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TELEVISÃO

Twin Peaks:
fomos ao
inferno e
voltámos — e
foi maravilhoso
Twin Peaks é uma ignição e um lugar. A televisão e
aquele Noroeste Pacífico nunca mais foram os
mesmos. Está a acontecer outra vez, na televisão e
na região dos abetos que sussurram e dos anões
que dançam. Há novo Twin Peaks e nova atracção
pelo Norte americano. Floresta dentro.

Joana Amaral Cardoso 26 de Maio de 2017 8:50


Joana Amaral Cardoso 26 de Maio de 2017, 8:50

TWIN PEAKS PRODUCTIONS, INC. ALL RIGHTS RESERVED


“Na minha famosa imagem, morta,
David pôs, à mão, todos os grãos de
areia na minha cara e brincou com o
plástico como se fosse um ramo de
flores.” David Lynch, cientista louco do
improviso, adora os seus “acidentes
felizes” que originam assassinos
paranormais, anões e gigantes, mas
compôs meticulosamente a cena do
crime. Criou uma imagem que perdura,
um fotograma tanto do Noroeste
Pacífico americano como da televisão.
Ambos nunca mais foram os mesmos.
Twin Peaks ressuscita agora, 27 anos
depois de uma estreia que foi uma
chama de ignição.

A imagem é a de Laura Palmer azulada,


descoberta na cidade do estado de
Washington indissociável do seu nome
— e da ficção e criação que no início da
década de 90 saíram do nevoeiro
chuvoso e das florestas frondosas da
região para o mundo. E Sheryl Lee
adorou ser cadáver. A actriz que
interpretou a adolescente “morta,
embrulhada em plástico”, as primeiras
palavras ouvidas em Twin Peaks,
deitada na margem do rio, “podia ser
uma esponja e absorver tudo”, como
recordou ao The Guardian em 2010. E
tudo era muita coisa, que a história
guardaria com deleite nas
peculiaridades de Twin Peaks e seus
autores (Mark Frost, saído de A Balada
de Hill Street, é o seu co-autor, o homem
que torna as suas e as ideias de Lynch
em guiões) e com a firmeza de quem
desenha uma linha na areia. Twin Peaks
é uma fronteira narrativa e artística,
cheia de defeitos e sublime ao mesmo
tempo, e é um lugar aonde agora o mito
volta para tentar voltar a ser (in)feliz.
O rosto de Laura Palmer, como a capa de Nevermind ou Kate Moss na revista The Face, é um
imagens da cultura pop dos anos 90

Depois da primeira hora de Twin Peaks,


edição de 2017, pensa-se na obra da
artista plástica Louise Bourgeois.
Porque fomos ao inferno e voltámos —
e foi maravilhoso. Ou qualquer coisa
como isso. Reencontramo-nos com
velhos amigos, mergulhamos no abismo
das diferentes paisagens, perdemo-nos
nas novas caras Lynch. Para (tentar)
perceber o que é esta hora de televisão
hoje, é preciso recuar no tempo.

As provas não são meramente


circunstanciais — Twin Peaks é mesmo
basilar. Naquele mês de Abril de 1990
nos EUA, e a 22 de Novembro de 1990
na RTP, a fronteira entre TV e cinema
foi apagada. Parecia uma série de
crime, ou uma novela sobre os amores e
segredos de uma comunidade de flanela
e cerejas, até um whodunnit porque a
pergunta “Quem matou Laura Palmer?”
se tornou um slogan de uma era. Mas
em Twin Peaks, e em torno de Laura
Palmer, reuniam-se uma mulher que
falava através de um tronco, um polícia
que não parava de chorar, uma
sedutora que enrolava pés de cereja
com a língua e um submundo de crime,
prostituição e de sobrenatural em tudo
surreal. O agente infiltrado, o homem
da cidade que nos levava para a floresta
na fronteira norte da América e do
Pacífico era Dale Cooper, um Kyle
MacLachlan enérgico, obcecado com
comida e com o inevitável “damn good
coffee”, desconcertante e intuitivo. O seu
deslumbre com a paisagem, as
montanhas e as árvores sussurrantes
indiciavam logo a alteridade daquele
território, a distância entre nós e aquele
espaço. Lá voltaremos, neste texto e no
domingo, dia 28, quando a “nova Twin
Peaks” como os autores lhe chamam
sem nada revelar sobre ela, se estrear
às 22h no TVSéries.

