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Heidegger e Nietzsche: O Pensamento Metafísico como

Visão e Enigma
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João silvério 23 de março de 2021

Neste artigo, exploraremos, com as orientações de Heidegger, a emblemática figura do


Zaratustra de Nietzsche e os ensinamentos fundamentais que o rondam em busca de um
caminho ainda não muito explorado para a metafísica, vista como visão e enigma.

Para Martin Heidegger (1889 - 1976), o levantar de um mundo é abrir um confronto (


Auseinandersrtzung) Ao estudar uma obra filosófica estamos levantando o mundo de seu
autor e, portanto, sua história, problemas, pensamentos, ideias. Desta forma, esse
levantar, gera um conflito direto entre o nosso mundo e o mundo do autor. Por essa
razão, Heidegger diz que fazer Filosofia é entrar em confronto direto com a tradição. Não
para apontar seus erros e contradições, mas sim, torna-la viva. Entretanto, é obvio que
não se pode reconstituir o mundo de um autor de forma totalmente fiel, pois, sempre
seremos homens de nossa era (moderna ou pós-moderna) pensando um homem de
outra hera. Portanto, deve-se-se ter cautela para não nos tornarmos anacrônicos e
tirarmos originários que não têm vinculo algum com o pensamento do autor escolhido. É
assim que Heidegger desenvolve o método rememorante (Andenken ), que consiste em
se debruçar em um texto e pensar em conjunto com o autor. Não para refutá-lo ou
denegri-lo, mas para que a partir desta volta, seja possível desdobrar seu pensamento e,
consequentemente, explorar caminhos não desenvolvidos e talvez nem mesmo
pensados. Devemos nos entregar ao pensamento de um texto para que seja possível
sua compreensão - mesmo que não seja em sua totalidade. Só assim é possível superar
a tradição, isto é, mergulhar de forma ainda mais profunda em suas questões.

Aqui, nosso objetivo é confrontar as ideias de Friedrich Nietzsche (1844-1900), nos


utilizando da visão de Heidegger em seu texto Quem é o Zaratustra de Nietzsche? Para
compreender a obra de Nietzsche devemos entrar em seus pensamentos, levantando o
seu mundo. Juntamente com o texto de Heidegger passaremos por alguns capítulos da
mais famosa e incompreendida obra de Nietzsche: Assim Falou Zaratustra .

Heidegger inicia seu texto de maneira muito interessante: destrinchando o papel de


Zaratustra a partir do título. Como sabe-se, o título completo do livro é Assim Falou
Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (1883 - 1885). Mas como um livro pode ser
para todos e para ninguém? É intrigante como Nietzsche desde o princípio soube que
sua obra iria causar incômodo. Zaratustra, é de fato um livro para todos, pois, qualquer
um pode abri-lo, ler suas páginas e achar um livro pelo menos interessante. Porém,
também é para ninguém , pois não consegue extrair os pensamentos mais profundos do
autor, compreender seus dados e ouvir sua voz conforme as deficiências do mundo
moderno. Muitos fizeram e farão uma leitura superficial da obra, lendo-a como um livro
qualquer.Zaratustra é muito mais. É uma obra que incomoda, extremamente atual, de
genialidade ímpar e que recusa a mediocridade. Por isso, devemos dar atenção aos
pensamentos de Nietzsche com a orientação orquestral de Heidegger.

Avançando no texto, Heidegger continua a “brincar” com as palavras que compõem o


título da obra, para assim, dar início a uma série de especificações da filosofia de
Nietzsche. Ora, se a obra se chama Assim Falou Zaratustra , deve-se imaginar que esse
tal de Zaratustra tem algo a nos dizer, uma mensagem talvez. Mas o que pode ser essa
mensagem? No capítulo intitulado “O convalescente”, uma personagem criada por
Nietzsche acorda de sua cama gritando e agonizando. Assim que ouviram os gritos, seus
animais logo aproximaram-se de Zaratustra. Vejamos como palavras que Nietzsche tira
da boca de sua personagem:

Sobe, pensamento abismal, de minha profundeza! Eu sou teu galo e teu alvorecer,
verme adormecido! De pé, de pé! Minha voz te despertará como o canto do galo!
Desata os grilhões de teus ouvidos: escuta! Pois eu quero ouvir-te! De pé, de pé!
Aqui há trovão bastante, até os túmulos aprenderão a ouvir! E limpa o sono de teus
olhos, e tudo de imbecil e cego! Escuta-me também com teus olhos: minha voz é
um remédio também para cegos de nascença. E, uma vez desperto, deverás ficar
eternamente desperto. Não é meu habito acordar bisavós para dizer-lhes que -
continuem a dormir! Movimentos rápidos, te espreguiças, rouquejas? De pé, de pé!
Não deves rouquejar - mas falar! Zaratustra te chama, o sem-deus! Eu, Zaratustra, o
advogado [porta-voz] da vida, o advogado [porta-voz] do sofrimento, o advogado
[porta-voz] do círculo - chamo a ti, meu pensamento mais abismal! Viva! Estás
vindo - eu te ouço! Meu abismo fala, minha derradeira profundeza eu consegui
trazer à luz! Viva! Vem! Dá-me a mão - - ah! Larga! Ah! Ah! - Nojo, nojo, nojo - - - ai de
mim!

Para compreendermos o que Nietzsche quis dizer na citação, devemos ir por partes.
Tomemos o texto de Heidegger como guia. Heidegger cita: “Eu, Zaratustra, o porta-voz da
vida, o porta voz da dor, o porta voz do círculo…” (HEIDEGGER, 2008, p. 88). O que é ser um
“porta-voz”? O que é essa “vida”? O que é essa “dor”? O que é esse “círculo”? A partir de
agora, adentraremos ainda mais fundo nos conceitos da filosofia de Nietzsche.
O que significa ser um “porta-voz”?

Zaratustra, como falamos, é aquele que se anuncia como a porta-voz da vida, da dor e do
círculo. Ser um porta-voz implica em passar uma mensagem ou aviso; é aquele que fala
por alguém ou por algo; passa mensagem especificada que não foi necessariamente
forjada por ele. Em muitas passagens, Zaratustra está acompanhado (seja por seus
animais ou discípulos) e falando de algo para alguém, como um mestre. Portanto,
Zaratustra é o mestre que anuncia a vida, a dor e o círculo. Sigamos com as palavras de
Heidegger:

[…] Na linguagem de Nietzsche, 'vida' significa: a vontade de poder como traço


fundamental de tudo que é e não só do homem. O que 'dor', 'padecer' significa,
Nietzsche diz com as seguintes palavras: 'Tudo que padece quer viver…'. Tudo, ou
seja, tudo que é segundo o modo de ser da vontade de poder. Isto quer dizer: 'As
opções configuradoras se chocam'. 'Círculo' é o sinal do anel, cujo anelar-se volta a
si mesmo e assim conquista sempre o eterno retorno do igual ”

Após essa breve explicação de Heidegger, pode-se cumprir que Zaratustra é o mestre
porta-voz da vontade de poder e do eterno retorno do igual. Vejamos então o que são
esses conceitos dentro da filosofia de Nietzsche.

O que significa vontade de poder?

Quando buscamos na tradição filosófica o significado de vontade, percebemos que o


