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Resumo: Esta comunicação trata da arte na Índia, com foco na dança/teatro, a partir da escritura
Natya Sastra. Para tanto, é primeiramente estabelecida a posição de destaque do conhecimento
passado através das escrituras em comparação com os outros meios de obter conhecimento.
Depois, pretende-se mostrar como o Natya Sastra estabelece a relevância da arte que leva
conhecimento e ordem à sociedade e conduz à autoanálise e autoaperfeiçoamento do ser e em
que pontos vai ao encontro das propostas de artistas como Jerzy Grotowski e Antonin Artaud.
Também é colocada a relação pretendida entre artista/arte e espectador. Deste modo, é possível
perceber que a arte indiana trata de diversos questionamentos atuais e ocidentais, estando além
da limitação geográfica e temporal, por tratar da essência humana.
Palavras-chave: Arte indiana. Natya Sastra. Dança indiana. Antonin Artaud. Jerzy Grotowski.
As artes, ciências, filosofias – tudo o que há dentro da tradição indiana, embora não
exclua os diferentes meios de obter conhecimento, os considera como formas de
suporte. Mas a tradição se fundamenta completamente, de fato, em sabda, no verbo sem
defeitos, nas palavras reveladas – que são as chamadas escrituras ou sastras. Um sastra
lida com questões atemporais essenciais, ainda que possa trazer pontos mais superficiais
que refletem seu momento histórico ou local. Neste caso, os próprios sastras esclarecem
que pontos não-essenciais podem e devem ser ajustados segundo o tempo, o local e as
circunstâncias. Eles também ditam regras relacionadas a determinados conhecimentos
delimitados por certa escritura. É interessante notar, no entanto, que por se tratar de algo
revelado divinamente, embora haja certa divisão de áreas de conhecimento, tal divisão é
didática apenas. Tendo vindo de uma fonte que conhece muito bem o todo, a
especialização neste caso não fragmenta os saberes, mas o apresenta de tal modo que
possa ser absorvido pelos estudantes ao mesmo tempo em que mantém a essência e o
objetivo de todas as áreas em consonância, de modo que as diferentes áreas não entram
em conflito, nem se excluem, nem negam umas às outras. O que ocorre é que, ás vezes,
os diferentes conhecimentos são vistos como degraus de uma grande escada que leva a
um objetivo – caso possam ser considerados conhecimentos em diferentes níveis - ou
mesmo são vistos como trilhos que levam um trem ao seu destino e que estão, portanto,
lado a lado – no caso de conhecimentos em mesmo nível, mas pertencentes a diferentes
áreas de atuação.
A pessoa que recebe o conhecimento também precisa ter certas qualificações. Ela deve
ter uma atitude aberta, estar disposta a ouvir e a aprender. Ela deve também fazer
perguntas, neste mesmo espírito de aprendizado – e nunca de forma desafiadora ou
desrespeitosa. E, por fim, deve ter uma atitude pró-ativa de serviço. O ato de servir está
sempre presente no estabelecimento de uma relação concreta entre o aprendiz, o mestre
e o conhecimento em si. Isto é um ponto muito importante porque todo o conhecimento
da tradição indiana tem um único objetivo: a transcendência. E, para atingi-la, é
necessária uma ação prática de trabalho sobre si no sentido de despertar qualidades que
se manifestam com a atitude sincera de serviço. Também o ato de servir faz com que a
pessoa tire o foco de si mesma e de sua própria satisfação para ir além de seus
pensamentos, desejos e dualidades, ou seja, para que ela pratique transcender ao menos
uma primeira camada de autocentrismo, dando o primeiro passo em direção ao seu
objetivo. Algumas pessoas podem já ter dado vários passos nesta jornada, enquanto que
outras podem estar ainda no início. Assim, nas escrituras, há tanto os conhecimentos
que facilitam a vida neste mundo - de modo que a pessoa fique com a mente tranqüila e
possa se concentrar em sua evolução - quanto há os conhecimentos especificamente
voltados à transcendência de forma exclusiva. De qualquer modo, não se perde de vista
o objetivo, ainda que se anteveja a existência de pessoas que, a princípio, busquem
objetivos secundários, como o próprio bem-estar neste mundo. No entanto, é entendido
que, ainda que tais pessoas não se interessem pela transcendência, pela simples
execução dos diferentes conhecimentos em diferentes níveis, elas naturalmente se
elevarão ao ponto de desejar e conseguir chegar ao objetivo final. Neste sentido, o
Natya Sastra esclarece a respeito de natya, que aqui chamamos arte cênica e que se
refere, basicamente, ao seu teatro/dança:
Há, desta forma, uma ênfase no tipo de pessoa que pode praticar a arte – Brahma
procura alguém que seja um sura, um ser divino, e o conhecimento é passado para os
sábios, aqueles que são buscadores das verdades mais elevadas, que são autocontrolados
- os santos. Isto nos remete a Jerzy Grotowski, o diretor de teatro polaco. Para ele, o ator
devia ser alguém que não está em busca de reconhecimento ou fama, mas que se dedica
completamente ao seu ofício, vive asceticamente e pratica exercícios espirituais como o
yoga. Seu artista teria uma busca espiritual, mas também sem se perder em um mundo
interior ou em devaneios. Assim como na dança clássica indiana, por exemplo, ele parte
