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Percepção e raciocínio lógico: Os dados utilizados no primeiro tipo de raciocínio são

presenças reais oferecidas pela realidade, não são signos, e apenas através destes
conseguimos expressar o que foi pensado. Como a primeira decisão é muda, ela é
acompanhada de uma sensação de falta de domínio, pelo que tentamos compensar a
insegurança criando uma situação mental que possamos dominar, achando que estamos
realmente a dominar o assunto. Mas nesta criação que fizemos há uma passagem dos
factos aos conceitos, e depois outra passagem destes aos raciocínios, num percurso onde
se podem introduzir inúmeros erros, que não serão apenas de lógica mas também de
denominação, descrição ou categorização. Estes erros são evitados na primeira forma de
raciocínio, porque os factos já aparecem com a sua conexão auto-evidente e auto-exibida,
por isso, quanto mais nos atermos a este tipo de raciocínio, mais livres estaremos do erro
e mais firmemente estaremos ancorados no terreno da verdade, ainda que não consigamos
expressar aquilo. Os erros de percepção também existem, mas são em muito menor
número, como atestam as milhares de decisões que são necessárias tomar por alguém que
está conduzindo, decisões tomadas com uma enorme velocidade e precisão.

Aristóteles, causas e a História: Tal como acontece para as categorias e para os


predicados, qualquer pessoa distingue espontaneamente entre os vários tipos de causa,
que Aristóteles enunciou como: causa formal, causa eficiente, causa material e causa
final. Causa formal é a simples definição, a natureza da coisa, que pode, por si só, dar-nos
explicações sobre o que a coisa faz ou lhe pode acontecer. Quando falamos de uma
tartaruga, sabemos que ela pode andar em terra ou na água, mas o mesmo não acontece
com um peixe. A causa eficiente é o impulso, o mecanismo imediato, o gatilho que
dispara a acção. Causa final é o propósito de uma coisa. Por fim, causa material é o meio,
material ou canal pela qual a acção se realiza. Na ocorrência de um assassinato (causa
formal), sabemos que o tipo de crime é distinto da arma do crime (causa material), assim
como a arma não se confunde com o objectivo último do criminoso (causa final), nem
nenhum destes confunde-se com o impulso imediato que determinou a acção (causa
eficiente). Ainda conseguimos fazer a distinção entre causa próxima e causa remota.
Quando perguntamos a razão de um casal se ter divorciado, queremos saber a causa
próxima, e por isso não ficamos satisfeitos com uma resposta que diz que o divórcio se
deveu a uma crise geral do casamento, porque isso aponta para uma causa remota. As
causas remotas podem predispor num certo sentido mas não determinam directamente a
acção. Aristóteles disse que existiam estes tipos de causas porque as observou na
realidade. A causa que está envolvida num processo de gestação, processo que seguirá se
não for abortado, não é do mesmo tipo da causa implicada na intenção de alguém
construir alguma coisa, que não se pode dizer que resulta de uma força anterior, pois o
processo não seguirá automaticamente como no caso da gestação. Nos dois casos, existe
um processo causal, tendo Aristóteles chamado de causa eficiente à que está envolvida no
primeiro caso – é uma causa que desencadeou o processo –, e no segundo caso é a causa
final, que diz respeito a uma série de acções que visam a uma finalidade, ou seja, é algo
que não está fisicamente operando mas corresponde a um plano que apenas existe na
cabeça de alguém. Elas operam a partir de pontos distintos, por assim dizer, e não
funcionam do mesmo modo. Por vezes aparecem confusões medonhas entre filósofos
apenas porque eles não estão falando do mesmo tipo de causa. Relativamente à causa
material, ela indica o “de que” as coisas são feitas, já que as propriedades materiais das
coisas são causa de um processo poder funcionar. Por exemplo, as propriedades do tijolo
permitem a construção de casas, e isto não é nem uma causa eficiente nem uma causa
final. E, por último, existe uma causa formal, que é “o que” uma coisa é, e explica a razão
de dois gatos se cruzarem e dali resultar um gato e não um hipopótamo. A estrutura das
coisas actua como uma causa porque é um determinante das suas possibilidades de acção.