Dale Cooper e o xerife com nome de presidente, Harry S. Truman, são as forças morais do un
amoral de Twin Peaks

MacLachlan trabalhara com Lynch em


Duna (o filme em que o realizador diz
simplesmente que se vendeu), mas
depois da série nunca mais filmaria
com o autor de Eraserhead. Nunca saiu
de 1990-91. “Para o David, sou o Cooper.
Sou o Cooper e vivo em Twin Peaks”,
disse agora ao Los Angeles Times. Dois
anos depois de Veludo Azul (1986),
convencido por um agente a tentar a TV,
Lynch começou a trabalhar numa série
com o amigo Frost. A ideia inicial foi só
“uma rapariga é encontrada morta”.
Quando, em 1990, na esteira de dramas
criminais como Crime, Disse Ela, e de
comédias como Cheers — Aquele Bar,
Twin Peaks aterra no horário nobre de
um canal generalista, a ABC, o abalo foi
sentido a quilómetros de distância.
“David Lynch vem para a televisão? Os
doidos vão tomar conta do hospital
psiquiátrico!”, recorda Kyle MacLachlan
no The Guardian em 2010.

Abdicava do arco narrativo


convencional, a intriga era
serpenteante, as personagens eram
compostas e numerosas, os diálogos
sobre donuts e os abetos-de-douglas
tinham um humor especial com sabor a
peixe no coador do café. Tinha
mitologia e era lynchiano. Mas aos
muitos motivos do padrão Lynch — a
sensualidade, a inocência corrompida,
os códigos de cor, as personagens
excêntricas, os ambientes sonoros
perfurantes — juntavam-se dois
ingredientes fundamentais: o que é
familiar ao espectador, nas lágrimas
excruciantes da mãe de Laura Palmer e
nos romances proibidos debaixo do
tapete da comunidade, e o que é
surrealista. Os duplos, outro símbolo
favorito de Lynch, existem em Twin
Peaks não só com as duas personagens
interpretadas por Sheryl Lee,
homenagem a Vertigo de Hitchcock,
mas também no mundo de sonhos e
realidade em que há uma White Lodge
e uma Black Lodge, o lugar dos
assassinos e do anão que dança, um
Man From Another Place.

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A Man From Another Place e O Gigante são um dos duetos que vêm dos sonhos de David Lyn
É aqui que entram em cena algumas
curiosidades: Lynch teve a sua
revelação com uma visão da icónica
sala vermelha nos sonhos de Cooper e
foi ela que tornou Twin Peaks na novela
surrealista que é; o fantasmagórico Bob
não existia na história, era só um
aderecista de cabelo comprido, Frank
Silva, que apareceu num plano por
acidente e que Lynch catrapiscou para o
seu mundo; um dia, Lynch telefonou a
Frost e disse: “Mark, acho que há um
gigante no quarto do Agente Cooper”. E
ele respondeu-lhe: “OK…”. E seguiu. A
primeira temporada de Twin Peaks, oito
gloriosos episódios, foi assim. Quando,
no episódio final da segunda
temporada, Laura prometia a Cooper
vê-lo 25 anos depois, isso não encerrava
mesmo a possibilidade de voltarem, um
quarto de século passado, à televisão.
Os autores negam-no. Mas o diminuto
Man From Another Place foi
testemunha, naquela sala vermelha, de
que o acontece em Twin Peaks não fica
em Twin Peaks. Transpira para o
mundo.
“Aprendi muito cedo que era sempre
melhor ser muito receptivo para seja o
que for que possa borbulhar e vir à
tona do subconsciente de David”,
admitiu Mark Frost à Variety.
Curiosidades e improvisos são o
processo criativo de David Lynch.
“Esperava-se que a televisão nos fizesse
sentir confortável e isto não era sobre
estar confortável. Isto era sobre outra
coisa”, descrevia há dias MacLachlan no
The Guardian. Lynch fala: “Há aulas de
guionismo em que reduzem as coisas a
fórmulas, mas não há regras, não
deveria haver regras”.