conceito está presente desde a época da Filosofia Clássica. Em Aristóteles, a preferência
aparente nos tratados De Anima e Ética a Nicômaco : a vontade é uma apetição racional
voluntária da faculdade da alma intelectiva humana. Em Nietzsche temos vontade de
poder, algo novo em relação às outras interpretações da tradição. Não se pode cristaliza-
la como uma faculdade da alma. O significado de Vontade aqui é para além do homem -
tanto que Nietzsche direciona uma crítica para Schopenhauer afirmando que ele reduziu
a vontade de uma antropologia.Na concepção de Nietzsche, a vontade de poder tem
caráter cosmológico, ela atravessa tudo que possui vida; se: onde há vida, há vontade
de poder, é a vontade pela vontade. Vontade é um eterno devir: subir e descer; nascer e
padecer; criar e destruir, sem fim. É aquilo que tudo abarca e a tudo dá sentido, mesmo
ir contra essa vontade é afirma-la, pois tudo ela move. Vontade de poder aqui é o dizer
sim para a vida, aceitar a vida como ela é. Aqui, vale-se destacar outro conceito
fundamental de Nietzsche que é anunciado por Zaratustra pela primeira vez em seu
prólogo: o super-homem. Zaratustra ao descer as montanhas que habitava quando
completara trinta anos, avista uma cidade e decidir aproximar-se. Ao chegar à cidade,
ouve que um equilibrista fora do anunciado, e logo começa a falar:“Eu vos apresento o
super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? […]
Vede, eu vos ensino o super-homem! O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa
vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra! ” (NIETZSCHE, 2011, p. 13-14). Em
Nietzsche, o super-homem é aquele que supero o homem, o para-além-do-homem. O
super-homem é aquele que permanece fiel a terra e não se projeta para vidas supra-
terrenas. Ele ama a terra, ama a vida da forma que ela é, seja na dor seja no gozo. O
super-homem é aquele que faz a transvalorização dos valores, ou seja, ele cria seus
valores próprios sem torná-los dogmas, e que, por isso tem a necessidade de
constantemente abandoná-los e criar novos valores. Ele não cristaliza a vida, ele se torna
fluida. Zaratustra logo a frente - ainda na cidade - diz:“O homem é uma corda, atada entre
o animal e o super-homem - uma corda sobre o abismo.” (NIETZSCHE, 2011, p. 16). Essa
passagem significa que o homem - como já foi dito - é algo que deve ser superado, ele é
uma ultrapassagem. O homem é a ponte entre o animal e o super-homem, deve possuir
declínio pois só assim chegará ao outro lado. O homem diz sim a vida e essa afirmação
transborda-o. Aproprie-se da força (ou Vontade) que se mova no universo, constitua-se
no movimento da auto-superação, aceite-se, destrua-se e torne-se novamente.

Que é, pois, o eterno retorno do igual?

Na citação extraída de Assim Falou Zaratustra, logo no início, Zaratustra diz: “Sobe,
pensamento abismal, de minha profundeza!”(NIETZSCHE, 2011, p. 207). O que é esse
pensamento mais abismal de Zaratustra que o faz retrair-se e agonizar? No capítulo
intitulado “Da visão e do enigma”, Zaratustra conta a seus discípulos sobre um encontro
que teve com um anão. Zaratustra estava subindo uma montanha e, em certo momento,
encontrou seu maior inimigo, o espírito de gravidade aqui encarnado na figura de um
anão, o qual pediu para que carregasse-o nas costas. Ao aceitar, o pedido do anão,
Zaratustra colocou-o em suas costas e pôs-se a caminhar. Depois de um certo tempo de
caminhada, ambos adquiridos um portal com o nome de “Instante”, e logo Zaratustra
indaga o anão sobre os dois caminhos que se encontra na face do portal. Zaratustra diz
que ninguém trilhou os caminhos e questiona o anão se ele acha que em algum
momento eles se encontram ou se contradizem eternamente.“Tudo o que é reto mente” ,
e ainda, “Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo” (NIETZSCHE, 2011, p. 150).
Zaratustra ao ouvir tais palavras enche o peito de fúria e grita com o anão dizendo que
ele está simplificando e dando uma resposta rápida e medíocre para sua pergunta.
Nesse capítulo, o eterno retorno - o pensamento mais abismal de Zaratustra - nos é
predefinido. Para o nosso filósofo “[…] o homem deve ser isso para o super-homem: uma
risada, ou vergonha”(NIETZSCHE, 2011, p. 14). Em outros momentos, Nietzsche fala que
o homem é um animal que sente vergonha. O que isso quer dizer? O homem não
consegue ao menos escutar sua voz sem sentir ódio. Ele constantemente foge de si, seja
para outros mundos, planos, eras, lugares. Ele não aceita a realidade como tal. O eterno
retorno, nesse caso, é uma aceitação de si, aceitação da realidade e, em especial, da
vida. Mas não só aceita, é o anseio por ela. Conforme já explicitado, quando tratamos da
vontade de poder, que é justamente algo que ultrapassa as coisas que possuem vida -
uma vontade cósmica - é necessário ter o anseio pelo eterno retorno. “Torna-te aquilo
que és” uma passagem de Píndaro que Nietzsche constantemente torna-se-se ainda
mais evidente. Aceite-se e, portanto, ama-te para que possa superar-se.Porém, no fim -
como acentua Heidegger - o eterno retorno ainda pendente como visão e enigma, como
mistério. É um pensamento que, do mesmo modo que agimos com um mestre, deve ser
questionado e permitido em aberto, sujeito a novas interpretações.
Mas, afinal, quem é o Zaratustra de Nietzsche?

