de conteúdo da narrativa, que sob a
descontinuidade da expressão reescreve, sem cessar, na forma dos mitemas, um
mesmo feixe de traços de sentido essenciais. Trata-se, sem dúvida, de uma atilada
pré-visão daquilo que Greimas chamará mais tarde de isotopia- uma significação
recorrente, da ordem contextuaI.
Outro mérito do autor de Tristes tropiques foi efetuar a distinção - tal como o
fizera, antes dele, Propp - no interior do relato, entre os dois níveis, o figurativo,
do plano de manifestação do discurso - , no qual se inscreviam as figuras que vimos
há pouco na oposição herbívoro versus carnívoro - , e o nível temático, semionar-
rativo, e daordem do componente semântico, em que /herbívoro/ versus/ carnívoro/
se traduziam em seus valores opositivos como "vida" versus "morte". Foi essa diferen-
ciação que possibilitou a Lévi-Strauss extrair a lógica interna aos relatos míticos, des-
vendável na forma de um esquema correlativo a : b :: c : d, encarregado de fornecer
uma estruturação elementar ao microuniverso semântico do conto sob exame.
Finalmente, deve ser assinalado que, além de definir, Lévi-Strauss operacio-
"füÍí'i2cr1nagt3c·ümile!it"0m.F,,.,ucll1odel(}flJ7 fVJ/aJla.JnitQCQmo relato de uma soluç(]o
imaginária para uma contradição real historicamente insolúvel na vida das sociedades
humanas. Essa conceituação, que constitui para nós, ainda hoje, a melhor resposta
que alguémjá ofereceu para a pergunta "por que o homem constrói narrativas?",
se complementa, finalmente, com o conceito de mediação que o sábio antropólogo
nos brindou, o operador de sentido que nos dá a possibilidade de superar a con-
tradição de origem que motiva a criação de toda e qualquer narrativa.

A LÓGICA DA SINTA,'m NARRATIVA DE BREMOND: AS FUNÇÕES-PIVÕ

ii. chaqlle h07ll7lle vient le 7Il07llent

oú le guide de son étóile


lui jJasse les rênes.
HEBBEL

Ao estudarmos a lVlmjologia do Conto Nlaravilhoso, vimos que, privilegiando


a consideração do eixo das combinações sintagmáticas das funções em detrimento
do eixo das seleções funcionais paradigmáticas, Propp ignorara o papel da lógica
que orienta a organização da série de funções constitutivas do conto canônico. O
estudo comparativo das funções "reais", como escolhas efetivamente realizadas
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 327

sobre o eixo sintagmático, com as funções "atuais", como escolhas realizáveis, dis-
poníveis em competência e ali vigentes como objeto de escolhas equiprováveis,
mesmo quando não-realizadas de fato, posteriormente, representa uma conquista
que a teoria estrutural da narrativa deve a Claude Bremond.
Com efeito, a ele devemos um melhor conhecimento dos mecanismos para-
digmáticos inerentes à lógica decisória que comanda as opções do enunciador e,
por conseguinte, a organização seqüencial das funções, como ações preferenciais
e/ou contingentes dos atores narrativos.
Recordemos, para começar, que Propp afirmara que a ordem de colocação
das funções dentro da série é sempre idêntica, pouco importando, no caso, o
número delas: "A sucessão das funções é sempre idêntica" (Propp, 1970, p. 38).
Recordemos ainda que para explicar a constância da função nessa ordem de
colocação, Propp lançara a hipótese da existência de sintagmas funcionais dotados
de funções mutuamente compatíveis, coisa que punha, por outro lado, a idéia da
possibilidade de existir, ao contrário, funções mutuamente incompatíveis em um
dado contexto, o que produziria esquemas funcionais alternativos, do tipo:

~onto: 1) A ~ B C
E ~F .. J
~onto: 2) A ~ B E ~F ...

Pois bem: comentando a observação de Propp, segundo a qual a colocação


das funções é sempre idêntica dentro da série, Bremond diz, em "Le Message
narratif', que Propp foi levado a pensar assim por supor que o conto estaria orga-
nizado em função daquilo que é, no nível cronológico da história, o seu final:
para chegar à função D o autor colocaria a função C e para chegar a esta ele intro-
duziria B. Exemplo: para que o vilão possa ser castigado, o narrador faz com que
ele cometauma transgressão; e para que ele possa cometer uma transgressão, o
narrador coloca, antes, uma interdição. É isso, pelo menos, quejustifica a afirmativa
de Propp de que se pode sempre definir uma função pelas suas conseqüências
(Propp, 1970, p. 106).
Desse modo, diz Bremond, as seqüências que Propp localizou são regidas·
por uma causalidade temporal finalística de tal modo rígida que o narrador não
seria livre para determinar o encadeamento das funções no transcorrer da história,
já que a sua dinâmica teria de ser sempre retrospectivística e unilinear: se a função
aparece em uma localização diferente da que lhe é habitual, já não será mais a
mesma função, será uma função diferente.
328 • A Identidade e a Diferença

Bremond opõe-se a tal concepção.


Ele faz notar que a linearidade única do esquema funcional proppiano é
devida ã sua desconsideração das funçães-pivô, isto é, das peiformances que se dão como
escolhas preferenciais, mas nunca como únicas, em dados pontos de bifurcação possível do
percurso que pode seguir a história, ao atingir determinadas "encruzilhadas" (termo
nosso, não dele) que abrem uma alternativa para dois encaminhamentos dife-
rentes dos acontecimentos que se narram. Função-pivô é, pois, cada um dos pontos
de hesitação do enunciador, em que ele tem de optar pela realização de apenas um
entre dois fazeres virtualmente possíveis de ser realizados no momento seguinte
da história.
Assim fazendo, Propp teria ignorado o fato de que, colocada uma função,
a que se lhe segue no cursus histórico é determinada por efeito de um mecanismo
lógico probabilístico, da ordem paradigmática, que se pode representar sob uma
forma binária mínima. O que aciona esse mecanismo,julga Bremond, é uma fun-
cionalidade lógica seletiva (função aut... aut, alternativa) que escolhe entre duas
possibilidades que são, a priori, de ocorrência equiprovável.
Por exemplo: quando Propp faz seguir-se à função Luta a função Vitória e
dá a seguir o sintagma

Luta __ Vitória do herói

como invariante na série funcional, ele demonstra ter-se deixado contaminar pela
ideologia própria dos contos que descreve.
Com efeito, no interior do gênero "conto de magia popular russo", que é
uma narrati,'a de intuitos pedagógicos, manipuladora do enunciatário, e na qual,
portanto, a conduta dos personagens tem uma funcionalidade exemplar - o
comportamento do herói fixa a pautado que se deve fazer, ao passo que a conduta
do vilão fornece o modelo do que se deve não fazer - , o herói é, por razões
óbvias, sempre vencedor. Mas, assim procedendo, Propp esquece o requisito da
universalidade a que deve aspirar uma teoda da narrativa, pois descarta, sem
maior exame, até mesmo a possibilidade de que em outros tipos de relatos' o
herói possa ser derrotado. Isso, entretanto, não obsta a que certas tradições cul-
turais não contemplem nem essa uniformidade nem essa causalidade lógica uni-
linear descritas por Propp - para lembrar com um exemplo nosso, na tragédia
grega o herói é quase sempre derrotado na luta inglória que move contra um
destino que o fada à perda.
Em muitas culturas existe, assim, um grande número de espécies ou gêneros
de racontos dotados de uma lógica histórica preferencial, cujo curso está balizado
por momentos de indecisão, pontos de bifurcação da fábula, em que se localizam
funções-pivô diante das quais o narrador se encontra livre para escolher como
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 329

bem lhe aprouver o seu caminho, de conformidade com um mapa de itinerários


virtuais que se negam mutuamente, no modo de existência real, mas que são coo-
correntes dentro da mesma classe, no modo de existência "atual" (ou seja, que
são equiprováveis, anteriormente à opção que o narrador deve fazer por este ou
aquele trajeto, saindo da encruzilhada para tomar um dos dois caminhos possíveis
abertos à sua frente).
O percurso narrativo não é, nesses lugares do conto, unilinear, mas multi-
direcional.
Para comprovar o que diz, Bremond escolhe a seguinte ilustração: seja, por
exemplo, a função Tentaçâo: uma vez situados nela, temos à frente duas possibi-
lidades, representadas na forma de duas diferentes funções conseqüentes vir-
tualmente possíveis:

a Acei tação da (ex.: na Bíblia: Eva anuindo


Tentação à oferta da serpente)

Tentação

b Rejeição da (ex.: na Bíblia: Jesus recusando


Tentação as propostas do demânio,
no alto do templo)

É essa bifurcação na altura de Tentaçâo, que impõe uma escolha entre as


funções conseqüentes a e b, que faz de Tentaçâo uma função-pivâ.
Bremond propõe, em vista disso, utilizar-se um modelo funcional que inclua,
em certos pontos do relato, funções-pivâ que abram para percursos virtualmente
bidirecionais. Argumenta ele que mesmo nos gêneros de narrativas mais exem-
plares, ou conservadoras, em que o herói há de sair sempre vitorioso, a narrativa
finge que ele corre o risco de ser derrotado, artificio que engendra o "suspense"
característico dos momentos de indecisão sobre o que vai acontecer no momento
seguinte àquele em que qualquer das duas forças opostas em jogo parece poder
sair vitoriosa do confronto.
Não é raro, do mesmo modo, que a história enverede por certos desvios
de rota, provocando o que Tomachevski chamava de "efeito de retardamento"
do percurso narrativo que se conta. Muito utiiizado em gêneros folhetinescos,
de romances de aventuras ou histórias policiais, esse procedimento é utilizado
330 • A Identidade e a Diferença

com exagero nas telenovelas brasileiras, efetuando uma multiplicação infinita


de capítulos, na consonância do grau de in teresse despertado por dado inciden te
da trama entre os espectadores. O efeito de retardamento é caracteristicamente
solucionado, afinal, quando a narrativa está atingindo o seu final, mediante o
procedimento do jlash-back, que faz o relato remontar do presente para o passado,
percorrendo em torna-viagem todo o trajeto dos desvios, até chegar à função-
pivô em que o desvio se originou, para a seguir retomar, a partir daí, o seu
transcurso normal.

A EstTutuTCl da Seqüência Funcional Elementar

Reexaminando a série funcional de Propp, Bremond nota, como o autor


da Nloifologia do Conto lvlaravilhosojá fizera, a existência de uma co-im plicação en tre
certos pares de funções que surgem combinadas nos relatos de tal maneira que
se tornam solidárias, e isso a tal ponto que, colocada uma, a outra fatalmente
surgirá, mais à frente, no transcurso da mesma história.
Seja, por exemplo, a seguinte série funcional:

O Herói Recebe uma Marca--+ Luta-------+ Vitória----+ Desaparecimento


do Herói ----+ Reaparecimento do Herói Incógnit~ Reconhecimento
do Herói pela Marca.

Há, na série acima, uma seqüencialidade que não pode ser rompida:

O Herói Recebe uma Marca----+ Reconhecimento do Herói pela Marca

porque se o herói não for reconhecido pela marca- por um ferimento, digamos,
ou uma capacidade exclusivamente dele, como "o mendigo" suposto envergando
o arco de Ulisses e, daí, reconhecido como o próprio herói - , então esse ferimento
- para ficar apenas nele - se disfuncionaliza enquanto marca para adquirir um
outro sentido qualquer, o de demonstrar a inépcia original do herói, sua falta de
poder, digamos, perante os poderes iniciais do vilão etc. Todas as demais funções
da série acima podem aparecer ou não, dependendo do contexto de cada nar-
rativa, mas não são a priori necessárias como essas duas.
Há, pois, ao lado de uma causalidade heterológica, que pode ser suprimida
ou alterada,
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Brernond e Barthes • 331

Marca ~Luta~Vitória~Desaparecimento
~ Reaparecimento,etc, e

uma causalidade cronológica, que não pode ser suprimida nem alterada:

Marca ~ Reconhecimento pela Marca

Trata-se de um mecanismo constante, na série proppiana. Muitas outras


funções dela deixam-se associar aos pares, como:

Interdição Transgressão

Transgressão Punição

Luta Vitória etc.,

pois que falar em Transgressão pressupõe falar em uma Interdição anterior, falar em
Punição pressupõe uma antecedente Transgressão e falar em Vitória pressupõe o
antecedente Luta, e assim por diante.
A tais pares de funções associadas por implicação, Bremond denomina
seqüências elementares.
No estudo de Bremond, as seqüências elementares ocupam o nível médio
da narrativa, porque o nível mínimo continua a ser o das funções,já estabelecido
por Propp, e possuem uma estruturação de base ternária bem característica, que
Bremond descreve assim:

a. Numa primeira fase, uma primeira função abre a possibilidade de que


dado acontecimento se realize;
b. na segunda, o acontecimento se realiza ou não;
c. na terceira, o acontecimento atualizado na fase anterior culmina em
um resultado, desejado ou não desejado.

Diagramaticamente, vejamos a figura a seguir:


332 • A Identidade e a Diferença

Primeira fase ) Segunda fase ---> Terceira fase

j y
j
Realização do Resultado
Esperado

Realização da
Possibilidade

Não-Realização
Situação Que Abre
do Resultado
a Possibilidade de
Esperado
Realização de Dado
acontecimento

Não-realização
da Possibilidade

Figura 15: Estrutura da Seqüência Elementar.

Por exemplo: uma Interdiçâo pode ser obedecida ou desobedecida; se ela é


desobedecida, a Transgressão pode "ir a ser punida ou não.