O público embarcou. O primeiro


episódio teve quase 35 milhões de
espectadores. Numa altura em que o
gravador de vídeo era a única hipótese
de rever um programa e as conversas
de viva voz a forma mais imediata de
trocar ideias sobre a nova sensação da
cultura pop, vendiam-se cassetes VHS a
20 dólares com os 90 minutos do
primeiro episódio. A realizadora Penny
Marshall fazia festas de visionamento
porque nunca tinha visto nada tão belo
na televisão; reza a lenda que Mikhail
Gorbachov, espectador como Isabel II,
pediu ao Presidente George Bush para
lhe dizer quem era o assassino; a Rua
Sésamo fez a sua versão, Twin Beaks. A
magnífica banda sonora de Twin Peaks
saía de carros, de lojas, uma cascata.

“O que raio é aquilo?”


O conforto daquela televisão era o da
boa comédia de Cheers, era o da
novidade de Os Simpsons, o sofá de
Cosby Show, a banalidade de Obras em
Casa e a voz estridente de Roseanne. Em
Portugal, só com dois canais, via-se
Herman José na Roda da Sorte, as séries
Os Melhores Anos e EuroNico ou Agora
Escolha, com TV Rural ainda no ar e
cinema semanal nas sessões da Lotação
Esgotada. Antes tinham existido
Twilight Zone, Hitchcock Apresenta e O
Fugitivo, mas se houve Ficheiros
Secretos, Perdidos, True Blood, Hannibal,
Buffy ou Veronica Mars, e se hoje há
Legion, Mr. Robot, Stranger Things,
American Horror Story ou True
Detective, isso deve-se ao alçapão para o
nosso subconsciente colectivo (ou será o
inconsciente) aberto à traição por Twin
Peaks. “Twin Peaks, como lugar, é um
substantivo, mas quase se tornou um
adjectivo”, resume David Nevis, CEO da
Showtime, o canal que traz a série de
volta (e deu a Lynch, após uma ameaça
de deixar a produção a meio por falta
de orçamento, todo o dinheiro e
liberdade que queria para fazer Twin
Peaks 3).
“Os planos de árvores a ondular ao
vento, por exemplo. Acho que as
pessoas nunca tinham visto isso na
televisão de sinal aberto, só as árvores a
ondular”, disse David Chase, autor de
uma pequena série chamada Os
Sopranos, ao Vulture no 25.º aniversário
de Peaks. “O que raio é aquilo?”,
perguntou-se na altura. Anos mais
tarde, Tony Soprano, um dos difficult
men que protagonizavam a televisão de
ouro, afirmava-se como filho da
revolução de qualidade operada nos
anos 1990 na TV — os seus sonhos são
dos momentos mais memoráveis da
série de Chase.

Os planos de árvores a ondular ao vento, por exemplo.


Acho que as pessoas nunca tinham visto isso na televisã
de sinal aberto, só as árvores a ondular
David Chase, autor da série <i>Os Sopranos</i>
Aquilo era, além de dois autores a
trabalhar sem rédeas — “artistas a
trabalhar próximo das suas mentes
subconscientes, a escrever e a realizar e
a produzir muito da mesma maneira
que Cooper tomava muitas das suas
decisões de investigação”, como
descrevia há dias o crítico Matt Zoller
Seitz no site Vulture — um lugar. Um
espaço único, tão único que de repente
toda a América (e parte do mundo que a
consumia) queria um pedaço dele. O
sortilégio do Noroeste Pacífico abatia-se
sobre a cultura.

Northwest noir
“Não sei como explicar isto, mas por
mais que Twin Peaks pudesse ser
surreal, e por mais peculiar que
pudesse ser, mesmo assim para mim
era mais parecido com a vida real do
que as séries costumeiras de televisão.
Para mim, sempre foi importante sentir
a geografia de um lugar”, continua
Chase. Na altura, pensou: “Acredito
nesta cidade na floresta, na terra da
madeira, em Seattle. Além disso, a série
era visualmente bela, e acho que muita
da televisão não o era na altura”.

Mark Frost, que em 2015 editou The


Secret History of Twin Peaks, insiste que
esta é uma série sobre a cidade. “Uma
cidade normal, com um mistério, e
mistérios dentro de mistérios. É um
lugar real, mentalmente, mas não é um
lugar real”, diz, por seu turno, o cifrado
Lynch ao The New York Times. O
realizador não considera que os 30
episódios que deu ao mundo tenham
um sentido mais profundo sobre a
cultura americana, embora o cineasta
pareça adorar tanto a beleza das
mulheres tristes — “Gosto de raparigas
que choram”, disse à GQ — como exibir
o negativo da fotografia superficial da
América.

