Você está na página 1de 16

INTRODUÇÃO

E ste livro é um exercício de pesquisa e especulação sobre o


que de mais curioso ainda há para contar sobre os reis e rainhas
portugueses. Utilizando dados históricos e biográficos, Alexandre
Borges e Hugo Rosa embarcam numa viagem que não é apenas
uma incursão no tempo, mas sobretudo uma viagem que constan-
temente pisa a fronteira que separa a Lenda da História.
Este volume contém relatos acerca da intimidade, da vida fa-
miliar e desventuras românticas dos soberanos portugueses, mas
também mergulha nas zonas mais obscuras do jogo político e dos
bastidores do poder. Nestes e noutros territórios, o leitor desta
obra estará sempre perante narrativas que revelam as histórias
que a História não inscreveu nos manuais de liceu. No entanto,
em alguns casos tratam-se de momentos ou segredos que condi-
cionaram o país e a sua sociedade.
Nesta série de dez histórias, organizadas cronologicamente,
tentaram os autores inscrever excertos de uma História de Por-
tugal alternativa, onde o poder é mais humano, onde o passado é
mais real, onde a História é feita também de afectos, de amores,
de raivas, de fragilidades e ambiguidades.
Em última análise, ler este livro é aproximarmo-nos da intimi-
dade, dos fantasmas e esperanças daqueles que governaram Por-
tugal ao longo dos séculos. E fazer isso é também conhecermo-
-nos melhor.
D. Afonso Henriques

