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06/02/2019 Museus sem fim

EDIÇÃO 105 | JUNHO_2015

questões artísticas

MUSEUS SEM FIM


Não param de surgir instituições de arte mundo afora. Mas para quê?
HAL FOSTER

Na incerteza sobre o que é a arte contemporânea, os museus vivem um impasse: como projetar uma edificação para algo que não
se sabe o que é nem se pode prever o que virá a ser? FOTO: RUSSELLKORD.COM

A
Tate Modern II, projetada pelo escritório de arquitetura Herzog &
de Meuron, vai surgindo à beira do Tâmisa. No Hudson, do outro
lado do Atlântico, o novo Whitney Museum, concebido por Renzo
Piano, abriu suas portas em maio. Sob a orientação de Diller Scofidio +
Renfro, o Museum of Modern Art planeja nova expansão (a anterior

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aconteceu há apenas dez anos), e o Metropolitan Museum of Art terá


transformado sua ala dedicada à arte moderna e contemporânea até o
final da década. Extraio esses exemplos de Londres e Nova York,
passando por cima do florescimento dos museus hoje em curso no
Oriente Médio, na China e em outras partes do mundo. Mas, na verdade,
todas as instituições que têm por fim abrigar a arte moderna e
contemporânea enfrentam problemas semelhantes, nem todos eles de
natureza política ou econômica.

O primeiro dilema diz respeito à variedade de escalas que essa arte


apresenta e aos diferentes espaços necessários para sua exibição. O
cenário inicial para a exposição da pintura e da escultura modernas –
produzidas, como eram, tipicamente para o mercado – foi o espaço
interior do século XIX, em geral a residência burguesa, e os primeiros
museus dedicados a essa arte constituíram-se, muitas vezes, de salões de
características semelhantes, remodelados para tal fim. Esse modelo foi
sendo pouco a pouco substituído por outro. À medida que a arte
moderna foi se tornando mais abstrata e autônoma, ela passou a
demandar um espaço que espelhasse essa sua condição destituída de um
lar, um espaço que ficou conhecido como “o cubo branco”. Esse modelo,
por sua vez, viu-se pressionado pela obra de arte mais ambiciosa, que,
depois da Segunda Guerra Mundial, começou a expandir suas dimensões
– das vastas telas de Jackson Pollock, Barnett Newman e outros, passando
pelos objetos seriados de minimalistas como Carl Andre, Donald Judd e
Dan Flavin, até as instalações vinculadas a espaços específicos, de uma
gama de artistas posteriores que vai de James Turrell a Olafur Eliasson.

Conciliar os grandes salões necessários para abrigar a produção


contemporânea com as galerias delimitadas que a pintura e a escultura
modernas exigem não é tarefa fácil, como qualquer visita à Tate Modern
ou ao MoMA pode atestar. E o problema se complica pelo fato de parte
da nova arte reivindicar ainda outro tipo de espaço: uma área fechada e
obscurecida para a projeção de imagens, o que veio a ser conhecido como
“caixa preta”. Para completar, em decorrência do interesse atual em
também apresentar performances e dança nos museus, grandes
instituições preveem a necessidade de criar ainda outros espaços – a
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proposta inicial para a expansão do MoMA os chama de “caixas cinza” e


art bay. (Imagino que a caixa cinza seja um cruzamento do cubo branco
com a caixa preta, e que art bay seja um híbrido de área para
performances com um espaço para eventos, mas isso é só um palpite.)
Qualquer museu que pretenda expor um conjunto representativo da arte
moderna e contemporânea precisa, de alguma forma, oferecer todos esses
tipos de espaço, e todos eles de uma só vez.