Punição

Transgressão

Interdição
Não-punição (= Perdão)

Não-transgressão

A conclusão que Brernond retira do seu estudo da seqüência elementar é que o princípio
que governa o desenvolvimento prospectivo de uma história nâo se assenta na lógica linear
unidirecionaljJTevista jJorPropp, mas, sim, em uma lógica decisional, que implica a liberdade
de o narrador optar por um de dois caminhos divergentes, a pri01i equiprováveis, no ponto
de encruzilhada em que se localiza cada junção-jJivâ.
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 333

Três Níveis de Descrição da Narrativa:


A Função, a Seqüência Elementar e a Seqüência Complexa

Isoladas as unidades mínimas dos dois primeiros níveis do relato, aJunção,


unidade do nível 17línimo, e a seqüência ele17lentaJ; unidade do nível 17lédio, Bremond
propõe-se a isolar a unidade de nível suj)eriol~ a que chama de seqüência complexa.
Ele a concebe como o resultado da combinatória resultante da articulação de
duas ou mais seqüências elementares no interior do mesmo metassegmento.
Se a ordem de colocação das funções dentro de cada seqüência elementar
é fixa, como Propp e Bremond demonstraram - chegar, ponhamos, pressupõe
ter partido, antes - , a ordem de combinação das seqüências elementares entre si
parao fito de comporumaseqüênciacomplexanão é nem inteiramente fixa, nem
inteiramente arbitrária; ela obedece, em síntese, aos condicionamentos sintag-
máticos do contexto.
Assim, a associação entre seqüências elementares para formar seqüências
complexas tem um estatuto probabilístico: duas seqüências elementares se articulam
conformando-se a um mecanismo de compatibilidade/incompatibilidade con-
textuaI (algo parecido ao que Propp fora levado a postular, hipoteticamente, para
as funções).
Dadas, por hipóteses, as seguintes seqüências elementares:

A B

1 1
1. Marca > Reconhecimento pela Marca
2. Transgressão > Punição
3. Partida • Chegada
4. Luta > Vitória
5. Interdição > Transgressão
6. Desaparecimento do Herói > Reaparecimento do Herói Incógnito
7. Dano > Reparação do Dano

várias combinações são possíveis a jJriori. A iWarca, vejamos: o herói pode ser
marcado antes da Luta, durante ela (como em Propp), ou depois dela; em com-
pensação, a seqüência 5 deve, logicamente, preceder a seqüência 2, ainda que
não necessariamente em contigüidade imediàta, no nível do discurso; e assim
por diante.
334 • A Identidade e a Diferença

Com essas mesmas seqüências elementares, poderíamos, pois, formar dife-


rentes seqüências complexas:

Primeira: 5A + SB + 4A + IA + 4B + 6A + 6B + lB ...

Segunda: SA + SB + 4A + IA + 4B + lB + '.. etc.

"Uma combinação de seqüências elementares constitui uma seqüência


complexa" (Bremond, apud Yllera, 1974, p. 66).
Em "La Logique des possibles narmtifs", Bremond distingue três tipos de com-
binações entre seqüências elementares para constituir uma seqüência complexa:

1. Encadeamento por continuidade (fr. bout à bout)

Dano a Praticar

Dano Praticado Fazer a Retribuir

~
Processo Retribuidor

~
Fazer Retribuído

o sinal "=" indica que o mesmo acontecimento desempenha duas funções


diferentes, segundo o ponto de vista do projeto de fazer do sl~eito ou do anti-sl~eito.
2. Encadeamento por inserção (ou enclave)

Dano Praticado Fazer a Retribuir


I
l
Dano a Infligir
t
Processo Retribuidor
~
Processo Agressivo

1
Dano Infligido

j--_I
Fazer Retribuído
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 335

"Nesse caso, o processo inclui um segundo processo que lhe serve de meio,
o qual, por sua vez, pode incluir um terceiro processo etc." (Yllera, 1974, p. 67).
3. Encadeamento por enlace

Dano a Infligir versus Vilania a Cometer

j j
Processo Agressivo versus Vilania

j j
Dano Infligido versus Vilania Cometida
Fazer a Retribuir

Esse terceiro tipo, inexistente em seu primeiro artigo ("La Logique des possibles narratifs"),
supõe a consideração do ponto de vista de dois personagens e não de um único herói. O que para
um personagem é um "Dano a Infligir" é, para outro, urna "Vilania a Cometer" etc.
A partir desses simples esquemas, [BremondJ considere que se podem traçar todas as pos-
sibilidades do ciclo narrativo, todos os possíveis narrativos. O relato é "um discurso que integra uma
sucessão de acontecimentos na unidade de uma mesma ação".
Para que os acontecimentos interessem é necessário que se organizem em torno de um
projeto humano que favorecem ou contrariam. Isso nos oferece a primeira alternativa fundamental:
de um acontecimento ou sé/ie de acontecimentos se seguirá um melhoramento ou uma jJiora da situação.
Analisando as possibilidades de cada uma dessas duas opções, [BremondJ traça a rede dos possíveis
narrativos. Mas, além disso, os tipos narrativos elementares se correspondem com as formas mais
gerais do comportamento humano. Desse modo, essas distinções permitem estabelecer uma tipologia
universal dos relatos e, ao mesmo tempo, um marco geral para o estudo comparado dos compor-
tamentos humanos (idem, ibidem).

Visto que as seqüências complexas poderiam ser entendidas como cadeias


de seqüências elementares de diferentes dimensões até os limites máximos de
uma história inteira, seria possível propor, mediante os trabalhos de Bremond, o
reconhecimento dos seguintes níveis estruturais da história:

a. nível máximo: seqüência complexa (toda a série funcional do relato);


b. nível médio: seqüência elementar;
c. nível mínimo: função.
336 • A Identidade e a Diferença

Moela ele Transcriçcio ela Série ele Funções

A distinção entre função e função-pivô, porum lado, e entre função, seqüência


elemenL:'1r e seqüência complexa, por outro, permite ao autor da "Lógica dos
Possíveis Narrativos" reformular também o sistema de transcrição das ações da
história de um modo multilinear, compondo o mapa das diferentes linhas que
entremeadas vão urdir o todo complexo da trama. Assim, enquanto Propp nos faz
pressupor o modo de transcrição seqüencial pela justaposição linear das funções,
que se inscrevem uma após a outra, sobre o eixo sintagmático unidirecional, da
esquerda para a direita, Bremond prefere adotar - como Lévi-Strauss - uma
transcrição por colunas, cada coluna ficando encarregada de transcrever o percurso
de uma única seqüência elementar. Assim, uma narrativa que Propp transcreveria
do seguinte modo,

Luta - Marca - Vitória - Desaparecimento do Herói-


Buscas- Impostura - Reaparecimento do Herói Incógnito-
Luta - Vitória do Herói - Desmascaramento do Impostor-
Reconhecimento do Herói pela Marca - Cessação das Buscas-
Punição do Impostor - Recompensa do Herói

Figura 16: Transcrição Unilinear das Funções (inspirada em Propp).

seria transcrita do modo ilustrado na Figura 17, de acordo com Bremond:


Nota-se que cada coluna contém apenas as funções constituintes de uma
única seqüência. Esta se caracteriza pelo mecanismo

Abertura da função F + fechamento da função F:

• Na coluna I, por exemplo, Luta abre e Vitória do herói fecha a mesma


ação "Disputa de um objeto-valor", "Prova";
• Na coluna II, a seqüência elementar se abre com a imposição de uma
A1arca do herói e se fecha com o Reconhecimento da identidade dele por
meio dessa mesma marca; e assim por diante.

Como o problema da identificação do herói - e, em decorrência dela, a


concomitante identificação do Impostor que desejava fazer-se passar por ele -
constitui uma outra linha que não a do percurso dos fazeres (antes, o que se tem,
na linha das identidades, é algo da ordem dos seres), tudo o que se situar na primeira
ordem de idéias, abrindo, continuando, ou fechando a un~dade de uma mesma
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 337

II III IV
Luta
(Herói e Vilào)
[

Marca
I
I
Y

Vitória
do Herói
[

Desaparecimento
do Herói

t
Buscas
I
t
Impostura
I
t
Reaparecimento
do Herói Incógnito
I
t
Luta
(Herói e Impostor)

~
Vitória
do Herói
[
t
DeSl11aSCaraI11ento
do Impostor
[
t
Eeconhecimento
do Herói pela
Marca
[

t
Cessaçào das
Buscas
I
t
Puniçào do
Impostor
I
t
Eecompensa
do Herói

Figura 17: Transcrição das Funções em Colunas (inspirada em Bremond).


338 • A Identidade e a Diferença

ação, deve situar-se na coluna um, ficando reservado às atividades ligadas à com-
petência dos seres a coluna dois.

Dois Processos lVarrativos Elementares:


O Processo de Degradação e o Processo de lvlelhoramento

Na revista Communications, 8 (1966), com o artigo "La Logique des possibles


narratifs", Bremond descreve os mecanismos lógicos responsáveis pela estruturação
lógico-sin tática da narrativa. Tal trabalho, porém, que há de traçar as linhas mestras
do percurso de uma história, irá apoiar-se na sua descoberta das opções abertas
pelas funções-pivô, cada narrativa realizando-se, pois, por hipótese, como um iti-
nerário de n funções preenchidas, selecionadas e executadas ao longo de outros
tantos pontos de bifurcação virtual da história objeto do relato.
O que Bremond destaca, agora, é o caráter por assim dizer "mimético" do
racon to, sua condição de simulacro- termo popularizado mais tarde por Greimas
- em relação à história concreta que o homem vive no mundo. Ele vê na nar-
rativa

um discurso que integra uma sucessão de acontecimentos [... ] de interesse humano, na unidade
de uma mesma ação (1966),

coisa que o leva a adotar uma posição próxima da dos formalistas e, posteriormente,
da de Greimas, para quem a narrativa deveria ser vista como

uma sucessão de enunciados cujas funções-predicado simulam lingüisticamente um conjunto de


comportamentos orientados para um objetiyo (1970, p. 187).

Nos termos de Bremond, "onde nao há integração na unidade de uma


ação, não há narrativa, mas somente cronologia, sucessão de fatos não-coor-
denados" (1966), e, por outro lado, o "interesse humano" - vale dizer, a pro-
priedade da "antropomorfização" greimasiana - é a marca indissolúvel de um
projeto de vida que dota os nossos atos de finalidade e, portanto, de sentido. É
por intermédio da explicitação de um projeto que o conjunto caótico dos acon-
tecimentos de uma vida vem a ser estruturado como um "conjunto significativo",
i. e., como o conjunto ordenado dos êxitos e fracassos em que culmina cada uma
de nossas histórias, cada um de nossos projetos de vida.
Conforme os acontecimentos favoreçam ou não a realização do projeto que
constitui o arcabouço da história e que se monta, como sabemos, sobre o conhecido
mecanismo da sequencia elementar, as narrativas podem ser classificadas, pensa
Bremond, em duas ramificações tipológicàs, cada uma das quais equivaleria à rea-
lização de um entre os dois trajetos abertos em perspectiva,já que um deles levará
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Bartlzes • 339

ao êxito do empreendimento - o jJrocesso de melhoramento - , enquanto o outro


leva ao fracasso dele - o jJrocesso de degradação:

1. Processo de melhoramento

Melhoramento Obtido

~
Processo de

{
Melhoramento
Melhoramento Melhoramento Frustrado
Visado Ausência de
Processo de
Melhoramento

Figura 18: Seqüência do Processo de Melhoramento.

Assim, o personagem que desenvolve todo um projeto de enriquecimento,


ou de obtenção do amor de uma mulher, executa um processo de melhoramento
caso venha a conquistar o seu objetivo, enriquecendo ou obtendo, finalmente, o
amor desejado.

2. Processo de degradação

Processo de
,r Degradação Produzida

Degradação
>
Degradação
L Degradação Evitada
Previsível
Ausência do
Processo de
Degradação

Figura 19: Seqüência do Processo de Degradação.

Mantendo os exemplos anteriores, o autor que fracassasse, ao cabo de uma


série de empreendimentos destinados ao seu enriquecimento e/ou à obtenção
do amor da pessoa amada, teria executado um processo de degradação.
Melhoramento e degradação são, nesses termos, processos há muito intuídos
pelos teóricos da narrativa. É visível que tais processos nunca foram estranhos
340 • A Identidade e a Diferença

às noções de tragédia e de comédia. Tanto é que o primeiro grande sistema-


tizador da teoria, Aristóteles, já previa os dois tipos de desenvolvimento como
resultados da transformação de um estado histórico inicial da fábula pelo fazer
dos atores narrativos:

A ação deye ter a extensão necessária para permitir a mudança do mal para o bem (...).
Para estabelecer uma regra geral, (... ) é suficientemente extensa a peça no decurso da qual
os acontecimentos (... ) mudem em infortúnio a felicidade da personagem principal ou inyersamente
a façam transitar do infortúnio para a felicidade (A.rte Retólica e A.rte Poética, s.d., cap. VII).

Com a utilização do procedimento descritivo adotado por Bremondganhamos


a possibilidade de dar uma descrição científica desses processos, visualizando-os
na forma de uma seqüência elementar em que podem aparecer, isolados ou não,
em cada relato ocorrencial.
Ainda que tais processos se combinem freqüentemente no interior de um
mesmo relato, eles podem, também, aparecer isoladamente, compondo micro-
narrativas. De um ou outro modo, isolados ou combinados entre si ad nauseam-
como ocorre invariavelmente nas telenovelas brasileiras, em que a combinação:

melhoramento ~ degradação ~ melhoramento ~ degradação ...

se sucede até a exaustão, Bremond os tem, sempre, na condição de tipos ele-


mentares das narrativas. Tudo ocorreria, enfim, como se nesses tipos elementares
de relato se cristalizasse o molde semiológico das formas mais gerais ou elementares
do próprio comportamento do homem no mundo (Bremond, 1966, p. 76).