Crítica: Twin Peaks é futuro, ou é passado?


O regresso da série de culto de David Lynch é tudo o que esperávamos e nada do que
esperávamos.
Ler crítica

Um motivo próprio de Twin Peaks, e


que é parte do padrão do momento em
que nasceu, é o Noroeste Pacífico. No
nevoeiro pós-Reagan e na atmosfera de
chumbo das últimas tensões da Guerra
Fria, a série ia chamar-se Northwest
Passage (o título do episódio-piloto) e
era um de vários sinais saídos do
Noroeste dos EUA, da finisterra mais a
norte, do estado de Washington e, logo
ali acima da Califórnia, do Oregon e dos
vizinhos Idaho e Montana. A biografia
de Lynch diz singelamente “escuteiro,
Missoula, Montana”. Mergulhou nos
bosques, na humidade e no feitiço da
região, de onde saiu a música
definidora da década — o som do
grunge, de Kurt Cobain nascido em
Aberdeen, Washington, e ícone
geracional de Seattle (e fã de Twin
Peaks), cidade também de Thomas
Pynchon, Bruce Lee e Jimi Hendrix —, e
onde muita da cultura da época parecia
fazer-se. Gus Van Sant e My Own Private
Idaho (1991), Douglas Copland e os
Microservos (e muitas outras obras
passadas no Noroeste Pacífico), Matt
Groening de Os Simpsons a nascer e
crescer em Portland, Oregon. Até as
filmagens de Northern Exposure (1990-
95), a série sobre o Alasca, foram perto
do vale de Snoqualmie, que, com a
cidade de North Bend, compreendia os
locais de rodagem de Twin Peaks.

“De repente, personagens que há muito


fazem parte da paisagem no Noroeste
Pacífico”, relatava em 1991 o escritor de
Seattle Timothy Egan no The New York
Times, os “lenhadores, os solitários do
ar livre e os polícias que comem donuts
são a matéria de alguns dos trabalhos
mais ousados no cinema e televisão”. Os
seus autores “têm em comum, além da
geografia, uma visão do mundo
decididamente descentrada”, criada
“sob os céus cinzentos, longe dos
centros de ambição da América” —
“uma visão que combina a meteorologia
e a loucura e que produz uma espécie
de Northwest noir”. Para Egan, “a chuva
acrescenta profundidade às
personalidades sombrias.”

Entering Twin Peaks

Kyle MacLachlan, por exemplo, é de


Yakima, no estado de Washington. Ao
entrar em Twin Peaks, incorpora o
homem dominado pela natureza,
isolado do seu poder urbano. Tem de
saber que árvores são aquelas, como
quem tenta saber o que há na água na
Suécia para produzir tantos romances
policiais de qualidade. Está enfeitiçado.
“São qualquer coisa!”. O encanto não se
quebra. “Cheirem-me estas árvores.
Cheirem-me aqueles abetos-de-
douglas”, repete mais à frente. Ele
representa, no fundo, o que James
Lyons considera, em Selling Seattle:
Representing Contemporary Urban
America (2004), a fetichização do
Noroeste. Nas árvores, nas camisas de
xadrez, uma espécie de “natureza
design”.

No período antes de o grunge pôr Seattle no mapa da


cultura de massas, o Noroeste Pacífico era território
desconhecido para muitos de nós. As montanhas
envoltas em névoa, os rios preguiçosos, os campos
madeireiros e a chuva ofereciam tanto uma paisagem
específica como a sensação de nenhum sítio em especial

Nos últimos anos, MacLachlan foi o


mayor da série Portlandia, uma
construção de ironia sobre a capital
hipster, a nova tribo do século XXI, do
Noroeste Pacífico. Carrie Brownstein,
co-autora de Portlandia e guitarrista e
vocalista da banda Sleater-Kinney,
fundada em 1994 em Olympia,
Washington, descreve no The New York
Times o que é isso de ser do Noroeste
Pacífico: “Há uma afinidade, uma
sensação de estar na ponta do país, a
última paragem nesta noção
potencialmente falsa do que é o sonho
americano”. No novo Twin Peaks, os
contrastes entre esse abismo geográfico
e as mecas do sonho americano vêm ao
de cima, com os mochos a ver mais
coisas, porque o mundo hoje é ainda
maior.
Nos “bosques amistosos” da região, que
“ainda assim contêm mistério”, como
Lynch disse à Rolling Stone, mora parte
da atracção, e continuou a dar frutos.
Nos anos seguintes, Ficheiros Secretos e
Frasier continuavam na região com
Michael Crichton, que escrevia
Revelação (1993) para depois se tornar
um filme também por ali. Mais
recentemente, a saga Crepúsculo e as
séries The Killing e Riverdale são
passados no Noroeste Pacífico, usando
as mesmas brumas e fantasmagoria
para diferentes fins. Mas há sempre
esses símbolos, o adolescente, o lugarejo
perdido na floresta — na última até um
corpo de um adolescente dá à costa
num rio da cidade homónima, cheia de
batons vermelhos e encenações
operáticas.