D
ois fatores foram centrais na expansão dos museus de arte
moderna e contemporânea. Nos anos 60, quando a atividade
industrial começou a entrar em declínio em Nova York e em outras
grandes cidades, espaços antes reservados à manufatura foram
transformados em ateliês de baixo custo por artistas como os
minimalistas, em parte com o objetivo de produzir obras aptas a pôr à
prova as limitações do cubo branco. Velhas estruturas industriais, como
centrais elétricas, foram remodeladas e transformadas em novas galerias
e museus capazes de comportar as novas dimensões dessa arte. Emergiu
daí uma circularidade que pode ser vista em instituições como o
Dia:Beacon, por exemplo, meca da arte minimalista e pós-minimalista
localizada no estado de Nova York; ali, uma velha fábrica da Nabisco foi
transformada num conjunto de amplos salões prontos a acolher
esculturas imensas de artistas como Richard Serra.

A segunda via tomada por essa expansão foi mais direta e traduziu-se na
construção, a partir do nada, de museus projetados como amplos
contêineres para obras de arte gigantescas. Um exemplo disso é o
Guggenheim de Bilbao, de Frank Gehry. Em alguns aspectos, essa
dimensão avantajada é consequência de uma corrida por espaços maiores
disputada entre arquitetos como Gehry e artistas como Serra, resultando
numa grandiosidade que hoje nos parece quase natural. Porém, não há
nada de definitivo nela: artistas renomados surgidos nas duas últimas
décadas, como Pierre Huyghe, Rirkrit Tiravanija e Tino Sehgal, entre
outros, não requerem tanto espaço e, em muitos aspectos, o recusam. (A
grandeza dos espaços produziu, ademais, efeitos colaterais ruins, como
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os saguões imensos, que, embora importantes como espaços para


eventos, são letais como galerias de arte.)

O Guggenheim de Bilbao é o exemplo mais claro de um terceiro


problema: o museu como ícone. Líderes de cidades decadentes ou de
uma região urbana negligenciada, desejosos de reaparelhá-las para uma
nova economia do turismo cultural, creem que um símbolo arquitetônico
que sirva também como emblema midiático poderá ajudá-los nesse seu
intento. Para que a edificação alcance um caráter icônico, o arquiteto
escolhido é autorizado, e mesmo incentivado, a modelar formas
singulares em escala urbana, em geral nas proximidades de bairros
pobres, que sofrem, assim, considerável perturbação, quando não são
removidos completamente. Alguns museus são tão esculturais que a arte
que apresentam é secundária, figurando apenas em segundo plano. Esse
é, com frequência, o caso do MAXXI de Roma (o Museu Nacional das
Artes do Século XXI), um entrelaçado neofuturista de volumes baixos
desenhado por Zaha Hadid. Museus assim demandam tanto do nosso
interesse visual que acabam por ser, eles próprios, a obra dominante em
exposição, ofuscando a arte que foram concebidos para exibir. Embora
seja ainda muito cedo para dizê-lo, é possível que essa venha a ser a
impressão deixada também pela Tate Modern II.

Outros museus se tornam tão teatrais que os artistas sentem-se obrigados


a responder, antes de mais nada, à arquitetura. É claro que arquitetos
também operam no âmbito visual, e não se há de levar a mal que o façam,
mas por vezes a ênfase no design poderoso negligencia questões
fundamentais ligadas à função. Em parte, foi isso que ocorreu no
American Folk Art Museum, concebido por Tod Williams e Billie Tsien e
situado na porção central de Manhattan: capital arquitetônico em excesso,
preocupação insuficiente com o uso. No fim, o prédio teve de ser vendido
ao MoMA, e o museu retornou a sua antiga sede, na Lincoln Square
(ameaça parecida paira sobre o MAXXI).

A questão da função aponta para um quarto problema, que é a incerteza


generalizada sobre o que é a arte contemporânea, e sobre como fazer uso
de um espaço. Como é que se pode projetar uma edificação para algo que
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não se sabe o que é e que tampouco se pode prever como virá a ser? O
resultado dessa incerteza se manifesta no surgimento de “galpões
culturais” quase desprovidos de um propósito aparente. Uma estrutura
desse tipo – o Culture Shed desenhado por Diller Scofidio + Renfro e
dotado de uma cobertura móvel, que pode ser mantida ou levantada de
acordo com a modalidade do evento em cartaz – está prevista para a área
dos Hudson Yards no West Side de Manhattan.