Como vimos, os conceitos da filosofia de Nietzsche estão conectados entre si. Mas
ainda falta uma peça fundamental: Zaratustra. Zaratustra é o que anuncia o eterno
retorno e a vontade de poder. Vontade de poder, eterno retorno e super-homem estão
conectados. Aqui, Zaratustra é o anunciante do eterno retorno. O super-homem é
anunciado pelo mesmo no prólogo da obra. Mas a vontade de poder é senhora de si
mesma, é sóbrio. Mesmo que a neguemos, ainda estamos dentro dela, somos
perspectivas da vontade de poder, que constantemente aquece e esfria nossos
corações. Dela não há escapatória. Então, Zaratustra é o mestre que anuncia a vontade
de poder e o super-homem. Ele é uma chave para que seja possível compreender as
lições. Ele é uma ponte que deve ser atravessada. Portanto, Zaratustra é aquele que
ensina o eterno retorno e o super-homem; aquele que anuncia o super-homem e o eterno
retorno. Ademais, Zaratustra só é o mestre que anuncia o eterno retorno pois ele é o
anunciante do super-homem. Portanto,“Como as doutrinas se co-propriedade num círculo”
(HEIDEGGER, 2008, p. 104).

Mas todo mestre precisa ser superado e toda ponte deve ser atravessada. Para
Nietzsche, a maior vergonha de um aluno é não superar seu mestre. Os ensinamentos de
Zaratustra, são a sintese de toda uma tradição metafísica. Mesmo que Nietzsche tente
fugir disso ele acaba mergulhando nas profundezas do pensar metafísico. Os
pensamentos do filósofo acabam levando a metafísica ao seu extremo, ele vai além. Mas
esse “ir além” não significa um progresso, mas sim, um retornar; e o retornar não é uma
retração, mas um ir ainda mais fundo que se torna um salto para além do pensamento.
Portanto, confrontar Nietzsche, não é refutá-lo, mas, ir até o cerne de seus
pensamentos, é pensar novamente com ele. Os pensamentos de Nietzsche trazem uma
consumação da metafísica, ou seja, tornam-se ela ainda mais extrema. Mas o
pensamento metafísico levado ao extremo, consequentemente gera algo impensado, ou
seja, como visão e enigma.

É justamente por vistos como visão e enigma que devemos constantemente revisitar
Nietzsche. Pensar novamente com ele pode nos revelar algo ainda velado. Não devemos
deixar de lado o ainda não pensado. É justamente por ser este não pensado que
devemos persegui-lo ainda mais. Os pensamentos do grande filósofo alemão abrem
novos caminhos para o pensamento metafísico. Muitos deles ainda não trilhados e estão
esperando.

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências . Petrópolis: Vozes, 2008

NIETZSCHE, FW Assim Falou Zaratustra . São Paulo - Companhia das Letras: 2011

HEIDEGGER, M. Marcas do Caminho . Petrópolis: Vozes, 2008

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