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Visão e Enigma
novaresistencia.org / 2021/03/23 / heidegger-e-nietzsche-o-pensamento-metafisico-como-visao-e-enigma /
Sobe, pensamento abismal, de minha profundeza! Eu sou teu galo e teu alvorecer,
verme adormecido! De pé, de pé! Minha voz te despertará como o canto do galo!
Desata os grilhões de teus ouvidos: escuta! Pois eu quero ouvir-te! De pé, de pé!
Aqui há trovão bastante, até os túmulos aprenderão a ouvir! E limpa o sono de teus
olhos, e tudo de imbecil e cego! Escuta-me também com teus olhos: minha voz é
um remédio também para cegos de nascença. E, uma vez desperto, deverás ficar
eternamente desperto. Não é meu habito acordar bisavós para dizer-lhes que -
continuem a dormir! Movimentos rápidos, te espreguiças, rouquejas? De pé, de pé!
Não deves rouquejar - mas falar! Zaratustra te chama, o sem-deus! Eu, Zaratustra, o
advogado [porta-voz] da vida, o advogado [porta-voz] do sofrimento, o advogado
[porta-voz] do círculo - chamo a ti, meu pensamento mais abismal! Viva! Estás
vindo - eu te ouço! Meu abismo fala, minha derradeira profundeza eu consegui
trazer à luz! Viva! Vem! Dá-me a mão - - ah! Larga! Ah! Ah! - Nojo, nojo, nojo - - - ai de
mim!
Para compreendermos o que Nietzsche quis dizer na citação, devemos ir por partes.
Tomemos o texto de Heidegger como guia. Heidegger cita: “Eu, Zaratustra, o porta-voz da
vida, o porta voz da dor, o porta voz do círculo…” (HEIDEGGER, 2008, p. 88). O que é ser um
“porta-voz”? O que é essa “vida”? O que é essa “dor”? O que é esse “círculo”? A partir de
agora, adentraremos ainda mais fundo nos conceitos da filosofia de Nietzsche.
O que significa ser um “porta-voz”?
Zaratustra, como falamos, é aquele que se anuncia como a porta-voz da vida, da dor e do
círculo. Ser um porta-voz implica em passar uma mensagem ou aviso; é aquele que fala
por alguém ou por algo; passa mensagem especificada que não foi necessariamente
forjada por ele. Em muitas passagens, Zaratustra está acompanhado (seja por seus
animais ou discípulos) e falando de algo para alguém, como um mestre. Portanto,
Zaratustra é o mestre que anuncia a vida, a dor e o círculo. Sigamos com as palavras de
Heidegger:
Após essa breve explicação de Heidegger, pode-se cumprir que Zaratustra é o mestre
porta-voz da vontade de poder e do eterno retorno do igual. Vejamos então o que são
esses conceitos dentro da filosofia de Nietzsche.
Na citação extraída de Assim Falou Zaratustra, logo no início, Zaratustra diz: “Sobe,
pensamento abismal, de minha profundeza!”(NIETZSCHE, 2011, p. 207). O que é esse
pensamento mais abismal de Zaratustra que o faz retrair-se e agonizar? No capítulo
intitulado “Da visão e do enigma”, Zaratustra conta a seus discípulos sobre um encontro
que teve com um anão. Zaratustra estava subindo uma montanha e, em certo momento,
encontrou seu maior inimigo, o espírito de gravidade aqui encarnado na figura de um
anão, o qual pediu para que carregasse-o nas costas. Ao aceitar, o pedido do anão,
Zaratustra colocou-o em suas costas e pôs-se a caminhar. Depois de um certo tempo de
caminhada, ambos adquiridos um portal com o nome de “Instante”, e logo Zaratustra
indaga o anão sobre os dois caminhos que se encontra na face do portal. Zaratustra diz
que ninguém trilhou os caminhos e questiona o anão se ele acha que em algum
momento eles se encontram ou se contradizem eternamente.“Tudo o que é reto mente” ,
e ainda, “Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo” (NIETZSCHE, 2011, p. 150).
Zaratustra ao ouvir tais palavras enche o peito de fúria e grita com o anão dizendo que
ele está simplificando e dando uma resposta rápida e medíocre para sua pergunta.