Balanço da Contribuição de Bremond

A teoria estrutural da narrativa realizou um notável avanço com os trabalhos


de Breri1ond, nos anos 60. São muitos e todos importantes os pontos positivos de
suas reflexões:

1. Ele demonstrou de modo irretorquível que, apesar de, como Propp


descobriu, o artista não ser inteiramente livre para atribuir qualquer
posição a qualquer função - ele não pode, por exemplo, mudar a
ordem da causalidade cronológica (ninguém pode chegar de volta sem
ter partido, antes) - , a narrativa está sl~eita às injunções que lhe são
impostas por uma segunda lógica, a lógica das ações, que é, pnmer-
ramente, de caráter opcional.
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 341

Graças a Bremond pudemos separar um componente da ancoragem


espácio-tem poral da ação - en tendendo por espaço, aqui, um cor~junto
de convenções de simultaneidade e, por tempo, um conjunto de con-
venções de sucessividade - de um componente lógico, no eixo de
percurso da história. Assim, pudemos ver que enquanto o tempo nar-
rativo se situa sobre um eixo de sucessividades em que contrastam um
"antes" e um "depois", cronologicamente ordenados, por efeito de
determinações prospectivas, a lógica das ações causais da história parece
organizada "de trás para frente", desenvolvendo-se segundo o proce-
dimento das "determinações retrospectivas", que, como viu Propp,
remontam do efeito para a causa, da direita para a esquerda, na ordem
do pressuponente para o pressuposto:

• A função RecoJnjJensa tem por an teceden te (pressuposto) a RejJaração


do dano.
• A função RejJaração do dano tem por antecedente (pressuposto) a
Vitória do herói.
• A função Vitória do herói tem por antecedente (pressuposto) Luta-
Luta tem por antecedente Perseguição do vilão, cujo pressuposto é o
Dano, cl00 pressuposto é a Transgressão, cl00 pressuposto é a imposição
de uma Regra.

Aprendemos, desse modo, que as funções opõem-se umas às outras topo-


logicamente, por seu lugar na cadeia, em relação a um correlato anterior
e/o~l posterior, e, ao mesmo tempo, logicamente, sobre um eixo de pres-
suposições, em que da função conseqüente - o efeito - se remonta para
a antecedente, sua causa. E que dessa dupla oposição, de itinerários invertidos,
entre um percurso prospectivo e um percurso retrospectivo, resultam, por
um lado, os pares de funções, e, por outro, a seqüência elementar.
2. As funções opõem-se por pares correlativos, de tal modo que cada
momento da leitura apreende, simultaneamente, duas funções cor-
relatas que se situam uma em relação à outra como complementares
e metonímicas (como partes de um todo). Assim, duas funções cor-
relatas surgem como os funtivos de uma mesma função (de nível
superior), uma postando-se como efeito conseqüente que pressupõe
uma causa antecedente. Exemplo:

Retribuição Reação do Herói à Prova

~~
Punição Recompensa Aceitação N ão~acei tação
342 • A Identidade e a Diferença

3. A elaboração da noção de função-pivõ, para marcar os "momentos de


indecisão" da história, em que a narrativa parece girar sobre ações
axiais, diante de uma encruzilhada que abre para um mínimo de dois
caminhos alternativos, um só dos quais poderá ser seguido a partir da
opção, daí para a frente.
4. A construção da noção de seqüência elementar, que nos brindou com
um modelo de descrição estrutural do processo de desenvolvimento
de um percurso que se concebe de um ponto de partida a um ponto
de chegada como a seqüência de três etapas aristotélicas ("todo é o que
tem princípio, meio e fim" (Aristóteles, Arte Retórica e Arte Poética, s.d.
cap. VII) de começo, meio e fim de uma mesma ação.
5. A descrição do percllrso llarrativo a partir de seus extremos, à esquerda
(o princípio) e à direita (o fim):

• Na sua extremidade esquerda, o que marca o começo da descrição


é a elaboração de um projeto de vida a ser executado pelo herói
(embrião da qualificação do querer constitutiva da competência).
• Na sua extremidade direita, o final do processo é dado pelo ponto
em que se atinge, ou não, o resultado visado, contemplado já durante
a elaboração do projeto de vida inicial.

6. Também o método de descrição das funções, seu mapeamen to na forma


de um diagrama por colunas, apresenta a vantagem de indicar tanto a
posição sintagmática das funções, exibindo a sua ordem de ocorrência
{la história (que é o que temos quando efetuamos uma leitura horizontal
do diagrama ao longo da linha que passa de uma coluna à esquerda para
uma coluna à direita), quanto as seqüências elementares em si mesmas
(quando efetuamos a leitura vertical, de cima para baixo, de uma só e
mesma coluna). De sorte que, enquanto a leitura vertical exibe as seqüências
elementares da história, e o conjunto delas, da coluna um à coluna quatro
no exemplo acima, nos faz ver a totalidade da trama da qual cada coluna
constitui um fio (uma coluna = um fio da trama), a leitura horizontal
mostra a série toda das funções sob a forma de uma seqüência complexa.

Quanto às suas contribuições essenciais, consubstanciadas nos conceitos de


função-pivô, de seqüência elemental~ de seqüência complexa, dos mecanismos
de percurso invertido executados sobre o eixo da cronologia e sobre o eixo das
pressuposições, bem como a formulação estrutural diagramática das micronar-
rativas canônicas de melhoramento e de' degradação, continuam, todas, basi-
camente válidas e produtivas ainda hoje.
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 343

Por outro lado, não há como desconhecer que certos detalhes de seus tra-
balhos deixam passar pontos obscuros ou não tão bem elaborados, suscetíveis,
talvez, em conseqüência disso, de aprimoramentos. Dentre esses, é possível que
os mais importantes sejam os seguintes:

a. O de prever como ação narrativa unicamente a que se realize como


um fazer positivo, deixando de prever que um não-fazer possa ter
qualquer efeito, pormenor que deixa de fora de sua descrição a omissão,
ainda quando dessa omissão venha a resultar a transformação de um
estado histórico anterior (cf. Fabbri, 1974, pp. 3-4). A omissão, contudo
(concebida como um não-fazer x quando x deveria ser feito), já fora
vista por Propp e incluída em sua descrição. Assim, se o herói proppiano
não executa, por exemplo, a tarefa que lhe pedem para executar, ele
se arrisca a perder a qualificação de herói (de sorte que a omissão
acarreta uma transformação no ser do ator); de modo semelhante, se
a vítima não obedece à Regra que lhe impõem inicialmente (não con-
versar com estranhos, não abrir a porta da casa etc.) , vem a sofrer um
Dano. A omissão transforma, assim, um estado histórico an terior. Parece
pois, fora de dúvida, que, ao invés de descrever unicamente fazeres. exe-
cutados, positivos, o esquema da seqüência elementar deveria, antes, trans-
crever comportamentos- pois não é possível a um ator não se comportar
- dentre os quais se incluiriam, obviamente, a omissão, a abstenção, a
negligência e a impotência (Lopes & Lopes, 1992, pp. 35 e ss), sempre
que <;leIas resultasse uma transformação narrativa.
b. O que Bremond denomina de função-pivô parece ser o resultado da
aplicação à história do procedimento construtivo a que chamaríamos
de suspensão, com o qual a narração constrói o efeito de sentido da
dramaticidade (ou "suspense"), que se fundamenta na colocação de
uma incerteza quanto ao resultado que vai produzir determinada
conduta. Assim, quando o herói se defronta com o vilão em uma Luta,
aii1da que saibamos de antemão, pela nossa competência relativa
àquele gênero de ficção, que o herói fatalmente sairá vitorioso do
embate, este deve transcorrer de tal modo que o resultado se manifeste
a todo instante como incerto, duvidoso. Luta constitui, então, uma
função-pivô, porque ela inaugura um ponto de incerteza na seqüência
dos acontecimentos da história: o herói pode ganhar, mas pode,
também, perder, na dependência da ideologia inerente ao gênero de
racontos em que se inscreva a narrativa ocorrencial que estamos lendo.
Logo, o par funcional
344 • A Identidade e a Diferença

Luta -----)~ Vitória do Herói

descrito por Propp equivale à realização de uma microsseqüência


ordenada com base numa narrativa de ideologia conservadora, que tem
um percurso cíclico porque começa com um estado histórico inicialmente
definido como 'Justo", "positivo", e termina com um retorno da história
a esse estado inicial "positivo" (o tipo de narrativa que narra a recu-
peração de um bem inicial posteriormente perdido e reencontrado);
mas sabemos que outros gêneros, por exemplo, o das narrativas trágicas,
invertem essa parelha, construindo o par funcional

Luta -----.> Derrota do Herói

que equivale à microsseqüência ordenada com base numa ideologia


reformista, semelhante à que o próprio Bremond estudou.
Será aquela fixidez do esquema da vitória, aliás, um dos pontos fracos
de Propp, logo assinalado por Bremond. Este lembrará, a propósito,
a necessidade de não estabelecermos nunca uma função sem testar a
possibilidade de uma opção contrária. Ora, enquanto paraPropp Luta
se resolve com a Vitória do herói, para Bremond o que temos teori-
camente é a alternativa

Luta~
,_r--- Vitória
.
do Herói

Derrota do Herói

já que, em contraposição a Propp, que afirmava ser o final, o tenninus


ad quem (termo conseqüente), a função regente da seqüência, para
Bremond, ao contrário, o final é o terminus a quo (o antecedente) que
preside à organização dela:

A implicação de luta para vitólia·é uma exigência lógica; a implicação de vitólia


para luta é um estereótipo cultural (Bremond, 1964).
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 345

Levando em conta, agora, que uma teoria da narrativa deve possuir a pro-
priedade jJreditiva, que abarca, naturalmente, o universal (caso contrário come-
teríamos o mesmo equívoco de Propp de pretender construir uma teoria funda-
mentada nos subsídios retirados de uma metodologia empírico-indutiva, em que
é inevitável o risco de descrever uma seqüência elementar característica de um
único tipo de relato, como ele faz ao aceitar a parelha funcional única

Luta -----+) Vitória do Herói

cegando-nos para outros tipos de relatos), não basta aceitar a recomendação de


Bremond, de examinar a possibilidade de ocorrência da Derrota do herói. De fato,
com esse aconselhamento, Bremond ainda não disse tudo: e as possibilidades
neutras, de Empate (nem Vitória nem Derrota), e as compósitas, tipo Vantagem/Des-
vantagem (não-decisivas), do herói onde ficariam?
Por causa disso, cremos que só a utilização de um quadrado semiótica como
o abaixo,

Vantagem
Desvan tagem

/~
Vitória
--DWOla\
VITÓRIA
/ DERROTA

\ Nâo-dwota - Não-vitóda /
~/
Empate

Figura 20: Funções Realizáveis corno Conseqüentes da FuilÇão I.lI/fI.

em que se encerram todas as possibilidades virtualmente realizáveis após a função-


pivô Luta, fechando um microuniverso de sentido, satisfaria à condição de previ-
sibilidade de nosso modelo teórico, dando-lhe alcance universal,já que só ele seria
capaz de descrever, como deve fazer a teoria, a' competência narrativa dos sujeitos
enunciador e enunciatário envolvidos em cada comunicação de uma história.
346 • A Identidade e a Diferença

As seqüências elementares correspondentes à iniciada com a função-pivô


Luta ficariam, em nosso modelo, assim:

Vitória

Derrota

Desvantagem
[=/ não-vi tória/+/ não necessariamente
implicada com Derrota /]
Luta '\i::::::-----_~Vantagem
[=/não-derrota/+/ não necessariamente
implicada com Vitória/]
Empate
[fnem derrota/+/nem vitória/]

Complexificação Positiva
[=/vitória/ (ser) +/ derrotai (parecer)]

Complexificação Negativa
[=/ derrotai (ser) +/vitória/ (parecer)]

etc.

A SEMIOLOGIA ESTRUTURAL DE ROLAND BARTHES

Que cherche-t-il? Ii cherche quelque chose


qu 'on nous jJelinettra d'ajJjJeler la Illodemité.
BAUDEL\IRE

Tudo significa.
BARTHES

Poucos escritores e ensaístas podem orgulhar-se de ter exercido, nesta


segunda metade do século, um fascínio tão absorvente e tão amável nas ciências
humanas quanto RolandBarthes (Cherburgo, 1915-Paris, 1980) e,de,aomesmo
tempo, ter dado contribuição tão duradoura quanto a dele para a constituição da
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 347

semiologia como uma disciplina científica. Não que Barthes fosse, monoliticamente
e em todas as situações, um cientista (aquele que é, por certo, o mais amado de
seus livros, os Fragmentos de um Discurso Amoroso, é inteiramente prosa artística,
poética); seria mais apropriado, possivelmente, dizer que ele começou pela ciência,
mas à medida que os anos passavam ele parecia deixar-se seduzir cada vez mais
pela escrita literária, na qual, também, foi mestre imitado e inimitável.
Esse fascínio pelo belo, que o foi afastando aos poucos de suas metas ini-
ciais - confessadamente científicas - , acabou arrastando para segundo plano
o homem de ciência. E assim, quase nada do que produziu Barthes em seus
últimos anos de vida apresenta as características do discurso impessoal e preten-
samente não-empenhado da pesquisa acadêmica - mas, em troca (e em nossa
opinião, pelo menos, todos ganharam com isso), tem tudo do ensaísmo artístico
da melhor cepa gaulesa.
Grosso modo, a carreira de Barthes divide-se em três períodos, um pré-semio-
lógico, outro semiológico e o terceiro, enfim, artístico:

a. O período pré-semiológico vai da publicação de LeDégré zéro de l'écriture


(1953) até Essais critiques (1964), passando por Nlichelet par lui-même
(1954), iVlythologies (1957) e SurRacine (1963); é a etapa em que ele se
viu obrigado a cada vez mais defender-se das importunações da "velha
crítica", o que parece ter contribuído e muito para fazê-lo decidir-se a
romper de vez com os padrões sovados dela e a lançar-se de cheio na
aventura da segunda fase, a do
ú. Período semiológico, que se estende de Essais critiques até Nouveaux
ess(tis critiques (1972), entremeando, nos anos que separam a primeira
da segunda produção, livros como Eléments de sémiologie (1964), Critique
et vérité (1966), Systhne de la mode (1967), L'Empire des signes (1970), SjZ
(1970), Sade, FourieJ; Lo)'ola (1971), esses dois últimos pronunciando
nitidamente a terceira etapa que viria pouco depois,
c. O período artístico ou, talvez fosse mais apropriado dizer, o período da
escrita artística, que compreende Le Plaisir du texte (1973), Fragments d 'un .
discours amoureux (1977), Soller écnvain (1979) e La Chamúre claire (1980) .