A lógica parece ser a de construir um contêiner e deixar aos artistas a


tarefa de lidar com ele, mas é provável que, do lado da arte, o resultado
seja uma forma padrão de instalação. Enquanto isso, do lado da
arquitetura, a invenção de novos espaços como caixas cinza e art
bays pode vir a limitar as próprias práticas que esses espaços visam
fomentar. O que parece flexibilidade pode se revelar o contrário disso –
vejam-se as galerias altíssimas de arte contemporânea no New Museum
do Lower East Side, ou mesmo no MoMA, salões que sobrepujam quase
toda arte que abrigam. Serra, por certo, produz grandes trabalhos, mas
isso não significa que a dimensão de suas obras deva servir de padrão
para todo e qualquer espaço expositivo.

T
alvez esses museus novos e renovados tenham, sim, um propósito,
afinal de contas, e um megapropósito tão óbvio que nem é
enunciado: o do entretenimento. Ainda vivemos numa sociedade do
espetáculo, ou, para empregar aqui uma expressão inofensiva, vivemos
numa “economia da experiência”. Que relação os museus de arte
moderna e contemporânea guardam com uma cultura que preza tanto a
experiência do entretenimento? Já em 1996, Nicholas Serota situou “o
dilema dos museus de arte moderna” num quadro excludente de
“experiência ou interpretação”, ou, dizendo-o de outra forma, num
quadro que separa entretenimento, de um lado, e contemplação estética
e/ou compreensão histórica, de outro. Quase vinte anos mais tarde, no
entanto, não temos por que nos deter diante desse ou/ou. O espetáculo
chegou para ficar, não vai embora enquanto houver capitalismo, e os

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museus são parte dele. Isso é um fato e, por isso mesmo, não deveria ser
um projeto.

Contudo, trata-se, sim, de uma meta para muitos museus, mesmo para
aqueles que não dependem da venda de ingressos. Isso fica evidente no
espaço dedicado pelos museus a salões de eventos, grandes lojas e belos
restaurantes, e é também o que sugerem certas tendências de
programação. Veja-se a guinada na direção da performance e da dança, e
a remontagem de exemplos históricos de ambas, nos museus de arte ao
longo dos últimos anos. Foi representativa disso a retrospectiva de
Marina Abramović no MoMA, em 2010 (que, ao longo de dez semanas,
incluiu um espetáculo no qual a artista encarava fixamente qualquer um
que se sentasse defronte dela).

Essa guinada pode ser vista, do ponto de vista negativo, como uma
institucionalização de práticas outrora alternativas, e, do ponto de vista
positivo, como o resgate de eventos que, do contrário, se perderiam
(assim como o filme independente, a performance e a dança
experimentais recorreram aos museus em parte porque suas salas passam
por momentos difíceis). Mas isso não explica a súbita acolhida de eventos
ao vivo por parte de instituições que, em geral, se dedicam à arte
inanimada. Durante a primeira onda de criação de museus na “nova
Europa” pós-1989, o arquiteto Rem Koolhaas observou que, como não
havia passado suficiente para tantas instituições, os artefatos do passado
só podiam se valorizar. Hoje, ao que parece, não há presente que baste:
por razões mais do que óbvias numa era hipermidiática, a demanda pelo
presente é igualmente grande, assim como por qualquer coisa que se
pareça com uma presença real.

Outra razão para a acolhida de eventos performáticos nos museus é a


crença de que eles fazem do visitante um observador ativo – uma crença
que, para começo de conversa, supõe equivocadamente ser o visitante de
um museu um observador passivo. Hoje em dia, os museus parecem não
querer nos deixar em paz; eles nos motivam e nos incitam da mesma
forma como fazemos com nossos filhos. E, muitas vezes, esse empenho

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por nos tornar espectadores ativos se torna não um meio, mas um fim em
si mesmo.