do corpo e da técnica para transcendê-los. “O trabalho de Grotowski sempre foi
associado a um método de treinamento físico árduo e de grande dificuldade técnica para
que o ator pudesse atingir uma percepção modificada da realidade e de si mesmo, para
além do cansaço”. (COELHO, 2009, p. 166). Além disso, Grotowski diz, claramente, a
respeito da relação entre a técnica e seu objetivo com a arte: “Não é a técnica que me
interessa. Mas, para atingir o que mais me interessa, devo concentrar-me em problemas
técnicos essenciais”. (BARBA, 2012, p. 203)
Além do trabalho sobre si, o divino está fortemente presente tanto na arte indiana
quanto na arte de Grotowski. Tatiana Motta Lima diz sobre a relação de Grotowski com
Deus:
O que se destaca no texto acima é que o que Motta chama de místico e do Deus
experienciável, está associado ao que chama „religião dinâmica‟. E, na tradição indiana
este é, de fato, um terreno de investigação. Pois, como explicado no princípio deste
trabalho, na tradição indiana há três pontos essenciais na busca da evolução espiritual e
de qualquer aprendizado – ser receptivo, servir e questionar, muito embora não seja
desejável que tal questionamento seja blasfemo ou agressivo e nem precisa ele ser visto
de tal maneira devido à sua simples existência, já que é naturalmente bem-vindo em tal
tradição. Talvez o questionamento e a investigação sejam vistos como heréticos por
termos já arraigado em nosso pensamento que a religião é aquilo que, na citação, é
chamado „religião estática‟ e a própria existência de tais investigações no campo da
religião já seja vista, do nosso ponto de vista com forte pano de fundo judaico-cristão,
como uma luta contra Deus, por ir pelo caminho de uma anti-conversão. Porém, dentro
da tradição indiana a mera conversão está, geralmente, fora de questão ou é, no mínimo,
mal vista, e não existe busca espiritual sem investigação, o que elimina este problema
com o qual os ocidentais possam ter que lidar devido a uma separação entre religião e
misticismo ou uma incompatibilidade entre conversão e investigação.
Outro homem do teatro cuja arte se volta diretamente às questões que fazem parte da
dança e do teatro indianos é Antonin Artaud. A questão espiritual, metafísica e mesmo
religiosa, no sentido etimológico da palavra, se faz fortemente presente em Artaud -
assim como na Índia - em sua busca de um teatro que, ao mesmo tempo, situasse o ser
no mundo, descortinasse a ele outros mundos e lhe permitisse se tornar um novo ser, tal
como propõe também a arte cênica indiana:
Artaud, assim como muitos que vão buscar as artes cênicas indianas com toda sua
tradição, pretendia retomar a vida e o significado mais profundo que tais artes antigas
carregam, junto com a capacidade de levar o ser a um estado poético, acima do real.
Este estado foi perdido pelo ser atual e ocidental, em uma vida seca e desconectada da
natureza, do universo, do cosmos.
Vê-se, portanto, que há uma insatisfação com o estado das coisas em sua incompletude,
fragmentação, superficialidade. De modo geral, a sociedade como um todo já percebeu
que muitas de suas buscas externas e passageiras têm levado o mundo e os seres a uma
existência sem sentido e a atitudes questionáveis em âmbito individual, social e
universal. A arte, com sua capacidade de mostrar e tocar no transcendente, ao mesmo
tempo em que utiliza dos instrumentos sensórios para falar aos seres humanos, pode
atuar como aquela que puxa o véu entre os mundos, acordando a consciência para
realidades maiores.
Vários artistas cênicos têm buscado, desta forma, explorar todo este potencial da cena
de diferentes maneiras, com o objetivo de ir além e ir a fundo, em um movimento
contrário ao do ser humano reduzido a um consumidor ou a um fantoche político ou a
um ser programado socialmente para fazer parte de uma massa. Trata-se, de fato, de ir
contra a redução do ser para encontrar a grandeza de sua essência. E, uma vez
encontrada, trata-se de mergulhar na essência do artista - aquele que está disposto a se
sacrificar, se desnudar, se desmascarar – para transformá-lo em ponte pela qual os
outros possam ir ao encontro do que está além; para transformá-lo em tela na qual se
possa vislumbrar a projeção divina. Técnica e espontaneidade, individualidade e
coletividade, especialização e abrangência – tudo está contido e harmonicamente
encaixado nas artes indianas para conduzir o artista nesta busca pelo exercício pleno de
suas capacidades filosóficas, poéticas e espirituais. Através de suas escrituras,
especialmente do Natya Sastra, a arte indiana sacia o intelecto com sua organização,
explicações e lógica. Através dos gurus, ela inspira com o exemplo vivo, referencia com
a experiência e lança clareza com o olhar abrilhantado do conhecimento passado através
de gerações. Através da relação com os outros a que submete o artista, ela estabelece a
necessidade de servir, criar pontes e se relacionar com os diversos tipos de pessoas,
exercitando a alteridade e a inclusividade. Através do trabalho que exige que o artista
faça sobre si, a arte revela a ele realidade mais elevada de sua identidade espiritual e lhe
fornece meios de agir segundo tal identidade, propiciando o surgimento de um novo ser
ou o renascer daquele que está há muito adormecido.
Referências