Revendo o que Barthes produziu até 1966, parece exagerado atribuir-lhe,


como já se fez na França e fora dela, uma repentina conversão aos princípios
semiológicos a partir do descobrimento das reflexões dos formalistas que por
aquela época apareciam na Teoria da Literatura dos Formalistas Russos, que Todorov
preparou e lançou em francês, em 1965. Isso não obstante, toda sua obra pos-
terior foi definitivamente influenciada pelo' encontro que fez, quase simulta-
neamente, com a lingüística estrutural e com os formalistas. .
348 • A Identidade e a Diferença

A lingüística veio primeiro, com o conhecimento do COUTS de Saussure,


que, de primeira mão, ou retrabalhado nas mãos de um outro lingüista genial,
Hjelmslev, sempre o deslumbrou. Há um decênio, lembrando aqueles anos
iniciais, Greimas dizia, em uma entrevista, que ambos, ele e Barthes, começando
a lecionar em Paris pela mesma época, logo estreitaram uma amizade já antiga
em que foram revelando-se, paulatinamente, seus pontos de contato e suas diver-
gências, em relação à teoria semiolingüística:

Era a leitnra de Saussnre que era diferente. Nós não o sabíamos. Pensávamos que tínhamos
lido o mesmo Saussnre. Só que ele [Banhes] tinha lido Saussure pelo começo e eu pelo fim. Qner
dizer, ele começou pelo signo, pelo exemplo da árvore. Basta ler cinqüenta páginas mais longe para
encontrar qne a língua é como a folha de papel. [... ] Foi de modo didático que Banhes começou pelo
signo. Se você ler as l\~\,thologies [verá que] se trata, ainda, de signos-palawas, de signos-árvores. Nesse
sentido, ele ficou num Saussure diferente. Depois, evidentemente, ele ,wançou (1986, pp. 42-43).

Visto agora, à distància de quase vinte anos de sua morte, Barthes parece ter
seguido o conselho de Unamuno, "casarse con una idea sola y tener muchos hÜos".
Pois, não imponam as divisões que lhe serão fixadas pela posteridade, é certo
desde já que Banhes trabalhou a vida inteira em um único tema - o tema da ancia-
nidade, ao modo do ser, da modernidade ao modo do parecer, dos objetos pro-
duzidos pelo capitalismo hodierno, pelos meios de comunicação de massa e da
indústria do consumo, subordinando sua visão ao ponto de vista fixado na idéia de
desmistificar as mitologias que se ocultam até mesmo nos enunciados mais aparen-
temente ingênuos, nos discursos e nos signos de que vivemos rodeados.
A investigação dos meios de comunicação de massa principia, na realidade
da prática analítica, com Banhes, que por eles ele se interessava na dupla qua-
lidade de sistemas de significação e de sistemas de manipulação:

As imagens, os gestos, os sons melódicos, os objetos e os conjuntos dessas snbstâncias que


podemos encontrar nos ritos, nos protocolos e espetácúlos constitnem se não "lingnagens", pelo
menos sistemas de significação (1971, p. 18).

Na semiologia, Barthes via a confluência de disciplinas como a lingüística


e a teoria da informação, a lógica formal e a antropologia cultural, capazes de
abrir novos caminhos para a semântica e, assim, projetar-se no imenso campo da
significação distribuída pelos mass media onipresentes nos tempos modernos. A
posição da lingüística valia a esse respeito como um mediador indispensável:

[... ] o semiólogo, a despeito de trabalhar iniCialmente sobre snbstâncias não-lingüísticas.


encontrará, antes ou depois, a linguagem ("a verdadeira") em seu caminh.o, não apenas à guisa de
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, BrenlOnd e Banhes • 349

modelo, mas também a título de componente, de elemento mediador ou de significado. No entanto,


essa linguagem não é a mesma dos lingüistas: é uma linguagem segunda, Cl~as unidades não são já
os monernas ou os fonemas, senão fragmentos mais amplos do discurso que remetem a objetos ou
episódios[ ... ] A semiologia está cenamente destinada a ser absorvida por uma translingüística cuja
matéria consistirá umas \'ezes no mito, no conto ou no artigo de jornal [... ] por isso a semiologia é
uma pane da lingüística [... ] que tem por objeto as grandes unidades do discurso (idem, ibidem).

Na mesma entrevista há pouco mencionada, o autor de Du Sens: essazs


sémiotiques particulariza:

Quando chegamos [Banhes e Greimas] a Hjelmslev, o que ele reteve imediatamente foi a lin-
guagem das conotações, enquanto que eu [retive] o sistema denotativo. [...]. Optar pela descrição
das conotações significa cena liberdade, muito mais originalidade, enquanto que a linguagem de
denotação é a estrutura. Eu me empenhei em ser rigoroso, científico, ao passo que Barthes hesitou
entre a cientificidacle e a escritura, visto que ele era um escritor [lln éClivain] apesar de tudo. Numa
dedicatória [num liwo seu, oferecido a Greimas] ele acusou-se de ter traído um pouco a ciência. Ele
a traiu cada vez mais: cada qual com o seu caminho[ ... ] Creio que ele tinha mais talento do que eu.
Ele era mais brilhante e eu não sou ciumento. São os rumos da vida[ ... ] (Greimas, 1986, p. 43).

Desmistificação do Classicismo. Denotação e Analogia.

Allcun jJhysicien n 'a jamais Vll le moindre

lIlorcea Il de la réalité. R. Bastide a consacré

sa vie all concej)t devoir en science, Ils ne voient rien.


La réalité est Iln concfjJt mythiqlle.
GREIMAS

Barthes instalou sua empresa de demolição dos mitos da modernidade,


dirigindo o seu primeiro trabalho de sapa aos alicerces mesmos dela, os quais ele
foi buscar no classicismo e na suposta "neutralidade" dos discursos racionais e dos
enunciados denotativos, de que os clássicos fizeram abundante consumo:

mesmo a este nível [denotativo] há pelo menos um sentido conotado, que é: leiam-me literalmente.
[... ] Dizer "tudo significa" [trata-se de uma frase do próprio Banhes] é marcar que, se uma frase.
parece ter falta de sentido em nível interpretativo, ela significa ao nível da própria língua (Banhes,
1982, p. 77).

Percebe-se a radicalidade de semelhante concepção: o que Barthes con-


sidera mistificação é, para dizê-lo brutalmente, o que hoje chqmamos de "efeito
350 • A Identz:dade e a Diferença

de sentido": a significação mistifica (porque, quiçá, "significar" implica significar


isto e não outra coisa, e isso é, na raiz, totalmente arbitrário). E como, no seu
próprio modo de pensar, tudo significa,

é tudo, no relato, funcional? [... ] uma narrati\"a é feita só de funções; tudo, em graus diversos, sig-
nifica, nele; não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura (1966,

p.7),

sendo a própria significação, em si mesma considerada, mera mistificação, então,


tudo mistifica - e mais do que todo o restante, neste mundo velado por um irre-
movível véu de Maya, mistificam, sobretudo, os discursos que pretendam não mis-
tificar, construídos todos pelo procedimento analógico e manifestados, todos,
ainda, pelos enunciados denotativos, como a seu tempo se verá.
A obra de Barthes se faz, por conseguinte, exemplar demonstração de que os
textos de massa, dos mass media, constroem novos sistemas de expressão para velhos
mitos, toda a "modernidade" dos objetos culturais resumindo-se, por isso, a um
modo do parecer, atrás do qual se dissimula a sua "antiguidade" ao modo do ser.
Tal como Barthes a vê, típico da sociedade burguesa construtora do mundo
moderno é, porL"1nto, a simulação do novo, que é o modo com que se exprime o
álibi da inocência, por meio da dissimulação do velho (leia-se: da culpa); no uso
e abuso de tais expedientes é que a sociedade capitalista se evidencia como
embusteira e mistificadora.
Ao desmascaramento da empulhação embutida nos objetos culturais da
nossa época, Barthes dedicou o melhor de seus esforços, a começar pela demolição
do mito da Clarté do estilo francês do dizer e do "demónio da analogia".
Tudo isso repontajá no primeiro de seus livros, LeDégré zéro de l'écriture, no qual
está enfocada a escrita clássica que será tida como "o estilo nacional francês" por
excelência, desde os meados do século XVII até os meados do século XIX. Barthes
via nisso o "núcleo duro" do mito de que "o que não é claro nem racional não é
francês". No seu sentir, essa escrita foi acolhida com a aceitação universal da nação,
impondo~se-Ihecomo o único modo de escrever francês correta e logicamente.
Na escolha e imposição dessa norma cultural à totalidade da nação, Barthes
enxergava um ato de expropriação das demais camadas da população, obrigadas
que ficavam elas a aceitar o modo de ver e de dizer da burguesia como o único
modo de ver e de dizer legitimamente francês, próprio às pessoas honradas e de
bom gosto. A escrita clássica corresponde, assim, ao estilo de vida burguês, definido
do ponto de vista da sua própria visão de mundo e na conformidade de seus únicos
interesses, re11etindo-o de modo a ocasionar a sua valoração exclusiva. Assim que
semelhante modo de vida começa a ser questionado, pela metade do século
passado, também esse tipo de escrita começa a ser desmantelado. É então que os
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 351

escritores poderão reconhecê-lo abertamente como apenas um estilo a mais, nem


o único nem, provavelmente, o melhor em qualquer ocasião, e cuidarão, em con-
seqüência, de substituí-lo por um outro, mais consentâneo com a expressão dos
conteúdos culturais dos novos tempos.
É o que explica o aparecimento, depois de 1850, de uma grande quantidade
de novos estilos de escrita, tão diferentes entre si como o virtuosista de Flaubert,
o estilo do regressus ad infinitum de Proust, o da metaescrita autoconsciente de
Joyce, ou Eliot, o stream oJconsciousnessde Virginia Woolf, as escritas que almejavam
lograr o total despojamento do estilo cool e a transparência de um grau zero da
linguagem, que os levaram por vezes a produzir o efeito oposto do pseudo-estilo
não-literário (em si mesmo contraditório, haja vista que, embora não aparentando
pertencer a ele, tal estilo se encontra unicamen te na literatura; assim, para retomar
o raciocínio de Barthes com um exemplo nosso, e não no universo da literatura
francesa, pouca gente prestou atenção ao fato de que o soi-disant "estilo jorna-
lístico" de Hemingway nunca foi encontrado em jornal nenhum) .
Força é convir com Barthes que a literatura é inteiramente estilo e que, a
partir daí, nada existe em matéria de escrita artística ou não que possa ser chamado
de "escrita branca", "neutra", assin1 como nunca existiram quaisquer "clareza",
"precisão" ou "propriedade" nos estilos artísticos, posto que coisas desse jaez são
propriedade exclusiva das metalinguagens científicas, aquelas, precisamente, que
- acrescentamos por nossa conta - são acoimadas pelos não-especialistas de
"obscuras", "preciosas", "bizantinas", "herméticas" - fora das suspeitas qualifi-
cações de alguma ideologia da composição:

De fato, a' clareza é um atributo puramente retórico, não uma qualidade da linguagem em
geral, pratiG1vcl a qualquer tempo, em qualquer lugar (Banhes, 1977, p. 50).

N o mesmo diapasão, sublinha Barthes que a relação vista por Saussure entre
o significante e o significado complica-se na literatura, em que o processo lin-
güístico da significação absorve outras modalidades de significações derivadas da
natureza mesma do código. Por isso, há uma essencial duplicidade de sentido na .
obra literária, a qual, no mesmo gesto com que designa dado conteúdo, se auto-
designa como produto literário, por meio da utilização de certos procedimentos
estilísticos, como o emprego, digamos, no relato, do pretérito narrativo. É nessa
proclamação da sua identidade que a obra de arte literária coloca o seu leitor em·
presença da "literariedade" tão buscada pelos formalistas russos.
Contemplada por outro viés, a percepção de se estar em presença de uma
obra literária, marcada como ela está por uma sinalética própria do produto
artístico, desvenda nessa sinalética um repertório de símbolos particulares de certa
classe social. É o caso da literatura francesa, que esteve, desde oséculo XVII, atada
352 • A Identidade e a Diferença

à burguesia; e uma vez que era esta a classe que produzia e consumia ao longo de
duzentos anos praticamente toda a literatura da nação, foi muito natural que o
uso daquelas "marcas sociais" acabasse por funcionar como a senha de um com-
prometimento ideológico pactado entre o escritor e o leitor. Incapaz de refletir
inocentemente "a realidade", o estilo do texto literário recorta-a, sempre, na con-
sonância dos interesses de uma ideologia que previamente a interpretou em seus
próprios termos.
É assim que a obra literária constrói essa mesma "realidade" que aparenta,
para os desprevenidos, "refletir"; sabe-se, agora, do que estamos a tratar: do
"demônio da analogia".
A seu modo, Darthes tentará a vida toda exorcizar o seu Mefistófeles par-
ticular, o que ele mesmo chamou de demônio da analogia:

o bicho-papão de Saussure era o arbitrário [do signo]. O seu [de Barthes] é a analogia. As artes
"analógicas" (cincma, fotografia), os métodos "analógicos" (a crítica 11l1iyersitária, por exemplo) são
desacrctidados. Por quê? Porque a analogia implica um efeito de Natureza: ela constitui o "natural"
como fonte de yerdade; o que aumenta a maldição da analogia é que ela é irreprimível (Réguichot,
1973, p. 23): assim que uma forma é ústa, é fJl"eciso que ela se assemelhe a algo; a humanidade parece
condenada à analogia, isto é, em fim de contas, à Natureza. Daí o esforço dos pintores, dos escritores,
para dela escapar. Como? Por dois contrários, ou, se se preferir, por duas ironias que lidicularizam a
Analogia, quer se finja um respeito espetaculannente chão (é a Cópia, que está salya), quer se deforme
reglllarlllente- segundo regras - o objeto mimetizado (é a Anamorfose, CV [Clitiqlle et vélite1 64). Fora
dessas transgressões, o que se opõe beneficamente à pédida Analogia é a simples correspondéncia
estrutural: a hOll/ologia, que reduz a lembrança do primeiro objeto a uma alusão proporcional (etimo-
logicamente, isto é, em tempos felizes da linguagem, analogia queria dizer fJrojJorçiio) (1977, p. 50).