O castigo maternal
E stá protegida pelos séculos a verdadeira história do pri-
meiro rei português. Aquele que tenha sido e aquilo que tenha fei-
to D. Afonso Henriques jamais poderá ser trazido à luz do dia no
esplendor da real decorrência dos factos. Dele se diz que era um
gigante de quase dois metros de altura, que fez nascer um reino
à força quase exclusiva da sua imensa bravura, que incendiou ba-
talhas à frente das suas tropas, empunhando uma espada imensa
que D. Sebastião pediria emprestada e faria consigo desaparecer,
mais de 400 anos depois, na infame jornada de Alcácer Quibir. De
tudo isto, que será verdade? Que pormenores foram gerados ape-
nas pelo imaginário colectivo de um país necessitado de heróis?
Ter-se-á o jovem nobre tornado D. Afonso I pela dinâmica de um
processo que o levou a bater em D. Teresa, a própria mãe? Será
este somente um rodapé ficcional acrescido ao texto verídico pela
voz popular? É talvez, hoje, impossível discernir. Resta-nos juntar
os pedaços da lenda aos da História e perscrutar, senão a verdade,
pelo menos um sentido que atravesse os mistérios de um tempo
iniciático, envolto nas trevas comummente atribuídas às memó-
rias medievais.
Afonso perdeu o pai bem antes de se poder aperceber do
que esse acontecimento implicava para o seu próprio destino. D.
Henrique falecia contava o filho três inofensivos anos, ficando o
Condado Portucalense entregue ao arbítrio da esposa, D. Teresa.
O passar dos anos e o crescimento da criança a fazer-se homem
revelaria uma D. Teresa não tanto em sintonia com o desejo do
marido defunto de fazer o condado descer pelas terras dos sarra-
cenos, mas antes em aproximá-lo da Galiza. Ao jovem de 11 anos
deparava-se, sobretudo, um outro dado que não podia compre-
ender: a mãe parecia ter esquecido, rapidamente, a memória do
pai e, depois de outros envolvimentos, perdia-se de amores por D.
Fernão Peres de Trava, um nobre galego com o qual, se não ca-
sou, terá, pelo menos, passado a viver maritalmente em Coimbra,
numa relação classificada de incestuosa pelas tábuas de valores da
época, tendo em conta o anterior relacionamento de Teresa com
Bermudo, outro membro do clã Trava, irmão do seu novo esposo.
Estávamos em 1121. A ira avolumava-se dentro do infante, que
sentia, não se sabe se nos genes, se no resto difuso de uma recor-
dação efectiva, o ímpeto de prolongar os anseios paternos. É neste
percurso que se dirige sozinho, no dia de Pentecostes, à Catedral
de Zamora, território leonês, e se arma cavaleiro, ainda adolescen-
te, acabado de completar 16 anos, a maioridade política de então,
num gesto elucidativo do seu carácter destemido e solitário, ins-
pirado no que haviam feito outros futuros monarcas da História,
à espera da ordem de ninguém para avançar quando quer que o
decidissem fazer. Subiu ao altar de São Salvador e colocou sobre
o seu corpo as armas militares que de lá retirou. Não o fizeram o
seu pai morto, a sua mãe apartada, o arcebispo de Braga, possivel-
mente o inspirador de tal acto. Uma espada, um escudo, um elmo,
um cinto, uma loriga.
A distância entre mãe e filho agravava-se, até que, pouco tem-
po mais tarde, no Verão de 1127, decidiam-se descongestionar os
seus poderes e concordava-se que Afonso governasse até ao Dou-
ro, a partir de Guimarães, e D. Teresa daí ao Mondego, com sede
na mesma cidade em que vivia com Ferrão Peres de Trava.
Mas era claro para qualquer um deles que tal não bastaria
para assegurar a paz eterna entre as partes e já as classes sociais
tomavam partido por uma ou outra das facções. A tensão acumu-
lava-se e D. Afonso nada fazia por evitá-la. Estávamos quase em
1128 e chega aos ouvidos de Afonso VII, rei de Leão e Castela, o
rumor de que o príncipe granjeava já mais poder do que aquele
que alguma vez se esperaria em tão pouco tempo, escapando ao
domínio da mãe e desejando fazer frente à sombra castelhana.
Apercebendo-se da gravidade que constituía o conhecimento de
tal afronta e do cerco que já se montava em torno do castelo de
Guimarães, apressou-se o aio Egas Moniz em viajar até àquele
território para falar ao rei Afonso VII, tentado dissuadi-lo de
qualquer intuito de anular o constrito círculo em que ordenava
Afonso Henriques. Explicou que tal não passava de uma perigosa
mentira, que Afonso nada mais nutria por Leão e Castela de que
uma imensa admiração e respeito e que, como prova disso mesmo,
ali se deslocaria para beijar a mão ao senhor de tão grandioso
poderio militar.
Contudo, de regresso ao Castelo de Guimarães e confessan-
do a sua acção, teve Egas Moniz de se curvar, pela primeira vez,
diante da fúria do infante. O orgulho do jovem Afonso jamais se
poderia compadecer de semelhante cobardia e, ainda que tenha
perdoado ao seu amado aio, negar-lhe-ia, liminarmente, qualquer
hipótese de, alguma vez, vir a corresponder a tal promessa. Pelo
contrário, tornar-se-ia ainda mais feroz e célere nos seus objecti-
vos de expansão e preparava-se, desde logo, para o seu primeiro
combate, um confronto difícil e inqualificável que, mais do que
uma questão bélica e política, colocava frente a frente um filho e
uma mãe.
Na transição de 1127 para 1128, penetra, pela primeira vez,
no território comandado por D. Teresa e Fernão Peres de Trava,
conquistando os importantes castelos de Neiva e Feira. As tropas
maternais pedem tréguas, mas as tentativas de negociação saem
goradas dos encontros de Vila Nova de Paiva.
É, portanto, pouco depois que se dá a batalha de São Mamede,
ganhando esse nome ao lugar em que ocorreu. Contam os relatos
que aos nossos dias chegaram que não se terá a mesma arrasta-
do pelo tempo nem feito correr demasiado sangue ou levantado,
sequer, muitas dúvidas acerca daquele que seria o seu vencedor.
Senhor, já, de um maior e melhor apetrechado número de tropas,
derrotou com relativa facilidade D. Afonso Henriques o exército
de D. Teresa e D. Fernão de Trava.
É posto o embate que nasce o mito. Como terá castigado o
pouco piedoso príncipe os vencidos daquela batalha, ainda que
se tratassem de sua mãe e respectivo esposo? Tê-los-á castigado
sequer? Os historiadores não encontram provas que atestem a ve-
racidade da tese segundo a qual D. Afonso bateu em D. Teresa e,
depois, a deixou a ferros num cárcere em Coimbra, desconhecen-
do-se o destino traçado a Fernão de Trava. Contudo, não sobre-
viveram, de igual modo, provas que sustentem o contrário; aliás,
investigando não encontraremos na História qualquer relato que
indicie uma resposta de Trava ou de D. Teresa, o que seria tanto
mais estranho quanto ambos sabiam, perfeitamente, dos desejos
expansionistas do futuro D. Afonso I. Teriam ficado aquietados
na sua liberdade, aguardando e assistindo como meros espectado-
res ao progresso do aventureiro jovem, nada tornando a encetar
para o demover de tais acções? Parece estranho, como estranhos
parecem a coincidência que teria hora mar cada para os últimos
anos de vida do rei, tal como veremos adiante, e o episódio do
Bispo Negro.
Resta, assim, espaço lógico para o sentido lendário. Sabemos
que D. Teresa entrou para um convento na Galiza naquele mesmo
ano, onde viria a falecer passados mais dois, isto é, em 1130. Mas,
antes disso, teria o filho colocado a mãe a ferros. Colérica, tê-lo-á
amaldiçoado com as seguintes palavras:

D. Afonso, meu filho, prendeste-me e deserdaste-me da terra


e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de meu marido. A
Deus peço que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E por-
que puseste ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a
criar com muitas dores do meu ventre a fora dele, com ferros sejam
as vossas pernas quebradas, e praza a Deus que assim seja.

Afonso prosseguiu a sua missão, independentemente de estas


ou outras profecias terem sido alguma vez proferidas, sem qual-
quer sinal de remorso ou arrependimento. Estava mais confiante
do que nunca nas suas capacidades, bem como na dedicação da-
queles que o seguiam, e principiava a estender os seus braços bem
para lá das muralhas do castelo que ficaria poeticamente conheci-
do como o berço de Portugal.
Não se sabe se, em alguma manhã, o rei terá despertado du-
rante o assalto dos fantasmas daquela maldição, mas o povo te-
mia que, um dia, anjos nefastos de Deus se abeirassem dos seus
lugares, a fim de lhes soprar a profetizada excomunhão do seu
senhor.
É do meio desta nuvem fria e difícil de investigar que surgiria
o Bispo Negro, para sobressalto dos mais supersticiosos e teste à
firmeza do jovem rei.
Haviam chegado a Roma as notícias do sucedido em São Ma-
mede e em Coimbra, bem como os lamentos e maldições de D.
Teresa. E, agora, a Igreja enviava um homem a quem chamavam
de bispo e cuja tez negra foi estranhada no condado. Chegava de-
baixo de moderado segredo, com o objectivo claro de concretizar
não só a excomunhão de D. Afonso Henriques, mas a de todo o
território portucalense, caso não se aceitasse libertar D. Teresa do
cárcere.
Tendo chegado a solo português, rapidamente se espalhou en-
tre os populares a notícia da chegada do bispo e os intentos por
detrás daquela deslocação. O bispo visitou o rei e apresentou-lhe
as cartas do Santo Padre, mas de pronto lhe respondeu D. Afonso
que ordem de ninguém o faria alterar o juízo sobre o que seria
mais favorável ao seu reino. E assim sendo, ao cair da noite, o
bispo excomungava toda a terra e preparava-se para fugir. Mal
chegando tal agouro aos seus ouvidos, deslocou-se o rei à Sé, onde
estavam reunidos todos os cónegos e vários outros homens de
Igreja e, perguntando se ali havia algum bispo, todos se afastaram,
quedando-se um, o estrangeiro de pele negra. Uma vez sozinhos
naquele lugar, bradou-lhe o rei que, se ele era bispo, lhe celebrasse
uma missa. Respondeu o bispo que não havia sido ordenado bis-
po e que não o poderia fazer, ao que D. Afonso reagiria de modo
ainda mais autoritário, dizendo-lhe que ele próprio o ordenava
bispo naquele instante, repetindo-lhe que lhe celebrasse uma mis-
sa. Tomado pelo medo, vestiu Martim Suleima os paramentos de
bispo e tratou de satisfazer os desígnios de el-rei.
De novo, as notícias correriam até Roma e o Papa, convicto da
heresia de D. Afonso, enviava, agora, um cardeal com a missão de
lhe ensinar a Fé.
Quando terá o cardeal chegado ninguém sabe ao certo, mas
poucos terão conseguido reconhecer os traços do seu rosto. A sua
estada terá sido muito breve, entrando em Coimbra num dia e
saindo nessa mesma noite. Posto o encontro com o rei e a renovada
recusa em libertar D. Teresa, quando todos dormiam, percorreu
o cardeal as ruas, excomungando toda a terra e seus habitantes,
pondo-se, de seguida, em fuga, a galope no mesmo cavalo em que
chegara, protegido por quatro cavaleiros e levando ouros, pratas e
animais. Cedo na alvorada, o rei foi informado do temível misté-
rio lançado sobre o País e, dispensando qualquer auxílio da corte
ou das suas tropas, lançou-se ele próprio na perseguição a esse
infame cardeal. Poucas horas depois, conta-se, tê-lo-á alcançado
e obrigado a parar, cerca do lugar da Vimieira, perto de Poiares.
Com uma mão agarrou-lhe o colarinho e com a outra desembai-
nhou a espada, ameaçando cortar a cabeça do clérigo. Os cavalei-
ros preveniram-no, então, de que, se o matasse, ninguém em Roma
já duvidaria de que era mesmo herege. Mas Afonso Henriques só
aceitou poupar-lhe a vida na condição de que aquele descomun-
gasse tudo quanto havia antes excomungado e que deixasse ali
todo o ouro, prata e animais que levava. O cardeal tudo aceitou de
pronto, por entre os tremores do frio e do medo. E, por fim, o rei
pousou a sua pesada espada e despiu-se por completo, mostrando
todas as feridas e cicatrizes que lhe marcavam o corpo grande. E
disse:

Cardeal, como eu sou herege, bem se mostra pelos sinais das


minhas feridas: estas em tal peleja, e estas em tal cidade ou vila que
tomei, e todas por serviço de Deus, contra os inimigos da nossa fé.
E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e prata, porque
estou com muita falta deles, e me são necessários para mim e para
os meus.

E o cardeal seguiu o seu caminho para Roma, logo depois de


el-rei lhe ter voltado as costas e partido de regresso a Coimbra.

Muitos anos mais tarde, senhor de um reino muito mais ex-


tenso e poderoso, já casado e pai de vários filhos, chegaria um dia
trágico para Afonso Henriques.
Não contava o rei com o poder e a estratégia de D. Fernando
II, rei de Leão, nem que existisse um pacto com o governador da
cidade, cercando-o em Badajoz, entre o castelo e a sua orla, os
mouros e os leoneses. Numa certamente hábil manobra, D. Afon-
so ainda conseguiu escapar-se ao cerco, mas, quando saía a cavalo
da cidade, embateu com uma perna no pesado cabo do ferrolho
de uma das portas, mal colhido ao abrir, e caiu violentamente ao
chão, ficando ferido com gravidade. A sua perna, partida no mo-
mento do choque, foi desfeita depois, quando o cavalo, de igual
modo ferido, não mais resistiu e tombou por terra, pelo lado em
que ambos sangravam. El-rei não conseguia sequer erguer-se e
nem com ajuda dos seus foi possível transportá-lo. O herói de São
Mamede e Ourique e Santiago e Lisboa, seria feito prisioneiro de
D. Fernando, o seu genro.
Dois meses passados e postos alguns acordos, o rei seria li-
bertado, mas o povo nunca esqueceria a maldição rogada por D.
Teresa.

D. Afonso, filho, prendeste-me e deserdaste-me: a Deus peço que


preso sejais vós, e porque pusestes minhas pernas em ferros (...), com
ferros sejam as vossas quebradas.

De modo algum cessaria a actividade de Afonso Henriques


com este acidente, mas a verdade é que a sua mobilidade física
ficaria, para sempre, muitíssimo afectada e, aos 60 anos, abando-
nava o campo de batalha, não mais se voltando a envolver em con-
frontos militares, e ponderava, talvez pela primeira vez, no proble-
ma de encontrar quem lhe sucedesse e coroasse, no baptismo do
Mediterrâneo, Portugal.
D. Afonso I pereceu aos 76 anos, a 6 de Dezembro de 1185, em
Coimbra, depois de um penoso calvário de invalidez, tranquilo e,
como em todos os outros dias do mundo, sem qualquer receio do
futuro. Jaz o seu corpo de gigante no mesmo túmulo que o de sua
esposa, a rainha D. Mafalda. Entre o dia de sua nascença e o de
sua morte, estendeu-se o reino do Mondego até às primeiras mi-
lhas dos Algarves. Liderou Portugal ao longo de 57 anos, 45 dos
quais com o título de rei, naquele que foi o mais longo reinado da
nossa História.

Você também pode gostar