A oposição que a sociologia nascente, trazida por Durkheim, fez à historiografia
psicológica de Hippolyte Taine é um exemplo de um erro grosseiro na troca de causas.
Taine, no seu livro Origens da França Contemporânea escreve sobre a Revolução
Francesa, e o resultado é um modelo do que deve de ser um livro de História. Ele analisa
os mecanismos interiores da revolução e mostra como as “sociedades de pensamento”
criaram um mundo fictício, desligando-se da realidade da vida social francesa e depois
tentaram impor esse modelo a toda a sociedade. Os resultados foram sangrentos e a
França, de país mais poderoso no mundo, declinou continuamente até aos dias de hoje,
onde é uma potência de segunda categoria ao serviço dos países árabes. O método de
Taine segue a própria definição da História. As acções são entendidas a partir dos seus
agentes individuais e grupais, sabendo como estes interpretavam a situação, o que
queriam, o que fizeram e obtiveram. Emile Durkheim, criador da sociologia moderna,
criticou esta metodologia, alegando que por baixo das acções dos agentes existiam forças
impessoais muito mais decisivas, a que ele chamou de factos sociais. Supostamente, estes
factos sociais pesam sobre a sociedade e sobre as pessoas sem aí intervir a intenção de
quem quer que seja. São tudo coisas anónimas, instituições, hábitos, resultados
estatísticos, etc., que passaram a ser estudados pela nova ciência. Reconhecemos
imediatamente que Durkheim está falando de causas remotas, enquanto Taine trabalhou
sobre as causas próximas. Não tem sentido confrontar uma coisa com outra. A causa
remota pode se reflectir na causa próxima, mas esta não é obrigada a seguir a primeira.
Mais tarde, a própria historiografia foi influenciada pela sociologia moderna, e chegou-se
a um ideal de História, preconizado por Ferdinand Braudel, sem personagens. Ele achava
que tudo poderia se resumir a médias estatísticas e regras institucionais. O problema da
sociologia moderna de Durkheim é que acaba por não explicar nada. Faz apelo de causas
remotas, como os factos sociais, que são coisas que não existem em si mesmas; nasceram
da acção humana e é através dela que podem exercer alguma influência. Ao mesmo
tempo, a acção humana pode ir contra os factos sociais. Quando dizemos que a pobreza
provoca criminalidade, estamos a fazer apelo a uma causa remota (a pobreza) que em si
não explica nada, já que há países pobres muito violentos e outros muitos pacíficos. Para
explicar isto, temos de fazer apelo a outros factores, e aí terá de intervir alguma causa
mais próxima. Se a ideia de que os pobres estão libertos de certas obrigações morais tiver
sido espalhada, então, temos uma causa mais próxima intervindo. Mas ainda não é
suficiente, porque mesmo assim as pessoas podem decidir não ser criminosas, além de
que faltam ainda os meios materiais para o crime despontar. Começam assim aparecendo
os actores do processo, aqueles que concebem um plano de espalhar a criminalidade, os
que fazem a propaganda, os que distribuem os meios… Em suma, volta-se ao Taine.