Com a ressalva, que se impõe, de que o bicho-papão de Saussure só "era o


arbitrário (do signo)" na medida em que, precisamente, o tema da arbitrariedade
era, na obra dele, um subproduto do mesmo tema primário da "analogia", não
há dúvida de que Barthes se auto diagnostica com perícia.
Em O Grau Zero da Escritura, Barthes planta a semente das idéias que irão
desabrochar em idythologies. Agora, uma série de brilhantes ensaios se incumbirá
de desmascarar os mitos gerados pela indústria da comunicação de massa em um
país moderno, com propósitos manipulatórios.

Barthes Semiólogo: A Comunicação de Massa e a Modernidade.


A Matriz Significante

A despeito de pretenderem fazer-se pàssar por inocentes "reflexos", os objetos


dos mass media produzem, legitimam e reforçam as visões e os valores dominantes
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 353

da burguesia triunfante. É o que Barthes persegue e encontra em toda parte, orga-


nizando os objetos, os espetáculos e a gestualidade das classes médias, em suas
públicas aparições na vida cultural do país. Lida-se, agora, com uma epidemia de
largo espectro de ação, que abrange desde o papel social do escritor à medição
do peso e das dimensões do cérebro de Einstein, da propaganda fascistóide-
patrioteira do cartaz que proclama a suposta "francesidade" do soldado colonial
africano, ao anúncio dos detergentes e à luta do "vale-tudo".
Barthes pensa que, se o homem tem de aprender certos comportamentos
para poder comunicar-se sensata e inteligivelmente, toda a conduta humana-
andar, vertir-se, comer, fazer amor... fazer literatura ou consumi-la, em uma palavra,
tudo - se converte em signo: um signo lingüístico (verbal) ou gestual (não-verbal),
pouco importa, mas sempre um signo, o que é o mesmo que dizer que tudo se
converte em objeto semiológico. E são esses signos que compõem as mitologias
da "modernidade" das sociedades tecnológicas.
Neste ponto, Barthes se torna semiólogo - no nosso entendimento, o
maior e mais acabado espécime da nova espécie de scholar que a universidade
francesa produziu nos anos 60, dentro das ciências humanas - e se encontra
com o Saussure que vaticinara, meio século e pico atrás, a futura criação da
semiologia como "ciência geral dos signos no seio da vida social" (1972, p. 33)
(o que não quer dizer, em absoluto, que, empregando o mesmo vocábulo, ambos
pensem na mesma coisa).
De fato, há diferenças entre o que Saussure e Barthes designam como signo
e mito - de resto, Grcimasjá apontou (como vimos anteriormente) que ele e
Barthes haviam feito leituras diferentes do signo saussuriano.
No ensaio "Mito Hoje", em iVIythologies, é Barthes quem particulariza sua rein-
terpretação especial do conceito de signo referido à semiologia, reportando-o, pois,
aos signos não-verbais. No que diz respeito ao signo verbal, da lingüística, ele aceita
a lição do mestre de Genebra, tomando-o como a entidade formada nas línguas
naturais pela relação entre uma imagem fónica, o significante, e um conceito, o
significado. Mas, no caso dos signos dos sistemas semiológicos não-lingüísticos,
Barthes toma o exemplo do buquê de rosas para mostrar que as duas acepções
diferem quando o buquê significa "paixão". Nesse emprego, o (buquê) é o signi-
ficante e a "paixão" é o significado, e a relação que ambos articulam entre si produz
um terceiro termo - o buquê de rosas - feito um signo semiológico.
Outro exemplo: "tomemos um seixo negro; posso fazê-lo significar de muitos
modos, ele é um simples significante; mas se eu o avalio em correspondência com
um significado definido (uma sentença de morte, por exemplo, em uma votação
secreta), ele se converterá em um signo" (Barthes, 1957, p. 113).
Não é uma compreensão lá muito ortodoxa, convenhamos, do conceito de
signo saussuriano - como falar de "significante> a priori, independentemente de
uma experiência num discurso ocorrencial e da sua relação complemen tal', enquanto
354 • A Identidade e a Diferença

plano de expressão, com um significado nesse discurso definido?; parece-se mais


com o que Greimas chamava, pelos mesmos anos, de lexema. Como quer que seja,
é com essa concepção que Barthes analisa os mitos da sociedade moderna, com-
preendendo por mito, outra vez de modo peculiar, idiossincrásico, mesmo, não a
narrativa que focaliza a emergência para a história e o mundo fenomênicos de
uma entidade ou um processo do mundo profano na sua relação originária com
o mundo das divindades (como a mitografia clássica greco-romana ou a judaico-
cristã) ou, numa versão mais moderna, nem mesmo como o relato que propõe
uma solução imag'inária para uma contradição real insolúvel historicamente, mas
sim, e antes, o complexo sistema de imagens e crenças que a sociedade elabora
para fundamentar os sentidos de tudo o que ela mesma faz, objetos, instituições,
modas, usos e costumes, tudo submetido à clivagem de dois modos de existência,
um ligado à simulação (o modo de existência de algo que "parece ser o que não
é"), outro ligado à disshnulação (o modo de existência de algo que "não parece ser
o que de fato é"), e depois naturalizou, por meio do ato de prestidigitação do
"demônio da analogia", para torná-los instrumentos de manipulação inconsciente
das pessoas de uma comunidade.
A relação signo e mito merece ser detalhada na análise do pensamento de
Barthes. Na página 39 do seu Eléments de sémiologie, ele faz constar que

pelo simples fato de existir a sociedade, todo uso de um signo se converte em signo desse nso.

Antes de retornar a NIythologies, vejamos como se deve compreender seme-


lhante assertiva.
No Systeme de la mode, livro em que vai analisar a indumentária como signo,
Barthes lembra que o hábito que temos de usar determinados trajes para deter-
minadas ocasiões e não para outras - que é exatamente a premissa que dá sus-
tentação a toda a mitologia da moda no trajar - converte-se em signo dessas
ocasiões. Diante de uma pessoa vestida com, digamos, camiseta, short e tênis,
en tendemos que esse indivíduo foi ou vai praticar alguma modalidade de exercício
físico, e não assistir a um casamento; o uso de um signo, composto, no caso,· do
conjunto camiseta + short + ténis se converteu para nós em signo desse uso.
Para ler o sentido do vestuário, Barthes constrói, no Systhne de la rnode, uma
rnatriz significante- espécie de máquina produtora de interpretações para as dife-
rentes composições indumentárias. Essa matriz se compõe, sucintamente, de um
objeto 0, a peça da vestimenta cujo sentido queremos desvendar (objeto do conhe-
cimento), mais um suporte S, parte do objeto que privilegiamos, na análise, como
o espaço irwariante de inscrição do sentido geral do 0, mais duas variáveis V, que
são os elementos morfológicos que identificam uma oposição privativa entre dois
funtivos, um dos quais surge modalizando o Se excluindo, por sua mera presença,
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 355

a presença da outra variável (por meio das variáveis distinguimos, portanto, um


mínimo de duas significações paradigmáticas opostas, virtualmente realizáveis na
combinatória sintagmática da roupa).
Seja, para ilustração, a seguinte matriz significante utilizada para deco-
dificar se determinada camisa de homem significa "moda esporte" ou, ao con-
trário, "moda social":

Objeto a camisa

Suporte o colarinho

Variantes colarinho abertolcolarinho fechado

Combinando tais elementos e uma seqüência sin tagmática, podemos construir


a seguinte matriz significante:

o + S + V Significado

~
j j j Moda
camisa com aberto Esporte
colarinho fechado Social

Figura 21: Matriz Significante de R. Barthes.

o Nlito, Signo do Outro. lVIito e Ideologia

o exemplo serve para ilustrar que o sentido de uma roupa faz alusão não
ao traje em si mesmo considerado, mas a um código semiológico particular, o
código ou "sistema da moda indumentária", que retira seu sentido de um código
mais vasto, ainda, todo englobante, o de um microuniverso ideológico, base dos
comportam~ntossociais. A existência de um vestido de noiva nos comunica, por
um lado, o "sentido indumentário" traje para mulheres que se casam e nos infor-
ma, por outro lado, o "sentido ideológico" de que naquela sociedade há deter-
minados comportamentos, como o casamento, que requerem o uso de trajes
rituais - uma roupa do gênero "vestido branco, longo, com cauda, adornado
com acessórios especiais, véu, grinalda, buquê de flores de laranjeira", etc. -
desse tipo e não de outro tipo qualquer, um maiõ de duas peças, por exemplo,
ou um pijama. Em conclusão: o sentido, para Barthes, não épropriedade do objeto, mas
do uso que fazemos desse objeto.
356 • A Identidade e a Diferença

No mito em que Barthes pensa, há sempre um significante, um significado


e o produto da sua associação numa nova entidade, o signo. A peculiaridade do
mito reside no seu funcionamento como um sistema semiótica segundo, "sistema
modelizante secundário", como diriam, hoje, os investigadores de Tartu, cons-
truído à base de um sistema semiótica anterior, uma língua natural, por vezes,
mas, também, um outro sistema de signos qualquer funcionando como sistema
de expressão, mero significante, pois, do sistema segundo.
Graficamente:

L
M 1. Significante 2. Significado
Í
N
I G 3. Signo
U
T A 1. SIGNIFICANTE 2. SIGNIFICADO

O 3. SIGNO

Figura 22: IIlito enquanto Signo (Banhes, 1957, p. 115).

o mito opera tomando um signo já-construído, investido, i. e., "cheio" de


sentido no interior do seu próprio sistema - no sistema das línguas naturais,
ponhamos - , e o esvazia desse sentido primeiro até que ele se converta num sig-
nificante "vazio", aser ilwestido por outro significado, contextualmente construído.

o Signo 1\1ítico ou Ideolóbrico como OjJerador das lvIanijJulações do Ver:


A Exibição e a Ocultação

Deixemos a palavra ao nosso autor:

No barbeiro, dão-me um exemplar de Paris Alatc/z. Na capa, umjovem negro trajado com
o uniforme francês bate continência, elevando os olhos, fitando o drapejar da tricolor [da bandeira
da França]. Isso tudo é o significado, do quadro. Contudo, ingenuamente ou não, percebo muito
bem o que é que ele significa para mim: que a França é um grande império, que todos os seus
filhos, sem nenhuma discriminação de cor, servem fielmente sob sua bandeira, e que não há
melhor resposta aos detratores do seu pretenso colonialismo do que o orgulho desse negro a
serviço de seus assim chamados opressores. Estou assim outra \'ez confrontado com um sistema
semiológico maior: há um significante, já de antemão formado em um sistema anterior (um
soldado negro faz a continência francesa); e há um significado (que é aqui uma mescla proposital
de francesidacle e de militaridade); finalmente, há a presença do significado através do signi-
ficante (Barthes, 1957, p. 116).
o Estruturalismo SemiológicoFmncês: Lévi-Stmuss, Bremond e Banhes • 357

Todos nós supomos conhecer esses sentidos porque os aprendemos desde


cedo como parte integrante dos sistemas modelizantes que internalizamos de
nossa entourage cultural. São eles que, sobremodalizados eufórica ou disfori-
camente, vão converter os significados, de categorias semânticas que são ini-
cialmente, em valores - significados modalizados euforicamente - e em anti-
valores - significados modalizados disforicamente - , compondo as ideologias,
conjuntos-universo de valores e antivalores de nosso grupo, que respondem por
nossa particular visão de mundo.
O grau de nossa participação na ideologia de um grupo mede o nosso grau
de inserção nele. Por isso mesmo que esse sentido nos ultrapassa, ao ser expressão
do outro social, do macrosslueito "grupo", mesmo reconhecendo-o nos signos
com que convivemos, não o compreendemos nunca na dimensão real dos seus
efeitos. Porque os signos do grupo fazem alguma coisa a cada um de nós; eles
exigem, no mínimo, que os aceitemos, que assumamos o seu sentido, gostemos
ou não disso, sob pena de não nos comunicarmos: bom grado, malgrado nossas
preferências e ojerizas pessoais, "solteiro", para todos nós, falantes do português,
significa "homem que nunca se casou". Todavia, uma vez que esse sentido é do
outro, do meu grupo, originariamente, do qual o aprendi, e não meu (não fui eu
quem o criou), ele tem um outro sentido, que é o da dominação inquestionável
do meu grupo sobre mim, dominação, essa, que me manipula inconscientemente
desde que assim, internalizei e personalizei esse sentido, fazendo-o o "meu" e
assim o estoquei em minha competência, sem sequer dar-me conta disso. AírejJousa
o caráter intrinsecamente "fascista" da língua, que Barthes denunciará mais tarde,
em sua leçon inaugurale de 1977.
Em resul'nidas contas: um objeto, na acejJção que esse termo tem na matriz signi-
ficante, de "objeto de conhecimento", exibe (faz vel) um sentido ajJarente jJara (é a nossa
intCljJretação do jJensamento de Barthes) ocultar (fazer não ver) um outro sentido (que é o
sentido do outro, do gl'1ljJo). E como nos comunicamos por meio de tudo, línguas
naturais, literatura, vestidos, comidas, etiquetas, práticas sociais, gestualidade -
pois que não é possível não se comunicar - , tudo é objeto e todo objeto jJode ser rela-
cionado com outro sentido oculto, jJara se converter em signo de algum mito.
Assim também a literatura.
Uma mensagem literária é um signo, e esse signo é um mito. Como assevera
Barthes em Critique et vérité, o mito é a deformação de um sentido histórico, a
serviço de uma ideologia. Ele é isso necessariamente, porque ele é uma inter- .
pretação já-feita, que cada um de nós recebe pronta e nos é imposta como "clara",
"lógica", "de bon1 senso", "natural". Sabemos, entretanto, que a "clareza" está de
antemão condicionada aos princípios da lógica que nos impõem, que o que "é de
bom senso" está assim rotulado dentro do sistema a que nos reportamos, lógica
e sistema, esses, que, por sua vez, excluem, com sua mesma pr-esença, a coocor-
358 • A Identidade e a Diferença

rência de qualquer outras lógicas e sistemas divergentes: a história da loucura,


lembrou Foucault, é a história do outro ideológico.
Portanto, o que chamamos de "bom senso" não passa de "senso comum",
que não tem por que "ser bom" em si mesmo - não tem valor absoluto - , e o
que chamamos de "natural" não é mais do que o efeito de sentido promovido por
dada "naturalização do cultural": é a minha cultura que me diz o que "é natural" e o
que "é cultural" para mim.