Nesse capítulo, o eterno retorno - o pensamento mais abismal de Zaratustra - nos é
predefinido. Para o nosso filósofo “[…] o homem deve ser isso para o super-homem: uma
risada, ou vergonha”(NIETZSCHE, 2011, p. 14). Em outros momentos, Nietzsche fala que
o homem é um animal que sente vergonha. O que isso quer dizer? O homem não
consegue ao menos escutar sua voz sem sentir ódio. Ele constantemente foge de si, seja
para outros mundos, planos, eras, lugares. Ele não aceita a realidade como tal. O eterno
retorno, nesse caso, é uma aceitação de si, aceitação da realidade e, em especial, da
vida. Mas não só aceita, é o anseio por ela. Conforme já explicitado, quando tratamos da
vontade de poder, que é justamente algo que ultrapassa as coisas que possuem vida -
uma vontade cósmica - é necessário ter o anseio pelo eterno retorno. “Torna-te aquilo
que és” uma passagem de Píndaro que Nietzsche constantemente torna-se-se ainda
mais evidente. Aceite-se e, portanto, ama-te para que possa superar-se.Porém, no fim -
como acentua Heidegger - o eterno retorno ainda pendente como visão e enigma, como
mistério. É um pensamento que, do mesmo modo que agimos com um mestre, deve ser
questionado e permitido em aberto, sujeito a novas interpretações.
Mas, afinal, quem é o Zaratustra de Nietzsche?
Como vimos, os conceitos da filosofia de Nietzsche estão conectados entre si. Mas
ainda falta uma peça fundamental: Zaratustra. Zaratustra é o que anuncia o eterno
retorno e a vontade de poder. Vontade de poder, eterno retorno e super-homem estão
conectados. Aqui, Zaratustra é o anunciante do eterno retorno. O super-homem é
anunciado pelo mesmo no prólogo da obra. Mas a vontade de poder é senhora de si
mesma, é sóbrio. Mesmo que a neguemos, ainda estamos dentro dela, somos
perspectivas da vontade de poder, que constantemente aquece e esfria nossos
corações. Dela não há escapatória. Então, Zaratustra é o mestre que anuncia a vontade
de poder e o super-homem. Ele é uma chave para que seja possível compreender as
lições. Ele é uma ponte que deve ser atravessada. Portanto, Zaratustra é aquele que
ensina o eterno retorno e o super-homem; aquele que anuncia o super-homem e o eterno
retorno. Ademais, Zaratustra só é o mestre que anuncia o eterno retorno pois ele é o
anunciante do super-homem. Portanto,“Como as doutrinas se co-propriedade num círculo”
(HEIDEGGER, 2008, p. 104).
Mas todo mestre precisa ser superado e toda ponte deve ser atravessada. Para
Nietzsche, a maior vergonha de um aluno é não superar seu mestre. Os ensinamentos de
Zaratustra, são a sintese de toda uma tradição metafísica. Mesmo que Nietzsche tente
fugir disso ele acaba mergulhando nas profundezas do pensar metafísico. Os
pensamentos do filósofo acabam levando a metafísica ao seu extremo, ele vai além. Mas
esse “ir além” não significa um progresso, mas sim, um retornar; e o retornar não é uma
retração, mas um ir ainda mais fundo que se torna um salto para além do pensamento.
Portanto, confrontar Nietzsche, não é refutá-lo, mas, ir até o cerne de seus
pensamentos, é pensar novamente com ele. Os pensamentos de Nietzsche trazem uma
consumação da metafísica, ou seja, tornam-se ela ainda mais extrema. Mas o
pensamento metafísico levado ao extremo, consequentemente gera algo impensado, ou
seja, como visão e enigma.
É justamente por vistos como visão e enigma que devemos constantemente revisitar
Nietzsche. Pensar novamente com ele pode nos revelar algo ainda velado. Não devemos
deixar de lado o ainda não pensado. É justamente por ser este não pensado que
devemos persegui-lo ainda mais. Os pensamentos do grande filósofo alemão abrem
novos caminhos para o pensamento metafísico. Muitos deles ainda não trilhados e estão
esperando.
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, FW Assim Falou Zaratustra . São Paulo - Companhia das Letras: 2011