Twin Peaks era “uma celebração do


místico no meio do orgânico da floresta
do Noroeste”, dizia o seu director de
arte, Richard Hoover. E “parte da nossa
atracção para Twin Peaks era a sua
localização abertamente intersticial”,
defende a académica Linnie Blake no
seu ensaio Trapped in the Hysterical
Sublime: Twin Peaks, Postmodernism,
and the Neoliberal Now, publicado em
Return to Twin Peaks (2016). Não só no
espaço, terra de fronteira e de fim no
mar, mas também “entre vida e morte,
bem e mal, passado e presente”,
exemplifica. “No período antes de o
grunge pôr Seattle no mapa da cultura
de massas, o Noroeste Pacífico era
território desconhecido para muitos de
nós. As montanhas envoltas em névoa,
os rios preguiçosos, os campos
madeireiros e a chuva ofereciam tanto
uma paisagem específica como a
sensação de nenhum sítio em especial.
Era algo que ficava entre, a meio. E se a
sua localização era intersticial, o mesmo
pode ser dito do seu período.” Twin
Peaks era de todo o tempo e de tempo
nenhum, com o motociclista James, um
James Dean dos anos 90, Audrey como
pin up angelical dos anos 1940, Bobby
Briggs e a sua farpela entre o greaser
dos anos 1950 e o grunge. Esse tempo
voltou a mexer connosco, e está a
acontecer outra vez.
David Lynch nas lmagens em 1989 GETTY IMAGES
Génio ou idiota
Esta não era uma série de massas, mas
o contexto tecnológico e televisivo
tornaram-na uma refeição de culto que
as massas provaram.

Hoje, “vai ser muito diferente”, disse


Mark Frost à Variety. Tendo alterado a
forma como se contam histórias na
televisão, nomeadamente no que toca à
fotografia, a criação de Lynch e Frost
não vai ser a excepção que foi em 1990.
E não será o desaire de 1991, quando a
segunda temporada ficou sem Lynch. E
sem rumo. E se tornou tão “estúpida e
pateta”, “ridícula” mesmo, que Lynch
deixou de ver, como admitiu ao
The New York Times. A ABC, com apoio
forte do actual CEO e rei Midas da
Disney, Bob Iger, tinha-lhe dado espaço
para fazer a série, mas à medida que as
audiências caíam exigiu a morte da
galinha dos ovos de ouro (resolver
“Quem matou Laura Palmer?”) logo no
início da segunda temporada.

Foi a resposta “que matou Twin Peaks”,


como disse o realizador aos jornalistas
em Janeiro. Lynch nunca quis sequer
responder à pergunta. Entretanto já
tinha voltado os olhos para outro
projecto — Coração Selvagem (1990) —,
numa altura em que as atenções dos
espectadores se voltavam também para
outra novidade no horário nobre, a
Guerra do Golfo em directo na CNN.
Voltou só para filmar o episódio final,
que produz o cliffhanger “o que
aconteceu a Dale Cooper”, e agora quer
acabar o que começou.

O filme mal-amado Os Últimos Sete Dias


de Laura Palmer, que será reposto nos
cinemas portugueses a 1 de Junho, é
essencial para a intriga da nova
temporada, diz o realizador, que desta
vez realiza os 18 episódios (a que
chama partes) e tem um elenco de mais
de 200 actores. Quase todo o
elenco original regressa (Lara Flynn
Boyle e Joan Chen não voltam, Frank
Silva morreu em 1995) e estrelas como
Naomi Watts, Tim Roth, Jim Belushi,
Jennifer Jason Leigh, Monica Belluci,
Michael Cera ou Laura Dern e os
músicos Trent Reznor, Eddie Vedder e
Sharon van Etten preencherão muitos
papéis.
Lynch, tal como disse ao The New York
Times em Abril, continua a sonhar com
as personagens de Twin Peaks. “São
como velhos amigos. Pensamos neles de
tempos a tempos e questionamo-nos
como estão.”