Desse modo, tudo, no signo, no mito e no discurso, é, afinal, mitificante.

o Jvlito da Denotação. Denotação, Conotação e Jvletalinguagem.


O Scripteur e o Écrivain

o mito é, como a conotação,

ojragmen to de uma ideologia.


Br\RTHES

o próprio da sociedade de consumo é a massificação. "Massificar" no sentido


em que a empregamos, aqui, significa transformar tudo em signo e, afinal, em
mito. Desmistificar os mitos cotidianos da modernidade, eis a empresa levada a
cabo nas lVI)'thologies, livro em que Barthes põe a nu o que se oculta de mítico nos
brinquedos, nos noticiários do jornal, na luta livre, na astrologia, no Tour de
France (a Volta da França), no teatro, no strip-tease, na literatura etc.
O que o intriga nesse conjunto de gestos aparentemente disparatados e
inconexos, o que ele persegue, não é o sentido aparente que eles exibem, mas,
sob eles, o sentido oculto do mito que a evidenciação da aparência oculta, e que
funciona para Barthes como um fragmento da mitologia que se encarna nos
objetos manufaturados pela modernidade. Para localizar esse mito é necessário,
pensa ele, esvaziar todo o conteúdo do sentido convencional, analógico, dado
como "natural" e "óbvio", operação que demonstrará que esse signo do primeiro
sistema semiótica dotado do significado de uma língua natural, digamos, foi mode-
lizado para se converter de signo em significante de outro signo - um mito -
que não exibe a própria cara, mas que, ao contrário, se mascara sob a aparência
"ingênua" do primeiro.
Poderíamos utilizar a análise que Barthes efetuou da foto de capa de Paris
lVIateh, com o soldado negro em continência à tricolor, para mostrar como ele
desvenda esse sentido escamoteado e, contudo, atuante. Preferimos, no entanto,
por amor à clareza, utilizar um exemplo equivalente com que trabalhamos em
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 359

nosso Metáfora: Da Retórica ~ Semiótica (1987). Nele mostramos que a retórica


antiga previa já a existência de dois tipos de discursos, que ela chamava de
próprios ou literais-seriam os analógicos, que, para Barthes, compõem sistemas
denotativos - , e os impróprios ou figurados, trópicos - que para Barthes com-
poriam os sistemas conotativos e, logo, os mitos. Para demonstrar a diferença
entre o signo do sistema denotativo e o mito do sistema conotativo barthesiano,
sejam os termos /sementes/ e /palavras/:

a. Podemos usar a expressão E I [sementes] para falar do conteúdo C I


"sementes", caso em que estaríamos relacionando (RI) esses dois ele-
mentos como os dois planos de um signo do sistema denotativo. Logo,
o sistema denotativo será da forma:

Denotação: E1

1
/semear/ "deitar sementes na terra
para que germinem"

b. Podemos usar a expressào E 2 [sementes] para falar do conteúdo C 2 ,


"palavras", caso em que estaríamos articulando uma segunda relação
R2 - dita "imprópria", "trópica", "alegórica" ou "figurativa" - entre
os dois elementos, tomando-os como os planos componentes de um
mito; é o que acontece, por exemplo, no Sermão da Sexagésima, do padre
Vieira, que começa assim: "Saiu o pregador evangélico a semear a palavra
divina", enunciado esse que propõe explicitamente as seguintes equi-
valências entre os subcódigos de duas diferentes práticas sociais:

Conotação: E2 + R2 + C2

111
/semear/ "pregar a palavra divina" (de que derivam:)
/semeador/ "pregador"
/semente/ "palavra divina" etc.

Aqui, no item b, é todo um signo denotado, do sistema ERC, que funciona


como o plano de expressão de um mito, dentro de um sistema cQnotado (ERC)RC,
360 • A Identidade e a Diferença

no qual o subconjunto entre parênteses (ERC) funciona, por si só, não mais como
signo completo do sistema denotado, mas, antes, como o mero plano de expressão
de um signo do sistema conotado, pois que:

Em suma: é conotado o sistema semiótica cujo plano de expressão constitui


por si só um sistema semiótica denotado.
Coisa que pode ser bem visualizada no gráfico abaixo:

jSemearj S

I
El lvl
I E2
"deitar sementes na terra para RI G
N I
que germinem" Cl R2
O
T
"pregar a palawa de Deus " C2
O

Figura 23: Signo Denotado como Significante de um Mito (= signo conotado).

A conotação emerge da denotação aSSim como o mito emerge da signi-


ficação comum, "cotidiana": ela ocorre quando o signo resultante de um primeiro
sistema denotado se converte no significante de um segundo sistema, conotado.

o primeiro sistema é então o plano de denotação e o segundo sistema [... ] o plano de


conotação. Diremos, pois, que um sistema conotado é um sistema nuo plano de expressão (i.é, o
significante) é constituído porum sistema de significação: os casos comuns de conotação consistirão,
é claro, de sistemas complexos dos quais a língua natural forma o primeiro sistema (é o caso, por
exemplo, da literatura) (Banhes, 1964, pp. 89-90).

Sumariamente, os significantes de conotação são feitos dos signos (signi-


fican te + significado) do sistema denotado, o que faz da conotação, em geral, aí
incluído o discurso literário, um sistema de significação de segundo grau, que se superpãe
ao sistema de significação de primeiro grau constituído por uma língua natural. Mas, os
sistemas semióticos podem ser utilizados, também, na função inversa, quando o
signo de um primeiro sistema denotado se torna o significado, não o significante, de um
sistema outro. Nesse caso, o segundo sistema converte-se numa metalinguagem. Em suma,
glosando, a nosso modo, o pensar de Barthes:
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 361

a. Um sistema denotativo, como o das linguas naturais, quando as utilizamos


em junção referencial, aparentemente "para falar das coisas do mundo",
i.e., de outra coisa que nâo seja ele mesmo, é um sistema primário, no qual
um significante E se une por uma relação R a um significado C para
compor um signo denotado, da fórmula ERG:

sistema denotado: E + R + c

1
/semear/
1 1 "deitar sementes na terra
para que germinem"

b. Um sistema conotativo, como o da literatura, é um sistema secundário, cujo


significante E 2 é um sistema denotativo (ERG) que se relaciona com
um outro significado C2 para compor um mito da fórmula (ERG)RG 2 :

sistema conotado: (ERC) + R


~

E........... /semear/
j
R .
C1 "deitar sementes
"pregar a palavra de Deus"
na terra ... "

c. Um sistema metalingiiistico - como uma gramática, em que se emprega uma


lingua natural para Jalar dela mesma, língua natural - é um sistema
secundário ClÚO significado C2 é um sistema denotativo (ERG) que se
relaciona com um outro significante E 2 para compor um metassigno
(Barthes não usa este termo, que nos é sugerido pela interpretação que
aqui fazemos da sua teoria, com a qual, seja dito de passagem, não
estamos de acordo) da forma ER(ERG):

sistema metalingüístico: E + R + (ERC)

1 1 1
/pregar a palavra
é semear
de Deus/
362 • A Identidade e a Diferença

Os sistemas de denotação e de conotação, no ver de Barthes, retomam de


certo modo as já clássicas, àquela altura - década de 60 - oposições jormalistas
entre as junções referencial (uso denotado) e poética (uso conotado) da linguagem, às
quais o autor dos Elementos de Semiologia acrescerá os usos transitivo e intransitivo do
discurso, apontando que há escritores que usam as palavras para jalar de outras coisas
- uso transitivo - , mas há, também, ao contrário, escritores que escrevem para jalar da
própria escrita- para quem, portanto, a atividade do escrever é intransitiva, não
tendo a escrita outra finalidade, nesses casos, que se construir como sistema
auto-expressivo:

• Aos escritores do discurso transitivo, Barthes denomina scripteurs: o scripteur


usa a linguagem como instrumento para jalar de outra coisa diferente dela
mesma.
• Aos escritores de discursos intransitivos, ele chama de écrivains: os écrivains
utilizam a linguagem como um fim, para jalar dela mesma.

Tanto um quanto outro tipo de escritor alterna o uso da linguagem deno-


tativa com o da linguagem conotativa.
Em S/Z, Barthes dirá que "o mito é, como a conotação, o fragmento de uma
ideologia". E aqui Barthes, que começara por se encontrar, ainda que um tanto
equivocadamente, com Saussure, se encontra em definitivo - e, outra vez, a pesar
seu, um tanto equivocadamente - com o Hjelmslev, que, partindo igualmente
do Cours, empregara anos na tentativa de explicar a oposição do mestre de Genebra
entre substância e forma, da expressão e do conteúdo (o resultado do desdo-
bramento lógico implacável dessas dicotomias é o estupendo Prolegômenos, no qual
Hjelmslev já fizera constar que

uma semiótica conotativa é [... ] uma semiótica em que um dos planos, o da expressão, é uma
semiótica (1971, p. 150).

Com concepções assim, Barthes irá clarificar as relações entre a linguagem


natural e a linguagem da literatura. A linguagem denotativa, tal como ele a vê, é
uma língua natural; o escritor se serve dela, mas ela não é dele; antes, o inverso
é que é verdadeiro, posto que o sentido que ele possui é da comunidade a que
pertence o enunciador. Desse modo, as línguas naturais exprimem as experiências
coletivas naquilo que elas têm de invariante, reduzindo-as ao denominador comurn de urna
mesma abstração aproximativa. É com esse aparato, incapaz de dizer mais que análises
comunais de experiências coletivas, que o escritor se vê forçado a lutar para
exprimir suas experiências pessoais, numa confrontação em que ele, enunciador,
está de antemão condenado a ser dominado: essa é a substâl~cia da denúncia que
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bre17lond e Barthes • 363

Barthes fez, ao proferir a aula magna de 1977, no College de France, sobre o caráter
totalitário do idioma nativo.

Literatura e PrazeI: A Promiscuidade Descontínua da Leitura

Para o escritor de 5/Z, o texto literário é um signo conotado e toda a lite-


ratura é um sistema mítico. O primeiro sentido de um texto literário, diz ele, é o
de "ser literatura". O mítico se embuça aí no sentido oculto por trás desse sentido
que todos julgamos conhecer. Mas, no fundo, o que verdadeiramente quer dizer
"ser literatura"?
Quer dizer, tal como profetizara a teoria literária tradicional, ser um
discurso prestigioso e prestigiado, dotado de maior expressividade, ligado, por
hipótese, senão por definição, ao bom gosto, à arte e à beleza. A literatura é
uma das belas-artes e daí lhe advém, mecanicamente, a impregnação de um
sentido que a priori excede quanto dela se possa declarar, um sentido sublime
e inefável-literalmente, "que não se pode dizer", irredutível à metalinguagem
comum do comum dos mortais, e, por isso (repetimos que estamos interpretando
e não descrevendo o pensamento de Barthes) nefando, literalmente ligado ao
horror daquilo que "não se deve dizer". Devido a tais características, a inter-
pretação da arte requer intérpretes qualificados: excetuados os textos de massa,
a produção e a leitura da alta literatura (recordemos que a filpl02:ia com~ecou

sob a pressão da necessidade de interpretar os textos homéricos,já quase inin-


teligíveis na Grécia do século I a.c.) é um quefazer esotérico, reservado à expe-
riência das elites da comunidade.
A experiência oferecida pela leitura dos discursos literários é objeto do
interesse de Barthes no livro que ele lançou em 1975, Le Plaisir du texte, em que dis-
tingue duas modalidades de emoções ocasionadas pela recepção do texto literário:
o prazer (le plaisir) e o gozo (la jouissance). O prazer é oriundo do exercício de uma
atividade psicomotora, que se mobiliza no ato de ler;já o gozo, construído sobre
o cinetismo fisiológico desse fazer, implica alguma forma de atividade que roça
pelo proibido e se prende, por isso, a uma especial fruição erótica do exercício.
Essa fruição tem algo a ver com a apreensão, pelo leitor, de uma descontinuidade
qualquer en tre as sensações físicas da apreensão de uma ordem e de uma desordem
que a leitura mescla e põe em jogo - de fato, é a descontinuidade, a intermitência,
como a psicanálise não se cansa de mostrai; que é erótica no que chamamos erótico. O gozo .
associa-se, assim, a uma subversão orgásmica da ordem instituída na leitura orga-
nizada do discurso, que projeta na seqüencialidade ordenada, da esquerda para a
direita, no Ocidente, uma ordem de conteúdos consensuais, assumidos antes mesmo
do ato de ler, mas que a leitura projeta contrà o fundo dos conhecimentos his-
tórico-culturais do leitor, os gostos, valores, as recordações, do grupo, que o leitor
364 • A Identidade e a Diferença

estocou em sua competência e reYê, agora, aceitando-os passiya ou atiyamente,


cedendo ou brigando, na leitura que ele faz: a leitura empenha, assim, o confron to,
sempre conflituoso, ardiloso, ordenado e proibido, descontínuo, e por isso ero-
tizado, entre o indiyíduo e o grupo a que ele pertence, no sentido forte.
A objeção de Barthes à conexão aparen temente inocente, não-ideologizada,
do vínculo preestabelecido nos contratos sociais, dentre os quais os que ligam de
modo necessário significantes e significados tribais, repousa na sua maltrabalhada
aversão à manijJUtaçâo disfarçada - no fundo, não tanto à manipulação, da qual
não há como fugir, mas, mais do que a ela, ao disfarce dela, que temos de engolir
- inerente à associação conyencional, já-feita, do signo da tangue, cujos signifi-
cantes e significados o grupo impinge ao indiyíduo, obrigando-o a interiorizar,
'Já-signifeitos", seus preconceitos e suas culpas todas, na forma dos itens de seus
vários códigos.
E como a literatura é uma prática mítica, da burguesia ociosa ocupada só
em mimar seus interesses trayestindo-os de "bem comum", é toda a ordem social
burguesa que o indiyíduo assimila ao aprender a sua língua e a sua ideologia, os
dois operadores semióticos encarregados de construir para ele os particulares "-
efeitos de realidade" de que se tecem, com o tecido da língua, os nossos "yéus de
Maya". Desse modo, a relação entre o discurso e a "realidade" resolve-se num
problema intersemiótico, do relacionamento entre duas ideologias, duas semio-
logias, uma das quais funciona como significante - a do discurso indiyidual do
enunciador - , funcionando a outra como seu significado - o discurso coletiyo.
É este que diz, em função metalingüística, o que o discurso "individual" daquele
significa; só que esse "significado" não faz mais do que evidenciar o já-evidente e
ocultar o já-oculto, tornando-nos, a nós, leitores, inocentes úteis, quer dizer,
culpados inconscientes. Coisa que é tanto mais graye quanto é esse mesmo meta-
discurso coletiyo que se faz passar pela "realidade" - daí a teoria do "reflexo" da
ingénua vulgata marxista.
Semelhante concepção aproxima Banhes de Saussure, para quem "o que o
signo lingüístico une não é uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem
acústica" (1972, p. 98), e o aproxima, ao mesmo tempo, de Greimas, para quem'

a significação não é mais elo que a transposição ele um nível ele linguagem para outro, de uma língua
para outra língua diferente, e o sentido não é mais do que a possibilidade ele tal transcoelificação
(1970, p. 13).