Quando queremos obter as causas mais profundas e estruturais de uma sociedade,
fazendo abstracção das causas imediatas e da acção humana, o que vamos obter é um
fantasma. Será um estudo de meras causas remotas hipotéticas, que operam mais ou
menos como se fossem causas formais e causas finais. Dessa forma, as causas remotas
podem definir um certo estado de coisas e sugerir certos objectivos. Contudo, as causas
remotas nunca são causas eficientes e, por isso, nunca podem determinar a acção. Não há
acção humana que não tenha por detrás um agente humano concreto. Usando o próprio
método do Taine, é possível averiguar o porquê de se ter espalhado a ideia de que os
factores impessoais são a causa das coisas. Em pleno século XVIII, décadas antes da
Revolução Francesa, já a França vivia uma revolução de moldes gramscianos. O processo
começou com as sociedades de pensamento, que eram clubes de debate que haviam
substituído os antigos salões literários. Ali juntavam-se intelectuais e semi-letrados para
dar palpites sobre tudo. Algumas dessas sociedades estavam também ligadas a sociedades
secretas, como a maçonaria e os Illuminati. As sociedades de pensamento surgiram como
um escape para a opinião pessoal que, com o advento do Estado moderno, tinha sido
legada para um domínio estritamente privado e afastada da vida pública, que tinha agora
os seus critérios próprios, supostamente neutros e que tinham que presidir acima de
qualquer moral religiosa, já que o Estado moderno nasceu sob o pretexto de terminar com
as guerras de religião. O fenómeno está bem descrito por Reinhart Koselleck no livro
Crítica e Crise, assim como nos trabalhos de Augustin Cochin. As sociedades de
pensamento rapidamente ambicionaram a algo mais do que a obtenção de um efeito
terapêutico. Como não podiam exercer poder político directo, criaram uma autoridade
paralela, que tinha o poder de fazer julgamentos morais e culturais de aprovação ou
desaprovação. Em meados do século XVIII, o poder destas sociedades de pensamento já
era enorme e elas podiam queimar a reputação de quem quisessem, provocando o
afastamento da vida intelectual dos seus adversários, ao mesmo tempo que dominavam a
academia francesa, deixando entrar qualquer um desde que pensasse como eles. Uma
autêntica revolução gramsciana já estava em marcha e esta foi uma das causas imediatas
da Revolução Francesa. A revolução ainda se encontrava no seu início e estava planeada
para ter 3 fases: (1) estágio filosófico; (2) estágio político; (3) e estágio revolucionário.
No estágio filosófico, o poder é exercido não através da acção política directa mas pelo
domínio da opinião. Com esse poder é possível criar ídolos ou condenar pessoas ao
ostracismo, porque temos o domínio dos instrumentos do louvor e da censura, que podem
conferir prestígio ou marginalizar. Milhares de sociedades de pensamento, umas secretas,
outras actuando de forma mais pública, dominaram o panorama cultural durante um
século. Depois disso, já era possível passar para a fase seguinte: o estágio político. No
estágio político, as sociedades de pensamento tinham ao seu serviço partidos políticos e
clubes precursores das ONG, que criaram a ideia de existir uma opinião pública, mas na
verdade eram apenas opiniões minoritárias que apareciam ao público como algo unânime
e espontâneo porque vinham de mil lugares diferentes quase em simultâneo. Apesar de
proclamarem o livre pensamento, Augustin Cochin mostra que ali havia apenas uma
terrível concordância. Passados 100 anos, Durkheim acreditou realmente na existência de
forças anónimas e de uma unidade espontânea na sociedade e criou uma ciência inteira a
partir disso. Mas os factos sociais de Durkheim surgiram todos de decisões humanas, e o
processo pode ser descrito pelo método de Taine. Os factos sociais dão a falsa impressão
de serem impessoais porque a sua origem foi esquecida, às vezes camuflada ou mesmo
ocultada, no caso das sociedades secretas. Mesmo que depois as coisas sejam passadas
por impregnação inconsciente ou por meio de hábitos, esses hábitos tiveram uma origem
que pode ser rastreada e ela nunca é impessoal. As ciências sociais sofrem do mal
endémico de trocar causas remotas por causas próximas, por isso nunca fornecem o elo
entre a suposta causa que enunciam e o seu efeito. Nós não podemos dar esse salto.
Quando enunciamos uma causa remota devemos ter consciência que ela tem apenas o
poder de predispor a uma determinada situação, mas depois devemos procurar encontrar
quais foram os meios (causa material) que produziram aquele efeito. Estes meios não são
apenas materiais mas também se referem a alguma organização de meios. E para fazer
isso temos apenas de operar as distinções espontâneas da percepção, que dificilmente
serão aperfeiçoadas por algum tipo de erudição. O que temos de fazer é cuidar da saúde
do nosso imaginário para mantermos a espontaneidade e integridade do nosso mecanismo
de percepção.

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