Estão agora num novo mundo. A


televisão dos últimos 30 anos é herdeira
de Twin Peaks e há novos inquilinos a
ocupar o seu lugar original. Pulverizada
em centenas de canais e suportes, do
streaming à televisão em directo, a
programação do audiovisual é um
cacho de nichos, agarrados a um tronco
de televisão generalista ainda mais
convencional, em que há séries de
terror e fantasia na lista dos mais vistos
e premiados, um mundo de poderes
sobrenaturais, criaturas alienígenas,
homicidas de culto, narradores pouco
fiáveis e dramas em que várias camadas
de realidade colidem como o Bates
Motel de Carlton Cuse, que assume que
foi “roubar a Twin Peaks”, ou o cluster
de nostalgia que é Stranger Things. Até
há um “Twin Peaks com rappers”, como
Donald Glover descreve a sua comédia
Atlanta.
Laura Palmer e Dale Cooper saíram da névoa do Norte americano para o televisão em 1990

Houve e continua a haver muitas más


imitações, mas o que Lynch fez teve
efeitos que se sentiram dez, 20 ou quase
30 anos depois. Matthew Weiner, autor
de outra obra aclamada de toques
vintage e momentos oníricos que foi
Mad Men, percebeu em Twin Peaks o
que era possível na televisão. (Lynch,
que não via e não vê televisão, também
gosta de Mad Men — e de Breaking Bad.)
O splash que Lynch fez ao lançar-se do
cinema para a piscina televisiva em
1990 também já não é novo — Lynch
constata na Rolling Stone que “o novo
[cinema] art house é a televisão por
subscrição”. Na última década, a
televisão encheu-se de cineastas, entre
eles os autores do cinema americano
dos anos 90 como David Fincher a fazer
House of Cards, Soderbergh em The
Knick ou Baz Luhrmann em Get Down e
Todd Haynes em Mildred
Pierce. Ou Woody Allen, Scorsese, Van
Sant. Twin Peaks hoje “não será uma
presença singular”, resume a crítica de
televisão Maureen Ryan.
Foi uma das primeiras séries a serem
discutidas online, nos primórdios da
Web, por exemplo, e nos últimos anos,
os podcasts, as recapitulações, os gifs, os
livros, as reedições, o streaming e a
teoria académica mantiveram-na viva e
trataram-na como se, no fundo, ainda
estivesse no ar. Lynch fala das 18 partes
da terceira temporada de Twin Peaks
como um filme, como se faz muito hoje
na televisão que quer ser levada a sério,
e Frost rejeita que este retorno seja uma
trip nostálgica, como se faz muito hoje
na televisão das reanimações de corpos
do passado. Chegou sem nada se saber
sobre ela. “Quanto mais sabemos, mais
isso retira à experiência total”, explica o
autor à Hollywood Reporter.

O que é algo lynchiano, esse qualitativo


que, 40 anos passados sobre Eraserhead,
ainda se constrói — “Um tipo particular
de ironia em que o muito macabro e o
muito mundano se combinam de forma
a revelar a perpétua inclusão do
primeiro no segundo”, lê-se na história
de David Foster Wallace sobre a
filmagem de Estrada Perdida. “É difícil
perceber se é um génio ou um idiota”,
escreveu o autor de A Piada Infinita, que
viu o realizador pela primeira vez nas
filmagens quando David Lynch “fazia
chichi numa árvore”.

Lynch não filma senão curtas desde


2006, quando fez Inland Empire, mas
continua uma figura lendária, embora
mais permeável a críticas. “Ele quer
sempre dizer-nos quem somos
verdadeiramente”, diz Mel Brooks,
produtor de O Homem Elefante.
“Precisamos que David no-lo diga.
Quem é que somos, na verdade? Parte
animal, parte empresário, parte doido.
Ele sabe.” Na nova Twin Peaks, a certa
altura alguém importante diz aquilo
que nunca sentimos verdadeiramente
em qualquer dos planos em que Lynch
nos coloca. “Compreendo.”

joana.cardoso@publico.pt

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