A Semiologia da Narrativa segundo Barthes

Na sua "Introdução à Análise Estruturâl da Narrativa", originalmente publi-


cada em Communications, 8, 1966, Banhes ensaia uma teoria semiológica da narrativa,
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 365

baseada em uma metodologia dedutiva que se assenta na hipótese de que a narrativa


é um tipo de linguagem. Na impossibilidade de examinar todas as narrativas cons-
truídas por uma única comunidade, ao longo de um tempo mesmo relativamente
curto - de um século, digamos - , o teórico da narrativa deve fazer o mesmo que
fizeram os lingüistas, os quais, impossibilitados de estudar todas as línguas naturais
do globo, elaboraram um modelo geral puramente hipotético dos idiomas e, em
seguida, desceram desse modelo genérico, totalizado, para as suas partes consti-
tuintes. Desse modo, o operador da sanção homologadora da proposta teórica de
análise de Banhes vai ser encontrado na semiolingüística geral, de recorte saus-
suriano.
Barthes começa lembrando que um enunciado pode ser descrito tanto no
nível fonológico, quanto no morfológico ou no sintático. Como demonstrou
Benveniste, esses três níveis de descrição se superpõem em níveis hierárquicos de
dois tipos,já que ali podemos situar um elemento fazendo referência:

a. A suas relações distribucionais, horizontais, quer dizer, às relações que


ele trava para com outro elemento localizado no interior do seu mesmo
nível (fonema + fonema/morfema + morfema, por exemplo); ou
b. A suas relações integrativas, verticais, que são as que ele contrai com
outro elemento situado em um outro nível que não o seu (fonema +
morfema, por exemplo).
Uma ilustração elementar tirada da lingüística: se decompusermos alexia
jlintar em seus elementos sucessivos, procurando isolar os subcorúuntos fônicos
individualmente significativos, teremos de um lado jJint-, radical do verbo jJintar,
e de outro, -ar; sufixo agentivo, que designa o papel de slúeito operador, aquele
que faz a ação indicada pelo radical; logo, pintor = aquele que pinta.
Esses conjuntos fônicos individualmente significativos são chamados, gene-
ricamente, de morfemas e, mais particularmente, de lexemas - o morfema que
provém de um léxico, um dicionário, que forma a base mórfica do vocábulo - e
de gramemas - o morfema que provém de uma gramática, que é sempre um
afixo acrescentando à base léxica do vocábulo. Assim, uma primeira decomposição
da lexia nos daria a fórmula genérica da palavra portuguesa, como composta de
lexema + gramema:

pint -or

lexema + gramema
366 • A Identidade e a Diferença

Se quisermos segmentar pela segunda vez o gramema -orem seus compo-


nentes sucessivos, nos encontraremos com duas unidades fônicas, /0/ e /1'/,
nenhuma das quais possui, isoladamente tomada, qualquer sentido constante,
invariável, necessariamente ligado ao sentido da base pint-. Por outro lado, nem
/0/ nem /1'/ podem ser segmentados uma terceira vez: eles são unidades do limiar
inferior nos procedimentos da análise estruturallingüística, pois que, constituem
unidades mínimas (que não se deixam mais partir) da segunda articulação (segunda
segmentação) em si mesmas desprovidas de qualquer sen tido, que podem, porém,
ser combinadas com outras unidades do mesmo nível, para construir unidades
maiores, do nível superior, individualmente dotadas de sentido (como os lexemas
e os gramemas, que possuem sentido no dicionário e na gramática).
Desta sorte, reconhecemos a existência de dois níveis de descrição estrutural
no domínio das línguas naturais:

a. U ma primeira partição das lexias ("palavras") produz unidades mínimas


do primeiro nível de articulação, chamadas mmfemas; morfemas são as
menores unidades da língua individualmente dotadas de sentido (como
jJint-, -01'); e
b. Uma segunda partição, efetuada desta vez sobre um morfema resultante
da primeira partição, produz unidades mínimas do segundo nível de
articulação, chamadas fonemas: os fonemas são as menores unidades da
língua. Eles possuem uma propriedade discriminatória - um fonema
é articulatória e acusticamente diferente de outro fonema - , mas são,
apreendidos em si mesmos, desprovidos de sentido: que significam / o /
e /1'/ tomados isoladamente? Nada; então /0/ e /1'/, que se combinam
na mesma sílaba para compor o gramema -01', são fonemas.

Como nossos exemplos demonstram, as relações distribucionais, entre ele-


mentos que ocupam o mesmo nível, não possuem nenhum sentido. Seu único
sentido é o de poderem elas se combinar entre si para formar a unidade de nível
imediatamente superior, que é o morfema (lexemas e/ou gramemas):

• O fonema /0/ combina-se no nível fonológico, inferior, com outro


fonema, /1'/, para produzir o morfema -01' (unidade do nível médio,
morfológico) .
• O morfema -01' combina-se, no nível médio, morfológico, com outro
morfema, pint-, na primeira posição, para constituir alexia jJintor
(unidade do nível superior, lexicológico); e assim por diante.

Desse modo, só as relações integrativàs, que se estabelecem entre unidades


de níveis diferentes, é que são dotadas de sentido:
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Banhes • 367

• o sen tido dos fonemas é dado pelo morfema que eles compõem quando
se combinam entre si;
• o sentido dos morfemas é dado pelas lexias que eles constituem quando
se combinam entre si;
• o sentido das lexias é dado pelo sintagmalocucional (sintagma nominal,
sintagma verbal etc.) que elas compõem quando combinadas entre si;
• o sentido dos sintagmas locucionais é dado pelo sintagma oracional
que aqueles, combinados, formam;
• o sentido dos sintagmas oracionais é dado pelos "sintagmas periódicos"
(pelos "períodos" ou "parágrafos") que as orações seqüencialmente
combinadas formam.

Barthes crê que o mesmo se dá com o discurso literário. E adverte que não
tem em mente nesse caso unicamente uma analogia:

A homologia qlle se sllgere aqlli não tem só valor heurístico: ela implica lima identidade
entre a lingllagem e a literatllra; não se pode conceber a literatllra como lima arte desinteressada
de toda relação com a lingllagem (l9GG, p. 4).

Os Três Níveis da Narrativa, segundo Barthes: O Nível das Funções, o Nível das
Esferas de Ações (ou dos Actantes) e o Nível da Narração (ou Discurso)

Transpondo o modelo estrutural lingüístico para o âmbito da narrativa


literária, Barthes prega a necessidade de se localizar e identificar as unidades
mínimas do relato seguindo o mesmo procedimento de segmentação utilizado
pelos lingüistas. Quanto à interpretação dessas unidades, do sentido que elas
adquirem, ela se fará por meio da observação das relações integrativas que ligam
as unidades dos diferentes níveis entre si.
Distingue ele, em virtude disso, três diferentes níveis de descrição da narrativa:
o das funções, o das ações, e o da narração:

1. O níveldasfunções: o termo "função" alude, no pensamento de Barthes


(como no de Pro pp, Bremond, Todorov, Greimas, etc.), a qualquer
elemento do relato cujo sentido só se determine na relação dele
para com outro elemento qualquer, situado em outro ponto do
mesmo relato:

constitlli-se como llnidacle qualquer segmelltO da história que se apresente como termo
de lima correlação (idem, pp. 6-7).
r
I
368 • ii Identidade e a Diferença

li As funções barthesianas são, portanto, correlatos diacrônicos.


2. O nível das (esferas de) ações: comojá aparecia na iVIoifologia do Conto Maravi-
lhoso de Propp, o primeiro a sistematizar o fato de que determinados
atores estão encarregados de executar apenas uma certa esfera de fazeres
(ao Herói incumbe aceitar a Empresa Reparadora, perseguir o Vilão, lutar
contra ele, vencê-lo, reparar o dano, desmascarar o impostor e ser recom-
pensado etc.). Também em Banhes o "personagem" deixa de ser "subs-
tancializado", "psicologizado" etc., para se definir unicamente pelo seu
ser e seu fazer intradiscursivos - pelo que o relato diz que ele é ou faz.
Mas, assim como as "funções", unidade do nível inferior, só precisam
o seu sentido quando se integram, no nível médio, a outras funções,
compondo uma esfera de ação própria a cada personagem, assim
também Barthes diz que cada esfera de ação, cada actante, na termi-
nologia greimasiana, só se torna plenamente inteligível quando se
integra no nível superior da descrição, o terceiro, que é o da narração.
Temos, então:
3. O nível da narração (ou discurso), no qual dois papéis actanciais, o do des-
tinador da narrativa, executado pelo narrador, e o do destinatário dela,
cumprido pelo narratário, se comunicam.
Fiel às suas premissas de semiólogo, Barthes insistirá em que não cogita,
aqui, das pessoas reais que vão assumir e encarnar esses papéis, mas
sim, e sempre, de pessoas do discurso, criadas pelo discurso mesmo:

quem fala (no relato) não é quem escreve (na vida), e quem escreve não é quem é (na
'.'ida real, civil) (iciem, p. 19).

Levando em linha de conta que "compreender um relato não é apenas


seguir os acontecimentos da história, é também reconhecer suas etapas, projetar
os encadeamentos horizontais do fio narrativo sobre um eixo implicitamente
vertical; ler (escutar) um relato não é somente passar de uma palavra para outra,
é, também, passar de um nível para outro" (idem, p. 5), Barthes pontualiza que o
sentido das funções se define no nível acima, das esferas de ação, assim como estas
só vêm a integralizar a sua significação quando as con textualizamos no cOl~un.to total
da narração que relata a seu próprio modo cada história.

Classificação das Funções. As Funções Distribucionais: Núcleos e Catálises. As


Funções Integrativas: Índices e Informantes

Para localizar as funções, recorta-se;como vimos, a narração em segmentos


menores que sejam contextualmente significativos. Corr;to, para Banhes (que
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 369

segue, nesse pormenor, a Propp), a função constitui a menor unidade de sentido do


relato, o critério que dirige o procedimento de recortagem do discurso é o da tota-
lização (provisória) do sentido.
O que tem sentido em uma mensagem é a sua totalidade. Seu sentido deriva
do fato de ela ser uma estrutura; e, na estrutura, como sabemos, tudo, qualquer de
suas partes, significa alguma coisa, em um ou em outro nível, visto que a significação
é uma propriedade relacional e qualquer elemento de um discurso está, por força
de pertencer a uma unidade de dependências internas, relacionado com qualquer
outro elemento dentro do mesmo discurso, e/ou com o discurso como um todo.
É preciso insistir nofato de que não são as partes isoladas que estão dotadas de sentido,
mas, pelo contrário, o todo. Por isso, a função, que é uma unidade do plano de conteúdo
(idem, p. 7), tem de ser intelpretada pelo leitor a partir da percepção da sua utilidade local
em um contexto. Desse modo, cada função só se define relativamente a outra função,
tomando-se cada uma delas, isoladamente, como o correlato de uma outra qualquer,
situada em outro segmento, no interior da mesma formação.
Reinterpretando em nossos próprios termos a lição de Barthes, diremos,
pois, que a função surge entre dois correlatas de um mesmo eixo de correlação-
constituintes de uma mesma isotopia, no jargão greimasiano - , podendo tais cor-
relatas situar-se quer no mesmo nível, quer em níveis diferentes:
a. As unidades que têm correlatas no interior do mesmo nível - como
as funções de Propp - constituem funções distribucionais.
b. As unidades que têm correlatas no interior de níveis diferentes, cons-
tituem funções integrativas.