Assim como na cultura em geral, comunicação e conectividade são


promovidas por si próprias, sem grande interesse na qualidade da
experiência subjetiva e das interações obtidas. Tudo isso contribui para
validar o museu – tanto aos olhos de seus gestores como aos de seus
frequentadores – como relevante, vital ou simplesmente movimentado.
Todavia, o que o museu busca tornar ativo é antes a si mesmo que a seu
frequentador. Estranhamente, isso só vem confirmar a imagem negativa
que seus detratores têm dele há muito tempo. Para estes, a contemplação
estética é tediosa, a compreensão histórica é elitista e, mais do que isso, o
museu é um lugar morto, um mausoléu.

Essa argumentação me veio à mente enquanto eu assistia a National


Gallery, um excelente documentário recente de autoria de Frederick
Wiseman. Ao longo de três horas, o filme mostra um bom número de
pessoas no grande museu londrino, interagindo com a arte e umas com
as outras de maneiras as mais diversas. Ainda assim, Wiseman sentiu
necessidade de encerrar seu tributo com um número de balé nas galerias,
como se as figuras nos quadros precisassem de corpos performáticos a
animá-las. Não precisavam nem precisam.

“M
useu e mausoléu não estão ligados apenas pela associação
fonética”, escreveu Adorno em 1953, em “Museu Valéry
Proust”. “Os museus são como sepulcros de obras de arte,
testemunham a neutralização da cultura.” Adorno atribui esse ponto de
vista a Valéry: é a visão do artista em seu ateliê, que só pode ver o museu
como um lugar de “reificação” e “caos”. Outro ponto de vista é atribuído
a Proust, que parte de onde Valéry parou, da “vida póstuma das obras”,
que Proust contempla da perspectiva do espectador no museu. Para o
espectador idealista, à la Proust, o museu aperfeiçoa o ateliê: é um reino
espiritual em que a confusão material da produção artística é destilada,
ou, em suas próprias palavras, em que o “salão do museu […], em sua
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nudez e abstinência sóbria de todos os detalhes, [simboliza] os espaços


interiores onde o artista se recolhe para criar”. Em vez de um lugar de
reificação, o museu é, para Proust, um meio de reanimação.

Assim como o observador precisa ser concebido como passivo para que
possa ser transformado em ativo, a obra de arte precisa ser considerada
morta, a fim de que possa ser ressuscitada. Essa ideologia, central para o
discurso moderno sobre o museu de arte, é fundamental também para a
história da arte “como disciplina humanística”, cuja missão, como
escreveu Erwin Panofsky há 75 anos, é “dar vida ao que, do contrário,
permaneceria morto”. Aqui, a resposta adequada de nossa época vem da
historiadora da arte Amy Knight Powell: “Nem uma instituição nem um
indivíduo podem devolver à vida um objeto que nunca viveu.”

A conclusão é, por um lado, que os espectadores não são passivos a


ponto de precisarem ser transformados em ativos, e, por outro, que as
obras de arte não estão mortas a ponto de necessitarem que sejam
reanimadas. Quando bem projetados e dotados de programação
inteligente, os museus admitem tanto entretenimento quanto
contemplação, e nesse processo promovem também alguma
compreensão. Ou seja, eles podem ser espaços nos quais as obras de arte
revelam sua “promiscuidade” com outros momentos de sua produção e
recepção.

Um papel central do museu é, dessa forma, operar como uma máquina


do espaço-tempo, transportar-nos para diferentes períodos e culturas –
para diversos modos de perceber, pensar, representar e ser –, a fim de
que possamos testá-los em relação a nossas próprias época e cultura, e
vice-versa, e, nesse processo, quem sabe transformarmo-nos um pouco.
Esse acesso a vários passados e a vários presentes se reveste de particular
urgência numa era de um presentismo consumista, de paroquialismo
político e de cidadania truncada. No fim das contas, se os museus não são
locais em que se cristalizam diversas constelações de passado e presente,
para que precisamos deles?

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