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Poesia angolana contemporânea

(1970-2010)

Nazir Ahmed Can


Universidade Federal do Rio de Janeiro
27-01-2016
PORTUGAL COLONIAL
Nada te devo
nem o sítio
onde nasci

nem a morte
que depois comi
nem a vida

repartida
p'los cães
nem a notícia

curta
a dizer-te
que morri

nada te devo
Portugal
colonial

cicatriz
doutra pele
apertada

(David Mestre, 1972)


ESPERA
Existo acento de palavra, carapinha
recordação áspera de monandengue,
mapa de conversas na visitação da lua,
grávida luena sentada no verso da fome.

aqui esqueço África, permaneço


rente ao tiroteio dialecto das mulheres
negras, pasmadas na superfície do medo
que bate oblíquo no quimbo quebrado.

num gabinete da Europa, dois geógrafos


vão assinalar a estranha posição
dum poeta cruzado na esperança morosa
das palavras africanas aguardarem acento.

(David Mestre, 1973)


IDENTIDADES
a identidade
ou
o voo esquivo
de pássaros nocturnos
em torno da lua
identidade
é cor
de burro fugindo
(Arlindo Barbeitos, 1976)
O que há aqui
é ter-se a justa percepção do espaço
e as importantes coisas que o sustêm:
o exacto norte que o temor encerra;
a votiva escravidão que o mar inspira;
o leste e o som remoto de uma extinta glória;
o sul magnético
e a festa que anuncia.
(Ruy Duarte de Carvalho, Decisão da idade, 1977)
o sal do sul ao sol
o sol em mãos do sul
e mãos de sal ao sol
O sal do sul em mãos de sol
e mãos de sul ao sol
um sol de sal ao sul
o sol ao sul
o sal ao sol
o sal o sol
e mãos de sul sem sol nem sal
Para quando enfim amor
no sul ao sol
uma mão cheia de sal?
(Ruy Duarte de Carvalho. A Decisão da Idade. 1977)
Atento, desde sempre, às falas do
lugar, nada sei dos sinais se os não confirmo
no encontro da memória com a matriz,
quando a carência impõe esforços de
equilíbrio não entre o corpo e as formas que
o sustém mas entre as margens de uma
paragem breve.
(Ruy Duarte de Carvalho, Hábito da terra, 1988)
Não há lugar achado
sem lugar perdido.
Casam-se além, as falas de um lugar,
no encontro da memória
com a matriz.
A ausência, só,
impõe ao corpo a urgência do equilíbrio
não entre o corpo e as formas
da paisagem
mas entre as margens
da permanência a haver.
[...]
Os tempos
do poema
são afinal parcelas
da cadência
de que se faz o corpo
do poema
De que adianta
iluminar-lhe o chão?
(Ruy Duarte de Carvalho, Hábito da terra, 1988)
SUBPOESIA
Subsarianos somos
sujeitos subentendidos
subespécies do submundo
subalimentados somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos
do subdólar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente.
(José Luís Mendonça, 1997)
Semeados um pouco por todo o lado de um vasto
territorio existem santuários que, como marcos
geodésicos da memória, estabelecem uma
especial cartografia de sinais, histórias
acontecidas. Ex-votos [...] alertam para o jogo
sagrado [...] Ilhas de granito, lentas como certas
tardes de calor e poeira, escondem, em ninhos
muito afeiçoados, os textos sobrepostos a branco,
vermelho e negro, que antigas sociedades da
palavra deixaram nas paredes em baixo-relevo.
Labirintos do gesto enquanto enleio e, como tal,
texto sagrado.
(Ana Paula Tavares, 2003)
ORIGENS
Guardo a memória do tempo
em que éramos vatwa,
os dos frutos silvestres.
Guardo a memória de um tempo
sem tempo
antes da guerra,
das colheitas
e das cerimónias.
(Ana Paula Tavares, 2001)

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