A partir dessa divisão elementar, Barthes distingue quatro modalidades defunções,


duas distribucionais, dotadas de correlatos sintagmáticos, horizontais, e duas integrativas,
cujos funtivos são correlatos verticais:

1. Constituem funções distribucionais os núcleos oufunções cardeais e as catálises.


Barthes as tem por unidades da historia, que dizem respeito às ações
que formam os acontecimentos narrados.
1.1. Os núcleos ou funções cardeais correspondem às funçães-pivô de Bremond: elas
inauguram, mantêm ou desfazem uma incerteza relativa ao fazer dos atores,
remetendo o leitor a um antes ou a um depois que complementam o
sentido local de dada ação.
Assim, o discurso que começa dizendo que o atar x partiu para deter-
minado local abre uma incerteza quanto ao futuro desenrolar dos acon-
tecimentos: x poderá chegar ou não ao local visado; tal incerteza só se
desfará depois, em um momento posterior da leitura, e isso caracteriza
uma função nuclear.
370 • A Identidade e a Diferença

Algo parecido ocorre, mas em um percurso de leitura invertido,


quando lemos que o atol' x foi identificado por meio de uma Marca,
um ferimento no pé, digamos; nesse caso, remontamos na memória
o curso dos acontecimentos até o momento da história em que esse
atol' foi ferido, momento esse que passará a significar, por efeito de
uma retrodeterminação, não mais ferimento, Dano etc., mas, sim-
plesmente, Marca Cé Marca todo e qualquer sinal que se atribui a um
personagem quando ele serve, mais tarde - depois - , de meio de
identificação desse personagem).
Os núcleos têm, portanto, diríamos nós, uma funcionalidade referencial.
1.2. Enquanto isso, as catálises são funções dotadas de funcionalidade fática, que
não requer nenhuma complementação anterior ou posterior, pois elas
estão dotadas só da finalidade de preencher os "espaços vazios" que separam
duas funções cardeais da história, prolongando o efei to de uma delas, em
relação à qual a catálise se comporta como uma espécie de apêndice
expansivo, de ação-satélite.
Exatamente porque possui uma funcionalidade referencial muito
tênue, a catálise pode ser retirada de um discurso sem por isso
modificar sensivelmente o curso da história que ele exprime. Em
compensação, se o fizermos, a trama e o discurso - quer dizer, não
o que se conta, mas o modo como se diz isso que se con ta - ficam irre-
mediavelmente alterados.
Os relatos policiais, as histórias de mistério e as telenovelas são for-
temente catalíticos. N os primeiros, as catálises surgem com a finalidade
de, semeando pistas falsas por meio do procedimento da ''falsa motivação"
Cque já estudamos com os formalistas russos), desorientar o leitor, coisa
que alimenta, por um lado, seu interesse pela história - pois não há
caso policial que resista à falta de segredo: quem prestaria atenção a
uma história de detetives em que logo de cara deciframos todos os mis-
térios? - e que evita, por outro lado, que essa história perca o efeito
de suspense, típico do gênero.
Na telenovela brasileira, a catálise, além de uma finalidade puramente
dilatória, de retardamento do desfecho da ação, possui uma utilidade com-
plexificadora: ela permite desviar o curso principal da ação com o fito de
focalizar as "histórias paralelas" de outros atores, montadas sobre outros
tantos fios da trama, os quais, à medida que vão sendo incorporados
na história principal, iluminam certos aspectos obscuros dela e
permitem a esse gênero de narrativas aproximar-se mais do romance,
no sentido de exprimir "a totalidade de um mundo", com todos os
paradoxos e contradições.
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 371

2. Constituem Junções integrativas as ações e incidentes que não se reportam à


história prop'riamente dita - quer dizer, ao que os atoresJazem - , reportando-
se, antes, às caractedsticas ''pessoais'' de cada um deles, de modo a dizer o
que eles são.
Barthes discrimina duas modalidades deJunções integrativas, queJocalizam
o ser dos atores, os índices e os informantes:
2.1. São índices as Junções que prestam inJormações concernentes à identificação
caracte'riológica do ator, mostrando o que ele é ou parece sel~ o que ele sente
e pensa ou finge sentir, de modo a nos instruir sobre o "espaço interior"
do personagem, suas características "psíquicas", sua ideologia, suas
crenças, suas paixões e sua índole.
As micronarrativas de propaganda exibidas na televisão são fortemente
indiciais. A propaganda de cigarros ou de bebidas, por exemplo, mostra
personagens que fumam ou bebem rodeados de veículos caros, lugares
sofisticados, roupas dispendiosas e jovens belas. Cada uma dessas coisas
é o índice do statussocial do personagem, símbolos de seu poder e prestígio.
SuaJunção é claramente conativa: eles servem para persuadir o leito'r; que se iden-
tifica com o "herói" da propaganda, a consumir os mesmos produtos que ele usa.
2.2. Os inJormantes, enfim, produzem a inJormação referente às circunstâncias de
espaço e tempo exteriores, enquadrando a ação no marco de uma determinada
"realidade" projetada como "o mundo em que decorre a histólia". Os infor-
mantes são, por isso, operadores da ancoragem espácio-temparaI (Greimas)
da história, elementos encarregados de construir o efeito de sentido
"história real" (a construção da verossimilhança indispensável à ficção) .

Quando Machado de Assis escreve, na abertura do conto "Mariana":

Que será feito de Mariana? perguntou Evaristo a si mesmo, no Largo da Carioca. [... ] Era
em 1890. Evaristo voltara da Europa dias antes, após dezoito anos de ausência. Tinha saído do Rio
de Janeiro em 1875 [... ] mas o vi<~ante põe e Paris dispõe.

A ilusão de realidade, fundamento da verossimilhança, começa a ser cons-


truída com os topônimos que se aplicam a espaços urbanos do Brasil e do exterior:
existe uma cidade chamada Paris, uma outra chamada Rio de Janeiro, onde se
encontra um logradouro denominado Largo da Carioca, assim como há um con-
tinente Europa. A mesma ilusão prossegue com os efeitos obtidos da leitura de
informantes constituídos por cronônimos (nomes de épocas ou períodos: 1875,
1890) e por antropónimos (Mariana e Evaristo). Os antropônimos, topônimos e
cronôl1imos criam o efeito ilusionista da verossimilhança do relato, ancorando a
história no suporte referencial dado pelos informantes actoriais e circunstanciais;
372 • A Identidade e a Diferença

funda-se, assim, uma série de acontecimentos referidos a um dado ator enquadrado


por espaços e tempos "reais".

A Multifuncionalidade da Função

Vistas, assim, uma por uma, as diferentes funções que um fragmento nar-
rativo pode desempenhar na obra, é preciso lembrar que um mesmo segmento
pode incumbir-se de realizar mais de uma função dentro dela, surgindo ora com
dada finalidade, ora com outra, na dependência das relações em que o vai colhendo
a nossa leitura, à medida que progride de um ponto para outro do discurso.
Seja, por exemplo, a seguinte série funcional:

1. ai apanha um revólver ---72. ai examina a arma ---73. ai se lembra de que


a2 matou ag, amigo de ai' com essa arma ---74. ai aponta o revólver para a2 ---7 5.
ai observa que há nuvens pretas no céu ---7 6. ai insulta a a2 ---7 7. ai sorri ---7 8. ai
dispara ---7 9. ai vê a2 tombar ---7 10. ai deixa de sorrir ---7 11. ai' arrependido,
socorre a2'
Na seqüência acima 1, 4, e 8, de um lado, e 8 e 11, de outro, constituem
duas seqüências elementares (Bremond) compostas só de núcleos:

• 1 "apanhar um revólver" inaugura uma incerteza (ai vai usá-lo ou não?).


• 4 "apontar a arma" inaugura outra incerteza (ai atira ou não?).
• 8" a l dispara" responde à incerteza anterior e fecha a primeira seqüência
elementar.

Raciocínio análogo é aplicável à seqüência 8 e 11. Em ambos os casos lidamos


com seqüências elementares, que se combinam em seqüências complexas, no
dizer de Bremond.
Relativamente às duas seqüências acima, todas as demais funções - 2, 3, 5,
6, 7, 9 e 10- constituem catálises: elas se referem a ações dos personagens qúe
não são necessárias para o cabal entendimento da fábula, ainda que possam escla-
recer a motivação das ações componentes das seqüências elementares anteriores.
Não sendo indispensáveis, contudo, para o desenvolvimento da história em si,
podem ser suprimidas sem dano nenhum para o entendimento do seu curso.
Ao mesmo tempo, mas em uma outra ordem de considerações, 3, 6, 7, 10
e 11 são índices: eles informam o estado de ânimo de ai' como ele evolui, na
dimensão passional, indo do desejo de vin~ança (3) a um crescendo de ódio -
(5) é, mais que um informante temporal, índice de uma "paisagem interior", de
um estado atormentado de ânimo, e 6 é a exteriorização dessa cólera - daí
o Estruturalismo Semiológico Francês: Lévi-Strauss, Bremond e Barthes • 373

passando à determinação fria de vingar-se ( 7) , até a reviravolta desse percurso pas-


sional: vendo a2 cair, e ferido, aI dá-se conta do crime que acaba de cometer (10)
e se arrepende do gesto que praticou (11).
Como se depreende, ainda, do mesmo exemplo, o segmento (5) sincretiza
duas funções estruturalmente diferentes:

• "aI observa que há nuvens pretas no céu" vale, por um lado, como um informante
temporal, engendrando a "ilusão da realidade" - comunicando a possibi-
lidade de que chova de um momento para outro, ela ancora a história
dentro das circunstâncias de uma temporalidade verossímil.
• Funciona, por outro lado, como um índice, quando a tomamos no seu valor
simbólico, como elemento operador da conotação alegótica, em que uma notação
do espaço extetior descreve, metafoticamente, o estado de um espirita em seu
espaço interior.

o diagrama a seguir resume a tipologia funcional de Barthes, ao nível das


funções (primeiro nível) e dos actantes (segundo nível) da história:
374 • A Identidade e a Diferença

Funções
I I
I
\

Funções Funções
Distribucionais Integrativas

I
Correlatos horizontais Correlatos verticais,
que se referem ao fazer que se referem ao ser
do personagem do personagem

I
I I I I
Núcleos Catálises Índices Informantes
I
I
Informan tes Informantes
Actoriais Circunstanciais

I
Informantes Informantes
Espaciais Temporais

Figura 24: Tipologia das Funções Narrativas dos Dois Primeiros Níveis (segundo Banhes).
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SOBRE O AUTOR

Edward Lopes é doutor em Letras (Língua Espanhola, Literatura Espanhola e


Hispano-Americana) pela FFLCH/USP. Obteve a livre-docência em 1977 e foi
professor adjunto, até 1981, e professor titular, até 1983, de Teoria da Literatura
e Literatura Comparada do ILCSE-UNESP, Araraquara. Atualmente, aposentado,
é professor visitante na UFRGN, de Natal. Publicou vários livros nas áreas de
lingüística e literatura, além de dois romances.
ACADÊMICA

1. Chordata: ~Manual pam um Curso Prático


Elizabeth Hofling e outros
2. O Renascimento
Tereza Aline Pereira de Queiroz
3. Princípios de Eletrodinâmica Clássica
J osif Frenkel
4. Labomtório de Virologia
José Alberto Neves Candeias
5. Controle Robusto Multivariável
José Jaime da Cruz
6. Jornalismo Económico
Bernardo Kucinski
7. Introdução à Biologia Vegetal
Eurico Cabral de Oliveira
8. Mecânica Clássica Moderna
Walter F. Wreszinski
9. Introdução à Física Estatística
Sílvio R. A. Salinas
10. Probabilidade: Um Curso Introdutório
Carlos A. B. Dantas
11. Modelagem e Simulação
Claudio Garcia
12. Cronobiologia
Nelson Marques e Luiz Menna-Barreto (orgs.)
13. Estudos de Morbidade
Maria Lúcia Lebrão
14. Preparos Cavitários para Amálgama e Resina
Composta
André Luiz Baracchini Centola e outros
15. A Identidade e a Diferença
Edward Lopes
Título A !dentidrule e a Diferença
Produrr!o Cristina Fino
Marcos Keith Takahashi
Ana Lúcia Novais
Ricardo Campos Assis
Projeto Grríjiro Plinio Martins Filho
CajJa Lygia Eluf
l~'rlitomrrlo Eletríinim Ponto & Linha
Erlitorrlrrlo de Texto Alice Kyoko Miyashiro
Revisrlo de Texto João Batista Vaz
Rrcvisrlo rle Provas Luzia Mara Pires Guasco
Myrian Kobayashi Yamamoto
llustrrlrries Ponto & Linha
Divulgarrlo Thelma Lúcia Guedes Camelo
Renata Maugeri Amorin
Ser:retaria /~rlitorial Rose Pires
Eliane Reimberg
Formato 19,5 x 27 cm
il1rlllr:1ut 32 x 52 paicas
TiJ)(J[ogia New BaskervilIe 11/ 16,25
Pa1'e[ Cartão Supremo 250 gim' (capa)
Rio Print 90 gim' (miolo)
NÚlIlem de Pú/,'úws 392
1'iragem 1500
/,aserjilm Ponto & Linha
!mJJre.w!o Imesp
como a condenação do estruturalismo,
feita por se tores letrados em nome de um
humanismo simultaneamente senil e
inofensivo. O estruturalismo é apenas um
método e, como diz o autor, citando Jean
Charles, "estuda-se o fundo do mar com
uma sonda. Se ela traz de volta
garranchos, o fundo é garranchento. Se
ela volta enlameada, então o fundo é
lamacento. Se ela não traz nada, então o
cabo da sonda é curto demais".
A obra está dividida em duas partes. Na
primeira, o autor se debruça exaustivamente
sobre o trabalho e o legado saussurianos,
abordados sob os mais diversos ângulos..
Trata-se ainda de discutir a atualidade, o
alcance e a validade da teoria fundadora de
Saussure, repleta de "novidades absolutas".
A principal delas, segundo Starobinski,
estava na descoberta de que "todo texto é
um produto produtivo". Na segunda parte,
discutem-se os desdobramentos dos
postulados saussurianos, presentes no
formalismo russo e nos estruturalismos
francês e tcheco. Seja pela análise
abrangente, seja pelo aprofundamento dos
pontos abordados, A Identidade e a Diferença
constitui-se, desde já, num substancioso
manancial de referências para todos os
estudiosos da narrativa e de suas teorias.
Ferdinand de Saussure, Charles Sanders
Peirce, Jan Mukarovski, Lévi-Strauss, Roland
Barthes, Claude Bremond, Michel Foucault,
Vladimir Propp e Mikhail Bakhtin são ape-
nas alguns dos nomes cujos trabalhos são in-
vestigados e colocados sob uma nova luz nes-
te instigante livro de Edward Lopes, um dos
maiores especialistas brasileiros em semiótica.
Privilegiando o modelo inaugurado por
Ferdinand de Saussure, o autor refaz aqui o
percurso das teorias estruturais da narrativa
elaboradas ao longo do século xx. Infinitas
são as prosas do mundo, como disse Barthes.
E Lopes - autor da novela Travessias, na qual,
parodiando as novelas picarescas, se revela
um fino designer da linguagem, capaz das
mais variadas dicções -, obviamente, sabe dis-
so muito bem. E talvez este livro esteja a pro-
por que os modos de apropriação dessas pro-
sas sejam tão infinitos quanto elas próprias.

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OFICIAL I

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