Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Museus Sem Fim
Museus Sem Fim
questões artísticas
Na incerteza sobre o que é a arte contemporânea, os museus vivem um impasse: como projetar uma edificação para algo que não
se sabe o que é nem se pode prever o que virá a ser? FOTO: RUSSELLKORD.COM
A
Tate Modern II, projetada pelo escritório de arquitetura Herzog &
de Meuron, vai surgindo à beira do Tâmisa. No Hudson, do outro
lado do Atlântico, o novo Whitney Museum, concebido por Renzo
Piano, abriu suas portas em maio. Sob a orientação de Diller Scofidio +
Renfro, o Museum of Modern Art planeja nova expansão (a anterior
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 1/9
06/02/2019 Museus sem fim
D
ois fatores foram centrais na expansão dos museus de arte
moderna e contemporânea. Nos anos 60, quando a atividade
industrial começou a entrar em declínio em Nova York e em outras
grandes cidades, espaços antes reservados à manufatura foram
transformados em ateliês de baixo custo por artistas como os
minimalistas, em parte com o objetivo de produzir obras aptas a pôr à
prova as limitações do cubo branco. Velhas estruturas industriais, como
centrais elétricas, foram remodeladas e transformadas em novas galerias
e museus capazes de comportar as novas dimensões dessa arte. Emergiu
daí uma circularidade que pode ser vista em instituições como o
Dia:Beacon, por exemplo, meca da arte minimalista e pós-minimalista
localizada no estado de Nova York; ali, uma velha fábrica da Nabisco foi
transformada num conjunto de amplos salões prontos a acolher
esculturas imensas de artistas como Richard Serra.
A segunda via tomada por essa expansão foi mais direta e traduziu-se na
construção, a partir do nada, de museus projetados como amplos
contêineres para obras de arte gigantescas. Um exemplo disso é o
Guggenheim de Bilbao, de Frank Gehry. Em alguns aspectos, essa
dimensão avantajada é consequência de uma corrida por espaços maiores
disputada entre arquitetos como Gehry e artistas como Serra, resultando
numa grandiosidade que hoje nos parece quase natural. Porém, não há
nada de definitivo nela: artistas renomados surgidos nas duas últimas
décadas, como Pierre Huyghe, Rirkrit Tiravanija e Tino Sehgal, entre
outros, não requerem tanto espaço e, em muitos aspectos, o recusam. (A
grandeza dos espaços produziu, ademais, efeitos colaterais ruins, como
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 3/9
06/02/2019 Museus sem fim
não se sabe o que é e que tampouco se pode prever como virá a ser? O
resultado dessa incerteza se manifesta no surgimento de “galpões
culturais” quase desprovidos de um propósito aparente. Uma estrutura
desse tipo – o Culture Shed desenhado por Diller Scofidio + Renfro e
dotado de uma cobertura móvel, que pode ser mantida ou levantada de
acordo com a modalidade do evento em cartaz – está prevista para a área
dos Hudson Yards no West Side de Manhattan.
T
alvez esses museus novos e renovados tenham, sim, um propósito,
afinal de contas, e um megapropósito tão óbvio que nem é
enunciado: o do entretenimento. Ainda vivemos numa sociedade do
espetáculo, ou, para empregar aqui uma expressão inofensiva, vivemos
numa “economia da experiência”. Que relação os museus de arte
moderna e contemporânea guardam com uma cultura que preza tanto a
experiência do entretenimento? Já em 1996, Nicholas Serota situou “o
dilema dos museus de arte moderna” num quadro excludente de
“experiência ou interpretação”, ou, dizendo-o de outra forma, num
quadro que separa entretenimento, de um lado, e contemplação estética
e/ou compreensão histórica, de outro. Quase vinte anos mais tarde, no
entanto, não temos por que nos deter diante desse ou/ou. O espetáculo
chegou para ficar, não vai embora enquanto houver capitalismo, e os
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 5/9
06/02/2019 Museus sem fim
museus são parte dele. Isso é um fato e, por isso mesmo, não deveria ser
um projeto.
Contudo, trata-se, sim, de uma meta para muitos museus, mesmo para
aqueles que não dependem da venda de ingressos. Isso fica evidente no
espaço dedicado pelos museus a salões de eventos, grandes lojas e belos
restaurantes, e é também o que sugerem certas tendências de
programação. Veja-se a guinada na direção da performance e da dança, e
a remontagem de exemplos históricos de ambas, nos museus de arte ao
longo dos últimos anos. Foi representativa disso a retrospectiva de
Marina Abramović no MoMA, em 2010 (que, ao longo de dez semanas,
incluiu um espetáculo no qual a artista encarava fixamente qualquer um
que se sentasse defronte dela).
Essa guinada pode ser vista, do ponto de vista negativo, como uma
institucionalização de práticas outrora alternativas, e, do ponto de vista
positivo, como o resgate de eventos que, do contrário, se perderiam
(assim como o filme independente, a performance e a dança
experimentais recorreram aos museus em parte porque suas salas passam
por momentos difíceis). Mas isso não explica a súbita acolhida de eventos
ao vivo por parte de instituições que, em geral, se dedicam à arte
inanimada. Durante a primeira onda de criação de museus na “nova
Europa” pós-1989, o arquiteto Rem Koolhaas observou que, como não
havia passado suficiente para tantas instituições, os artefatos do passado
só podiam se valorizar. Hoje, ao que parece, não há presente que baste:
por razões mais do que óbvias numa era hipermidiática, a demanda pelo
presente é igualmente grande, assim como por qualquer coisa que se
pareça com uma presença real.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 6/9
06/02/2019 Museus sem fim
por nos tornar espectadores ativos se torna não um meio, mas um fim em
si mesmo.
“M
useu e mausoléu não estão ligados apenas pela associação
fonética”, escreveu Adorno em 1953, em “Museu Valéry
Proust”. “Os museus são como sepulcros de obras de arte,
testemunham a neutralização da cultura.” Adorno atribui esse ponto de
vista a Valéry: é a visão do artista em seu ateliê, que só pode ver o museu
como um lugar de “reificação” e “caos”. Outro ponto de vista é atribuído
a Proust, que parte de onde Valéry parou, da “vida póstuma das obras”,
que Proust contempla da perspectiva do espectador no museu. Para o
espectador idealista, à la Proust, o museu aperfeiçoa o ateliê: é um reino
espiritual em que a confusão material da produção artística é destilada,
ou, em suas próprias palavras, em que o “salão do museu […], em sua
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 7/9
06/02/2019 Museus sem fim
Assim como o observador precisa ser concebido como passivo para que
possa ser transformado em ativo, a obra de arte precisa ser considerada
morta, a fim de que possa ser ressuscitada. Essa ideologia, central para o
discurso moderno sobre o museu de arte, é fundamental também para a
história da arte “como disciplina humanística”, cuja missão, como
escreveu Erwin Panofsky há 75 anos, é “dar vida ao que, do contrário,
permaneceria morto”. Aqui, a resposta adequada de nossa época vem da
historiadora da arte Amy Knight Powell: “Nem uma instituição nem um
indivíduo podem devolver à vida um objeto que nunca viveu.”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 8/9
06/02/2019 Museus sem fim
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/museus-sem-fim/ 9/9